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# espectador
# curadoria
# interação
# autoria
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Revista discente do Programa de Pós-graduação em Meios e Processos Audiovisuais da ECA/USP JULHO 2017 [ISSN: 2238-8699]
NÚMERO 8 JULHO 2017
A Revista Movimento é um periódico científico semestral, organizado pelos alunos do Programa de Pós-graduação em Meios e Processos Audiovisuais da ECA/USP.
Universidade de São Paulo Reitor Marco Antonio Zago Vice-Reitor Vahan Agopyan ___
Qualis: B5 (Ciências sociais aplicadas I)
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Escola de Comunicações e Artes Diretor Prof. Dr. Eduardo H. Soares Monteiro Vice-Diretora Profa. Dra. Brasilina Passarelli ___
Todos os artigos assinados são de responsabilidade de seus autores e não refletem necessariamente a opinião da revista. A reprodução total ou parcial dos mesmos é autorizada, mediante apresentação de créditos.
Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais Coordenadora Esther Imperio Hamburger Vice-Coordenadora Irene de Araújo Machado
ISSN: 2238-8699
Imagem de capa: por Raissa Araújo Projeto editorial e diagramação: Raissa Araújo Revisão: Andréa Scansani, Carolina Soares, Danilo Baraúna, Giancarlo Gozzi, Marina Costa
___ REVISTA MOVIMENTO Escola de Comunicações e Artes ECA/USP Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais PPGMPA Av. Prof. Lúcio Martins Rodrigues, 443 - Prédio 4 Cidade Universitária - Butantã CEP 05508-020 São Paulo - SP - Brasil movimento@usp.br www.revistamovimento.net facebook.com/revimovi
Conselho Editorial Andrea Scansani, Carolina Soares, Danilo Baraúna, Giancarlo Gozzi, Gisele Frederico, Ivan Amaral, João Pedro Mota (Yan Tibet), Livia Perez, Marina Costa, Nina Giacomo, Paula Pires, Raíssa Araújo, Thiago André. Pareceristas ad hoc Fernanda Sales, Rodrigo Faustini e Thiago Venanzoni Conselho Científico Prof. Dr. Almir Antonio Rosa Prof. Dr. Cristian Borges Prof. Dr. Eduardo Morettin Prof. Dr. Eduardo Vicente Profa. Dra. Esther Hamburger Prof. Dr. Henri Gervaiseau Prof. Dr. Marcos Napolitano Profa. Dra. Mariana Villaça Profa. Dra. Marília Franco Profa. Dra. Patrícia Moran Prof. Dr. Ronaldo Entler Profa. Dra. Rosana Soares Prof. Dr. Rubens Machado Junior
A espectatorialidade e a recepção práticas conectadas Conselho Editorial
Do espanto e grito das primeiras sessões de cinema ao deslumbre do toque na tela ou da imersão em diferentes registros audiovisuais que vão do 3D ao museu. Ao longo da história do audiovisual, a interação espectador e obra assim como os efeitos da recepção em suas diversas configurações colocaram-se presentes, mesmo que às margens de toda uma teoria cinematográfica. Tais questões sempre perpassaram as diferentes correntes teóricas do cinema, na medida em que também postularam um tipo de espectatorialidade e também um modo de recepção - embora não fossem alvos de um olhar mais acurado. Enquanto estudo acadêmico e postulação teórica, as abordagens sobre o campo da espectatorialidade, dos modos de recepção, leitura e de interpretação só ganharam espaço a partir da década de 1970, com as primeiras inflexões da semiologia e do surgimento de análises interdisciplinares psicanalíticas, discursivas, sociológicas e socioculturais. O deslocamento do sujeito espectador de seu lugar tímido, coadjuvante de todo um sistema operado pelo aparato cinematográfico, para o centro da pesquisa trouxe não só contribuições para a
elaboração de novas metodologias para a análise e história do cinema, como também colocou em reflexão a própria constituição deste sujeito espectador. Entre diversos autores e diversos modos de pensar este campo – que vão de Christian Metz, Roger Odin, David Bordwell, Laura Mulvey, Janet Staiger a Henry Jenkins entre outros inúmeros que merecem ser referenciados -, destaca-se a elaboração de modelos analíticos que vão desde a análise textual imanente e da conformação de tipos de espectadores, à análise contextual da espectatorialidade, pautada no estudo da interação entre cinema, filmes, contextos sócio históricos, o público e as instituições sociais, assim como também a investigação dos modos de consumo, de leitura e de apropriação das obras. Portanto, os termos “recepção” e “espectador” constituem-se como elementos que se dão intrinsicamente e que se conectam mesmo dentro de um corpo de estudos heterogêneo. Nesta oitava edição, a Revista Movimento traz um dossiê que se propõe a pensar as práticas de exibição e recepção em suas distintas implicações: o espectador e sua rela-
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ção com as imagens e os espaços de exibição audiovisuais, a constituição desses lugares de exibição (festivais, museus, cineclubes, salas convencionais, etc), além do impacto e das transformações tecnológicas neste campo de estudo. Neste quesito, o dossiê traz o artigo de Fernanda Albuquerque de Almeida, intitulado “Cinema e arte contemporânea: da sala contemplativa aos dispositivos interativos”, em que traz a análise de cinco obras audiovisuais, cujo elemento constitutivo comum é a projeção. A partir disso, a autora faz a discussão sobre as diferentes modalidades de recepção do século XXI, que indicam uma tendência à interação, contemplação e participação, à luz das tecnologias digitais da imagem. Seguindo a linha do diálogo entre artes visuais e cinema, Maria Celina Gil analisa a relação entre obra audiovisual e exposição de artes visuais por meio da cenografia, no texto “Expondo o cinema – possibilidades cenográficas”. Aqui, a autora questiona o prolongamento da experiência espectatorial para além da sala de cinema, debruçando-se sobre três megaexposições recentes que ocorreram em São Paulo: Tim Burton (2010), Stanley Kubrick (2013) e Castelo Rá-Tim- bum – A Exposição (2014). Integrando o dossiê, “Inter-relações entre gosto e gênero cinematográfico”, de Marília Rezende, reflete o imbricamento entre os gostos do público e dos gêneros fílmicos. Este viés compõe os estudos de recepção e traz uma visão da semiótica francesa para a análise do fenômeno, a partir das noções de gênero, elaborada por Jule Selbo (2010), estilo, definida por Norma Discini (2009), e construção de gosto, de Eric Landowski (1997). O estudo de caso de um dos principais festivais de cinema brasileiro da atualidade encerra esta reunião de trabalhos que nos oferecem um breve panorama sobre as pesquisas recentes sobre o tema. “A Mostra de Tiradentes e o cinema brasileiro: modos de olhar”, de Rafael Carvalho, discute a questão da recepção tendo como perspectiva a relação do evento com a crítica cinematográfica e as leituras construídas por leitores e críticos históricos desse ambiente.
A 8ª edição da Movimento também apresenta dois textos que não integram o dossiê mas orbitam, dentro de suas próprias singularidades, o tema aqui discutido. “Mídia, representação e cidade: a produção autoral de imagens na formação para a cidadania”, de Karine Joulie Martins, propõe uma reflexão a respeito do esvaziamento do significado de cidadania a partir da representação que a mídia faz da cidade e dos sujeitos que a habitam. Ainda, analisa o caso do Projeto Inventar com a Diferença: Cinema e Direitos Humanos (MIGLIORIN et. al., 2014) que a autora vê como proposta construtiva para que crianças e jovens, através do cinema, questionem o modelo comunicacional da mídia tradicional. Contemplando o campo dos gêneros, mas aqui concentrados no formato televisivo, “Universos emergentes e vanguardas televisivas – a prática discursiva na construção social de Oz”, de João Paulo Zago, elabora um estudo sócio-histórico da produção do seriado Oz, da HBO, a partir de dois episódios da quarta temporada e tendo como base teórica o ensaio de Jason Mittel. Com o estudo, observam-se elementos que contribuíram para mudanças em temáticas televisivas e a inclusão da abordagem prisional em séries. Já o ensaio “A história do invisível: o gesto no tempo de Jonas Mekas”, de Letícia Simões, proporciona uma viagem à obra e trajetória de Jonas Mekas a partir da análise específica de 365 Day Project, composto por vídeos entre 3 e 10 minutos filmados entre a década de 1950 e 2007, editados pelo diretor e postados um a cada dia, todos os dias, durante um ano. A partir da noção de “gesto” conceitualizada pelo filósofo Giorgio Agamben, o texto destaca a criação de um arquipélago imagético que questiona e desafia as definições de tempo, memória e narrativa. Para concluir esta edição, apresentamos o texto Cinema and the code, do teórico da mídia Gene Youngblood - publicado pela primeira e única vez em 1989 pela Revista Leonardo, e editada pelo MIT - conta com a inédita tradução de Maurício Sampaio para a língua portuguesa e publicação no Brasil pela Movi-
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mento. O artigo, resultado de conversas do próprio autor com seus colegas Peter Weibel, Steina e Woody Vasulka acerca da evolução da imagem em movimento, tenta compreender a herança de diferentes mídias na configuração da mídia eletrônica e explorar o que há de único no meio digital que possa firmar suas possibilidades linguísticas e sintáticas. A equipe editorial da Revista Movimento espera que os artigos aqui dispostos estimulem a continuidade de pesquisas e debates que se aprofundem no desafio de abordar as práticas de espectatorialidade e recepção. Boa leitura!
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SUMÁRIO
DOSSIÊ
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Cinema e arte contemporânea: da sala contemplativa aos dispositivos interativos | Fernanda Alburquerque de Almeida
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Expondo o Cinema: possibilidades cenográficas | Maria Celina Gil
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Inter-relações entre gosto e gênero cinematográfico | Marília Rezende
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A Mostra de Tiradentes e o cinema brasileiro: modos de olhar | Rafael Carvalho
ARTIGO 70
Mídia, representação e cidade: a produção autoral de imagens na formação para a cidadania | Karine Joulie Martins
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Universos emergentes e vanguardas televisivas: a prática discursiva na construção social de Oz | João Paulo P. Zago
ENSAIO 104 A história do invisível: o gesto no tempo de Jonas Mekas | Letícia Simões
TRADUÇÃO 123 Cinema e o Código: Cinema and the code, de Gene Youngblood | Traduzido por Maurício Augusto Sampaio Pinto
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DOSSIÊ Cinema e arte contemporânea Fernanda Albuquerque de Almeida
Cinema e arte contemporânea Da sala contemplativa aos dispositivos interativos Fernanda Albuquerque de Almeida1 Universidade de São Paulo
Resumo: Este artigo apresenta uma aproximação entre o cinema e a arte contemporânea, que indica o alargamento do dispositivo cinematográfico e a tendência à interação no campo das artes visuais durante o século XX, por meio da análise interpretativa de cinco obras cujo elemento constitutivo é a projeção. O objetivo é indicar as modalidades de recepção de obras audiovisuais nos primeiros anos do século XXI – contemplação, participação e interação – à luz das tecnologias digitais da imagem Palavras-chave: cinema; arte contemporânea; contemplação; participação; interação. Abstract: This article presents an approximation between cinema and the contemporary arts, which indicates the stretching of the cinematographic device and a tendency to interaction in the field of visual arts during the 20th century, through an interpretative analysis of five works, whose constituent element is the projection. The goal is to indicate the reception modalities of audiovisual works in the first years of the 21st century – contemplation, participation and interaction – considering the digital technologies for image generation. Key words: cinema; contemporary art; contemplation; participation; interaction.
Curadora e pesquisadora na área de arte contemporânea. Faz parte da equipe de organização do FILE – Festival Internacional de Linguagem Eletrônica e do Grupo de Estudos em Estética Contemporânea da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Sociais da USP. Doutoranda em Estética e História da Arte pela Universidade de São Paulo, na linha de pesquisa Metodologia e Epistemologia da Arte, sob a orientação do Prof. Dr. Ricardo Nascimento Fabbrini. E-mail: frnndeaa@gmail.com.
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O cinema e as artes visuais mantêm um diálogo próximo desde as vanguardas históricas. Ao longo do século XX, essa conexão se desdobrou de diferentes formas, a exemplo do cinema puro, do cinema de animação e do flickering cinema2. Nas artes visuais, tal relação se fez presente sobretudo na videoarte e nas obras que elegeram a luz e o movimento como temas poéticos, como os experimentos de luz de Moholy-Nagy e os aparelhos cinecromáticos (1954/2004) de Abraham Palatnik3. Esse diálogo implicou a ampliação das respectivas áreas e, por isso, no alargamento do dispositivo cinematográfico. O dispositivo cinematográfico se refere ao cinema tal como foi configurado a partir de D. W. Griffith, com a projeção de um filme narrativo em uma sala escura, contemplada por várias pessoas sentadas em frente à projeção. Trata-se, sobretudo, do formato consolidado com o cinema clássico – o sistema instituído por Hollywood a partir de 1914, principalmente nos Estados Unidos. De acordo com Ismail Xavier, o cinema clássico combinou três elementos fundamentais para desencadear o efeito “naturalista”, que implica a construção do espaço-tempo que reproduz as aparências do mundo: 1- um método de interpretação de atores e a filmagem em estúdios com cenários baseados em princípios naturalistas; 2- a decupagem clássica, que possui a competência para produzir o ilusionismo, assim como o mecanismo de identificação; e 3- a eleição de histórias provenientes de gêneros narrativos bastante conhecidos, tais como o romance e a comédia. (XAVIER, 2008, p.41) Esse dispositivo já foi contestado inúmeras vezes ao longo do século XX em seus diversos elementos, principalmente no que se refere à narrativa clássica. Neste texto, serão apresentadas cinco obras que usam a projeção como elemento constitutivo, mas cuja combinação com os demais componentes do dispositivo cinematográfico é desconstruída. A narrativa, a sala escura do cinema e a postura contemplativa dos Como esclarece Ismail Xavier, o flickering cinema se refere à “tela piscando segundo certas leis matemáticas”. Cf. XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: opacidade e transparência. São Paulo: Paz e Terra, 2008, 106. 3 Philippe Dubois apresenta um panorama da relação entre cinema e artes visuais em: “Um “efeito cinema” na arte contemporânea”. In: COSTA, Luiz Cláudio da (Org.). Dispositivos de registro na arte contemporânea. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria / FAPERJ, 2009. 2
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espectadores servem de paradigmas nessa desconstrução, que será vista em paralelo com a tendência à interação encontrada nas artes visuais durante o século XX. Um autor que sistematiza essa tendência é Julio Plaza. Para ele, podemos verificar que no decorrer desse século há “um deslocamento das funções instauradoras (a poética do artista) para as funções da sensibilidade receptora (estética)”, o que pode ser percebido desde Marcel Duchamp, que afirmou que “é o espectador que faz a obra”. (PLAZA4, 2003, p.09). Plaza identifica três “graus de abertura” da obra em relação a como ela será recebida pelo espectador. O autor parte da teoria de Umberto Eco em Obra Aberta (1965)5 – na qual a arte é definida como “uma mensagem fundamentalmente ambígua, uma pluralidade de significados em um só significante” – para estabelecer que a abertura de 1º grau corresponde às obras cuja recepção é contemplativa, mas “remete à polissemia, à ambiguidade, à multiplicidade de leituras e à riqueza de sentido”. (PLAZA, op. cit., p.11). Por sua vez, a abertura de 2º grau está atrelada à participação, que implica “processos de manipulação e interação física com a obra”. Já a abertura de 3º grau envolve “processos promovidos pela interatividade tecnológica”. Nesse sentido, ela “coloca a intervenção da máquina como novo e decisivo agente de instauração estética”. (Ibidem, p.09) Tendo essas duas ideias em vista – o alargamento do dispositivo cinematográfico e a tendência à interação nas artes visuais do século XX – este artigo apresenta uma aproximação entre o cinema e a arte contemporânea, por meio da análise interpretativa de cinco obras cujo elemento constitutivo é a projeção: The Flicker (1966), de Tony Conrad, Line Describing a Cone (1973) e Between You and I (2006), de Anthony McCall, Relational Lights (2010), de Ernesto Klar, e Elucidating Feedback (2011), de Ben Jack. O objetivo é indicar as modalidades de recepção de obras audiovisuais nos primeiros anos do século XXI – contemplação, participação e interação – à luz das tecnologias digitais da imagem.
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PLAZA, Júlio. “Arte e interatividade: Autor-obra-recepção”. (2001) In: ARS, vol.1 nº. 2, São Paulo, dez. 2003. ECO, Umberto. Obra aberta. (1965) São Paulo: Editora Perspectiva, 1968.
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A ruptura com a narrativa Segundo Ismail Xavier, desde o Manifesto das Sete Artes (1911), de Ricciotto Canudo, há a exaltação do “valor poético” da imagem no cinema. As vanguardas contemporâneas ao manifesto abordaram, cada uma à sua maneira, a oposição à tradição clássica, “resumida na proposição da arte como “imitação” [...], o realismo artístico tal como cristalizado na literatura e na representação pictórica (anterior ao impressionismo) do século XIX”. (XAVIER, 2008, p.99) Entre as vanguardas, o cinema poético francês – de Canudo e Delluc – se opunha à narrativa clássica e buscava “a expressão do essencial e a emergência do espaço poético [que] ocorrem num espaço de clareza, no próprio seio da “objetividade” da reprodução fotográfica”. (Ibidem, p.103). Tratava-se da valorização da relação de cada elemento com a câmera, respeitando-se o ritmo que lhe é característico em um desenvolvimento contínuo. Aos espectadores era dada a tarefa de elevar a sensibilidade, superando a leitura convencional da imagem ligada aos condicionamentos sensórios e motores. Xavier afirma que: O que de mimético existe na reprodução cinematográfica fica aceito e redimido na medida em que a mimese proposta não se esgote na “exterioridade dos fatos” e seja capaz de atingir a “profundidade” do enfoque poético (expressão de um estado de alma), contra a “superficialidade” das concatenações lógicas. (Ibidem, p.104).
Nesse sentido, o mimético excederia a ordem prática, e as “virtudes plásticas” de cada “relação câmera-objeto particular” seriam ressaltadas. Algumas estratégias de composição foram especialmente usadas para atingir esse objetivo, tais como o primeiro plano e a montagem baseada em ritmos formalizados em função de relações quantificáveis. A ênfase no ritmo fez com que o referencial musical fosse adotado por cineastas como Germaine Dulac, Viking Eggeling e Hans Richter no que ficou conhecido como cinema puro. Ao contrário do cinema poético francês que admitia a mimese, o cinema puro “exige a supressão de qualquer vestígio mimético, de qualquer referência a um espaço-
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tempo natural exterior ao filme, e toma como única realidade a dinâmica da luz e os seus efeitos geométricos e rítmicos na superfície da tela”. (Idem). Rhythmus 216 (1921), de Hans Richter, por exemplo, apresenta variações em torno de figuras quadradas e retangulares, bem como do branco e do preto. Conforme afirma Xavier, “a redução do cinema e seus elementos mais puros – o branco e o preto – é vista como o caminho certo para a análise do filme como objeto em si mesmo, como algo dotado de qualidades próprias, como luz projetada numa superfície e nada mais.” (Ibidem, p.105). Outra característica é a composição quadro a quadro, que aproxima a obra desses cineastas do cinema de animação de Robert Breer, Harry Smith, Len Lye e Jordan Belson. A partir dos anos 1950, a prática do quadro a quadro desemboca com Peter Kubelka em uma “sucessão matemática de luz (tela branca) e obscuridade (tela totalmente preta)”. (XAVIER, op. cit., p.106). A referência musical do cinema puro é expandida, tornando as obras passíveis de reprodução por uma espécie de partitura. Xavier explica que: Se as cópias de Arnulf Rainer (1960) se perderem, qualquer pessoa poderá refazer o filme, uma vez que ele apresenta apenas luz pura e ausência de luz, alternadas segundo certas relações numéricas. O flickering cinema (tela piscando segundo certas leis matemáticas) inicia sua carreira e vai constituir tema de especulação de Conrad e outros, preocupados com as modalidades da experiência sensorial. (Idem).
Assim, a investigação dos elementos básicos do cinema iniciada com o cinema puro alcança seu apogeu nos anos 1960 com o cinema estrutural e o flickering cinema, ambos enfatizando a materialidade do filme em detrimento da narrativa clássica. Como Kubelka, Tony Conrad é um dos cineastas que trabalha nesta vertente. Seu filme The Flicker (1966), como o próprio nome sugere, utiliza o efeito de piscar, alternando telas brancas e pretas em ritmos intermitentes. Ao longo do tempo, essas alternâncias causam impressões ópticas que simulam cores e formas. Neste processo, afirma Heike Helfert, “o filme também estimula impressões fisiológicas ao invés de psicológicas, não por abordar os sentidos, mas por provocar reações neurais diretas.” (HELFERT, s.d., tradução nossa) 6
RICHTER, Hans. Rhythmus 21. Disponível em: <https://vimeo.com/42339457>. Acesso em: 08 jun. 2017.
