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Marcos Malagris
Marcos Malagris Rio de Janeiro/RJ
O Tombo
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Seu Antônio avançou pela pracinha com convicção. A convicção de um homem que caminha desde seu primeiro ano de idade. Uma habilidade conquistada a duras penas no início de sua vida e aperfeiçoada ao longo dos anos, até atingir o estágio de maestria. Seu Antônio caminhava com a mesma graça que uma ave voava. Ou que um peixe nadava.
E era bom nisso. Tão bom quanto um ser humano médio pode ser.
Não obstante, sua estimativa sobre qual deveria ser o tamanho de um degrau normal também havia sido construída ao longo de seus cinquenta e dois anos de idade, com base em uma vasta amostra de todos os degraus que já havia subido em sua vida até aquele momento. Era uma noção bastante apurada, ainda que não tivesse plena consciência disso. Se lhe perguntassem, não saberia dizer. Mas subia degraus todos os dias, não costumava errar.
Aquele, no entanto, não era um degrau normal. Era uma aberração. Poucos centímetros mais alto que a concepção do degrau perfeito, que de alguma forma fazia morada no cérebro experiente de Seu Antônio.
Para piorar, naquele dia usava pela primeira vez o sapato que sua filha lhe deu de aniversário. Era um pouquinho maior que seu pé, mas não o suficiente para valer o trabalho de ir na loja trocar. O danado era bonito. Couro legítimo com acabamento de camurça, marrom clarinho, cor de areia. Um clássico. Mas isso não apagava o fato de que era, de fato, um pouquinho maior do que seu pé, assim como o degrau era um pouquinho maior do que o previsto. A tempestade perfeita.
O bico do sapato de camurça de Seu Antônio beijou a quina do degrau na calçada da praça. Um beijo roubado, que dava início a uma relação conturbada. Um amor que nunca seria. E uma batalha contra a gravidade, onde o favorito não era Seu Antônio.
No amor e na guerra vale tudo, e Seu Antônio não desistiria tão fácil de ficar em pé. Mesmo com seu eixo inclinado alguns graus para frente. Mesmo com seu centro de gravidade perdido em algum canto. A luta ainda não estava perdida.
O cérebro de Seu Antônio começou a pôr seu plano em prática. Se corresse um pouco mais rápido, aumentando sua velocidade, talvez conseguisse retomar o equilíbrio.
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Lembrou-se de sua doce infância, e de como andava de bicicleta pelas ruas de terra do bairro. Lembrou-se de quando aprendeu a pedalar com seu avô, que o chamava de Toninho, e do ensinamento de quando prestes a cair, pedalar mais forte para aumentar a velocidade. Para ganhar momento, e retomar o equilíbrio.
E foi o que fez. Mas era difícil, já que nada parecia estar onde deveria. Cima parecia baixo, baixo parecia lado, lado parecia chão. O mundo parecia virado do avesso. No entanto, o instinto do jovem Toninho o dizia para continuar a pedalar.
Com o pé direito, projetou-se para frente. Ainda não era o suficiente para retomar a postura. Fez o mesmo com o esquerdo. Nada. A tragédia se anunciava, aproximando-se mais rápido que antes. Mais uma vez usou os pés em sequência para impulsioná-lo à frente, na infrutífera esperança de erguer-se novamente como um homem ereto. Todos os anos de evolução de sua espécie o levaram até ali. Todos seus cinquenta e dois anos de vida, toda a prática adquirida em caminhar.
As pessoas na praça observavam, atônitas, ao senhor que ganhava tração, correndo inclinado junto ao solo, em uma luta vã e desesperada contra o inevitável. Seus rostos se franziam, contorciam-se prenunciando o desastre. Os limões de sua sacola já há muito rolavam pelo chão, desfilando na frente do homem que era orgulhoso demais para se render ao abraço do solo.
Nos breves instantes de luta pela dignidade, o conceito de tempo em si parou de fazer sentido, e Seu Antônio se deparou com a verdadeira sensação de estar vivo. Ali, naquele exato instante, catando cavaco, Seu Antônio se deparou com o segredo do mundo, e de todas as outras coisas que aqui estão. O amor, a tristeza, a glória… A sensação era fugaz, mas universal. Primordial. Fundamental. Era a resposta de tudo, antes mesmo que pudesse elaborar qualquer pergunta.
Foi neste momento que parou de lutar. Distraiu-se com a realizaçãouna e foi forçado a aceitar a queda. Ali, no chão da praça, permaneceu deitado. Com o lado do rosto colado na pedra portuguesa por onde tantos passavam todos os dias - apressados, atrasados, em luto, distraídos, recémpromovidos e os ansiosos por sua casa. Esperava o conforto daquela sensação voltar, mas era tarde demais. Durou apenas um efêmero instante. Mas ali, exatamente ali, entendeu seu papel no grande esquema das coisas. - Meu senhor, você está bem? ouviu uma voz jovem atrás de si.
E então a sensação perdeu-se de vez, sem esperança de regresso. Tarde demais.
Lentamente Seu Antônio se reergueu. Agradeceu a preocupação da jovem, e pôs-se a catar seus limões.