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Débora Araújo
Débora Araújo
Irecê/BA
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Erva Daninha
— De hoje não passa – ela diz, sentando ao seu lado.
Tira a mão do bolso casaco, segurando um frasco com algumas pílulas dentro.
Ele olha como se nunca tivesse visto aquilo antes, embora sua mãe tomasse duas daquelas todas as noites para conseguir dormir. — Você foi à farmácia? — é a única coisa que consegue perguntar.
Ela assente com a cabeça e leva a mão ao outro bolso do casaco. Pega um cigarro e o coloca entre os lábios, aproxima o isqueiro, mas têm que pressionar o botão umas três vezes até que ele acenda.
Ele se lembra dela no estacionamento da escola, anos antes disso tudo acontecer, rodeada de colegas, o cigarro sempre aceso na boca. Até então ele pensava que as únicas pessoas que fumavam era gente velha, quando já não tinham o menor ânimo para viver. Sabia que havia formas mais rápidas de se tirar a própria vida, mas a maior parte da população preferia métodos mais lentos e dolorosos, como bebidas, cigarros e se afogar numa rotina de trabalho e pagamento de contas. Ora, o próprio fim do mundo não foi um grande suicídio coletivo, lento e doloroso? — Estou aliviada de ter encontrado isso. – Ela o desperta dos seus devaneios. — Aquelas giletes estavam enferrujadas demais para o meu gosto. Também não sei se conseguiria fazer direito. Sem internet é meio difícil, sabe — fala, enquanto fixa os olhos no cigarro preso entre o dedo indicador e o médio.
— Sempre achei que você gostaria de um fim mais teatral — ele brinca e ela dá uma risadinha.
— Você é minha única plateia e é meio apático, na verdade.
É importante que ela diga “é”, ao invés de “está”, ele observa. Sempre achou que o fim do mundo traria grandes mudanças, porém enquanto aguarda o pôr do sol no maldito pósapocalipse, ele percebe que é o mesmo que esperava sua mãe colocar um prato de comida à sua frente todas as noites na hora da janta.
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— Você... deveria esperar mais um pouco — ele diz hesitante, porque da última vez que falou algo parecido, as coisas terminaram com ele dizendo que era dever deles repovoar a terra e ela berrando, possessa que nem a merda do fim do mundo a faria transar com alguém com o único objetivo de procriar e que ele deveria tratar o seu complexo de Adão e Eva. Se ele não tivesse tão assustado com ela, teria rido, porque a droga de um terapeuta é exatamente a coisa mais urgente quando o planeta está dando seus últimos suspiros. Bem, ela não se matou, entretanto sumiu por três dias e foram os três dias mais agonizantes para ele.
No entanto, dessa vez ela apenas lhe dirige um sorriso triste. — Mas não há o que esperar. Será isso todos os dias — fala baixinho e é um daqueles raros momentos em que ela aparenta assumir ter consciência da situação em que se encontram. Talvez seja a primeira vez que ele perceba que a ideia de se matar não é algo verdadeiramente divertido para ela, foi só uma piada mórbida que criou na tentativa de ter algum plano, quando não há mais nada para se fazer. — É estranho, mas eu gostaria que a gente tivesse se aproximado antes — ela diz timidamente.
Ele franze o cenho. Não gostava dela na época que estudavam juntos, era problemática e arrogante, porém, olhando para trás, ele não era melhor que ela: chato, tentando fazer tudo tão absurdamente certo. Não se recordava de ter se divertido uma única vez, entretanto, tinha sorrido um monte desde que a encontrou andando sem rumo nas ruas vazias.
O sol começa a se pôr e é um dos seus momentos preferidos. O laranja do céu tem um tom diferente agora, ele não conseguiria descrever, mas é uma das coisas mais lindas que ele já viu. Muda de ideia, segundos depois, quando olha para o lado e repara nela. Os cachos de seus cabelos estão bagunçados como de costume. Ele sabia que toda manhã ela tentava desembaraça-los com os dedos, contudo perdia a paciência e deixava pela metade. Uma brisa passa e traz alguns fios de cabelo para o seu rosto iluminado pela cor alaranjada do céu, os quais ela tira meio brava, como se não quisesse perder um segundo das poucas coisas bonitas que existe nessa Terra. É, ele também não quer.