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The Flicker extrapola a proposta do cinema poético de valorizar a ordem sensorial em detrimento da contemplação associada à narrativa do cinema clássico. Como nesse cinema, o espectador se senta para observar as imagens, mas não se trata de pura contemplação. O filme estimula o espectador fisicamente, mesmo que apenas através da visão. Como afirma Helfert, as impressões causadas pelas imagens são da ordem fisiológica, ao invés de psicológica. Deste modo, The Flicker rompe com o dispositivo cinematográfico em sua narrativa, mas permanece um exemplar da abertura de 1º grau, nos termos de Plaza, pois o espectador não manipula fisicamente a obra. Contudo, a existência de um vínculo físico entre a obra e o espectador proporcionado pelas luzes intermitentes é inegável. Esse vínculo é tão significativo que Conrad inicia sua obra, inclusive, com uma nota esclarecendo que um médico deve estar presente em cada sessão, devido à possível geração de danos físicos ou mentais nos espectadores.7 A passagem para a sala de exposição Como mostra The Flicker, a partir dos anos 1960, há um movimento crescente de expansão das artes. Noções como “ambiente” e “participação do espectador” tornam-se predominantes, com artistas se enveredando pelos caminhos da performance e da instalação. Segundo Plaza: “A obra desmaterializa-se e a atividade criativa, de forma geral, torna-se pluridisciplinar. Nos ambientes, é o corpo do espectador e não somente seu olhar que se inscreve na obra. Na instalação, não é importante o objeto artístico clássico, fechado em si mesmo, mas a confrontação dramática do ambiente com o espectador.” (PLAZA, op. cit., p.14). Exemplos que ilustram esse movimento são os filmes de luz sólida de Anthony McCall. O primeiro filme da série, Line Describing a Cone8 (1973) (Imagem 1), constitui-se como uma projeção horizontal (em película de 16 mm) de uma linha que completa um círculo ao longo de 30 minutos. Quando o círculo é completo, a forma de um cone aparece na junção da projeção com a parede. Por ser uma instalação, o espectador pode Cf. a abertura do filme, disponível em: <https://youtu.be/ZJbqnztjkbs>. Acesso em: 08 jun. 2017. Cf. TateShots: Anthony McCall – Line Describing a Cone. Disponível em: <https://youtu.be/1-HWsxPnNNY>. Acesso em: 08 jun. 2017. 7
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andar no espaço da projeção, buscando diferentes posicionamentos diante da luz. Outro exemplo mais recente é Between You and I9 (2006) (Imagem 2), instalação composta por duas projeções verticais (digitais) postas lado a lado com figuras abstratas que durante 16 minutos se unem e separam.
Imagem 1 – Line Describing a Cone. Fonte: http://www.tate.org.uk/art/images/work/T/T12/T12031_327659_9.jpg
Imagem 2 – Between You and I. Fonte: http://res.cloudinary.com/bombmagazine/image/upload/q_50/v1412266952/mccall01_body.jpg 9 Cf. Anthony McCall: Between You and I. Disponível em: <https://youtu.be/dy-EMV_kNB8>. Acesso em: 08 jun. 2017.
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Em ambas as obras, o projetor é inserido no espaço expositivo, extrapolando as experimentações sensoriais de The Flicker (1966), que ainda ocorriam na sala do cinema. Os filmes de luz sólida de McCall dão prosseguimento à lógica de revisão dos elementos formais do cinema, ao transporem os projetores para espaços expositivos, mas instigam outro tipo de envolvimento por parte do espectador. No primeiro caso, o espectador sentado se torna uma espécie de refém do piscar das luzes, que geram efeitos neurais diretos. No segundo, ele deve percorrer o espaço criado pela projeção para que as suas figuras sejam apreendidas. De acordo com McCall, “o corpo é a medida importante” em relação à própria dimensão das obras, já que elas “não só adotam sua escala, como também nos incitam a nos mover com a luz – brincar e/ou experimentar com ela – enquanto esta por sua vez também se move” (McCALL apud FOSTER10, 2015, p.201). Segundo Hal Foster, esse movimento do corpo do espectador no espaço remete a outras linguagens artísticas além do cinema, como a escultura e a dança. Ao mesmo tempo, tanto Line Describing a Cone quanto Between You and I envolvem a instalação, já que volumes são projetados no espaço. Há também a relação com a arquitetura, que advém do convite que os filmes nos fazem “a refletir sobre os parâmetros arquitetônicos do local em que se projetam, os quais eles escurecem e iluminam de maneira que percebemos o espaço tanto háptica como opticamente”. (FOSTER, 2015, p.202). Ainda, existe uma afinidade com o desenho, que se refere às linhas traçadas, e com a fotografia em movimento, quando esses desenhos são animados. Para o autor: De variadas maneiras, o grande prazer proporcionado pelo trabalho vem de nosso vaivém entre uma experiência das diferentes fenomenologias desses meios e uma reflexão sobre suas ontologias provisórias. De modo que o espaço sensorial e cognitivo dos filmes de luz sólida é também filosófico. (Ibidem, p.202)
A expansão da imagem na tela para o espaço da instalação abrange, assim, uma percepção que transita entre diversos meios. Mas, de acordo com o artista, há um prazer específico ligado aos “véus de luz” em lento movimento, que diferencia suas instalações
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FOSTER, Hal. O complexo arte-arquitetura. São Paulo: Cosac Naif, 2015.
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de obras estáticas feitas com materiais sólidos, como as esculturas em elipse de Richard Serra11, nas quais “o movimento (e portanto a chegada ao desvelamento) é oferecido [exclusivamente] pelo visitante ao caminhar”. (Idem). De acordo com o artista: As pessoas geralmente atribuem [as emoções que experimentam nas projeções] à magia dos véus de luz, mas não estou tão certo de que esse prazer funcionaria se elas estivessem andando dentro ou em volta de formas similares projetadas a partir de slides. Desconfio que a chave para isso é o movimento em slow motion – ou o lento desvelamento da estrutura – corporificado, é claro, como véus de luz. (McCALL apud FOSTER, 2015, p.204)
A questão da imaterialidade e do ralentar do movimento da projeção são essenciais para a fruição das suas instalações. De acordo com Foster, uma luta importante é travada entre esse tipo de prática ligada ao corpo e ao lugar e uma cultura do espetáculo, que visa a dissolver todas essas percepções, ao ponto de que muitos artistas acabam por oferecer ao espectador “ambientes que confundem o real com o virtual, ou sentimentos que não são os nossos, mas que, não obstante, nos interpelam”. (FOSTER, 2015, p.13). Segundo o autor, “algumas obras até tendem a nos subjulgar, pois quanto mais optam por efeitos especiais, menos nos envolvem como espectadores ativos”. (Idem). Talvez, nesse sentido, elas se aproximem do flickering cinema, de Tony Conrad, em que o espectador recebe os estímulos externos que causam reações neurais incontroláveis. Esta é uma preocupação de McCall, que faz questão que o espectador seja o elemento mais rápido da sala em que seus filmes são projetados, para que seja sua a tarefa de ler a obra. Há, portanto, uma mudança essencial entre a recepção de The Flicker e dos filmes de McCall. Na primeira obra, o filme estimula o espectador fisicamente através da visão. O vínculo sensorial estabelecido entre a obra e o espectador é resultante dos estímulos neurais causados pelas luzes intermitentes, que são incontroláveis. Nas instalações de McCall, o deslocamento do espectador na sala da exposição é essencial para que a obra seja percebida. Os véus de luz e o lento movimento da projeção incitam um envolvimento Cf. Richard Serra | Torqued Ellipse IV (1998). Disponível em: <https://youtu.be/ilWo7eWY73M>. Acesso em: 08 jun. 2017.
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corporal que extrapola o campo da visão, embora não haja a participação nos termos de Plaza, como “manipulação física com a obra”. A luz da projeção não deve ser apenas observada, como em uma sala de cinema, mas percebida como um objeto que, no entanto, suscita o paradoxo do material e imaterial. Contemplação, participação e interação O paradoxo da imaterialidade nos filmes de luz sólida é recorrente em obras de arte que empregam as tecnologias digitais em sua manufatura. Muitas delas utilizam tecnologias de reconhecimento da presença do espectador, possibilitando uma “relação recíproca entre o usuário e um sistema inteligente”, sem que haja necessariamente o toque em um objeto. (PLAZA, 2003, p.10). Para Couchot, Tramus e Bret: “A interatividade presente desde a fabricação da imagem, modificando consideravelmente a maneira como ela é recebida, é uma característica fundamental da imagem numérica.” (COUCHOT; TRAMUS; BRET12, 2003, p.28). Além disso: “Toda imagem numérica é interativa em um momento ou outro de sua existência”, o que fica evidente desde os anos 1970, com os primeiros gráficos interativos, que eram visualizados na tela de vídeo no momento em que eram calculados pelo computador e modificáveis quase instantaneamente por interfaces13. (Idem) A partir dos anos 1990, os algoritmos passam a se inspirar em modelos das ciências cognitivas e das ciências da vida, inaugurando um novo tipo de relação entre a imagem e o espectador. Couchot, Tramus e Bret denominam essa relação de “segunda interatividade”, em analogia à “segunda cibernética”, na qual comportamentos maquínicos e humanos são aproximados. Esta combinação entre inteligência artificial e ciências da vida resulta em “uma interatividade de alto nível de complexidade entre elementos constitutivos da vida ou da inteligência artificiais (genes e neurônios) que, graças à sua configuração, interagem para produzir fenômenos emergentes.” (Ibidem,
COUCHOT, Edmond; TRAMUS, Marie-Héléne; BRET, Michel. “A segunda interatividade: Em direção a novas práticas artísticas”. In: DOMINGUES, Diana (Org.). Arte e vida no século XXI: Tecnologia, ciência e criatividade. São Paulo: Editora UNESP, 2003. 13 Interactive computer graphics, criados por Ivan Sutherland. 12
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pp.31-32) Partindo deste princípio, haveria duas formas de interação: a interatividade exógena, entre o espectador e a imagem, e a interatividade endógena, entre os objetos virtuais. Esta “permite criar objetos [que] passam a se comportar como espécies de seres artificiais mais ou menos sensíveis, mais ou menos vivos, mais ou menos autônomos, até mesmo mais ou menos inteligentes”. (Ibidem, p.29). Nesse sentido, sistemas inteligentes poderiam ser definidos como sistemas orgânicos ou artificiais que possuem autonomia para tomar decisões e realizar ações na sua individualidade ou na sua relação com outros sistemas. Um exemplo de obra de arte que possibilita a interação do espectador com um sistema digital é Relational Lights14 (2010) (Imagem 3), de Ernesto Klar, uma instalação feita com luz, som, neblina e um software customizado, que cria um espaço semelhante ao de Between You and I. A diferença é que agora é possível ao espectador modificar os véus de luz de maneira efetiva, ou seja, de modo a alterar a sua disposição no espaço. Embora continue sendo imaterial, a participação, segundo os critérios de Plaza, é possível. De acordo com a conceituação de Couchot, Tramus e Bret, esse aspecto caracteriza a interatividade exógena.
14 Cf. Ernesto Klar - "Luzes relacionais" (Relational Lights), 2010. Disponível em: <https://youtu.be/-gQfmlrivA>. Acesso em: 08 jun. 2017.
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Imagem 3 – Relational Lights. Fonte: http://file.org.br/wpcontent/uploads/2013/03/Ernesto-Klar-Luzes-relacionais-Relational-Lights.jpg
Mas os véus de luz de Klar não dependem exclusivamente do espectador para mudarem de forma. Segundo o artista, o sistema ativa uma sequência pré-programada de diferentes formas geométricas em intervalos randômicos, independentemente da presença do espectador. Quando essa sequência é ativada, os véus de luz param de responder às ações externas, o que gera estranhamento no espectador, que se dá conta de que a capacidade de controlar um elemento efêmero como a luz é apenas uma ilusão. Para Klar, esse é o aspecto mais importante da experiência proporcionada pela obra. “Esta interrupção repentina dos seus pressupostos e expectativas, a percepção de que não temos controle real, que esse sistema pode escolher quando nos dá a ilusão de
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controle...” (informação pessoal)15 Relational Lights propicia a participação do espectador ao mesmo tempo em que ressalta o controle que o sistema exerce sobre os participantes. Embora a sequência das formas altere a relação do espectador com a obra, este não é o caso de um sistema inteligente, portanto não configura a interatividade endógena. Uma obra que apresenta esse tipo de interatividade é Elucidating Feedback16 (2011) (Imagem 4), de Ben Jack, uma instalação que consiste em uma cadeira na qual o espectador senta e um dispositivo que deve ser usado na sua cabeça, o qual captará as ondas cerebrais de quem o vestir. Essas ondas serão decodificadas a partir da atenção à observação do espectador, resultando em padrões de formas abstratas que serão projetadas na sua frente. Segundo o artista: As imagens produzidas pelo programa são padrões emergentes formados por interações simples entre milhares de partículas. Há duas categorias de padrão envolvidas: uma consiste em um conjunto de padrões prédefinidos e a outra é uma série de padrões formados unicamente através do sistema de interações de partículas. A combinação desses sistemas possibilita paisagens mutáveis infinitamente complexas que o usuário pode explorar como se fossem uma representação física de seu próprio estado mental, dando a vívida impressão de que aquilo que é mostrado é criado pelo usuário, ou seja, uma criação de sua atenção. (JACK, 2011)17
KLAR, Ernesto. Relational Lights. Mensagem recebida por frnndeaa@gmail.com em 22 de jul. 2016. Cf. FILE São Paulo 2011 | Elucidating Feedback by: Ben Jack. Disponível em: <https://youtu.be/kYNm7rLxEsg>. Acesso em: 08 jun. 2017. 17 Cf. JACK, Ben. Elucidating Feedback. 2011. Disponível em: <http://file.org.br/artist/ben-jack/?lang=pt>. Acesso em 08 jun. 2017. Um sistema similar ao de Elucidating Feedback é usado por Jaime Lobato em Burning Thoughts, instalação na qual o espectador veste na sua cabeça um dispositivo que captará as suas ondas cerebrais, que, por sua vez, irão alterar a intensidade e a velocidade das chamas da instalação. Cf. https://vimeo.com/132884632. 15
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Imagem 4 – Elucidating Feedback. Fonte: Divulgação FILE
Elucidating Feedback abrange, portanto, ao mesmo tempo, a interatividade exógena ou a participação, nos termos de Plaza – já que depende da concentração do espectador na observação da imagem projetada na sua frente – e a interatividade endógena – pois seu sistema desenvolve padrões de forma emergente. A obra também retoma um dos elementos do cinema clássico, que é a postura contemplativa do espectador, uma vez que a concentração naquilo que vê na tela é necessária para a formação dos padrões. Conforme afirmam Couchot, Tramus e Bret: “Se a arte interativa em geral pede, da parte do espectador, um engajamento profundo, paciência e disponibilidade, curiosidade, a autonomia exige do espectador, além disso, que ele dispense uma atenção aguda sobre o seu próprio corpo e sobre seus mecanismos perceptivos.” (COUCHOT, TRAMUS, BRET, op. cit., pp.37-38). Em Elucidating Feedback, máquina e humano, luz e pensamento se tornam um. Considerações finais Esta breve investigação mostrou que as atuais possibilidades de recepção audiovisual resultam de um processo de expansão e imbricação das artes que ocorreu ao longo do século XX. As vanguardas históricas deram início à ampliação da noção de
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cinema e à modificação do cenário das artes visuais com a desvinculação da pintura de suas convenções naturalistas. Sobretudo a partir dos anos 1960, as práticas artísticas, que se davam predominantemente nas telas dos cinemas e dos museus, expandiram-se para o espaço. Tornou-se possível um cinema produzido, recebido e difundido de maneira distinta da forma consolidada pelo dispositivo cinematográfico. Ao mesmo tempo, outras modalidades artísticas, como a performance e a instalação, foram estabelecidas. Neste período, as mídias de massa também passaram a ser usadas por artistas em seu processo criativo, o que abriu espaço para o emprego de novas tecnologias na arte. Esse processo de imbricação das artes, sobretudo entre os anos 1960 e 2000, foi exposto a partir das análises das obras The Flicker, Line Describing a Cone, Between You and I, Relational Lights e Elucidating Feedback. As análises trataram de algumas relações possíveis entre o cinema e a arte contemporânea, tendo em vista que essas relações têm constituído tema de diversos estudos. O texto, enfim, visou contribuir com uma abordagem que abrange os recentes desenvolvimentos tecnológicos na concepção de imagens. Com isso, não se trata de valorizar obras que empregam tecnologias digitais na sua manufatura, nem de priorizar a interação como forma de recepção artística, mas de constatar e investigar as diferentes possibilidades de criação e fruição de obras audiovisuais nos primeiros anos do século XXI.
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REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS COUCHOT, Edmond; TRAMUS, Marie-Héléne; BRET, Michel. “A segunda interatividade: Em direção a novas práticas artísticas”. In: DOMINGUES, Diana (Org.). Arte e vida no século XXI: Tecnologia, ciência e criatividade. São Paulo: Editora UNESP, 2003. DUBOIS, Philippe. “Um “efeito cinema” na arte contemporânea”. In: COSTA, Luiz Cláudio da (Org.). Dispositivos de registro na arte contemporânea. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria / FAPERJ, 2009. ECO, Umberto. Obra aberta. (1965) São Paulo: Editora Perspectiva, 1968. FOSTER, Hal. O complexo arte-arquitetura. São Paulo: Cosac Naif, 2015. HELFERT, Heike. In: Medien Kunst Netz. Disponível <http://www.medienkunstnetz.de/works/the-flicker/>. Acesso em: 08 jun. 2017.
em:
PLAZA, Júlio. “Arte e interatividade: Autor-obra-recepção”. (2001) In: ARS, vol.1 nº. 2, São Paulo, dez. 2003. XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: A opacidade e a transparência. São Paulo: Paz e Terra, 2008.
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Expondo o Cinema Possibilidades Cenográficas Maria Celina Gil1 Universidade de São Paulo
Resumo: Esse artigo consiste em uma breve reflexão sobre as possibilidades de colocação do Cinema como obra de arte passível de ser exposta em museus/galerias. É notório que, cada vez mais, ganham espaço retrospectivas e exposições cujo foco é o trabalho de algum cineasta ou movimento estético cinematográfico. Somado a isso, parece haver uma tendência à criação de megaexposições atualmente. Assim, o artigo pretende investigar quais têm sido as possibilidades cenográficas para exposições cujo tema é o cinema, qual a pertinência dessas possibilidades e qual a contribuição da cenografia para uma maior fruição das obras expostas. Palavras-chave: cinema; cenografia; museu; megaexposição; espaço expositivo. Abstract: This article consists in a brief analysis on the possibilities of Cinema as a work of art liable of being exposed in museums/galleries. It is notorious that more and more retrospectives and exhibitions which focus the work of some filmmaker or aesthetic moment are taking place. Added to this, it seems to appear a tendency of creating huge exhibitions nowadays. So the article wants to investigate which are the scenography possibilities in exhibitions where the cinema is the main theme, what’s the relevance of these options and how can scenography contribute to a better fruition of the exposed works. Key words: cinema; scenography; museum, huge exhibitions; exhibition space.
Mestranda em História do Teatro (Artes Cênicas) pela Universidade de São Paulo, sob a orientação do Prof. Dr. Fausto Roberto Poço Viana. Trabalhou com Direção de Arte e Figurino em cinema e televisão e atualmente se dedica ao teatro e a expressões mais contemporâneas do audiovisual, como instalação e performance. Seu projeto de mestrado investiga narrativas e poéticas têxteis na criação de cenografias e trajes de cena.
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Introdução O cinema – como convimos chamar hoje – nasce no fim do século XIX. Todo o cerimonial que o envolve nasce aproximadamente na mesma época, mas o modo como assistimos aos filmes no cinema hoje não foi sempre o mesmo. Se no início o cinema pertencia aos espaços mais baixos dos vaudevilles e, como aponta Machado: “Salas de exibição dedicadas exclusivamente à difusão de filmes é um fenômeno mais recente” (MACHADO, 2011, p.74), quando os exibidores se dedicam a alcançar um público mais refinado, a sala se modifica, chegando até a sala escura que se frequenta hoje. Mesmo que tenha havido, ao longo do tempo, modificações na estrutura das câmeras, películas e projetores, o dispositivo cinematográfico pouco mudou ao longo de dois séculos. “Temos hoje exatamente o mesmo dispositivo que os irmãos Lumière utilizaram. As pessoas saem de suas casas para ir ao cinema, pagam o ingresso, entram numa sala escura, sentam-se numa cadeira, há um aparelho que projeta o filme na tela em frente” (DUBOIS, 2012). A partir dos anos 1960, surge a tecnologia do vídeo e, com isso, o cinema entra numa fase de experimentação e renovação, provocando rupturas no seu dispositivo consagrado. A possibilidade de gravar a imagens de forma eletrônica vai se mostrando mais barata e prática do que o uso da película. O acesso ao vídeo e aos meios de captação digitais facilitou o processo audiovisual. Se antes era preciso passar por um longo processo de captação em película - extremamente burocrático a quem não estava completamente familiarizado com a técnica -, revelação do material, edição na moviola e exibição em um projetor da bitola específica, depois da inserção das técnicas digitais, basta uma câmera de registro em fita ou cartão de memória - e um computador equipado com algum programa de edição para que se possa criar um filme. O conceito de cinema se expande, já que o vídeo passa a ser considerado uma forma de fazer filmes também, fazendo com que o espectador passe a ter outro olhar sobre as produções audiovisuais. Ainda assim, mesmo que tenham havido mudanças na produção e exibição dos filmes – que acarretam, logicamente, em mudanças na própria linguagem cinematográfica – a ideia de que é necessário que haja uma imersão do espectador na obra permanece forte. Assistir a um filme numa sala de cinema é diferente de assistir a um filme na televisão.
