LiteraLivre Vl. 6 - nº 32 – mar./abr. de 2022
Rosângela Martins Rio de Janeiro/RJ
Refexos Do Passado Chego na pracinha com Sheik. Cansada de caminhar, espero que ele se decida a fazer logo a sua sujeira para eu voltar à minha rotina de empregada doméstica. A praça São Salvador tem poucos balanços e um escorregador que raras crianças utilizam. Afinal, qual a mãe que deixaria seu filho desembocar em uma poça de lama? Mães zelosas protegem seus filhos. É que ontem choveu. No Rio de Janeiro é assim: faz o maior sol de manhã e ao final da tarde desagua aquele toró. Mas os meninos que batem bola no meio da pracinha não querem nem saber. Todos os quatro estão com a camisa do Brasil. Quanta besteira esse negócio de futebol. Que é bom brincar na chuva eu sei. Na lama é nojento. Os gritos dos meninos me soam familiares. Não faz tanto tempo, eu também era uma criança. Os garotos ficavam bastante agitados e barulhentos nos dias de visita. Natural. Domingo era o dia mais aguardado. Quem não queria a chance de ganhar uma família? Corriam de um lado a outro. Eu não podia correr. Ganhávamos brinquedos, lanches, contavam-nos histórias... Eu preferiria ter um cachorro. Uma das meninas disse ter visto um cachorro na diretoria. Podia ser mentira. As crianças mentiam por
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brincadeira. Gostavam de pregar peças umas nas outras. Eu quis acreditar, tinha que ir olhar. A porta da sala da diretoria estava fechada. Colei o ouvido nela e ouvi o meu nome. Ainda escutava o som distante da música no pátio — um disquinho de cantigas de roda — , mas era, sim, o meu nome: “Heloísa”, com todas as letras. Um homem e uma mulher conversavam com dona Clotilde sobre mim. Na certa, pensavam em me adotar. Meu coração nem acreditou. Ficou mais alvoroçado do que as crianças no pátio. As grandes eram quase impossíveis de serem adotadas, enquanto muitos dos pequeninos ficavam poucos meses entre nós. Eu estava com dez anos e ainda por cima era manca. Quem iria me querer? Eles faziam muitas perguntas à diretora do orfanato. Mas apenas de uma das respostas eu jamais esqueci. — Ah! Pobrezinha! Foi uma tragédia na família dela. Teve até assassinato. Uma bola acerta o meu rosto, bem na bochecha, e me tira do transe. Quase caio do banco de ferro da praça. Sem largar a guia de Sheik, passo a mão no rosto. Parece não estar sujo. Abaixo-me e apanho a