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Rosângela Martins
Rosângela Martins Rio de Janeiro/RJ
Refexos Do Passado
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Chego na pracinha com Sheik. Cansada de caminhar, espero que ele se decida a fazer logo a sua sujeira para eu voltar à minha rotina de empregada doméstica.
A praça São Salvador tem poucos balanços e um escorregador que raras crianças utilizam. Afinal, qual a mãe que deixaria seu filho desembocar em uma poça de lama? Mães zelosas protegem seus filhos. É que ontem choveu. No Rio de Janeiro é assim: faz o maior sol de manhã e ao final da tarde desagua aquele toró. Mas os meninos que batem bola no meio da pracinha não querem nem saber. Todos os quatro estão com a camisa do Brasil. Quanta besteira esse negócio de futebol. Que é bom brincar na chuva eu sei. Na lama é nojento. Os gritos dos meninos me soam familiares. Não faz tanto tempo, eu também era uma criança.
Os garotos ficavam bastante agitados e barulhentos nos dias de visita. Natural. Domingo era o dia mais aguardado. Quem não queria a chance de ganhar uma família? Corriam de um lado a outro. Eu não podia correr. Ganhávamos brinquedos, lanches, contavam-nos histórias... Eu preferiria ter um cachorro. Uma das meninas disse ter visto um cachorro na diretoria. Podia ser mentira. As crianças mentiam por brincadeira. Gostavam de pregar peças umas nas outras. Eu quis acreditar, tinha que ir olhar. A porta da sala da diretoria estava fechada. Colei o ouvido nela e ouvi o meu nome. Ainda escutava o som distante da música no pátio — um disquinho de cantigas de roda — , mas era, sim, o meu nome: “Heloísa”, com todas as letras. Um homem e uma mulher conversavam com dona Clotilde sobre mim. Na certa, pensavam em me adotar. Meu coração nem acreditou. Ficou mais alvoroçado do que as crianças no pátio. As grandes eram quase impossíveis de serem adotadas, enquanto muitos dos pequeninos ficavam poucos meses entre nós. Eu estava com dez anos e ainda por cima era manca. Quem iria me querer? Eles faziam muitas perguntas à diretora do orfanato. Mas apenas de uma das respostas eu jamais esqueci. — Ah! Pobrezinha! Foi uma tragédia na família dela. Teve até assassinato.
Uma bola acerta o meu rosto, bem na bochecha, e me tira do transe. Quase caio do banco de ferro da praça. Sem largar a guia de Sheik, passo a mão no rosto. Parece não estar sujo. Abaixo-me e apanho a
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bola para esperar o pestinha vir buscala. Logo, surge uma senhora, com um garoto todo desconfiado, escondendo-se por trás dela. — Moça, me desculpe. — Ela puxa o garoto para frente. — Eduardo Júnior, pede desculpa à moça!
Com certeza a boca dele se mexe. — Eu já falei pro Júnior que a praça é pequena e não pode chutar forte. Você está bem?
Meu rosto lateja e não tenho dúvidas de que ficou ao menos com uma marca rosada. Será que sujou? — Tudo bem — falo devolvendo a bola, rolando-a no chão. Sheik late. Bastante. Creio que ele também não gostou do menino. O quanto tenho que me conter para não arrumar mais confusão com o pessoal do bairro! Já me bastam as discussões na mercearia. E tudo porque eu não podia enfrentar a fila por haver deixado uma panela no fogo. Nem entro mais lá. Um bando de mal-educados, é o que são. — Vamos, Sheik. Já está bom.
O cachorro pequinês cisca com as patas traseiras anunciando que já fez as necessidades dele no meio fio. Comportou-se bem e é hora de retornar aos braços de seu Haroldo. O seu dono é o vizinho do apartamento de cima. Logo que se mudou, fizemos amizade. Seu cãozinho peludo, de andar engraçado — caminha rebolando e balançando o rabo erguido — é possuidor de um gênio amargo e de atitudes de poucos amigos. Acho que foi por isso que desde o início o cão não me estranhou. Almas gêmeas.
Paro diante do chafariz recémdesligado e procuro o meu rosto na água agora parada. Vejo ali o crime que meus pais cometeram: o reflexo de uma infância morta, afogada pelo abandono e com os pulmões encharcados de revolta.
@ro_.martins | Linktree