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Muito mais acessível que o cinema, a televisão não depende de um deslocamento físico por parte do espectador, tampouco de um dispositivo complexo: a televisão se insere dentro da casa das pessoas em qualquer condição física. O ato de assistir a um filme numa sala de cinema permanece de certo modo envolto em uma aura. Assiste-se a uma obra numa tela imensa, num ambiente completamente escuro, cujos únicos sons são aqueles vindos da própria obra. Esse cerimonial todo exige uma espécie de suspensão da realidade que leve o espectador para dentro da obra cinematográfica, fazendo-o imergir na realidade contada. É interessante perceber que, mesmo sendo uma arte muito jovem se comparada a outras, como pintura e escultura, por exemplo, o cinema já tem uma bagagem suficiente para que se possa estudá-lo. Além de já existirem divisões convencionais de movimentos estéticos dentro do cinema, há realizadores cuja obra é considerada passível de análise por si só devido a seu caráter inventivo. Muitos desses autores ganharam, ao longo do tempo, retrospectivas em mostras e cineclubes e tiveram ciclos de exibição especiais dedicados às suas obras, além de exposições sobre suas obras e trajetórias. Mais recentemente, movimentos e cineastas têm ganhado grande espaço em museus, com as chamadas megaexposições. Essa maneira de expor, que tem se popularizado recentemente, consiste em exposições com cenários muito elaborados, de proporções grandiosas. Além disso, conforme Souza (2012), um dos objetivos das megaexposições é o de tentar atrair o grande público – que não é assíduo frequentador de museus ou galerias. As megaexposições são quase eventos e tem um apelo publicitário muito marcado, com uma estética memorável e um direcionamento de massa. Quando se pergunta como levar o cinema para dentro do museu de modo que seja interessante ao público, as megaexposições parecem ter sido a resposta ultimamente. Um dos modos encontrados para potencializar a experiência do cinema nos museus foi investir em uma cenografia nas exposições que fosse capaz de trazer o visitante para dentro da própria obra.
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Expondo o Cinema A primeira diferença essencial é obviamente o espaço. Uma sala de cinema e uma sala de um museu são lugares muito diferentes e evocam respostas distintas em seus espectadores que se comportam e reagem às obras em cada local de uma maneira. Além disso, como afirma Dubois (2012): O cinema nem sempre foi definido como um campo artístico – tem sido visto como objeto cultural, de consumo, ligado à diversão ou científico. E, por isso, a relação da arte com o cinema não é automática. As instituições da arte e do cinema nem sempre colaboraram entre si. (...) Alguns museus cultivam a ideia de que podem mostrar todas as artes, mas não são muitos os que consideram a possibilidade de colecionar e preservar o cinema como um domínio da arte. Aí entra a questão da legitimidade, do valor conferido ao cinema como expressão artística (DUBOIS, 2012).
Então, o que se tem comumente quando se trata da relação entre museus e o cinema são as Cinematecas. Apesar de variar um pouco de país para país, as Cinematecas são lugares que, além de guardarem sua própria reserva técnica e possuírem espaços expositivos, também são voltados para a pesquisa e a conservação. Além disso, há alguns museus especificamente dedicados a alguns filmes ou cineastas. Normalmente, esses museus são menores e se localizam em locais importantes para a biografia do cineasta ou em locações onde foram filmadas as obras. Essa constatação nos leva a uma diferença de expectativa por parte dos visitantes dos museus em se tratando de cinema e artes plásticas. Quando se vai a uma exposição de arte, se espera ver obras de arte no museu. Isso parece uma afirmação bastante óbvia. No entanto, quando se vai a uma exposição cujo objeto é algum filme ou cineasta, a expectativa é que se verão documentos. O que estará exposto serão ou elementos orbitais ao filme, como fotografias, cartas, matérias de jornal, etc.; ou partes do processo de produção do filme, como tratamentos de roteiro, storyboard, fotos de making of e continuidade, etc.; ou objetos de cena e figurinos2, objetos-testemunha do filme, que ao 2 Considero aqui objetos de cena e figurinos também documentos, uma vez que são responsáveis por informar sobre a obra e sua produção e preservar parte da história para futura apreciação, análise e registro. Essa análise se baseia na classificação de Viana (2015) em “O Traje de cena como documento”.
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mesmo tempo em que despertam interesse pela possibilidade de apreciar com mais detalhes algo que na tela pode ter passado despercebido ao assistir a obra, também chamam a atenção de curiosos ou pessoas que se atraem por objetos e trajes que pertenceram e/ou foram usados por pessoas famosas. O importante aqui é que não se espera, de fato, ver uma obra de arte quando se vai a uma exposição sobre filmes ou cineastas. Cabe considerar aqui que o que se pretende tratar não é a existência de obras de arte de formato audiovisual, mas sim como obras que foram pensadas para a sala de cinema se inserem em exposições dentro do museu e como se dá sua fruição. A vídeo-arte e os trabalhos que se utilizam da imagem em movimento, seja em instalações ou em projeções de conteúdo, não parecem enfrentar a mesma questão que o cinema3 quanto a exposições. Nesse artigo o que se pretende pensar não são esses espaços, mas sim quando há uma montagem eventual e temporária de alguma exposição em algum museu não necessariamente voltado para o audiovisual. À grosso modo, tendo em vista o exposto acima, há dois segmentos possíveis de se explorar quando se realiza uma exposição sobre uma obra audiovisual: os elementos extra-fílmicos e os intra-fílmicos. Por extra-fílmicos, pode-se entender todo tipo de material que, de alguma maneira, registrou o processo de feitura de um filme. Tratamentos anteriores de roteiros, bilhetes, contratos, fotografias de continuidade e making of, testes de elenco, entrevistas, etc.; tudo isso ajuda a contar um pouco do processo criativo do filme. Esses elementos não estão explicitamente dentro do filme, mas é necessário olhálos como parte formadora do resultado final artístico e estético. Por intra-fílmicos, entendese os objetos cênicos, também referidos acima como objetos-testemunha, que não se restringem apenas a partes do cenário, mas a figurinos e acessórios também. As exposições podem contar com apenas um desses segmentos ou com ambos, em maior ou menor expressividade. Por “cinema” entendo, nesse artigo, principalmente longas e curtas metragens produzidos com o objetivo de projeção em salas de cinema. Entendo que os outros “cinemas” citados antes – vídeo-arte e materiais audiovisuais em instalações - são, como definiu Royoux(2000), o cinema de exposição e são uma forma particular de cinema que privilegia outras questões além das tratadas numa obra cinematográfica produzida para o circuito de cinema. 3
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Esses documentos, porém, não foram pensados e planejados para serem expostos, então, é preciso pensar em alguma expografia4 que torne sua apresentação interessante e de fácil observação. Nesse contexto, uma das soluções possíveis para tornar a experiência da exposição mais elaborada pode estar na cenografia. No entanto, é preciso tomar cuidado com o uso dessa expressão no que se refere ao espaço expositivo. Lucas Fabrizzio Laquimia Souza, em sua dissertação A cenografia e as megaexposições do século XXI, diz que: Hoje, para as instituições museológicas e produtoras culturais paulistanas em geral, cenografia refere-se a toda expografia menos convencional, ou seja, que fuja do padrão do cubo branco estabelecido pelos museus modernos. Em alguns casos, seu uso chega à banalização. É comum usar a palavra cenografia para chamar qualquer material ou parece erguida dentro do espaço da exposição (SOUZA, 2012, p. 114).
Outro ponto que não se pode ignorar é o de que a cenografia não pode ser considerada a única opção estética capaz de evocar impressões no imaginário do espectador, já que o próprio espaço do museu já traz em si uma ideia de sacralização. Só o fato de estar exposto em um museu, muitas vezes já confere um caráter mágico a um objeto, transformando-o de algo cotidiano para algo com valor artístico. Isto posto, identificamos que há três opções diferentes que têm se mostrado recorrentes na hora de elaborar o espaço expositivo, cujas obras sejam essencialmente filmes/cinema: uma ambientação que se preocupe em criar uma identidade com os elementos estéticos das obras expostas; uma que reelabore as próprias obras no espaço expositivo, trabalhando com a criação de uma expografia inspirada nos cenários do filme de que se trata a exposição, buscando maior imersão do público; e uma em que a ambientação se dá pela reprodução fiel do cenário da obra audiovisual exposta, provocando, além de uma imersão do público, uma participação ativa e uma fruição
O termo expografia tem sido usado desde os anos 1990 para se referir a modos de expor no museu em que tudo aquilo que compõe a ambientação (obras, luz, cenografia, som, etc.) é parte da exposição também. Ela busca traduzir o programa científico de uma exposição num todo expressivo sensível.
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estética, tornando a própria expografia uma obra de arte. Nesse artigo, faremos uma breve exposição das características de cada uma a partir de exemplos de exposições recentes. Cenografia da Identidade Estética O primeiro ponto a se pensar é que o cinema ganha espaço como obra exposta no museu na medida em que tem caráter de arte ou de inovação dentro do audiovisual, tornando-se icônico em algum aspecto. Assim, é possível pensar que, quando se trata de um cineasta ou de um movimento estético que possui características marcantes visuais, uma das melhores opções é a de construir o espaço expositivo em harmonia com os referenciais que pautem as obras. Nessa proposta de cenografia da identidade estética, se adota uma expografia que se inspira nessas características visuais para criar um espaço que seja diretamente associado ao filme ou autor que a inspira, ainda que não reproduza diretamente nenhum elemento da obra. Desse modo, as cores, luz, texturas, etc; típicas de algum filme ou cineasta são utilizadas na cenografia da exposição. A título de exemplo de realização de uma cenografia que se dá dessa maneira, é possível pensar na exposição “Tim Burton”, que esteve no MoMA (NY) entre 22 de novembro de 2009 e 26 de abril de 2010. A exposição explorava seu trabalho criativo como um todo. Haviam muitos elementos e objetos expostos – a maioria parte da coleção pessoal de Burton – desde gravuras e ilustrações produzidas ao longo de sua vida, da infância até os dias atuais, até seus filmes produzidos para exibição em grande circuito. Havia desenhos, pinturas, fotografias, storyboards, desenhos de produção, maquetes, figurinos, exibição de curtas metragens e de trechos de longas metragens. O trabalho de Burton ficou conhecido principalmente pela forte identidade nos campos da arte e fotografia. Logo na entrada da galeria havia o desenho de uma seta, cujo corpo era de formato espiral, indicando a entrada da exposição, com uma predominância clara das cores preto e branco no lugar. Essa imagem, imediatamente, traz à mente do espectador elementos frequentes das obras de Burton: o espiral e as listras preto e branco são elementos frequentes em sua cinematografia, como a montanha de Jack Skellington em Estranho
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mundo de Jack (The Nightmare Before Christmas, dir. Tim Burton, 1993), o guarda-chuva do Pinguim em Batman: O Retorno (Batman Returns, dir. Tim Burton, 1992) ou o céu e o figurino em Os Fantasmas se Divertem (Beetlejuice, dir. Tim Burton, 1988). Além disso, a fonte com a qual é escrito o nome da exposição remete a algo escrito à mão e de modo descuidado, alongado e levemente desproporcional. Ainda que de modo indireto, essa tipografia nos remete às figuras do imaginário de Burton em seus filmes, uma vez que é frequente encontrar em suas obras personagens de proporções distorcidas e finas.
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A entrada para a galeria foi inspirada por um desenho aleatório de Tim Burton. O cineasta possui muito material em ilustrações que nunca foram utilizados em nenhuma obra audiovisual, mas que possuem ligação óbvia com o universo por ele criado em seus filmes. Essa criatura, em cuja boca se entra ao se adentrar na galeria, era uma dessas figuras. O desenho, apesar de não pertencer a nenhuma obra, possui elementos frequentes: novamente, as cores predominantes de preto e branco; os espirais; as proporções não naturais, como os olhos diferentes, por exemplo; e a própria associação com a imagem de um monstro, que é um dos personagens mais frequentes nas obras de
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Tim Burton. No interior da exposição, percebe-se a predominância de paredes em tons escuros e uma iluminação pontual e recortada. Toda essa construção do espaço expositivo se baseia em criar uma ambientação capaz de inserir o visitante dentro da obra cinematográfica através de uma associação visual e sensorial entre a cenografia e a estética fílmica. Quando se trata de uma obra tão visualmente marcante como a de Tim Burton, parece já ser um recurso suficiente para provocar uma imersão na cinematografia do cineasta. As cores e traços já tão conhecidos pelo público provocam identificação imediata entre o espaço e a obra do artista, fazendo com que os objetos lá expostos parecessem estar em harmonia, estar no lugar em que deveriam estar. Cenografia da Re-elaboração da Obra Outra opção para a exposição do cinema como obra de arte é a re-elaboração de cenários contidos nos filmes como forma de imersão do visitante. Essa expografia é pensada para, a partir de uma obra cinematográfica, criar-se uma ambientação de seja imediatamente identificada ao filme que a inspirou. Essa opção parece interessante, principalmente quando se pretende tratar de obras cinematográficas cuja cenografia foi muito icônica por algum motivo. É diferente do caso anterior em que se vê uma tentativa de sintetizar a estética de determinado artista ou movimento de modo a entrar em seu universo se utilizando apenas de cores, formas, luz, etc. Aqui a opção parece caminhar mais no sentido de se pensar em signos muito pontuais ou icônicos e de se colocar o espectador dentro de um filme, em especial. Para tentar entender melhor esse caminho, é possível analisar brevemente a exposição “Stanley Kubrick”, que esteve no MIS-SP de 11 de outubro de 2013 a 12 de janeiro de 2014. A exposição foi organizada em uma espécie de labirinto de salas, separadas entre si por um espaço completamente escuro. Cada sala era dedicada a um filme do diretor. Essa transição por um espaço escuro era importante, pois fazia com que se saísse de um universo para outro completamente diferente, sem se deixar contaminar pelo que havia na sala anterior – tanto visualmente quanto no som. Além disso, é impossível não deixar de
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associar a entrada em cada sala à entrada em uma sala de cinema, em que está tudo escuro e o filme já começou. A mesma imersão se dá na exposição. Aqui nos deteremos brevemente em duas salas inspiradas, respectivamente, em dois filmes: 2001: Uma Odisséia no Espaço (2001: A Space Odyssey, dir. Stanley Kubrick, 1968) e O Iluminado (The Shining, dir. Stanley Kubrick, 1980). Em ambas as salas, houve a reelaboração de elementos chave da cenografia dos filmes de modo a trazer o espectador para o meio da ação fílmica. O visitante se torna, assim, ator na exposição e se coloca no meio de tudo aquilo que a cenografia significava no filme. Marko Bravojic, cujo ateliê foi responsável pela cenografia da exposição, disse em entrevista ao site Panorama Mercantil que: No caso da exposição do Stanley Kubrick, na concepção juntos a André Sturm do MIS [Museu da Imagem e do Som de São Paulo] decidimos contextualizar o público nos sentimentos que o personagem principal sentia no respectivo filme. Cada sala é um fim e uma psicose. Tiramos o público da zona de conforto, de passivamente ver os conteúdos. Criamos situações extremas como por exemplo da Laranja Mecânica, onde o piso tem uma imperceptível inclinação que pode a nível do inconsciente, desequilibrar o público. As mesmas psicoses se potencializam pelo mosaico das cenas das telas em sincronia com o som agudo, e com a paleta de cores complementares. Criamos esta específica condição psico-física, para que o visitante esteja aberto a receber e a entender, os conteúdos do trabalho de Stanley Kubrick. Criamos ambientes de experiência coletiva, onde o espaço e o tempo são as nossas interfaces narrativas (BRAVOJIC, 2014).
A sala “2001” era redonda e iluminada de modo a recriar o espaço da nave e seu ambiente asséptico e frio. Uma das imagens mais poderosas do filme é quando se vê o astronauta andando num corredor de formato circular. É justamente assim que entra o visitante na sala. Vindo de um corredor escuro, ele encontra uma entrada circular iluminada e branca que o leva ao interior da sala. A primeira imagem que vê ao entrar é a de um grande retângulo preto, bem no meio da sala. Indubitavelmente, essa construção faz referência ao monólito do filme.
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A sala “O Iluminado” foi construída de modo a misturar diversas referências importantes para o filme. Primeiro por ser feita em formato de labirinto. Ao longo do filme, essa ideia de “se perder” vai sendo construída até chegar à perseguição no labirinto na neve. Os corredores eram construídos com papel de parede antigo e cheios de portas. Num primeiro momento, o visitante não abre as portas, pois não compreende que as informações estão atrás delas. Assim que entende que deve buscar sozinho atrás das portas pelas informações, é tomado por certo receio ou medo do que vai encontrar ao abrilas. A música ambiente ajuda a criar um clima de tensão, que só aumenta ao virar um corredor e se deparar com os vestidos das gêmeas esperando de maneira fantasmagórica ao fundo. Ao alcançar o fim da sala, o visitante vê um mar de sangue escorrendo em looping da parede, também remetendo à famosa cena do elevador. A sala buscou nas narrativas os elementos que iam torná-la uma experiência sensorial de tensão como era o próprio filme que a inspira.
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O interessante é que, mesmo que os cenários não sejam reproduzidos ipsis literis, os elementos cenográficos marcantes das sequências estão presentes. Ao reelaborar a seu modo a cenografia da obra, a ideia não é reinterpretar ou ressignificar as imagens dos filmes, mas sim reforçar sua imagem e ideias. A cenografia inspirada nos cenários parece não só causar essa identificação visual com o filme como também sensorial. Andar nos corredores da sala “O Iluminado” causa a mesma sensação de tensão e expectativa que experimentamos ao assistir ao filme; passar na sala “De olhos bem fechados” causa o mesmo estranhamento que o voyeurismo do filme propõe. A cenografia, nesse caso, é responsável, mais do que os objetos expostos, por expressar a essência das obras cinematográficas. Esse parece também ser o caso em que há um maior trabalho criativo por parte do cenógrafo/criador da expografia, já que aqui, ele precisa buscar elementos que remetam ao filme e à sensação que ele passa, mas criando sua própria interpretação visual. Cenografia é Obra de Arte Por fim, há uma última possibilidade de ambientação do material audiovisual como exposição: quando a cenografia é também uma obra da exposição. A princípio, pode parecer que o modo com que foi descrito anteriormente – Cenografia da Re-elaboração da Obra – é o mesmo que este proposto agora, mas há uma diferença essencial entre eles: enquanto no primeiro a cenografia possui a função e ambientar o espectador na obra,
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neste, a intenção é a de que o espaço cenográfico seja, por si só, uma obra de arte que, mais do que local de exposição dos documentos acerca do filme, é atrativo ao público e objeto de fruição estética. Nesse último caso que será exposto, a proposta cenográfica é a de reproduzir a cenografia de alguma obra audiovisual da maneira mais detalhada possível. É diferente do caso anterior em que a cenografia do filme serve à inspiração para a criação de uma expografia. Aqui, ela reproduz ao invés de reelaborar. Para tentar tornar mais clara a ideia, pode-se pensar na exposição “Castelo Rá-Tim-bum – A Exposição”, em cartaz no MIS-SP de 16 de julho de 2014 a 25 de janeiro de 20155. A exposição contava com objetos, figurinos, recortes de jornal, vídeos, etc. relacionados ao programa de TV Castelo Rá-Tim-Bum (Castelo Rá-Tim-Bum, TV Cultura, 1994). O programa foi um dos mais populares dos anos 1990 no Brasil. Esses documentos reunidos acerca da série ficavam expostos em salas que reproduziam fielmente a cenografia do programa, sendo que ficavam divididos por sala de acordo com a qual personagem ou espaço se referiam.
Imagem 4 Sei que, aqui, tratarei de uma exposição cujo objeto é um produto audiovisual pensado originalmente para a televisão, mas creio que cabe colocar o exemplo pois houve produção do “Castelo Rá-Tim-bum” também para o cinema e para o teatro. Outro fator a ser levado em conta é o deslumbramento que o programa provocava e que creio ter efeito semelhante ao do cinema, de suspender a realidade do espectador por alguns instantes e permitir a imersão na obra. Além disso, os limites da televisão e do cinema ficaram muito turvos pois grande parte das séries produzidas para a televisão possui uma linguagem que se aproxima do cinema (como creio que seja o caso aqui, principalmente no que tange à decupagem). 5
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Analisando a Imagem 4 é possível perceber imediatamente que a intenção principal da exposição não é só criar um ambiente compatível com as obras expostas, mas sim, que o visitante possa entrar no cenário e que esse seja parte da experiência. Pressupõe-se aqui uma interação muito maior do espectador com a cenografia. É possível subir as escadas do castelo, sentar no sofá do saguão, encostar em todos os elementos que fazem parte do cenário. Essa escolha se dá possivelmente porque o cenário na obra audiovisual provocava certo encantamento no espectador. Havia o desejo, por parte de quem assistia, de poder interagir com aquela construção cheia de portas secretas, móveis que se mexiam sozinhos e personagens que brotavam dos ambientes. Tanto é que se procurou utilizar uma série de tecnologias que aproximasse a cenografia da exposição daquela da série: o porteiro da entrada fala a senha que abre a porta do Castelo; a cobra Celeste na árvore, diz seu bordão; ferramentas como projeções holográficas reproduzem ao vivo aquilo que eram efeitos especiais na televisão; tudo para se resgatar a magia que havia no programa e que é bem conhecida por todos que o assistiram em todos os seus detalhes. Desse modo, o público pode interagir intensamente com a cenografia, que se torna ela própria uma obra de arte a ser fruída. Esse modelo expositivo, no entanto, corre um risco fácil de esvaziamento. As exposições que tratam do cinema em geral se apoiam muitas vezes em certo fetiche por parte do público para com as peças expostas. É comum que se ouça falar com admiração que está exposto um vestido usado pela própria atriz principal do filme ou uma carta escrita à mão pelo próprio diretor. O grande público gosta de sentir que de alguma maneira se torna mais próximo do artista que admira por estar diante de algo tocado por ele e os objetos se tornam testemunhas de um momento ou produção fílmica. Quando se reproduz fielmente uma cenografia de um produto audiovisual para a sala do museu, pode se acabar caindo nesse mesmo fetiche. A cópia fiel de uma cenografia pode acabar deixando de lado possibilidades criativas muito mais interessantes, como foi no caso dos dois exemplos anteriores.