Ela deve ter sentido os olhos dele pousados nela, porque vira para encará-lo. Assim ele pode ver seus olhos, seus grandes olhos castanhos iluminados pelo restinho de luz solar, nota ainda que o olhar dele está causando um leve rubor em suas bochechas.
— O que foi? — ela tenta soar com raiva, contudo o sorriso de canto de boca entrega tudo. — Estamos no maldito fim de tudo e a única coisa que me faz
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perder o sono é quando você senta aqui do meu lado e diz que vai ser hoje.
As palavras saem numa urgência que o surpreende. É de se imaginar que quando tudo ao seu redor vai chegando ao fim, se tenha pressa para as coisas. Não foi o que aconteceu a ele. Não sentiu muita coisa quando seus amigos morreram, quando seus pais se foram, quando o que conhecia acabou. Talvez se manter anestesiado foi o que fez com que conseguisse passar por tudo e hoje não fizesse parte dos corpos que se acumularam em cordas nas árvores, nos silêncios apavorantes das casas, nos carros horripilantemente ocupados e ao mesmo tempo abandonados nas ruas.
No entanto, a iminência de perdê-la nessa altura do campeonato pareceu despertar alguma coisa nele. Era possível falar de amor em um período onde quase nada mais florescia? Pareceu-lhe que este tipo de sentimento conseguia nascer nos momentos mais adversos, como uma erva daninha que consegue passar por todo o concreto e chegar à superfície.
Ela ainda está olhando para ele, parecendo ler sua mente. — Se te serve de consolo, acho que seríamos um casal de merda, mesmo em tempos normais. — Ela para, pensando um pouco. — Principalmente, em tempos normais.
Os dois riem.
— Mas adoraria ter dado tão errado com você — ela fala com uma expressão séria.
Ele segura sua mão e é o primeiro contato físico que eles têm. Já tinha estado com outras garotas e sabia que na vida dela existiu um rapaz, porque ela contou na noite em que acharam vodca. Mas as mãos dos dois, suadas e juntas... Nossa, que momento delirante é para ele!
Ficam ali até que findo o último raio de sol e não ligam que suas mãos estejam tão encharcadas.
Na volta para casa não falam nada, ela entra no seu quarto e ele no dele.
Fica deitado, sabendo que não vai dormir. Nunca passa por sua cabeça impedi-la quando ela fala que será hoje, não concretamente. Secretamente, imagina-se indo até seu quarto, implorando que não o deixe, que fique mais um pouco, que a vida com ele pode ser boa, mesmo que tudo esteja apontando para o contrário. Mas ele nunca vai, assim como também não vai agora. Para ele o fato de não impedi-la não significa que não a ame. Muito pelo contrário. Deixa-la ir é o ato menos egoísta nesse momento.
Pergunta a si mesmo quanto tempo ficará aqui depois que ela se for. Não quer ficar por muito tempo, mas não irá fazê-lo imediatamente.
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Ela merece que alguém sofra pela sua ausência por algum tempo. Irá acumular em si a falta de todos que ela conhecia, sentiriam do seu sorriso.
A porta do seu quarto se abre. Ele se assusta e sobressaltado se senta. É ela. Está segurando uma vela em frente ao rosto e está nua, mas a primeira coisa que ele procura são sinais de choro, não há, apenas um semblante sério. Ela fica parada e demora para ele perceber que ela quer ser olhada, então ele olha.
Ela se aproxima e senta na beirada da cama, colocando a vela sobre o criado mundo.
— Não será hoje então? — ele sussurra.
— Pode esperar — sussurra de volta e o beija.
Nesse momento ele não quer saber se o “pode esperar” significa ainda naquela noite ou dali a alguns dias, ele só a traz para junto de si.
Lá fora o mundo continua a ruir.