2 minute read
Maura Ferreira Fischer
Maura Ferreira Fischer Canoas/RS
Um Lar
Advertisement
O aroma do café sempre lhe deixava inebriada e agora despertava recordações, acompanhadas de uma profunda saudade.
Ali da cozinha podia enxergar a lareira que outrora acenderam juntos pela primeira de muitas vezes.
Naquele dia, bem cedo dois homens tocaram a campainha do pequeno apartamento onde moravam. Um era musculoso e o outro surpreendentemente franzino. Sob o olhar impassível do motorista do caminhão baú, ambos carregaram, sem o menor cuidado, a mobília, as araras com roupas e todas aquelas caixas meticulosamente identificadas. Nas últimas semanas, ela havia embalado os pertences do casal de forma diligente. Dedicou maior cuidado àqueles que lhes eram mais estimados: a porcelana cara que ficava guardada para as ocasiões especiais, os souvenirs das viagens e os discos de vinil... Ah, os vinis!
Depois que o caminhão partiu, giraram pela última vez chave naquela porta e rumaram de carro para a casa nova.
Enquanto se perguntavam se a mudança chegaria intacta, ele inflou um colchonete e ela serviu duas canecas fumegantes do café que trouxera em uma garrafa térmica. Fazia muito frio e ainda não tinham energia elétrica, mas a sala estava iluminada por alguns raios de sol que adentravam pela grande vidraça da frente.
Ficaram sentados ali, lado a lado, vendo o fogo crepitar. Falaram sobre a distribuição dos móveis e as flores que plantariam no jardim. Imaginaram as crianças correndo de pés descalços no piso encerado de tábuas corridas e andando de bicicleta pelas calçadas. Discutiram sobre os planos para o futuro. Discordaram sobre a cor com a qual pintariam as paredes. Foi naquele exato momento que a casa se transmutou em um lar.
Passado tanto tempo desde aquele dia, as lembranças das risadas que ecoavam no quintal, da mesa farta dos domingos, das leituras silenciosas na cama à noite e das tantas garrafas de vinho divididas, muitas vezes traziam mais dor do que alegria.
173
Agora, sem ele, havia momentos em que não sentia vontade de nada, apenas esperava o tempo passar. Era como se a vida tivesse se tornado uma interminável sucessão de dias vazios.
Emergiu de tais pensamentos ao sentir aquela pequena, rechonchuda e morna mãozinha puxar seu braço, ao mesmo tempo em que ouvia a voz doce dizer: - Vovó, os biscoitos estão prontos?
Os cabelos da neta, quase tão beges quanto a cor daquelas paredes, lhe fizeram recordar as colinas da Toscana que admiraram juntos em um verão. A imagem dos vastos campos ondulados sob a luz dourada do sol encontrava-se eternizada em uma foto sobre aquela mesma velha lareira.
Abriu a cristaleira. Pegou uma das belas travessas daquela louça especial. Serviu os cookies quentinhos, recém-saídos do forno. Colocou-a sobre lençol estendido na grama do jardim, ao lado das xícaras e do bule com leite e café.
Sentou-se na almofada de seda chinesa e observou a menina que dançava displicentemente sua música imaginária, como uma linda e livre borboleta, girando ao redor do piquenique improvisado. Sorriu.
Já era tempo de criar novas memórias.
@mauraferreirafischer