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Considerações Finais Muito se fala que o cinema é a sétima arte, mas pouco se pensa em como tratar todas as implicações que a palavra “arte" pode trazer. Porém, quão mais antiga se torna a arte do cinema, mais bagagem se coloca diante de nós esperando não só o estudo e a análise como também a apreciação estética. A linguagem do cinema se insere, mais facilmente, na vida das pessoas e é de se esperar que se torne interessante como objeto de arte. Por isso é preciso que o espaço expositivo encontre soluções de como exibir essa arte dentro de um espaço que não lhe foi destinado inicialmente. O que parece mais interessante nessa opção de criar uma expografia baseada na obra que se pretende expor é que se cria a possibilidade de uma obra de cunho narrativo ser ponto de partida para outras experimentações estéticas. De alguma maneira, o que se faz aqui é um movimento de adaptação entre linguagens que guardam semelhanças e diferenças entre si. Quando se fala em adaptação muito se pensa no movimento mais comum, o de uma obra literária adaptada para o meio audiovisual. O que esse trabalho de expografia parece apontar é uma ampliação desse senso comum: por que não adaptar um texto literário a uma instalação, por exemplo? O campo da adaptação tem potenciais menos explorados e que guardam ricas possibilidades. Adaptar um filme a uma cenografia de museu pode ser uma dessas possibilidades. O desafio em adaptar uma obra cinematográfica para uma cenografia está em produzir uma ambientação instigante e criativa, mantendo o espírito e essência da obra que foi seu conceito gerador, sem deixar de explorar o que lhe é específico. Isso deve ser feito de maneira semelhante ao que diz Bazin (2014) sobre a adaptação de um texto teatral para o cinema, que deve “(...) almejar a fidelidade – não mais uma fidelidade ilusória de decalcomania – pela inteligência íntima de suas próprias estruturas estéticas, condição prévia e necessária para o respeito às obras que ele investe” (BAZIN, 2014, p.129). A cenografia deve se reconhecer como tal e promover uma adaptação a partir das suas características artísticas. As megaexposições de cinema também trazem uma possibilidade de responder a um desejo antigo do espectador: a interatividade. “Sempre fomos o espectador interativo,
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antes da interatividade” (AUMONT, 2010). O rádio, por exemplo, se fundou – e funda até hoje – numa ideia de construção de conteúdo a partir daquilo que os ouvintes dizem, já que sempre houve a possibilidade de que ele pudesse telefonar para a rádio e opinar sobre o que ouvia. O teatro também se aproximou da ideia da interatividade com experiências como o Living Theatre de Londres e o Teatro Oficina de São Paulo, com espetáculos que envolvem a participação direta da plateia. Na televisão a interatividade tem um lugar de maior prestígio, pois o agora é parte ontológica de sua estrutura. A televisão nasce ao vivo e mantém em sua grade programas que dependem do espectador diretamente para continuar – como reality shows, por exemplo. No cinema essa possibilidade não é igual, pois ele “é uma experiência na qual a interatividade é limitada ao exercício do olhar e da escuta” (AUMONT, 2010) e não tem o caráter de instantâneo dos outros meios citados anteriormente. Algumas experiências foram feitas com filmes em que o espectador tinha a possibilidade de voar e escolher qual rumo queria que o filme tomasse, mas configura outro problema já que o público não tem feedback daquilo que optar: nunca pode ter certeza se a história rumou para aquela direção por conta de suas escolhas ou não. Esse desejo de poder participar ativamente das obras admiradas foi se tornando mais facilitado com os avanços das tecnologias de comunicação e o acesso mais amplo à internet. Em “Cultura da Convergência”, Henry Jenkins descreve que “os fãs são o segmento mais ativo do público das mídias, aquele que se recusa a simplesmente aceitar o que recebe, insistindo no direito de se tornar um participante pleno” (JENKINS, 2009, p.188). Com a possibilidade de criar conteúdos eles mesmos, os fãs têm nas mãos a possibilidade de não só se tornar admiradores, mas criadores. A exibição também se torna mais democrática, já que há inúmeros sites onde se pode colocar um vídeo para exibição ou até download, caso seja o desejo do seu autor. Esse espectador que se propõe a produzir conteúdos deixa de ser apenas passivo, para ser interator, ou seja, participar de maneira ativa na criação de obras. As propostas de megaexposições, aqui apresentadas, parecem complementar essa vontade de participar mais ativamente das obras cinematográficas pois, ao participar de uma exposição sobre um filme, que conta com uma ambientação diferente da
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tradicional dos museus e galerias, o espectador tem muito mais possibilidades de interação. As opções, aqui levantadas, parecem um bom caminho nesse sentido pois, além de respeitarem a diferença entre as artes plásticas e o cinema, também respeitam a diferença entre o cinema narrativo/produzido para o circuito do mercado e a vídeo-arte e instalações audiovisuais e colocam o visitante em contato orgânico com a obra. O cinema produz no espectador uma sensação de se colocar dentro de uma história. Ao realizar uma exposição cujo foco é o cinema, ambientar o local é mais do que puro efeito estético: é reproduzir no museu a experiência de imersão na obra que o espectador tem ao assistir a um filme.
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Inter-relações entre gosto e gênero cinematográfico Marília Rezende1 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Resumo: Neste artigo pretendemos apontar as relações entre gênero fílmico e gosto do público, demonstrando como o gênero é capaz de modelar expectativas e como a percepção da audiência pode afetar a indústria cinematográfica. Para tanto, abordaremos a noção de gênero de Jule Selbo (2011), o estilo segundo Norma Discini (2009), e a construção de gosto a partir de Eric Landowski (1997) na perspectiva da semiótica francesa. Entendemos o gênero cinematográfico enquanto uma construção virtual que guia, entre tantas outras coisas, a escolha e a leitura do filme pelo público. Palavras-chave: gênero cinematogrático; estilo; autoria; gosto; público. Abstract: In this article we intend to point out the relations between the film genre and the taste of the public, demonstrating how genres may model expectations and how the audience's perception affects the film industry. In order to do so, we focus on the notion of genre by Jule Selbo (2011), on the style approach by Norma Discini (2009), and on the construction of taste addressed by Eric Landowski (1997) in the perspective of French semiotics. We understand the film genre as a virtual construction that guides, among many other things, the audience's choice and reading of the movie. Key words: film genre; style; authorship; taste; audience.
Mestranda na linha de Pesquisa: Regimes de sentido nos processos comunicacionais. E-mail: contato.mrezende@gmail.com. http://lattes.cnpq.br/0318208363043252
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O gênero cinematográfico, construto inacabado e forjado por diversas mãos, tem no público um de seus elos fundamentais. É ele que está (bem ou mal) representado nas categorias genéricas que se estabelecem. O gosto do público e da crítica, que assumem posição de destinatários, é levado em conta pelos elos de produção, distribuição e exibição dos filmes. E como poderia ser diferente se é o público o fim mesmo da comunicação audiovisual que se estabelece? Sabe-se que todo enunciado implica no estabelecimento de um contrato entre aquele que enuncia e aquele a quem se enuncia. O contrato de veridicção é esse “crer-verdadeiro” que se faz necessário para a efetividade da comunicação (GREIMAS, 2016, p.530). No cinema esse crer relaciona-se à verossimilhança do filme, a qual não se equipara necessariamente à realidade, àquilo que de fato ocorre ou faz sentido no dia-a-dia. O filme de horror, por exemplo, possui uma coerência interna da qual faz parte o espanto, o sanguinário, o fantasioso. Mas essa coerência interna, longe de isolar-se do contexto de produção cinematográfica, dependente de fatores externos, na medida em que um filme só pode reconhecer-se de horror a partir de sua correlação com outros. Jule Selbo, autora, pesquisadora e roteirista americana utiliza o termo espaço mental, mais preciso que o termo verossimilhança, ao abordar a lógica própria de determinado filme. O espaço mental (mental space) de Selbo espelha-se, como aponta a própria autora, em um conceito do cientista cognitivo Fauconnier e do linguista cognitivo Lakoff. Esses autores, segundo Selbo (2011), propuseram a ideia de espaço mental em relação aos possíveis mundos (possible worlds) da filosofia. A diferença entre o termo de Fauconnier/Lakoff é que, diferentemente dos possíveis mundos, os espaços mentais não seriam necessariamente representações fidedignas da realidade, mas sim modelos cognitivos idealizados (ICM) de possíveis mundos. Nesse sentido, Selbo adota ambos os termos — ICM ou espaço mental — para se referir ao universo de um filme, o qual não engloba tudo o quanto faz parte do real, mas sim aquilo que interessa à sua narrativa ou à sua intenção estilística e temática. Em outras palavras, a construção dos espaços mentais ou de um modelo cognitivo idealizado é composta por “elementos como cenário, personagens, tema, trajetória da trama — e gênero fílmico” (SELBO, 2011, p.46, tradução
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nossa). São esses elementos tanto pertencentes ao plano do conteúdo (como trama e tema) quanto ao plano da expressão (como figurino e iluminação). Tais planos unidos correspondem à manifestação e distinguem-se apenas para efeito de análise, já que toda expressão carrega um conteúdo e vice-versa. Em suma, em cada gênero — drama, suspense, comédia, mistério — o roteirista mobiliza determinados elementos de manifestação em detrimento de outros. Adentramos o assunto do espaço mental para assinalar a lógica própria que rege a produção dos filmes e relacionarmos tais estratégias ao gosto do público, que influi imensamente na determinação e no desenvolvimento dos gêneros. Na medida em que o gosto do público se transforma, há uma adequação da indústria cinematográfica de modo que essa possa então corresponder a seu destinatário. Todavia, essa adequação ocorre somente para que se possa manipular o espectador, fazendo com que esse adira a seu produto. É claro que a indústria cinematográfica também contribui para modelar o gosto do público ao atuar criativamente e inserir novos elementos em suas produções. Entretanto, é o espectador quem se situa na posição avaliativa e sancionadora do filme. Como aponta Altman em Film Genre, a divulgação de um filme passa a explorar novas nomenclaturas com a finalidade de diferenciar seu produto quando julga ser necessário. Nos tempos em que a comédia estava "gasta", por exemplo, surgia o termo comédia romântica, de modo que esse rótulo (associado a mudanças na produção) conferia às comédias da época um novo aspecto, mantendo ou até ampliando seu público. Assim, observando o desejo da audiência por novos traços, ainda que essa queira ver espelhado na tela algo reconhecível, a indústria cinematográfica age de forma estratégica para agradá-la. Quando falamos em “novos traços” estamos perpassando também o campo do estilo, bastante pertinente ao se tratar a relação entre gênero e autoria. Mas o que, afinal, configura um estilo? Pertence esse ao campo da individualidade, do idioleto2 (Greimas e Courtés, 2016)? É próprio de um autor ou pode ser relativo a um movimento? Não seria ele uma unidade reconhecível somente em correlação com um todo? 2
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apropriação da língua por um de indivíduo, que se expressa de forma particular devido a suas escolhas.
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O Estilo Norma Discini (2009) trabalha o estilo a partir de um modelo complexo. Aqui, retomaremos algumas ideias apresentadas pela autora, a fim de vislumbrar como o estilo encontra seu espaço em uma tipologia (conjunto reconhecível por gênero, por diretor, por período, entre outros). Também apontaremos a querela entre autoria e gênero que, não raro, volta suas costas para a confluência de ambos, esquecendo-se que o caráter genérico perpassa todo e qualquer filme e que a autoria, em maior ou menor medida, está presente numa filmografia rotulada policial, ficção científica, drama, suspense, etc. Para Discini, o estilo é o efeito de sentido de individualidade que "emerge de uma norma, determinada por recorrências de procedimentos na construção do sentido (…)” (DISCINI, 2009, p.36). Entende-se essa norma não como uma prescrição, mas enquanto “abstração dada pela recorrência de um modo 'único' de fazer e de ser, inerente a uma totalidade” (ibid., p.37). Assim, partimos da compreensão de que para se reconhecer um estilo é preciso apreender as isotopias (traços reiterados de conteúdo e de expressão) do discurso ou dos discursos de um (ou mais) enunciador — não o de carne e osso, mas aquele do próprio enunciado, em nosso caso fílmico; aquele que não corresponde a uma pessoa (como ao diretor) mas que está implicado no filme de forma totalizada, enquanto ''voz organizadora". Mas se essas recorrências se estendem a diversos realizadores, não perdem elas seu caráter ‘único' de fazer e de ser, seu efeito de individualidade? Essa é uma questão que nos interessa, pois deságua na noção dos gêneros cinematográficos. Entendemos que o estilo é antes de tudo um efeito; muito mais uma questão conjectural que de “autenticidade”. Observemos o modelo utilizado por Discini ao se tratar o estilo, que depende da rede de relações entre partes e todo. Esse modelo tem bases em Brøndal e Greimas (2016)3:
as unidades Ui, Up, Tp e Ti foram projetadas por Greimas, mas Discini as relaciona com os conceitos unus, totus, omnis e nemo, de Brøndal.
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LEGENDA Ui: unidade individualizada | Up: unidade partitiva Tp: totalidade partitiva | Ti: totalidade integral
A Unidade individualizada (Ui ou unus) é definida como “unidade realizada, discreta, ‘expulsa’ do bloco integral” (DISCINI, 2009, p.35) e vamos associá-la a um único filme longa-metragem, fechado em si mesmo e com determinada definição genérica. Tenhamos em mente o filme Memento (Amnésia, 2001) como unus que, enquanto filme de mistério, pressupõe uma totalidade integral (Ti ou totus): o conjunto dos discursos fílmicos enquadrados no mesmo gênero e com o qual Memento dialoga involuntariamente. A unidade partitiva (Up ou nemo) relaciona-se à virtualidade do sentido, congregando as características compartilhadas por filmes de determinado gênero, como a revelação dos fatos ao final da narrativa. Já a totalidade partitiva (Tp ou omnis) agrupa determinadas partes numericamente, ainda que essas apresentem dissonâncias entre si. Pode agrupar, por exemplo, os filmes de mistério produzidos na década de 1990. Nota-se que Up e Tp dizem respeito a uma estrutura abstrata, enquanto Ui e Ti correspondem a produções concretas. A correlação de um filme (Ui) com a estrutura abstrata na qual esse se insere genericamente (Up) remete à “arquitextualidade” da qual fala Moine (2010, e-book p. 613) com base em Genette (1982), diferindo da intertextualidade, que diz respeito ao diálogo de um filme para com outro(s). Notemos, a título de esclarecimento, a distinção metodológica entre (1) uma análise de um filme específico (Ui) — como Memento (Amnésia, 2001) — em comparação à estrutura abstrata (semântica e sintática) do gênero com o qual esse tem maiores correspondências, como o mistério (Up), e (2) uma análise que leva em consideração Memento e um corpus de filmes limitado, cada qual com suas características
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específicas mas também com similitudes de modo que possam ser enquadrados na tipologia em questão (Tp; Shutter Island, Witness for The Prosecution, etc). Na primeira análise, colocamos um filme em relação a um universo genérico (virtual); na segunda, um filme com relação a outros, que constituem um grupo seleto e finito, representativo de uma totalidade partitiva. Mas ao que corresponderia, afinal, a totalidade integral (Ti)? Ela corresponderia, nesse caso, à totalidade de filmes enquadrados no gênero de interesse — o que se torna inviável para fins de análise. É o nemo, devido à sua virtualidade e relação com o gênero, que aqui particularmente nos interessa. Discini o relaciona com o fato de estilo: “unidade formal, reconstruída pelo percurso gerativo do sentido, aplicado a um conjunto de discursos” (DISCINI, 2009, p. 35). Em outras palavras, o fato de estilo é um padrão que se faz reconhecível, é aquilo que remete a um "modelo" aplicável a um conjunto de textos, literários ou fílmicos. Vamos voltar ao que nos ateve num primeiro momento: o que configura o estilo e como esse encontra espaço numa determinada tipologia de filmes? Bom, vamos juntar as pontas: se a unidade individualizada se reconhece enquanto estilo é em sua correspondência com a totalidade integral. E esse estilo, para tornar-se observável, depende da repetição, “apóia-se num fato formal enquanto potencialidade de sentido, dada pela recorrência de um fazer, depreensível da totalidade de discursos enunciados” (DISCINI, 2009, p.28). Ou seja, apoia-se no Up (nemo) que se torna exemplificável em um corpus, Tp (omnis). O gênero, então, sendo estrutura abstrata, não é um estilo em si, mas como mencionamos um fato de estilo, um percurso a ser “aplicado”, sempre com adaptações. Estrutura virtual, o gênero toma corpo em filmes específicos, com unidades próprias. Note, agora, que tanto a noção de gênero quanto a noção de autoria subsume uma estrutura virtual (como a blueprint de Woody Allen e o policial enquanto “norma”), sem por isso deixar de constituir, em última instância, uma unidade integral (Ui), com suas devidas individualidades. Nenhum filme policial é de todo semelhante; da mesma forma, um filme de Woody Allen pode manter distâncias consideráveis com outro do mesmo “ diretor-autor
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” — vide Vicky Cristina Barcelona (2008) e Desconstruindo Harry (1997). O termo genre film (filme de gênero) pressupõe uma conotação negativa, referindose sobretudo aos produtos audiovisuais que empilham características genéricas, numa tentativa de concretizar uma estrutura abstrata ao pé da letra. Essa virtualidade não se pretende como prescritiva e o equívoco teórico de uma oposição imediata e gratuita ao estudo dos gêneros está em confundir a validade desse enquanto ferramenta com sua aplicação impensada, fácil e gasta. O “ cinema de autor” é um falso oposto do “cinema de gênero”. O que há, na verdade, não é nem o cinema de autor puro, nem o cinema de gênero. Existem filmes que, inevitavelmente, perpassam determinadas categorias genéricas e, em maior ou menor medida, possuem aspectos particulares que os diferenciam enquanto filmografias de um mesmo diretor. A partir daqui, tenhamos em vista a flexibilidade das noções de gênero, autoria e estilo. Vê-se também que o gosto do público é construído através do reconhecimento de recorrências. Isto é, para se falar “eu gosto disso” ou “ele gosta daquilo” há de haver experiência prévia, sendo desejável que essa experiência provenha da familiaridade com o objeto em questão, ou seja, da exposição recorrente a ele. Por exemplo, ao dizer que gosto de filmes de ação devo considerar mais de um filme. É só assim que posso observar que minha preferência não é por este filme que acabo de assistir mas sim por filmes como este (nemo), com longas sequências de perseguição, montagem acelerada, uso ostensivo de foleys, etc. Mais do Mesmo? Agora que tratamos do estilo, podemos retornar à questão do gosto e inferir que a preferência por um universo genérico corresponde à preferência por uma estrutura virtual que se concretiza em filmes específicos, com maior ou menor eficácia4. O gosto do público, portanto, pode ser melhor apreendido a partir da compreensão das diversas teias invisíveis que se imbricam e correspondem tanto aos gêneros quanto a outras tipologias. Quando nos referimos à satisfação do espectador que é, em grande parte, 4
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avaliação essa do ponto de vista do público.
