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Elton Sipp

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Rosangela Maluf

Rosangela Maluf

Elton Sipp

Uma Organização Desorganizada

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Os livros no nicho estavam organizados de forma desorganizada de propósito. Era uma tentativa de superar ou, pelo menos desafiar, o TOC (transtorno obsessivo compulsivo), algo que ela talvez leu em alguma revista ou assistiu algum vídeo na internet. Ela não sabia muito bem se estava funcionando, mas escolheu insistir mais um tempo na “organização desorganizada”... Ou como quer que se chame essa estratégia. Ela estava deitada na cama, acordada a algumas horas, o cara que ela conheceu na noite anterior, com quem veio para casa, estava deitado do lado, de bruços. Roncava baixo. Muito menos irritante do que outros com quem ela já dormiu. Era mais uma respiração profunda, não um ronco de verdade. Pensou em quantas noites fez isso... Sexo sem motivo, só por alguns momentos de prazer. Aliás, prazer que nem sempre acontecia. Sabe como é, né? Mas, ela não queria pensar nisso agora. Estava preocupada pensando no que fazer e em como fazer... De alguma forma parecia que estava revisando toda a sua vida nos últimos dias. Alguns chamam de crise de meia idade, mas ela não conseguia ver assim. Só queria algumas coisas um pouco diferentes, um pouco melhores. Talvez descobrir onde foi que ela parou de realizar o que sempre foi seu sonho. Temos disso às vezes. Começamos a nos absorver nos afazeres do dia a dia, nos compromissos e responsabilidades que vão surgindo. E com isso esquecemos de realizar nossos sonhos. Sabe aquele sonho de criança? De salvar o mundo, de tocar as nuvens, de encontrar um dinossauro. Ou qualquer outra coisa parecida. Em algum ponto da vida, por algum motivo, esquecemos de realizar. Não é que a gente deixa de sonhar isso de um momento para o outro, isso meio que se desfaz, como uma névoa da madrugada que se desfaz quando o sol começa a aquecer ela. Sabe como é? Nas últimas duas semanas ela pensava nisso com mais intensidade. E nessa manhã, uma manhã de sábado, depois de bastante álcool, muita agitação e mais uma noite com um estranho, ela acordou no fim da madrugada pensando sobre tudo isso de novo. O sol começou a clarear o lado de fora da janela e as pequenas frestas permitiam que a luz começasse a ficar mais forte. Levantou e fez um café preto, ela queria mesmo era o açúcar de uma Coca-Cola para curar

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a ressaca, mas um café preto parecia mais correto para o momento. Voltou pelo quarto e foi até a varanda. Ele continuava dormindo. Como era mesmo o nome dele? Jon? Matheus? Vince? Tanto faz, depois ela lembra. Provavelmente nunca mais vão se ver de qualquer forma, então não importa. Sentou na pequena poltrona da varanda e olhou para a cidade. A cidade é linda no amanhecer do outono. O calor do verão ainda se sentia pela manhã, mas em poucas semanas isso também vai ser diferente. A vida é de ciclos, ela pensou. Isso mesmo, a vida é de ciclos. E eu estou querendo mudar o meu. Sentiu um momento de paz com aquele pensamento. Logo os outros pensamentos voltaram e a paz se esvaiu. Olhou até onde podia, até o fim da rua. As pessoas indo e vindo pela calçada e nos carros. O sábado de manhã é mais calmo, mas ainda assim as pessoas se movimentavam. Algumas com pressa, outras com mais tranquilidade. Pensou no que aquelas pessoas podem estar passando e no que elas estão pensando. Pensou de novo nos nichos com os livros organizados de forma desorganizada. Deixou tudo para lá. Mas logo os mesmos pensamentos voltavam. É assim que funcionamos, é assim que somos. Às vezes organizados, muitas vezes bagunçados. Mudamos e ajustamos, voltamos a fazer o que fazíamos. Somos levados pela correnteza da vida, nos agarramos a alguns galhos ou outras coisas que podem nos trazer um pouco de segurança, e depois a vida muda algo e mais uma vez seguimos a correnteza. Ele acordou, veio sentar com ela na varanda. Ela comentou que ele buscasse um café. Ainda está quente. Ele foi e voltou rápido. Que braços fortes ela pensou, nem tinha percebido isso ontem à noite. Não conversaram. Ele tomou o café e ela pediu para que ele saísse. Nunca mais iriam se ver. Não foi preciso falar, os dois sabiam. Os dois tiveram o que queriam. A vida segue. Ela voltou para a varanda. A varanda parecia um templo naquele momento, sagrado para ela. Seu refúgio. É aqui que me sinto segura agora. Voltou lá para continuar pensando, onde mesmo que ela tinha parado? Já não sabia mais. Então só ficou lá para ver quais pensamentos vinham à sua cabeça. Logo pensou em quantas pessoas vivem naquela cidade imensa e em tudo o que elas podem estar passando. Ela sabia que o que ela estava passando, essa crise que ela não consegue admitir que é crise, é muito menos do que passar fome ou enfrentar alguma doença. Mas aquilo era muito presente, muito real para ela naquele momento. E isso não quer dizer que o problema dela seja maior ou menor do que o de qualquer

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outra pessoa, quando temos alguma coisa em nossa frente, aquilo toma conta da nossa atenção. Não é fácil mudar o pensamento, às vezes é impossível de se fazer a coisa mais simples como olhar de outro ângulo, com outra perspectiva. Quando algo toma nosso foco, aquilo é importante. Ela não encontrou uma resposta para o que buscava, não naquela manhã. Talvez fosse o álcool ainda na corrente sanguínea e a leve dor de cabeça, tem coisas que não resolvemos só com uma xícara de café, por maior que ela seja. Ficou mais um tempo na varanda, de camisola. O vento morno da manhã era muito gostoso. A camisola leve tocando o corpo parecia fazer carinho. Era aconchegante. Quanto tempo estou aqui? Uma hora talvez. Ou uma hora e meia... Não importa. Entrou e tomou banho. Vestiu uma roupa confortável. Essa é minha roupa de apartamento, não importa que a calça esteja furada... É a mais gostosa que eu tenho. Voltou para a varanda para mais uma olhada rápida nas ruas e nas pessoas que estavam passando por ali. Era curioso para ela o fato de hoje ela querer olhar isso... Nunca fiz isso, isso nunca foi importante para mim, ela pensou. Talvez isso seja amadurecer? Começar a prestar atenção em coisas que não prestamos atenção antes. Talvez seja só uma ressaca forte que me faz querer ignorar o cansaço. Ligou para a amiga para ver se poderiam almoçar juntas. Conversaram um pouco sobre a noite anterior e por fim decidiram almoçar juntas. Enquanto ela falava no celular organizou os livros dos nichos sem nem perceber. Talvez seja o inconsciente pedindo para organizar alguma coisa...

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