LiteraLivre Vl. 6 - nº 32 – mar./abr. de 2022
Maura Ferreira Fischer Canoas/RS
Um Lar O aroma do café sempre lhe deixava inebriada e agora despertava recordações, acompanhadas de uma profunda saudade. Ali da cozinha podia enxergar a lareira que outrora acenderam juntos pela primeira de muitas vezes. Naquele dia, bem cedo dois homens tocaram a campainha do pequeno apartamento onde moravam. Um era musculoso e o outro surpreendentemente franzino. Sob o olhar impassível do motorista do caminhão baú, ambos carregaram, sem o menor cuidado, a mobília, as araras com roupas e todas aquelas caixas meticulosamente identificadas. Nas últimas semanas, ela havia embalado os pertences do casal de forma diligente. Dedicou maior cuidado àqueles que lhes eram mais estimados: a porcelana cara que ficava guardada para as ocasiões especiais, os souvenirs das viagens e os discos de vinil... Ah, os vinis! Depois que o caminhão partiu, giraram pela última vez chave naquela porta e rumaram de carro para a casa nova. Enquanto se perguntavam se a mudança chegaria intacta, ele inflou um colchonete e ela serviu duas canecas fumegantes do café que trouxera em uma garrafa térmica. Fazia muito frio e ainda não tinham energia elétrica, mas a sala estava iluminada por alguns raios de sol que adentravam pela grande vidraça da frente. Ficaram sentados ali, lado a lado, vendo o fogo crepitar. Falaram sobre a distribuição dos móveis e as flores que plantariam no jardim. Imaginaram as crianças correndo de pés descalços no piso encerado de tábuas corridas e andando de bicicleta pelas calçadas. Discutiram sobre os planos para o futuro. Discordaram sobre a cor com a qual pintariam as paredes. Foi naquele exato momento que a casa se transmutou em um lar. Passado tanto tempo desde aquele dia, as lembranças das risadas que ecoavam no quintal, da mesa farta dos domingos, das leituras silenciosas na cama à noite e das tantas garrafas de vinho divididas, muitas vezes traziam mais dor do que alegria.
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