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produzida pelo “cumprir expectativas” do produto audiovisual — o qual se anuncia enquanto uma comédia romântica, um suspense, um horror — estamos tratando do “gosto de gozar” o filme, para usar o termo de Landowski (1997). Esse cumprir expectativas atrelase, em certa medida, ao cumprimento da estrutura genérica sugerida desde a divulgação do filme (cartaz, trailer) até sua execução (com destaque para a sequência de abertura, que costuma trazer fortes indícios genéricos). Mas há também, como define Landowski, o “gosto de agradar”, o qual é comum àquele que gosta de algo na medida em que essa inclinação é favorável à sua imagem a um Outro. Vê-se, por exemplo, que a crítica exerce grande força sobre o espectador ao agregar valor a determinados filmes e agir de forma depreciativa ou indiferente com relação a outros. Coibidos socialmente, pois há o senso do bom e do mau gosto, muitos passam a “aderir” a determinados gostos em consonância com a crítica. O peso da imagem na atualidade chega a tal ponto que não me parece exagero apontar a gradual perda de sentido do termo “gosto”, dado que com frequência não nos permitimos gostar genuinamente de algo. Cobramos de nós mesmos a adequação àquilo e àqueles que estimamos. Sabemos, enquanto cineastas, que devemos amar Ozu, Mizoguchi, Orson Welles, Glauber Rocha, Godard, Hitchcock, entre outros. E a valoração atribuída aos objetos do mundo pelos que respeitamos, ou pelas instituições das quais somos parte, atinge-nos de tal forma que o gosto que assumimos enquanto um reflexo de nós mesmos revela muito mais aquilo que “queremos” ou “devemos ser”. O medo de não agradar fica mais claro se observarmos a tendência do espectador em esconder sua preferência por determinados gêneros, sendo um tanto quanto curioso o "coming out" de um aficionado por certa categoria ao finalmente reconhecer outro, sentindo-se à vontade para assumir seu apreço pelo horror, pelo musical, pelo melodrama ou pelos demais gêneros cinematográficos (ALTMAN, 1999, p.158). Por outro lado, fatores externos como a opinião do outro ou a atuação da crítica também podem contribuir para a formação legítima do “gosto de gozar”. A crítica da qual falávamos pode atuar como “destinador-doador” de competência, conferindo ao público os conhecimentos e contextos necessários para a apreciação de um filme. Os “gostos”, dessa forma, circulam e se reconstroem. A cadeia produção-distribuição-crítica-espectador
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movimenta-se — ao contrário do que possa parecer — de forma circular, um elo exercendo força sobre o outro e modificando as formas de produzir ou receber determinado produto. Os avanços tecnológicos também exercem pressão sobre essa cadeia, em cujas extremidades situam-se produção e espectador. Isso porque contribuem para a afirmação de novos padrões técnicos e estilísticos na produção de filmes, os quais vêm a reverberar no gosto do público. No final da década de 1950 e no início dos anos 1960, produziram-se câmeras mais leves que poderiam ser manejadas sem o uso de tripés, favorecendo filmagens em ambientes externos e implicando no uso mais livre da câmera (THOMPSON; BORDWELL, 2003, p. 440). Sem esse avanço não haveria a Nouvelle Vague francesa tal como a conhecemos, ainda que o movimento tenha sido impulsionado, sobretudo, pela crítica dos Cahiers du Cinèma que, fatigada dos filmes da tradição "de qualidade", mobilizou-se para a construção de uma nova cinematografia. O desenvolvimento técnico forneceu as condições necessárias para a concretização desse cinema enquanto um movimento de afronta à tradição cinematográfica francesa do período. Outro exemplo de influência da tecnologia sobre o estilo foi o uso de filtros e lentes que possibilitaram o desfoque do plano fundo em contraposição aos elementos dispostos no primeiro plano da imagem. Essa técnica tem implicações que vão além da plasticidade, resultando na "intensificação do estilo da narrativa clássica ao concentrar a atenção do espectador na ação principal, desenfatizando elementos menos importantes" (THOMPSON; BORDWELL, 2003, p. 147, tradução nossa). De modo mais amplo, o contexto histórico e social também influi sobre a construção dos filmes e, particularmente dos gêneros ou movimentos, formas que ficam conhecidas sob rótulos mediante a sua expressão numerosa. Parece-nos inevitável citar o exemplo do Expressionismo Alemão5 no cinema, que data do período sombrio do entreguerras, no qual a nação alemã estava devastada com a deflagradora derrota e com suas Fala-se muito em movimento quando tratamos do Expressionismo Alemão, por esse ter se limitado a determinado contexto histórico. Ainda assim, o Expressionismo possui recorrências que se assemelham às genéricas, não sendo esses termos — movimento, gênero e ciclo — de mútuo acordo entre os teóricos. Tentamos aqui não nos prender a essas definições. O que nos interessa é que esses filmes reunem um conjunto de características expressivas, tendo uma produção numerosa e reconhecível sob determinado “rótulo”. 5
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inúmeras perdas. Assim, o dualismo, as sombras, os temas pessimistas, a expressão corporal exacerbada, as distorções incômodas, são aspectos fílmicos que encontram elos para com a realidade vivida pelo público. Vemos, portanto, que o gosto cinematográfico do espectador relaciona-se também ao contexto, de modo que ele busque ver refletido no filme questões do seu tempo, seus medos, sonhos, interesses e anseios. Enquanto pesquisadora, Selbo se atenta para a importância de o roteirista apreender a pertinência de um gênero fílmico na contemporaneidade. Esse conhecimento necessário ao roteirista (e aos demais profissionais envolvidos na realização do filme) é por Selbo denominado de conhecimento relevante (relevant knowledge). O conhecimento relevante possui três componentes principais, sendo a primeira a observação (noticing) para com as mudanças nos padrões sociais, os comportamentos dos indivíduos e seus desejos. Observar os entornos, o ambiente, é extremamente necessário para se entender o contexto de uma produção e dominar esse conhecimento que no fundo é mesmo uma compreensão dos gostos do público enquanto uma legião de indivíduos inseridos cultural e socialmente em determinado tempo e espaço. O gosto, entretanto, não se encerra aí — é multifacetado. Indivíduos que partilham de uma mesma “realidade“ (temporal, social e culturalmente) podem ter preferências distintas. Dessa forma, ainda que pertinentes ao contexto do qual fazem parte, determinadas produções podem agradar ou desagradar diferentes faixas do público, o qual secciona-se devido à complexidade e variedade de seus gostos. A catalogação em gêneros, portanto, auxilia o espectador na escolha daquilo que ele verá e promete a ele determinados efeitos de sentido. No mistério, algo deve estar por ser desvelado. Caso contrário, o espectador terá uma profunda decepção ao final do filme. O mistério promete e “depende da exposição tardia, a verdade dos fatos sendo revelados apenas no final” (BORDWELL, 1985, p.40, tradução nossa). O suspense, por outro lado, não se pauta na revelação final. Nesse tipo de filme, o espectador sabe ou prenuncia o que está por vir de modo a ansiar pelo destino das personagens, pela sequência dos acontecimentos. O gosto
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pelo suspense é o gosto pela “espera dilatada”6. Já o gosto pelo horror é o gosto pelo espanto, pelo terrível; o gosto pela comédia é a espera do humor que provoque riso; e assim por diante. Esse conhecimento das reações que determinado gênero deve provocar em um público relaciona-se a um outro conhecimento exposto por Selbo — o conhecimento específico, o qual diz respeito à compreensão da memória pessoal de uma audiência sobre determinadas situações ou eventos e às possíveis relações entre um público e os efeitos de sentido7 provocados pelos diversos gêneros: o próprio riso, o espanto, etc. Nota-se, portanto, que a prática de escrita de roteiros mediante os procedimentos de Selbo dialoga amplamente com a compreensão dos gostos do público. Até então não abordamos a hibridação dos gêneros. E, embora esse não seja o objetivo do presente texto, vale mencionar que os exemplos dados, situados em um ou outro gênero, são bastante didáticos. Os gêneros parecem mesclar-se cada vez mais, de modo que suas fronteiras tornam-se ainda mais móveis e nebulosas. Não estaria o gosto do público se complexificando, o que resulta na busca por novas relações genéricas? Essa é uma questão, mas muitas outras podem ser colocadas a fim de que a relação entre público e gênero se torne mais clara. Por que motivo, afinal, são os gêneros relativamente estáveis? Por que o gosto por filmes de herói, por exemplo, se mantém por longos anos? Por que o drama e a comédia, embora se atualizem, não se esgotam? Os gêneros, portanto, não são apenas etiquetas catalogadoras, mas ferramentas (do destinador/ realizador do filme e do destinatário/ público); formas indicadoras de gostos e transformações sociais; formas de relativa estabilidade conquanto passíveis de mudanças. Reiteramos que os ressaibos diante da teoria dos gêneros estão, usualmente, fundados na má compreensão de que o uso dos gêneros é prescritivo. Se o foi em determinados momentos da história, pode-se dizer que, hoje, após teóricos como Rick Altman, Edward Buscombe, Steave Neale, Robert Warshow, Raphaëlle Moine, a
Referência ao título da tese de doutorado O Suplício na Espera Dilatada: a construção do gênero suspense no cinema; defendida por SILVA, Odair J. M. na Universidade de São Paulo em 2011. 7 o termo efeito de sentido, da semiótica discursiva, não é empregado por Selbo, mas acreditamos que contribua para esclarecer os conceitos da autora. 6
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compreensão dos gêneros é muito mais complexa. Nossa maior ressalva está justamente em perceber que o guiar-se pela compreensão dos gêneros ou o fazer uso de um “fato de estilo” autoral não implica em produzir necessariamente “mais do mesmo”, no sentido da usura de um arquitexto. Produz-se mais de uma estrutura reconhecível, a qual é maleável e se ajusta às intenções do destinador. Pode-se, através do conhecimento de estruturas abstratas, dos gostos do público e de comportamentos culturais, gerar conteúdos que apresentem um “senso de novidade”8. Ao entender os gêneros, o destinador está mais e não menos apto a subvertê-los, a mixá-los, a agregar a eles novos aspectos e a relacionarse com um público cujos gostos vêm sendo formados há décadas, sob a inevitável influência das estruturas virtuais (ou nemo) que aqui abordamos.
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termo utilizado por Selbo.
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A Mostra de Tiradentes e o cinema brasileiro Modos de olhar Rafael Carvalho1 Universidade Federal da Bahia
Resumo: Com a consolidação da Mostra de Cinema de Tiradentes no cenário de mostras e festivais de cinema que se espalharam pelo Brasil, buscamos realizar um estudo localizado da recepção e dos discursos críticos em torno da Mostra e de suas marcas perceptíveis no cenário brasileiro de mostras e festivais de cinema. Intentamos realizar um breve horizonte de análise de recepção em que o objeto estudado tem valor não só através de suas características imanentes, mas também a partir do modo como ele é lido pelos indivíduos críticos ou por leitores históricos que circulam no ambiente cinematográfico brasileiro. Palavras-chave: crítica de cinema; recepção; cinema brasileiro; Mostra de Tiradentes. Abstract: With the consolidation of Tiradentes Film Festival at the scene of exhibitions and film festivals that have spread throughout Brazil, we intend to carry out a localized reception study and critical discourse around the festival and its noticeable brands in the Brazilian scenario of film festivals. We seek here to perform a brief analysis horizon of reception in which the studied object has value not only through its inherent characteristics, but also from the way it is read by critics or by historical readers circulating in the Brazilian film environment. Key words: film criticism, reception, Brazilian cinema, Mostra de Tiradentes.
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas e mestre pela mesma instituição. Orientadora: Profª Drª. Regina Gomes. Linha de pesquisa: Análise de Produtos e Linguagens da Cultura Mediática. Membro do Grupo de Pesquisa Recepção e Crítica da Imagem (GRIM). Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB). Email: rafaolicarvalho@gmail.com 1
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A Mostra de Cinema de Tiradentes solidificou-se nos últimos anos no cenário de mostras e festivais de cinema que se espalharam pelo Brasil. Como programação dedicada exclusivamente ao cinema brasileiro, e aquele marcadamente mais arriscado e arrojado, o evento tem sido cada vez mais respeitado e admirado pelo rigor da curadoria no processo de escolhas dos filmes, bem como pelo recorte que criou em torno de uma porção do cinema brasileiro que se privilegia nessa janela de exibição já tão significativa na cultura cinematográfica brasileira. Nosso objetivo aqui é fazer um estudo localizado da recepção que perpassa pela Mostra de Tiradentes e por sua escolha curatorial, os filmes que são apresentados ali e a maneira como eles propõem um novo olhar para certa produção do cinema independente brasileiro nos últimos anos. Para tanto, nos concentraremos nos discursos oficiais e de críticos que, de alguma forma, tentaram discutir as proposições que a Mostra tem colocado em questão no âmbito do cenário brasileiro de produção cinematográfica. Interessa-nos saber como os agentes que tomam parte da Mostra lidam com suas particularidades curatoriais, quais considerações são tecidas sobre a própria produção nacional recente e, mais pontualmente, como eles enxergam uma concepção de cinema muito particular representada pelos filmes selecionados pela Mostra de Tiradentes. E num sentido mais amplo, como o próprio exercício da crítica de cinema pode ser pensado na prática, sob a luz das questões levantadas em torno da produção crítica feita para a web e difundida no ciberespaço. Pensando na atividade crítica como vigoroso vestígio de recepção (STAIGER, 2000; 1992; BAMBA, 2013) e sendo o crítico aquela figura que angaria status para poder falar com propriedade sobre as obras (CUNHA, 2004), espelhamo-nos aqui nos estudos que buscam identificar certas marcas representativas a partir da recepção crítica da obras ou de um conjunto de obras (GOMES, 2015; ALTMANN, 2010; FIGUÊIROA, 2004), ampliando-as agora para a percepção do trabalho de curadoria e composição de uma programação fílmica como a da Mostra de Tiradentes.
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A Mostra de Tiradentes e os embates críticos Sobretudo nos estudos de Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser (1979), inicia-se no campo das pesquisas literárias a perspectiva de uma estética da recepção com interesse pela participação e importância do leitor como agente capaz de interagir com o texto. Umberto Eco (1988), ao defender o conceito de leitor modelo, coloca-o como parte do processo comunicativo, participativo e criador, conferindo sentido ao texto e só assim fazendo dele uma peça acabada por preencher os espaços em branco deixados pela obra. Mesmo que o texto, por si só, transmita implicitamente determinadas orientações prévias de leitura ou que preveja uma imagem do leitor modelo que lhe seja conveniente, a fim de guiá-lo à interpretação, o lugar do leitor está garantido como constituinte da própria obra textual. Com tal raciocínio, “fica claro que não se trata de abordar empiricamente a entidade leitor, mas de vê-lo como um ser virtual, imprescindível para dar constituição e sentido à obra que, isolada, não possui significado algum, torna-se inerte” (GOMES, 2015, p. 26). Nessa esteira de pensamento em que o leitor aparece num lugar de destaque no processo comunicativo que constitui a própria obra e confere a ela significação, podemos falar do crítico das artes como um leitor diferenciado, defendido por alguns como primeiro espectador dos produtos culturais (CUNHA, 2004), mas sobretudo como agente socialmente reconhecido enquanto profissional capaz de emitir e defender, com propriedade, um juízo de valor sobre as obras artísticas. No caso da Mostra de Cinema de Tiradentes, a figura do crítico de cinema tem função dupla e preponderante enquanto instância de legitimação das obras: ela está não só na participação dos críticos que cobrem e são convidados para debater os filmes da programação do festival – construindo, assim, uma recepção das obras –, como a própria gênese da orientação de curadoria está também imbuída de preceitos críticos na medida em que pensam e propõem uma concepção particular das obras e da configuração atual do cinema brasileiro. É a partir de um olhar crítico muito engajado sobre o cinema nacional que a Mostra de Tiradentes compõe sua seleção, destaca filmes e realizadores,
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confere sentidos a esses discursos desenvolvidos através e em torno dos filmes e, por fim, vem construindo, ao longo do tempo, modos de legitimação de sujeitos e produtos da cultura cinematográfica brasileira que passaram a ganhar lugar de destaque no evento. Daí a importância de pensar numa recepção do próprio festival enquanto recorte conceitual lançado sobre a produção cinematográfica brasileira atual e enquanto proposta de observação de discursos fílmicos particulares, mas que encontram pontos de convergência inevitáveis, percebidos e qualificados pelos sujeitos críticos que participam ativamente do evento. Tais agentes podem ser os próprios críticos profissionais que cobrem a Mostra, mas também quaisquer outros participantes – cinéfilos, estudantes de cinema, interessados em geral – que frequentam e vivem a Mostra. No entanto, em termos metodológicos, são os críticos que oferecem leituras ou rastros de recepção coletáveis, materiais empíricos a partir dos quais buscamos aqui realizar esta investigação de recepção. Segundo Cyntia Nogueira (2014), a gênese das instâncias de curadoria da Mostra de Tiradentes, da forma como elas existem hoje, têm origem na criação da revista Cinética, lançada em 2006 no contexto da crítica de cinema online. Já havia ali uma preocupação com o estado e exercício da crítica, mas também com um olhar atento dedicado ao cinema nacional, uma vez que ele é “demarcado por disputas políticas e econômicas que levam as discussões a acontecer fora das obras audiovisuais e não por dentro delas” (EDUARDO et. al., 2006, s.p.), tal como os responsáveis pela revista (Eduardo Valente, Cleber Eduardo e Felipe Bragança) formulam já em seu primeiro editorial. Complementa a pesquisadora: Com uma clara intenção de intervenção no “campo artístico” do cinema brasileiro, os editores de Cinética encontrarão, no mesmo ano de lançamento da revista, um espaço onde esse propósito poderá se concretizar de forma mais clara. É quando Cleber Eduardo e Eduardo Valente passam a responder pela curadoria de longas e curtas da Mostra de Cinema de Tiradentes, transformada então numa plataforma privilegiada da revista para estreitamento de laços entre seus críticos e jovens realizadores, sobretudo a partir da criação da Mostra Aurora, em 2008 (NOGUEIRA, 2014, p. 124-5).
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De lá até então, algumas coisas mudaram na equipe de seleção. Atualmente só Cleber Eduardo continua à frente da curadoria da Mostra e já há algum tempo afastou-se da Cinética como crítico atuante. Eduardo Valente, depois de passar por cargo na Ancine como Assessor para Assuntos Internacionais é, hoje, diretor da equipe de seleção do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro e passou a compor, em 2017, a equipe de curadoria do festival paranaense Olhar de Cinema. Outro crítico, Francis Vogner dos Reis, que ainda escreve na Cinética, assumiu a curadoria da Mostra de Tiradentes junto com Cleber Eduardo, e eles ainda contam com o trabalho de curadoria para os curtasmetragens do professor e crítico de cinema Pedro Maciel Guimarães e, mais recentemente, de Lila Foster. Nota-se aí a preocupação de um olhar curatorial que tem pressupostos nos trabalhos que esses sujeitos sociais desempenham, em sua maioria, enquanto críticos de cinema. A Mostra Aurora é hoje a mais importante do festival e com caráter competitivo, dona de regras específicas: só são aceitos longas-metragens inéditos de realizadores iniciantes que estejam na feitura de, no máximo, seu terceiro longa-metragem. Além disso, a cada ano, o festival elege um tema geral que permeia a escolha dos filmes como um todo, nas diversas mostras que o festival possui, como modo de lançar questionamentos e proposições sobre dada produção do cinema brasileiro em cada época e que também justifica um pouco as escolhas de alguns filmes para serem exibidos ali. Em 2017, aliás, a Mostra chega à sua 20ª edição e a Aurora, criada tardiamente, completou dez anos de existência. Neste ano, o tema central do evento foi “Cinema em Reação, Cinema em Reinvenção”, questão que reverbera nos diversos filmes apresentados na edição do evento, em especial na mostra competitiva principal. Para o curador Cleber Eduardo (2017), as noções de reação/reinvenção surgem no cinema brasileiro recente, dentre outras coisas, como modo de responder às ebulições sociais que vivemos de modo mais imediato hoje: Defendemos a hipótese de que, no cinema brasileiro, o cinema mais imediato, realizado com pouco dinheiro, com equipes de militantes pelo cinema mais que por profissionais inseridos na atividade, reage mais
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rapidamente talvez mais diretamente, às vezes mais esteticamente. Esse é o nosso ponto (EDUARDO, 2017, p. 27).
As proposições do curador nos ajudam a entender como se processa o modo de pensamento a guiar a construção de um evento de cinema engajado em apresentar um conjunto de obras não aleatórias, mas antes que perpassam por um caminho e uma reflexão pontual. Em texto anterior, para o catálogo da 19ª edição da Mostra, Eduardo defende ainda que a escolha das obras para compor a seleção do evento perpassa por uma diversidade de filmes do cenário brasileiro contemporâneo, mas com uma dada “orientação curatorial” que guia a opção por determinados filmes em detrimento de outros. No entanto, não se trata somente da busca de uma diversidade com pretensões de amplidão, pois uma “seleção extensa em excesso sequer consegue propor um recorte. Nenhuma curadoria parece possível” (EDUARDO, 2016, p. 90), justamente quando um recorte ou “cara” são perseguidos pela própria Mostra enquanto modo de afirmação de seu lugar cativo no campo cinematográfico e audiovisual brasileiro2 como algo a ela associado. Cada vez mais tais direcionamentos vêm constituindo certo conceito pelo qual a Mostra tem sido reconhecida e entendida enquanto lugar distinto dentre os festivais e mostras de cinema espalhados pelo Brasil. Nas palavras dele: Diversidade orientada é somente uma forma de não aceitar por diversidade qualquer coisa ou todas as coisas. [...] O diverso que selecionamos, ano a ano, segue a orientação da aposta na ampliação da sensibilidade e do respeito pela capacidade do espectador ser desafiado. Temos procurado não expor o óbvio do cinema, o cinema da covardia narrativa cognitiva, os esquemas de negócios mascarados de cinema, os atentados à inteligência com estratégia de sedução pelos artifícios mais primários. De resto, é só diversidade (EDUARDO, 2016, p. 90). Tomamos como base aqui a noção de campo proposta pela teorização e pelas pesquisas do sociólogo francês Pierre Bourdieu (1996) para quem essa é uma noção muito cara. De modo geral, trata-se de um espaço de disputas em torno de materiais comuns, um espaço de relações objetivas, formatadas historicamente, em que os diversos atores e agentes sociais atuam em conformidade com certas regras que estão postas e são reconhecidas naturalmente por quem toma parte no campo. É preciso entender a lógica específica do campo “como espaço de posições e tomadas de posições atuais e potenciais (espaço dos possíveis)” (BOURDIEU, 1996, p. 262), a fim de compreender a forma que as forças externas podem tomar. Esses embates ou escolhas e opções com os quais os atores lidam a todo instante no seio dos campos são mediados pelas relações de poder, disputas, conflitos, parcerias, tensões e todo tipo de configuração relacional que se estabelece entre os agentes. 2
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Tal busca pela sistematização reconhecida de um conceito e proposta curatorial, que vem de um pensamento crítico engajado na compreensão e discussão de uma filmografia local, é claramente perceptível pelos sujeitos críticos que circulam e participam da Mostra. Eles não só fazem considerações e interpretações sobre os filmes, mas de como tais filmes comportam-se e constroem certos sentidos por estarem sendo vistos, apreciados e postos em discussão dentro de um dado festival que possui certas marcas e direcionamentos. Staiger (2000) defende que a interpretação, não só de uma obra fílmica, mas de qualquer artefato cultural, não possui significados imanentes no texto, mas sim variações de bases históricas que apontam para condições sociais, políticas e econômicas que, por sua vez, interferem nesses significados. A interpretação seria moldada, portanto, pelos sujeitos históricos inseridos num dado contexto social, e é a partir de uma abordagem contextual e materialista que precisa ser estudada. Através desse viés metodológico, que ela mesma chama de histórico-materialista, pontua o seguinte: “eu não interpreto os textos, mas tento fazer uma explicação histórica do ato de interpretar um texto” (STAIGER, 1992, p. 81). No caso de nossa pesquisa aqui, é a própria Mostra de Tiradentes que favorece a observação de um dado contexto em que os filmes brasileiros são apreciados e lidos pelos sujeitos críticos a partir de conceitos e temáticas prédeterminados que permitem a reunião de tais obras. Os traços de recepção podem ser percebidos nos discursos dos críticos que refletem sobre as proposições oferecidas pelo cardápio fílmico que um dado evento como este, com certo nível de engajamento, propõe como leitura nunca aleatória – ou simplesmente diversa, nas ponderações de Cleber Eduardo –, pinçadas de uma produção recente de filmes Curiosamente, a personalidade construída pela Mostra de Tiradentes sobre si mesma pode ser perceptível em alguns discursos que se referem a outros contextos, mas que elucidam a maneira como os críticos a entendem e ressignificam. É o caso da polêmica que se instaurou em torno da seleção do Festival de Brasília do Cinema
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Brasileiro3, em 2014, na sua 47ª edição. Alguns críticos acusaram a seleção daquele ano de “tiradentização” ou que o festival se tornou uma “sucursal da Mostra de Tiradentes”, como apontou a jornalista Maria do Rosário Caetano em texto no seu blogue4, para quem houve naquele ano a predominância de filmes “situados na fronteira doc-fic, de baixíssimo orçamento, sem atores profissionais” (CAETANO, 2014, s. p.). Além dessas marcas, havia na mostra competitiva daquele ano filmes como Branco sai, preto fica, de Adirley Queirós, que estreou na Mostra de Tiradentes, tendo levado o prêmio principal do Festival de Brasília, depois de passado por uma série de outros festivais. A ideia de uma adjetivação a partir do nome do festival, “tiradentização”, pressupõe um conceito ou características reconhecíveis e aplicáveis, a partir mesmo do recorte de filmes que são postos em uma dada seleção de um festival, especialmente as de caráter competitivo. Tais marcas estão reverberadas e assinaladas em outro texto, o do crítico de cinema Sérgio Alpendre, publicado na Revista Interlúdio, por ele editada na web: Na divulgação dos filmes selecionados para o 47º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, era possível antever uma tiradentização circunstancial desse veterano festival. Esperava que os filmes na tela negassem essa impressão, mas isso não aconteceu. Por que eu esperava essa negação? Porque Tiradentes, apesar de ter uma proposta forte, de ter a ver mais com procuras e pesquisas de novas possibilidades para um cinema fora dos grandes esquemas do que com termômetro de qualidade do cinema brasileiro atual, é um festival que cada vez menos encontra filmes que façam valer essa proposta para além do “estudar e conhecer possíveis caminhos” (ALPENDRE, 2014, s. p.).
Tais colocações fazem ver que a Mostra de Tiradentes não só possui um caminho próprio, com “proposta forte”, como também que essa proposta não passa necessária e simplesmente pela qualidade dos filmes em si, nem pela pura diversidade da produção contemporânea, mas antes pela pesquisa de linguagem, pela experimentação e O Festival de Brasília é o mais antigo do país, também com foco no cinema nacional. Foi criado em 1965 pelo crítico e pesquisador Paulo Emílio Sales Gomes. 4 O blogue chama-se Almanakito da Rosário. O link pode ser acessado aqui: https://almanakito.wordpress.com/2014/10/01/festival-de-brasilia-47-conversando-com-inacio-araujo-3/. 3
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ancoragem em propostas mais arriscadas e arrojadas que os filmes assumem na sua feitura e postura diante do cenário nacional. Isso os diferencia e contrapõe-se a outra parte da filmografia brasileira recente baseada em grandes produções, narrativas clássicas, quando não com anseios puramente comerciais. Reverberando as palavras de Cleber Eduardo sobre os 30 longas-metragens que compuseram a seleção completa da 19ª edição da Mostra, os critérios de seletividade nas escolhas “passam por outras razões, mais elásticos e amplos, até porque, como diz um crítico, nenhum país produz 30 bons filmes em um mesmo ano” (2016, p. 90). Raul Arthuso (2015), em ensaio publicado na Cinética sobre essa discussão, busca refletir sobre como tais colocações e afirmativas dizem respeito a determinadas comportamentos que se tornaram regra no contexto de cobertura midiática dos festivais de cinema e que estão mais relacionadas ao jornalismo cultural e menos propensa à crítica de cinema enquanto modo de proposição de olhares, avaliações e ponderações sobre os filmes e o contexto de produção brasileiro recente. Ele coleta vestígios de recepção e pondera que, nos bastidores do Festival de Brasília, havia certo descontentamento do corpo de críticos que cobriam o evento em relação à seleção de filmes para a competição daquele ano justamente porque não esperavam do festival um recorte como aquele, que facilmente associavam à Mostra de Tiradentes. É em consequência disso que ele pondera: Daí deriva o papel da Mostra de Tiradentes desde sua reformulação com a curadoria de Cléber Eduardo, pois foi lá que se concentrou a revelação de filmes que não tinham espaço ou dificilmente o teriam em outros lugares. Mais que dar vazão aos filmes, Tiradentes “forjou” algo maior: um ambiente cultural no qual filmes de jovens realizadores são vistos, debatidos, criticados. Alguns nomes frutificaram em novas obras, formando novos autores; outras aventuras cinematográficas nasceram e morreram na tenda do festival. Pouco importa: algo acontece com os filmes. Novas obras foram criadas dentro desse ambiente cultural miniaturizado de Tiradentes e que, por essa formação em outro contexto, não parecem aderir tão automaticamente aos pressupostos da mecânica dos grandes festivais e da mídia que nela se alojou (ARTHUSO, 2015, s. p.).
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Nota-se aqui uma percepção mais ampla dos desdobramentos de uma mostra com características tão particulates a extrapolar o próprio evento em prol da formatação de um contexto que estaria propício não só à construção de discursos e reflexões sobre as obras, como também à contribuição para o campo cinematográfico brasileiro, ainda que de modo muito generalizado. A Mostra de Tiradentes passou, para alguns autores e críticos, a consolidar essa imagem de evento voltado para o cinema brasileiro capaz de ultrapassar meramente o espaço de visibilidade das obras para legitimar certos discursos e marcas estilísticas, estéticas, narrativas e políticas para o cinema nacional, seu realizadores, sobretudo os jovens, os novos e inquietos autores com suas propostas de reconfiguração da própria produção cinematográfica. No entanto, tal visão otimista não é compartilhada por todos. Nas colocações de Alpendre: Por isso a tiradentização de Brasília, neste momento, é ruim. Os caminhos viraram fórmulas antes mesmo de serem pavimentados. Uma maneira de filmar e pensar cinema chega à decadência sem ter atingido um verdadeiro ápice. Sei que existem filmes diferentes, mas todos respondem a (ou partem de) ideias em comum: louvação exacerbada do processo, valorização do dispositivo mais do que da dramaturgia, rompimento das fronteiras entre ficção e documentário, destaque ao afeto e à amizade que são frutos de uma colaboração coletiva, ausência de construção psicológica dos personagens, atenção ao tempo real, certa conexão com o neorrealismo e com Abbas Kiarostami, vontade de tocar em temas sociais urgentes (ALPENDRE, 2014, s. p.).
O crítico defende certo esgotamento desse tipo de proposta cinematográfica por mais que ela tenha rendido bons filmes. Por isso também é visto com maus olhos o modo como o Festival de Brasília “apropriou-se” desse conceito para compor a seleção competitiva daquela edição do festival. Mas também dessa fala é possível extrair, mais uma vez, a maneira pela qual a Mostra de Tiradentes pode ser entendida a partir das marcas que os filmes deixam transparecer, em meio a um grupo de outras produções que compartilham características em comum, de certo modo muito nitidamente, e que
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podem ser observadas e compreendidas nesse espaço de circulação de discursos e recepção. O pesquisador francês Jacques Leenhardt (2007), ao discutir o papel do crítico cultural no mundo contemporâneo, pensa a ideia de um discurso crítico que não estaria somente no texto impresso, marcando no papel uma relação de mediadora entre a obra e o público. Mas antes assumiria uma função crítica com intuitos de difusão social da arte. O autor defende tal posição ao escrever sobre os curadores de museus e os trabalhos que têm sido feitos na composição das exposições e mostras: Os curadores de museu eram, no passado, os guardiões do patrimônio, isto é, de valores socialmente consagrados no domínio da arte. São hoje frequentemente, com os museus de arte contemporânea (as bienais e as exposições), os interventores imediatamente contemporâneos da criação, diretamente implicados na avaliação e interpretação das obras propostas pelos artistas (LEENHARDT, 2007, p. 22).
A partir dessas colocações, Leenhardt aponta para o surgimento de novos atores críticos que têm, consequentemente, criado novas instâncias de mediação, uma vez que eles têm prezado pela intervenção artística, mais do que somente expor obras e tentar “descobrir” novos e promissores artistas. Podemos aplicar tal conceito à ideia de uma curadoria que tanto se aproxima de um viés crítico, como a da Mostra de Tiradentes. Existe ali uma clara proposta de fomento e intervenção não só no campo das ideias e reflexões, mas mesmo no de produção e circulação de determinadas obras muitas vezes ignoradas pelo sistema de difusão nacional dos produtos audiovisuais, na medida em que se propõe olhar para tal parcela do cinema brasileiro com outro tipo de atenção. A curadoria surge então como gesto crítico. Considerações Finais Vale lembrar aqui uma curiosa definição da crítica cultural pelas palavras do ensaísta e pesquisador Jean-Claude Bernardet (1986):
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Criticar é por a obra em crise. E por em crise a relação da obra com outras obras. A relação do autor com a obra. A relação do espectador com a obra. A relação do crítico com a obra. E criar em torno de uma obra uma rede de palavras incertas, inseguras, hipotéticas, sem a menor esperança nem o menor desejo de chegar ao certo ou a qualquer verdade ou conclusão. Mas com a esperança e o desejo de que essa constelação possa detonar significações potenciais na obra e nas suas relações múltiplas (BERNARDET, 1986, p. 39).
Bernardet chama atenção para uma crítica que busque problematizar as questões do cinema, mas nunca de forma isolada. Nunca pensar os filmes por si mesmos, mas antes nas relações que se estabelecem entre os diversos atores sociais que fazem parte e circulam pelo campo cinematográfico, sendo o crítico esse sujeito que assumiu historicamente a tarefa de ressignificar, interpretar, avaliar e por em questão as obras. A Mostra de Tiradentes, goste-se ou não dos filmes e discursos que ela tem proposto em sua trajetória, ocupa hoje no cenário brasileiro de mostras e festivais tal função de por em crise certa produção e aqueles que se confrontam com ela, exigindo uma olhar apurado e sagaz para produtos facilmente ignorados pela grande mídia e por outros eventos mais tradicionais. É preciso não perder de vista que a crítica cinematográfica também possui funções culturais estabelecidas, linhas editoriais, objetivos, posições e interesses que ela própria assume como política a ser difundida. Mas é também importante se abrir para os questionamentos que os filmes produzem e que podem fugir de modelos programados e já esperados pelos críticos. Abraçar essa crise é fazer parte de um processo em construção e em busca de legitimação e retorno analítico. Daí a importância de pensar a confluência contextual como marca preponderante para a análise de recepção, seja das obras ou do conceito de uma mostra de cinema. Staiger (1992) fala em “leitor histórico” para definir o sujeito ativo que interpreta segundo sua condição de indivíduo pertencente a um contexto específico que lhe oferece certos modos de raciocínio compartilhado, disponíveis naquele momento. Estamos lidando com o crítico de cinema também ele um leitor, mesmo que sui generis, que faz
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significar a obra fílmica e expressa seu ponto de vista a partir do lugar conquistado enquanto crítico reconhecido (CUNHA, 2004). A Mostra de Cinema de Tiradentes vem reforçar e tensionar a discussão do que seja um festival de cinema, para que ele serve e a que ou a quem ele tem servido nos últimos anos a partir das escolhas que faz e dos objetivos que passa a nutrir. Os discursos críticos estão sempre muito atentos a tais proposições. Ao se debruçar sobre os filmes e conceitos que operam para reunir determinadas obras em um mesmo festival, é imprescindível considerá-los numa dada confluência contextual. Buscamos aqui realizar um breve horizonte de análise de recepção em que o objeto estudado tem valor não só através de suas características imanentes, mas também a partir do modo como ele é lido pelos indivíduos críticos ou por leitores históricos que circulam no ambiente cinematográfico brasileiro.
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Mídia, representação e cidade A produção autoral de imagens na formação para a cidadania1 Karine Joulie Martins2 Universidade Federal de Santa Catarina
Resumo: Este artigo propõe uma reflexão acerca das representações produzidas pela mídia no sentido de esvaziar os espaços públicos. Tais representações podem ser revistas na formação de crianças e jovens através de processos de autoria das próprias imagens, como ocorre em oficinas de cinema e audiovisual. Como estudo empírico, relacionamos essas questões aos filmes produzidos pelos estudantes participantes do Projeto Inventar com a Diferença: Cinema e Direitos Humanos nas escolas da Grande Florianópolis. Palavras-chave: cidadania, mídia, cinema, autoria Abstract: This paper proposes a reflection on the representations of the city which are produced by media as a way of emptying public spaces. These representations can be reviewed - considering the formation of children and young people - through processes of authorship of their own images as it happens in workshops that bring cinema/audiovisual and the school closer. As an empirical investigation this paper relates these questions to the films produced by the students participating in the Inventar com a Diferença: Cinema e Direitos Humanos project in the schools of Metropolitan area of Florianópolis. Key words: citizenship; media; cinema; authorship.
Uma versão deste artigo foi apresentada no IX Seminário Internacional As Redes Educativas e as Tecnologias, no Eixo “Cultura e comunicação em periferias urbanas e a questão da democracia”, realizado em junho de 2017 na UERJ. 2 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina, bacharel em Cinema e foi mediadora do Projeto Inventar com a Diferença: Cinema e Direitos Humanos em 2014. 1
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ARTIGO Mídia, representação e cidade Karine Joulie Martins
Introdução Ao longo da história, as condições para que o sujeito seja considerado cidadão foram se transformando por meio de lutas contínuas dos grupos excluídos pelo reconhecimento de seus direitos e interesses. Em tese, hoje todos nascemos cidadãos, ou seja, dotados de um conjunto de direitos básicos inalienáveis, e também responsáveis por cumprir alguns deveres em prol do coletivo. A cidadania dá garantia de participação na vida política da cidade onde o sujeito está inscrito. Apesar da mídia apenas divulgar a importância do exercício de cidadania nos períodos eleitorais, esta participação cidadã pode se dar de diversas formas, para além do voto obrigatório. Todavia, para que a participação seja garantida, o sujeito precisa compreender essas possibilidades e ter acesso aos meios para concretizá-la. O desconhecimento dos próprios direitos faz com que sua violação seja mais recorrente e grave. Por isso é tão importante que a educação incentive a participação, contemplando uma formação para cidadania. A cidade é também o espaço da produção/reprodução de cultura, mas nem todos os sujeitos têm igual participação ativa nesses processos. Autores como Santos (1998) e Sodré (2012) afirmam que a cidade se comporta refletindo a própria economia, num tecido onde infraestrutura e lazer são destinados aos locais que concentram maior renda, gerando assim maior lucro. As representações da cidade na mídia, em grande parte, são mais pautadas por esse fluxo de capital econômico do que pela diversidade cultural que os territórios guardam. É nesse sentido que Marília Franco (1997, p. 34) relaciona a capacidade de leitura da linguagem audiovisual com o exercício da cidadania, expondo a necessidade de desenvolver na educação a capacidade de “leituras plurais” das informações das mídias. Especialmente na atualidade, com a rápida proliferação das tecnologias que permitem a captura e compartilhamento de imagens, é possível fomentar novas formas de autorrepresentação frente ao discurso midiático. Seria possível através da educação, introduzir essas tecnologias de forma crítica, equitativa e dialógica? Seria plausível pensar
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o acesso/consumo desses dispositivos como possibilidade de inserção dos sujeitos das comunidades em um contexto cidadão? Nas seções seguintes propomos uma reflexão a respeito do esvaziamento do significado de cidadania a partir da representação que a mídia faz da cidade e dos sujeitos que a habitam por meio de um diálogo com autores como CANCLINI (2015), MENDES JR. (2010), SANTOS (1998) e SODRÉ (1999, 2012). Para pensar a revisão desse modelo através de processos de autoria das próprias imagens, revisitamos além de FRANCO (1997), autores que têm vivências em projetos de cinema e educação: BERGALA (2008), FRESQUET (2013) e MIGLIORIN (2015). Tomaremos como objeto empírico as oficinas de cinema e linguagem audiovisual em escolas de diversas comunidades da Grande Florianópolis realizadas no contexto do Projeto Inventar com a Diferença: Cinema e Direitos Humanos (MIGLIORIN et. al., 2014), bem como os filmes produzidos pelas crianças e jovens participantes, fazendo um recorte temático acerca do que consideramos um novo olhar sobre o passado e presente da cidade. A cidade ressignificada pelo olhar da mídia Ao mesmo tempo em que Walter Benjamin (1994) constata a escassez da experiência narrável no homem moderno, o autor prevê no cinema uma janela de abertura para o mundo, criando um novo tipo de experiência de alteridade. Através da montagem que unifica lugares, movimentos e ângulos múltiplos, o cinema também promove um novo sensorium3, semelhante ao que se dá quando o indivíduo circula em meio à cidade. Apesar de sempre haver uma pessoa operando a câmera e outra no processo de edição, por muito tempo acreditou-se na natureza imparcial da imagem pelo fato de a câmera captar fielmente o que é colocado frente à objetiva. A partir dos anos 1950, críticos como André Bazin (2014) passam a questionar essa sentença, partindo do princípio de que toda imagem é uma escolha: do que 3 Resumidamente, trata-se de um conceito utilizado por Martin-Barbero (2014) para abordar as mudanças na maneira como o homem percebe seu meio causadas pela inserção de novas técnicas de produção na arte que estimulem diferentes sentidos.
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representar e o que deixar atrás da câmera; do que salvar na montagem e do que será descartado, além dos novos significados agregados por meio da técnica e do discurso fílmico. Em diferentes países surgem movimentos, como a Nouvelle Vague, que expõem essas teorias através da ruptura com o estilo narrativo tradicional praticado principalmente nos grandes estúdios estadunidenses. Esses movimentos artísticos tinham como pressuposto romper com a transparência do cinema, deixando claro para o público que o filme nasce da intervenção de um autor na realidade. Na mesma década, a televisão alcança o âmbito doméstico com a promessa de entretenimento de baixo custo e seguro para toda família. A possibilidade de atingir diferentes lugares, diferentes manifestações culturais se aproxima do cinema. Porém, ao contrário do primeiro, a experiência com a televisão tem um caráter mais privado ou mesmo individual. O que, como expõe Martin-Barbero (2014, p. 112) contribui para um “empobrecimento da experiência urbana direta”, pois a televisão passa a atuar também como mediadora das relações de participação na cidade. É importante salientar que esse papel que a televisão, e posteriormente as diversas mídias, desempenham está imbricado em outros processos socioculturais que também provocam mudanças nas formas de participação na cidade, como enfatiza Canclini (2015, p. 40-1), como a reorganização do tecido urbano em regiões metropolitanas, que faz com que os sujeitos nunca tenham tempo de realizar as atividades básicas (trabalhar, estudar, consumir) na mesma cidade onde moram e o consequente desinteresse pelos problemas estruturais dessa cidade. Outro processo que o autor expõe é a redução dos papéis de órgãos públicos locais e nacionais em detrimento das políticas para benefícios de transnacionais. E isso tem possibilitado uma crescente concentração dos diferentes meios, bem como das tecnologias e serviços que lhes dão suporte sob o poder de uma mesma empresa. Um exemplo é o grupo Endemol Shine, que detém os direitos sobre formatos de reality shows replicados em todo o mundo, como Big Brother e Masterchef. Desde 2000 a empresa faz parte da Telefónica S. A., uma das maiores companhias de telecomunicações do mundo.
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Deter as formas de comunicação da atualidade é, conforme nos aponta Hall (1997) permanecer no centro de uma disputa política de interesses que se efetua nos campos discursivo e simbólico, o que transforma a política numa política cultural. Ter o controle da mídia é ter o controle das imagens e ideias que nos cercam a todo o momento, são as práticas discursivas presentes nesses textos que ditam o consumo, comportamento e inclusive as relações que estabelecemos com a alteridade. E ainda: Se a cultura, de fato, regula nossas práticas sociais a cada passo, então, aqueles que precisam ou desejam influenciar o que ocorre no mundo ou o modo como as coisas são feitas necessitarão — a grosso modo — de alguma forma ter a “cultura” em suas mãos, para moldá-la e regulá-la de algum modo ou em certo grau (ibid., p. 18).
A pluralidade de ofertas dentro desse sistema não garante o potencial das imagens em promover contato com a alteridade, explorar territórios. Pois, mesmo com um sem número de possibilidades de entretenimento, prevalecem as padronizações nas formas de ver e consumir a cultura. Para tanto, todo esse conjunto midiático mantém um enunciado coerente através de uma linguagem universal dando equivalência aos discursos de cunho jornalístico, ficcional e publicitário. Mendes Jr. (2010) apresenta alguns dos métodos que a mídia despende para garantir a proteção dos seus interesses políticos. Um deles seria a supervalorização de índices (muitas vezes irrelevantes) nas matérias dos jornais, e o pouco espaço a outros índices, evitando a compreensão de um quadro geral sobre o fato relatado bem como pontos de vista diversos. Ou tratar temas pouco importantes para o contexto com liberdade e aprofundamento, enquanto a reivindicação do direito de participação nas decisões políticas que afetam diretamente a vida nas cidades – como protestos em prol da melhoria e acessibilidade ao transporte urbano – são rotulados como “vandalismo” e “perturbação da ordem”. Outra característica do discurso da mídia sobre a cidade, de acordo com o autor, é a categorização de seus espaços em beleza e caos. Por um lado exaltando as paisagens turísticas com muitos atrativos e sem os problemas estruturais, na publicidade e a ficção,
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por exemplo. Enquanto que no jornalismo ampliam-se os espaços de difusão dos relatos de violência com imagens que tocam profundamente a emoção do espectador, desconsiderando as questões estruturais de reprodução da sociedade que contribuem para esse “caos”. A publicidade também desfruta desse discurso, condicionando a sensação de segurança e o bem-estar ao poder de aquisição de bens materiais e serviços, fortalecendo espaços privados com acesso restrito ou controlados. Esse discurso reproduz um modelo de ordenação da cidade pautado na produtividade e eficiência pela subordinação o poder econômico. A posição financeira dos sujeitos estabelecem a dinâmica do sistema urbano e o acesso pleno a recursos básicos estruturais como moradia, transporte, educação, cultura e trabalho, que são tratados como conquistas e não direitos sociais. Consequentemente, o sujeito passa a ter seu valor associado ao lugar onde vive na cidade (SANTOS, 1998). Assim, comunidades inteiras – e seus habitantes, por conseguinte – são generalizadas por meio da associação ao tráfico de drogas e violência. A mídia cria identidades virtuais a partir do senso comum, alimentado pela tradição de preconceitos e rejeições. Essas identidades se tornam estereótipos que, por sua vez, fornecem discursos prontos acerca dos sujeitos que participam dos protestos, dos negros, dos moradores de comunidades, etc. com intuito de deixar claro ao espectador quem é o vilão de cada notícia. Enquanto toda e qualquer possibilidade de identificação do espectador é suprimida, o sujeito excluído socialmente passa a ser ameaça. A falta de representatividade ou a representatividade negativa dos sujeitos nos campos discursivo e simbólico anula seu direito de ser visto e ouvido para ser reconhecido social e politicamente. Seu discurso fica condicionado ao protocolo midiático, que muitas vezes acaba o reproduzindo apenas para ganhar esse espaço que lhe seria de direito. Uma vez fora do padrão do público alvo de crenças e comportamento consumidor cristalizado pela mídia, o indivíduo não tem representação, e como indica Martin-Barbero (2014), por conseguinte não é reconhecido socialmente: Se o característico da cidadania é estar associada ao “reconhecimento recíproco”, isto passa decisivamente hoje pelo direito de informar e ser
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informado, de falar e ser escutado, imprescindível para poder participar das decisões que dizem respeito à coletividade. Daí que uma das formas mais flagrantes da exclusão da cidadania situe-se justamente aí, na expropriação do direito de ser visto, que equivale ao de existir/contar socialmente, tanto no terreno individual como no coletivo, no das maiorias como das minorias. (MARTIN-BARBERO, 2014, p. 107).
Ainda nessa perspectiva, Sodré (1999) acrescenta que esse indivíduo está de certa forma, sem fazer parte de um tipo de história construída do país. A consciência dessa questão representacional é parte de um exercício do respeito à diferença, ainda que não de aproximação por reconhecimento do sujeito. Contudo, considerando as tecnologias da informação e comunicação (TICs), podemos afirmar que a relação com a mídia não é mais unilateral. O espectador se mobiliza na internet e faz reivindicações acerca do que está sendo veiculado e tem um retorno quase que imediato gerando uma sensação de participação na construção ou reconstrução do discurso. Essas manifestações são válidas e importantes justamente porque tratam da reivindicação por representação. Todavia, sabemos que essa via de participação acaba sendo uma maneira de desviar uma possível atuação em esferas políticas, além de ampliar a fatia de consumidores dos produtos midiáticos pela inclusão de um público antes excluído. A reivindicação da própria imagem Em oposição ao discurso antipolitizador da mídia, autores como Marília Franco (1997) ressaltam a importância de processos e produção de imagens que representem pontos de vista plurais, especialmente no sentido de promover encontros entre os jovens e a linguagem audiovisual para que eles desenvolvam a leitura da realidade e novas formas de expressão através dessa linguagem. Mas principalmente: O aspecto mais importante para iniciar esse processo de leitura é o entendimento de que cada peça audiovisual expressa “um ponto de vista”- o do autor. Esse ponto de vista deve confrontar-se com aquele do leitor/espectador. A compreensão mais profunda do sentido da comunicação se dará exatamente na mescla, no confronto entre essas opiniões. Os parâmetros de verdade e mentira dão lugar a uma visão
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mais ampla, orientada por matrizes culturais, históricas, científicas, populares (FRANCO, 1997, p. 37).
Uma das possibilidades de inserção desse diálogo na escola é partindo do trabalho com cinema nas dimensões da fruição e da produção de imagens. Podemos pensar na fruição como o encontro com filmes que representam a diversidade cultural negada pela mídia. Através da partilha de um ponto de vista essas imagens permitem conhecer territórios de alteridade, diferenças e similaridades com nosso próprio território. Já uma segunda dimensão visa à promoção da participação das crianças e jovens na construção dos significados das próprias imagens refletindo sobre as escolhas que pautam esse processo. O potencial de trabalho com cinema na escola está justamente na subversão dos seus espaços e ordenações. Primeiramente porque o trabalho com cinema na escola ultrapassa seus muros e a câmera torna-se um artifício para interação na comunidade do entorno, envolvendo além dos alunos e professores, outros funcionários, pais e outros moradores. Como resultado dessas intervenções podem ser produzidas imagens que retomam a memória da comunidade, contribuindo para um registro histórico que valoriza o olhar da criança e do jovem. Em segundo lugar, autores como Fresquet (2013) e Migliorin (2015) indicam uma reorganização nas hierarquias da sala de aula entre professor/alunos e entre os próprios alunos fugindo da dicotomia: bons e bagunceiros. Hoje os alunos podem ter conhecimentos técnicos sobre equipamentos e linguagem que o professor não detém. Além disso, tanto a fruição quanto a produção de imagens envolvem competências como sensibilidade, capacidade de escuta, autonomia nas decisões, etc. que não são as mesmas utilizadas para os conteúdos curriculares. A valorização dessas competências criativas como incentivo à participação no processo de produção do filme, modifica o foco das manifestações e avaliações individuais para as práticas coletivas. Assim como a relação com o trabalho não é entre erro e acerto, mas de abertura para incorporação de ideias e conhecimentos dos alunos no processo.
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Pensar o cinema a partir dos princípios da arte é o caminho indicado por Bergala (2008) para o estímulo do pensamento crítico, favorecendo a autonomia e liberdade individual a fim de reduzir as desigualdades relacionadas à origem social de cada aluno. Nesse sentido, Fantin pensa o cinema como “objeto de conhecimento, meio de comunicação e meio de expressão de pensamentos e sentimentos” (2007, p. 01) essencial para a experiência estética na escola que é uma das bases para a construção de significados. Essa experiência do cinema como arte ainda é um privilégio das classes sociais mais favorecidas. Por isso, a entrada do cinema na escola passa também por um processo de democratização do acesso, pois para muitas crianças – especialmente de zonas rurais e periferias urbanas – esse é o único espaço onde pode se dar o contato com esse tipo de linguagem e com os processos desencadeados a partir dela. Fresquet (2013) vê essa entrada, com abertura para a comunidade, como um ato ético e político na educação. Para tanto é preciso que a mediação desses encontros com cinema na escola funcione como um gatilho para a imaginação dos alunos. Um caminho é partir da sugestão de novos olhares e práticas para provocar no espaço público da cidade a insurreição de formas plurais ou não tradicionais de apropriação e uso. Oposto ao método individual da mídia que substitui o espaço público pelo privado, ele é construído em diálogo com a alteridade, fala por meio de discurso de sujeitos que são também autores. O cinema se instaura como uma nova forma de comunicação com o outro e consigo mesmo. Seus atos produzem reações em contato com o cotidiano das pessoas, não estabelecendo padrões, mas subvertendo a lógica dos veículos midiáticos (MENDES JR., 2010). O potencial da internet pode ser utilizado na difusão dessas novas imagens produzidas em contexto escolar. Uma vez na rede, os filmes produzidos nas oficinas podem alcançar um sem-número de sujeitos em todo o mundo, podendo promover reconhecimento através da identificação pela representação nas imagens de elementos culturais comuns. Além disso, podem provocar a sensação de pertencimento quando o sujeito encontra-se numa situação próxima à explorada no filme. Nessa troca simbólica
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entre sujeito-autor e sujeito-espectador é que se dá a experiência do cinema, contribuindo para a formação crítica como cidadão. É preciso considerar ainda o desequilíbrio no acesso às TICs, que está atrelado ao consumo de serviços e equipamentos. Consequentemente, a apropriação dos meios não se dá por todos os grupos minoritários que demandam representação - os sujeitos que participam podem afirmar sua diversidade cultural, mas não representar àqueles que não possuem os mesmos recursos econômicos. Há possibilidade do fluxo da narrativa midiática ainda prevalecer sobre as manifestações de autoria do cidadão através de um novo formato (PRETTO; ASSIS, 2008; SODRÉ, 2012).
Por
isso,
ressaltamos
a
necessidade de garantir esses espaços de formação crítica para a cidadania desde a infância. Uma vez que a escola é parte responsável pela apresentação do universo cultural para as crianças, faz todo sentido ela também ser espaço de estímulo da produção de narrativas heterogêneas sobre o território. O passado e presente da cidade sob outro olhar Aproximamo-nos da experiência com o Projeto Inventar com a Diferença: Cinema e Direitos Humanos, na Grande Florianópolis (Santa Catarina) para refletir sobre as imagens produzidas a partir de uma metodologia que tem como foco promover o fazer e o pensar cinema a partir de encontros com a alteridade. Idealizado por Cezar Migliorin, Isaac Pipano e Luiz Garcia e produzido pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República em parceria com a Universidade Federal Fluminense, o Inventar ocorreu no primeiro semestre de 2014 em 30 cidades do território brasileiro atendendo a 257 escolas públicas e comunidades (MIGLIORIN, 2015). Através dos mediadores (cineastas, educadores ou produtores audiovisuais) foram garantidos formação e apoio técnico/pedagógico para professores realizarem oficinas de cinema nas escolas com base na metodologia criada para o projeto. Na região da Grande Florianópolis, onze escolas de três cidades foram selecionadas para receber o projeto. A escolha foi pautada pela diversidade nas comunidades em que as escolas estavam inseridas. Houveram desde comunidades
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ribeirinhas cuja origem data da colonização açoriana até morros com ocupação recente (cerca de 50 anos). Dentro de cada comunidade, a escola tinha uma relação singular e a implementação do projeto teve aceitação e repercussão diferentes. O
projeto
foi
adaptado
também
atendendo
as
especificidades
dos
sistemas/redes de ensino. Em nove das onze escolas o trabalho teve que ser realizado dentro de uma disciplina em que atuavam um ou dois professores. Nas outras duas escolas o projeto foi recebido dentro do programa Ensino Médio Inovador 4, por meio de oficinas no contraturno escolar. Quinzenalmente o mediador oferecia a oficina junto com o professor levando equipamentos: uma câmera, microfone e tripé. Na semana seguinte o professor deveria dar continuidade à oficina utilizando equipamentos disponíveis ou realizando exercícios da metodologia que não demandavam equipamento. A metodologia do Inventar é criada com objetivo de ser outro modo de fazer cinema e de pensar o cinema na sala de aula. Migliorin (2015) adaptou para o âmbito da educação a teoria do filme-dispositivo utilizada na construção e reflexão do documentário contemporâneo. No projeto o autor aproxima a ideia do dispositivo enquanto fazer cinema na escola como um jogo: o dispositivo é a introdução de linhas ativadoras em um universo escolhido. Ele pressupõe duas linhas complementares: uma de extremo controle, regras, limites, recortes; e outra de absoluta abertura, dependente da ação dos atores e de suas interconexões (MIGLIORIN, 2015, p. 78-9).
O dispositivo é proposto enquanto um conjunto de regras objetivas que visam instaurar certo caos ou situações fora do nosso controle que requerem um trabalho criativo para que o desafio seja superado técnica e esteticamente. “Na crise as decisões não estão prontas, as respostas demandam invenções, uma vez que a repetição da mesma resposta é o aprofundamento da crise” (MIGLIORIN, 2015). Ao negar a adoção de 4
Programa criado através da Portaria nº 971de 09/10/2009, dentro do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE). A proposta é ampliar a jornada escolar com atividades de diferentes áreas denominadas Campos de Integração Curriculares (CIC) como: acompanhamento pedagógico de língua portuguesa e matemática, iniciação à pesquisa, produção e fruição de artes, entre outros.
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um roteiro enquanto projeto fílmico com uma linguagem pré-determinada, quaisquer modos de fazer dentro das “regras” propostas e das limitações técnicas são consideráveis. Em consequência disso, no trabalho com dispositivos não há divisões entre funções e hierarquias: todos têm potencial e abertura para trabalhar crítica e criativamente no grupo. Em cada aula/oficina é proposta aos estudantes a realização de um dispositivo, gerando assim um produto audiovisual. Alguns dispositivos eram realizados fora da escola, com trabalhadores e transeuntes. Outros recomendavam a abertura da escola para a entrada de um ou mais moradores da comunidade. Mas, de modo geral, os dispositivos também funcionaram dentro da escola na aproximação com funcionários e alunos de outros grupos. Durante o processo são muitas as histórias e memórias que emergem. Dificilmente elas seriam valorizadas em outras situações do cotidiano escolar. Nessas trocas, as imagens de alteridade ganham novo significado. As texturas de pele evidentes num close ou o gesto ritmado do trabalho promove discussões sobre o que nos faz diferentes, sobre as razões de não tratarmos e não sermos tratados de forma igualitária. A experiência estética serve para a sensibilização das questões éticas e políticas que envolvem a produção de imagens e sua inserção no mundo. A proposta de encerramento do projeto nas escolas foi a construção coletiva de um filme-carta para ser enviado a uma escola de outro estado. Como resultado dessa proposta temos formatos plurais de narrar a experiência com cinema no território – e muito diferentes daquelas formas tradicionais da mídia. Essa pluralidade reflete os diferentes modos de apropriação da linguagem e das novas relações construídas. Assim, os filmes-carta podem ser considerados a obra autoral coletiva que sumariza o processo em cada escola, por isso é tão rico analisá-los. Na região da Grande Florianópolis foram produzidos doze filmes-carta
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que
contam um pouquinho da experiência de estar inserido na cidade através do olhar presente ou voltado ao passado – com relatos de moradores mais antigos.
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Todos os filmes podem ser assistidos online na playlist: https://www.youtube.com/playlist?list=PLaGhZxq7_s2l4DKBxj1hi9SPx3-iIyMJI
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Mencionaremos nove desses filmes produzidos nos quais aparecem mais evidentemente essa outra/nova forma de ver a cidade, de apresentá-la e se relacionar com ela no presente e com sua história. Com esses filmes surgem personagens que recontam um pouco da história das comunidades a partir de sua experiência pessoal, de suas memórias e relações afetivas. Em especial, mulheres que colecionam fotos, objetos e “causos” e têm prazer em dividir com as novas gerações. Dois filmes são feitos sobre essas personagens: “Dona Anita” 6, uma senhora que é a “contadora de causos” do Ribeirão da Ilha e narra a história da criação da Igreja da Nossa Senhora da Lapa, padroeira da região; e “Dona Celinha” 7, uma homenagem de duas estudantes a avó que é envolvida na Escola de Samba Copa Lord desde moça e guarda entre as histórias do Carnaval um pouco da alegria de viver hoje na comunidade do Monte Serrat perto das pessoas que conhece desde jovem. Nessa mesma linha, em “Da ponte para Imperatriz” 8, dona Sônia, dona Edith e dona Laura e outras mulheres mostram fotos guardadas e falam sobre fatos marcantes em Palhoça, como ter nevado nos pontos mais altos da cidade em 2013. Há um fluxo diário de moradores da cidade para trabalhar na capital, fazendo com que a cidade tenha fama de “não ter nada”. Em diálogo com essas histórias, os alunos narram seu cotidiano na cidade mostrando que é muito semelhante a qualquer outra da região, inclusive com praias muito bonitas e natureza preservada. A ideia para o “Filme-Carta para Paraty”
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também realizado no Monte Serrat,
surgiu a partir da constatação da falta de registros em imagem e narrativas oficiais no Arquivo Histórico de Florianópolis sobre a constituição da comunidade. Os estudantes então começaram a usar o audiovisual para retomar um pouco dessa memória. Dois moradores foram convidados para participar do filme-carta, olhando para o passado a partir da estrutura atual da comunidade. Permeado por imagens das ruas, espaços de 6
Produzido por alunos do 1º ano do Ensino Médio da Escola Estadual Básica Dom Jaime Câmara na comunidade Ribeirão da Ilha, em Florianópolis. 7 Produzido por duas alunas da Escola de Educação Básica Lauro Muller, no Centro de Florianópolis. 8 Produzido por alunos do 8º ano da Escola Estadual Básica Henrique Estefano Koerich, na comunidade da Ponte do Imaruim, Palhoça/SC. 9 Produzido por alunas do 8º ano do Centro Educacional Marista Lúcia Mayvorne.
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lazer e a escola, os estudantes aproveitam para falar do presente para que no futuro se conheça um pouco da vida na comunidade em 2014. Outra comunidade que recebeu o projeto foi a Serrinha, formada em grande parte por migrantes de todas as regiões do Brasil que vem à Florianópolis em busca de trabalho e melhores condições de vida. Esse foi um dos aspectos evidentes no filme-carta “Ser criança na Serrinha” 10. A narração das crianças, permeada por imagens das ruas íngremes e vielas, evidencia que não há espaços públicos na comunidade onde elas possam brincar com segurança, como praças e parquinhos. A escola que atendia às crianças apenas até os 10 anos acaba fazendo esse papel. Após a divulgação do filme e com a pressão da diretoria e comunidade, a secretaria de educação passou a dar mais atenção à escola e hoje ela está em processo de expansão. A relação com a história da própria escola e sua integração à comunidade também permeia os filmes dos dois grupos de estudantes do Ensino Médio Inovador: “Bela à vista”
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e “Filme Carta para Macapá” 12. Esses jovens passam mais tempo na
escola e reclamam da falta de uma estrutura mínima para descansar, para se reunir e fazer as tarefas. No geral, os jovens demonstram afeto pela escola, mas impotência em transformá-la em algo mais atrativo para si. Isso também ocorreu no filme “Lagoa da Conceição” 13, no qual também é mencionada a necessidade de reforma na escola cuja estrutura prejudicada aguardava reforma há anos. Outra questão que aparece no filme é a preocupação pelas belezas naturais da comunidade, que cresce em número de moradores e recebe muitos turistas, mas não tem estrutura para tratar corretamente o esgoto e o lixo produzidos. Já no filme carta “de Florianópolis para Rio das Contas”
, no qual três
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estudantes assistem e comentam as imagens que foram produzidas pela turma, a questão mais evidente foi a dificuldade dos deficientes físicos habitarem a cidade com 10
Produzido por estudantes do 5º ano da Escola Básica Municipal José Jacinto Cardoso. Produzido por estudantes da Escola Estadual Básica Bela Vista, no bairro Belo Vista, em São José/SC. 12 Produzido por estudantes da Escola Estadual Básica Cecília Rosa Lopes, no bairro Forquilhinhas em São José/SC. 13 Produzido por estudantes do 7º ano da Escola Básica Municipal Henrique Veras. 14 Produzido também por alunos da Escola Estadual Básica Lauro Muller, no Centro em Florianópolis/SC. 11
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autonomia. Inclusive no acesso ao consumo, pois a maior parte das lojas não tem rampas e sinalização para pessoas com necessidades especiais. A falta de atenção para com essa população faz com que as obras de acessibilidade não tenham o padrão mínimo para cumprirem sua função, como as calçadas com relevo para deficientes visuais que são interrompidas pelos postes. No encerramento do projeto foi realizada uma Mostra com todos os trabalhos numa sala de cinema em Florianópolis, onde os grupos participantes se conheceram e partilharam admiração pelos trabalhos. Houve uma comoção e sentimento geral de encantamento por ver na tela grande os amigos, o mercadinho em que costuma comprar bala quando sai da escola, a memória dos avós, as suas expectativas e preocupações para com o futuro sob o próprio olhar – olhar de criança e jovem que habita a cidade. Considerações finais À medida que os interesses do mercado se sobrepõem aos interesses da população e a ação política é restrita aos eleitos pelo voto, o significado de cidadania fica esvaziado de seu sentido amplo e democrático. Diante desse cenário, o direito de habitar, conhecer e participar ativamente da cidade é também desigual. A mídia corrobora com esse ideal centralizando um discurso político em um único sujeito de poder. Suas narrativas reproduzem a ordem social, dando preferência às vozes que sempre foram ouvidas, das “autoridades” elencadas pelo poder econômico, invisibilizando sujeitos que não se encaixam nos padrões pré-estabelecidos, imunizando a dimensão da experiência de diversidade e alimentando um circuito de preconceito e intolerância. O questionamento desse modelo dependente de um único sistema coerente pode surgir de novos elementos que emergem da prática da produção de imagens autorais, hoje facilitado pela popularização de equipamentos de produção de imagens. Considerando que, ainda assim o acesso é desigual, a escola – especialmente a escola pública – é um dos espaços no qual esse contato mediado com a linguagem audiovisual pode alcançar o maior número de sujeitos.
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Os projetos de aproximação com cinema e linguagem audiovisual nas comunidades, tais como Inventar com a Diferença – Cinema e Direitos Humanos, tem um viés educativo para a emancipação política dos sujeitos, uma vez que trabalham na transformação das crianças e jovens de espectadores-consumidores para sujeitos autores das próprias imagens e narrativas. A câmera como intercessora facilita a (re)entrada no território, o encontro com personagens locais e a abordagem dos problemas de infraestrutura, violência, etc. Por meio da renovação do olhar e do desenvolvimento da escuta sensível, objetos, fotografias e narrativas afetivas são ressignificados como documentos históricos e memória da cidade. Além do olhar para o passado, essas imagens autorais produzidas nas escolas têm o potencial de despertar a reflexão sobre as consequências das ações presentes no futuro da cidade, carregando preocupações e expectativas dos seus criadores. Nesse processo, a rua volta a ser o espaço público de troca, debate e campo de politização do indivíduo através da arte. A comunidade, que antes aparentemente tinha pouco ou nada a oferecer para as crianças e jovens, passa a ser cenário da renovação de interesses. Por meio da participação, o Inventar incita a articulação para ação política de resistência ao discurso midiático. Como produtores das próprias narrativas, crianças e jovens que moram em comunidades periféricas ganham certa independência do julgamento exterior, baseado na sua condição econômica. Os rótulos fundados em preconceitos perdem o sentido quando os próprios moradores podem mostrar seu cotidiano, gostos e aspirações. Assim, a possibilidade de contar sua própria história fortalece o elo entre os sujeitos produtores das imagens, outros moradores e o território. O compartilhamento desses filmes é o momento no qual se concretiza a ação cidadã. O convite ao público para tomar o olhar do autor emprestado e conhecer um pouco mais do seu território abre cria novas possibilidades de reconhecimento. Por isso é tão importante encerrar o Inventar pensando num destinatário, ou seja, com um filmecarta, pois criar um filme pensando no outro e na experiência que se quer dividir aumentam as possibilidades de que ele se reconheça. Assim nascem os espaços de
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pertencimento, lançando um olhar singular sobre a cidade para que o cidadão possa reinscrever sua história nela.
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ARTIGO Universos emergentes e vanguardas televisivas João Paulo P. Zago
Universos emergentes e vanguardas televisivas A prática discursiva na construção social de Oz João Paulo P. Zago1 Universidade Federal de São Carlos
Resumo: Este artigo pretende analisar a temática prisional no seriado Oz, criado por Tom Fontana e produzido pela HBO, a partir dos episódios A Cock and Balls Story e The Bill of Wrongs, ambos pertencentes à quarta temporada e transmitidos pela primeira vez em Julho de 2000. O objetivo da proposta é contrastar, a partir de uma leitura do ensaio de Jason Mittel e através das abordagens cultural e social, elementos de contextos narrativo e histórico à época que tornaram a produção da HBO um marco para a emissora e os demais produtos audiovisuais na chamada Terceira Era de Ouro da Televisão. Palavras-chave: Oz; Golden Age; HBO; Mittel. Abstract: This article intends to analyze the prison theme in the TV series Oz, created by Tom Fontana and produced by HBO, from the episodes A Cock and Balls Story and The Bill of Wrongs, both of them belonged to the season four with original air date at July 2000. The purpose of the proposal is to contrast, from a reading of Jason Mittel’s essay and through cultural and social approaches, elements of narrative and historical contexts at the time that made HBO’s production a milestone for the broadcaster and other audiovisual products in the so-called Third Golden Age of Television. Key words: Oz; Golden Age; HBO; Mittel.
Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Imagem em Som da Universidade Federal de São Carlos. O artigo em questão é parte da pesquisa em andamento no PPGIS, sob orientação do Prof. Dr. João Carlos Massarolo na linha de Narrativa Audiovisual e com financiamento da Fundação CAPES. 1
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No ensaio A Cultural Approach to Television Genre Theory, Jason Mittel aborda em determinado momento o efeito surtido após a veiculação de três clipes musicais de Michael Jackson (Billie Jean, Beat It e Thriller) pela emissora MTV, em 1983. Segundo a análise do autor, a abertura da MTV – após certa pressão externa, frisa-se – em exibir a tríade de sucesso rompeu padrões fixados de sua grade ao fugir do habitual estilo transmitido, o rock dominado por artistas brancos, e possibilitou a entrada de outros gêneros, diversificando musical e etnicamente o público alcançado pela mídia. Norteado por aspectos além da simples apresentação do gênero musical em seu objeto isolado e com destaque para influências e leituras de caráter sociológico e histórico em viés de impacto cultural, o mote do estudo sobre as práticas discursivas nos clipes de Michael Jackson é análogo a que este texto busca discutir sobre o seriado Oz (HBO, 1997-2003). Violência, tensões raciais, conflitos por liderança, planos de emboscadas e assassinatos, prevaricação e abuso de autoridades, fugas, código de honra entre seus pares, disputas políticas, atos de bondade e reações inesperadas. Tais características, assimiladas num contexto de obra audiovisual, podem ser classificadas por várias pessoas na alçada de gêneros policiais, políticos, de suspense e até mesmo de ação. Se aprofundada a questão, inevitavelmente acabariam sendo elencadas por algumas pessoas dentro da definição mais particular quando falamos de Oz, isto é, como um gênero de prisão – ainda quê, para muitos, essa denominação per se possa ser vista mais como uma subdivisão do gênero policial. Esta linha de raciocínio converge com a hipótese de que gêneros compartilham certas características fundamentais (Altman, 2012). Dado o rol descrito de atributos diegéticos (dualização entre personagens por razões raciais ou de autoridade, normas e condutas, escapes e constante hostilidade), e caso este fosse organizado por alguém com pouco conhecimento sobre a obra ou mesmo às cegas, levaria a conclusões de classificação específica, para não dizer, oportunas vezes, precisa. Todavia, esta leitura pragmática expande suas fronteiras se o objeto de pesquisa não for mais apreciado tão somente dentro de categorias e diretrizes técnicas préestabelecidas pela indústria, crítica ou público, tal qual se forem inseridas questões de
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ordem social e cultural, com o intuito primordial de analisar as práticas discursivas (Mittel, 2001) adotadas pela série escolhida. Reflexões sobre a conjuntura do sistema penitenciário, duplo antagonismo, têteà-tête com o espectador, ironia a respeito da realidade e subversão do status quo marcam presença em Oz, produção que abarca potenciais novas subdivisões de sua categoria (o gênero de prisão) e convida o público a questionar o modelo televisivo até então construído em torno de determinados padrões e costumes. Nestas condições, este estudo de caso se propõe a analisar o ponto de virada que a série representa na história da televisão mainstream ao multifacetar a narrativa fictícia, não apenas através de abordagens atípicas em sua estrutura, como também composta em conjunto de fatores vinculados à crítica ao establishment, às instituições consolidadas e a demais modos de leitura audiovisual propiciados pelo seriado da HBO. Para ancorar o debate, dois episódios da quarta temporada de Oz foram selecionados: A Cock and Balls Story (primeiro episódio), que trata do sistema prisional americano, e The Bill of Wrongs (terceiro episódio), sobre a Carta de Direitos dos Estados Unidos da América. Destacados os parâmetros narrativos, o texto pretende adentrar o histórico contemporâneo do sistema penal americano e nos princípios básicos das dez primeiras emendas à Constituição do país, a fim de contemplar a maneira que estes dois pontos são retratados e discutidos durante os episódios designados. Nestas considerações, o objetivo será cercear as práticas discursivas que colocam Oz entre os expoentes germinais da chamada Terceira Era de Ouro da Televisão2. A Cock and Balls Story: o ímpeto do fracasso “Parabéns, América. Este ano a população carcerária alcançou um novo recorde. Dois milhões. Dois milhões de pessoas estão... como chamamos? Encarceradas. Dois milhões. É a população de Viena. É a população de Houston, Texas. Os EUA têm 5% da população mundial, mas 25% dos prisioneiros do mundo. Woopie!” (Augustus Hill em A Cock and Balls Story)
Termo alcunhado para definir o momento de acentuada produção televisiva da indústria americana a partir dos anos 2000. Neste caso, faz referência ao livro Homens Difíceis (Brett Martin, 2014). 2
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Iniciada em 1997 e com duração de seis temporadas, Oz retratou o sistema penitenciário americano com algumas peculiaridades próprias. Entre elas, a que chama mais atenção no enredo é a experiência de Emerald City. Palco principal da trama, o complexo criado pelo supervisor Tim McManus (Terry Kinney) visava integrar uma parcela dos presos da penitenciária Oswald State num bloco de livre locomoção e organização entre seus diversos grupos, lado a lado de policiais desarmados, além de áreas de serviço e lazer para que os próprios encarcerados fossem autônomos em suas atividades e atrelados à grã-exposição da rotina via celas com paredes de vidro. Em meio à diegese, o personagem Augustus Hill (Harold Perrineau) surge no interior de seu cubo transparente em suspensão dramática numa espécie de coro grego (Sepinwall, 2013) para trazer à tona questões envolvendo temáticas correlatas ao seriado. A Cock and Balls Story, primeiro episódio da quarta temporada, mostra um momento de extrema tensão dentro da prisão, após o diretor-geral Leo Glynn (Ernie Hudson) encerrar o confinamento motivado por conflitos raciais e convocar os grupos étnicos separados na tentativa de controlar outro motim – atitude que no final se mostra falha quando Simon Adebisi (Adewale Akinnuoye-Agbaje) trama para que um novo e deslocado presidiário, pressionado e com uma arma plantada pelo próprio Adebisi, assassine algum detento negro. Glynn também recebe o convite para se tornar candidato a tenente-governador (cargo semelhante ao de vice-governador), e recepciona a chegada do detetive infiltrado John Basil (Lance Reddick) na prisão com a missão de frear o consumo de drogas entre os presos. Mais algumas tramas paralelas constam no episódio, contudo, em prol de encontrar maiores unidades características em virtude de regimes de poder e suas operações culturais (Mittel, 2001), faz-se necessário destacar, em caráter de análise contextual das práticas discursivas, a abordagem dada à presença da temática em destaque do coro com o espectador no momento em que Oz era produzida, ou seja, a relação do debate a respeito do sistema penal americano que a ficção trouxe no contexto vivido pelos Estados Unidos na virada do século XX para o século XXI e seu impacto na dinâmica das produções televisivas.
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Entre os anos 1980 e 2000, os Estados Unidos tiveram um exponencial índice de encarceramento, passando de pouco mais de meio milhão de presos para dois milhões em menos de duas décadas. Dentre as causas prováveis, estão em destaque: a Guerra às Drogas idealizada por Richard Nixon; o Comprehenshive Crime Control Act3 de 1984, considerável reforma no código penal americano no governo de Ronald Reagan; e o Violent Crime Control and Law Enforcement Act4 de 1994, maior projeto criminal da história americana, escrito por Joe Biden e sancionado por Bill Clinton. Oz toca nesta ferida em A Cock and Balls Story e transforma a mera história contada num microcosmo da realidade, numa espécie de instância reduzida do caos vivido pela expansão de prisões. Em franca crítica, decide cruzar a fronteira e indagar o espectador sobre o momento de questionáveis políticas de segurança pública em vigor. Nas aparições de Hill, além da passagem supracitada no início deste trecho do artigo, o poeta de dreadlocks (Martin, 2014) argumenta contra a ideia de que os altos índices de encarceramento são efetivos na redução dos crimes ao oferecer dados dos Estados da Califórnia e de Nova York, onde no Golden State houve mais detenções e menor redução na criminalidade se comparado com a ex-colônia do leste. Em outro momento, o personagem conta que “todos aqueles homens cruéis presos nos bons e velhos tempos de Reagan, todos aqueles homens estão com a pena para acabar” (grifo nosso), e que “todos aqueles homens, que estão mais perigosos agora do que quando foram presos, vão sair para os becos escuros perto de vocês”, em clara crítica à distorção que o sistema punitivista, falho em sua proposta de proteger a sociedade, causa ao piorar a conduta dos detentos que foram confinados.
Entre os principais pontos, estendeu as penas de crimes ligados ao porte de armas, fixou o crime de posse e cultivo de maconha e reinstituiu a pena de morte a nível federal. 4 Lei que emplacou penas mais duras a partir do processo de three-strikes law e investiu de maneira maciça no sistema penitenciário com acréscimo do orçamento da área, entre outras alterações. 3
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Imagem 1 - gráfico obtido em relatório do Departamento de Justiça dos EUA: índice de encarceramento americano entre 1978 e 2013, com alto crescimento a partir da década de 1980
Imagem 2 - vários detentos enclausurados na cela de Augustus Hill durante suas inserções em A Cock and Balls Story, numa evidente crítica ao excessivo nível de prisões no ano de 2000
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The Bill of Wrongs: as instituições em xeque Se por um lado Oz aponta problemas inerentes à questão da superpopulação carcerária americana no que tange em sua estrutura e seus contestáveis derivados, por outro também foca na proteção que o Estado deveria dar àqueles que estão sob sua custódia através de condenações penais. No caso do terceiro episódio da quarta temporada, o alvo é o desrespeito à Constituição dos Estados Unidos, mais especificamente algumas emendas que protegem os direitos dos indivíduos na chamada Carta de Direitos. Inclusive, o título do episódio é um trocadilho irônico ao documento primário das leis americanas: The Bill of “Wrongs” (A Carta de “Errados”). Ratificada em 1791, dois anos depois de a Constituição americana ser aprovada pelas treze colônias que se tornaram independentes da Coroa Britânica, a Carta de Direitos dos Estados Unidos é um documento constituído pelas dez primeiras emendas anexadas ao texto constitucional originário. Instituída em essência de direitos negativos5, a Bill of Rights leva como destaques em seu corpus o direito à liberdade de expressão, liberdade de religião, liberdade de possuir armas e formação de milícias, inviolabilidade do domicílio e correspondência, a garantia de um julgamento rápido e público e do devido processo legal antes de qualquer privação de vida, liberdade e propriedade, além de determinar o federalismo ao atribuir aos Estados a autonomia de certos poderes. Em diversos momentos do episódio a vigência de alguns destes direitos é levantada para o espectador. Kareem Saïd (Eamonn Walker), muçulmano pacifista e um dos presos mais icônicos, ajuda, com sucesso, um detento homossexual que tivera sua condenação desvirtuada por conta do preconceito de um dos jurados a obter um novo julgamento sob a garantia de júri imparcial - na contramão, sofre a reprovação de seu clã, agora comandado por Zahir Arif (Granville Adams), notável por suas posições conservadoras e seletivas. John Basil, o agente da narcóticos infiltrado em Emerald City, é obrigado a usar cocaína por diversas vezes para provar lealdade aos líderes dos grupos Na definição de Isaiah Berlin em Dois Conceitos de Liberdade (1958), liberdades negativas são aquelas em que não há impedimento estabelecido por qualquer autoridade para existir, enquanto liberdades positivas são as determinadas e outorgadas pelas instituições. No caso da Carta de Direitos, as emendas são vistas como direitos negativos por explicitar que “o Congresso não deve legislar sobre”, ou ainda que “não serão permitidos” determinados atos arbitrários por parte do Estado. 5
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que concentram o tráfico na prisão, e então é mandado para a solitária após os guardas encontrarem drogas em sua cela durante a inspeção, sendo condenado ao posto de detento comum sob a custódia estatal. Isolado em sua cela ácida e filosófica, Augustus Hill também não escapa da temática proposta por sua própria narração, sofre com a autoridade dos agentes penitenciários e é espancado ao recitar a oitava emenda, justamente a que garante a não existência de fianças exageradas, multas excessivas e penas cruéis ou incomuns. Mas, de todos os dilemas encontrados pelos personagens em The Bill of Wrongs, o de maior limitação individual fica com Tobias Beecher (Lee Tergesen), personagem que representa desde o primeiro minuto do seriado o espectador e sua transformação com o choque do universo ao qual é exposto (Sepinwall, 2013). Beecher, que desde a sua entrada em Oz entra em rota de choque com o neonazista Vern Schillinger (J. K. Simmons), decide fazer uma boa ação anônima e encontrar um filho desaparecido de seu rival em troca de mútuo respeito. Todavia, o plano vai por água abaixo, Schillinger suspeita da ação de Beecher, elabora um plano vingativo e manda seu próprio filho, agora com paradeiro conhecido, sequestrar as crianças daquele que o quis ajudar. O final do episódio é melancólico e sarcástico, com Beecher tomando conhecimento sobre o desaparecimento de seus dois filhos, desabando emocionalmente e gritando ao fundo da insulada cela de Augustus Hill, durante reflexiva análise sobre os princípios que regem a Carta de Direitos e a incoerência na qual ela se aplica na busca pela felicidade daqueles que, encarcerados, tornam-se desprotegidos, incapazes em exercer a liberdade e de buscar a felicidade. “A Declaração de Independência diz que todos nós temos certos direitos os mais importantes sendo a vida, a liberdade e a busca pela felicidade. Então, o lance não é esse? Vida, liberdade... [o vidro personalizado com a bandeira americana se quebra, Tobias Beecher aparece e grita ao fundo, de joelhos e acompanhado de seus dois filhos sequestrados] Felicidade.” (Augustus Hill no desfecho de The Bill of Wrongs)
De maneira notável, este episódio complementa a temática do debatido posteriormente, A Cock and Balls Story, na medida em que dilata a crítica sociológica pelo
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contexto americano e submete a incoerência do sistema prisional no íntimo da própria legalidade em que o regime de segurança contemporâneo é exercido pelo Estado. Para adentrar o significado e as hipóteses de leitura destes elementos pelo espectador, a recepção pela crítica e o cotejo com outras produções, o estudo sobre a prática discursiva em Oz terá como combustíveis duas frentes de análise: a sede do saber (Jost, 2012) incitada pela série da Home Box Office e a proposta de estudá-la como documento (Odin, 2012). Caixa de Pandora da realidade Retratar o universo penitenciário como protagonista da narrativa e ramificá-lo em diversos personagens ambíguos, com visível redução do pragmatismo fictício em causa de acrescentar realismo à trama, faz de Oz um expoente produto televisivo no período em que foi produzido. François Jost, em Do que as séries americanas são sintoma? (2012), aborda as questões pelas quais os seriados americanos atingem tamanha popularidade entre os espectadores. Entre a investigação que faz no intuito de obter respostas e a tese exposta sobre a busca pela transparência perdida, o autor ressalta um aspecto de extrema relevância para compreender as séries americanas: a sede do saber. Jost discute o papel das narrativas seriadas em provocar a libido cognoscendi (pelo desejo de saber) do espectador através de personagens que são exímios em suas profissões ou livros abertos em seus núcleos íntimos. Nesta empreitada, a ficção alcança o posto de restituir ou inventar a realidade, a depender da proposta do enredo, isto é, se este assume o compromisso de representar aquilo que existe de maneira fidedigna ou a pretensão de deslocar a atenção do público para o desconhecido. Em Oz, este raciocínio permite o duplipensar ao analisarmos o caso com mais apreço: se as prisões são por si só um ambiente vedado do conhecimento público, sua representação em obras de ficção exige razoável invenção ante o ato de produzir uma série, entretanto, ela remete a casos de conhecimento pela sociedade e os transmite em formato crítico, com o ônus da invenção (se assim podemos dizer) restando à experiência de Emerald City, e não à essência da proposta criada por Tom Fontana.
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Nos parâmetros dados pelo autor, Oz se enquadra na categoria de série centrada na sociedade e ao mesmo tempo na vida privada, pois o cenário carcerário recobre-se com o íntimo de cada detento e a história pessoal dos indivíduos, vide as apresentações que Augustus Hill faz em cada episódio quando algum personagem recebe maior destaque no desenrolar da narrativa – como ocorre em A Cock and Balls Story, em que o novato Guillaume Tarrant (Lothaire Bluteau) tem a causa de sua condenação revelada por Hill pouco antes de tornar-se o peão de Adebisi, perder o controle, assassinar outro detento e se suicidar em seguida. Este modelo de produção centrada em temas com importâncias equiparadas pode ser notado em afamadas produções que despontaram na TV a cabo americana e tiveram repercussão considerável na virada do século XXI. The Sopranos (HBO, 1999-2007) e Breaking Bad (AMC, 2008-2013) foram seriados que giraram em torno do criminalizado mundo do tráfico de drogas, contudo, seus protagonistas eram trabalhados em âmbito privado com tamanha retumbância que não seria possível dissociar o que era de foro íntimo ou experiência social. O mesmo pode ser notado com o ramo publicitário em Mad Men (AMC, 2007-2015), a morte em Six Feet Under (HBO, 2001-2005), a Grande Depressão em Carnivàle (HBO, 2003-2005) e tantas outras produções elencadas por Brett Martin (2014) como a Terceira Era de Ouro da Televisão. Temos aqui, então, uma percepção de padrão em práticas discursivas desencadeadas por concepções de seriados que reúnem, em conjunto, indivíduos pertencentes a alguns universos incomuns para o entretenimento (a prisão, o crime, a miséria, etc), com dosagens cavalares de antagonismo, fascinantes em seus conflitos internos e externos. Eles são parte vital do meio que os origina. Não obstante, o espectador-leitor, ao assimilar na realidade delineada pela ficção a verossimilhança personificada pelas mazelas e sucessos dos indivíduos retratados como no caso dos detentos de Oz -, pode tomar a sociedade na qual a diegese pertence e é construída como enunciador-real6 e, assim, fazer particular leitura documentarizante da obra (Odin, 2012). Esta possibilidade de leitura exerce função instrutiva no quesito de visualizar o seriado como documento da realidade em seu contexto histórico e social, 6
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Pressuposto sobre a imagem e/ou realidade ser atribuída à do enunciador, e não do retratado.
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haja vista que em várias oportunidades os episódios surgem como denúncia do real, quase de forma pedagógica ao espectador. Noutros seriados, como Sopranos e Breaking Bad, a leitura documentarizante também parte do viés sociológico, ainda que o real não seja exposto em caráter de denúncia, mas sim de paridade existencial: o mafioso e o traficante, ainda que criminosos, possuem famílias e vidas tão complexas quanto de qualquer outra pessoa, e passam por dramas e escolhas igualmente difíceis. A Terceira Era de Ouro da Televisão, iniciada com Oz em 1997 (Martin, 2014), pode ser encarada como o momento em que a indústria decidiu produzir conteúdos com graus de acervo sociológico e crítico, sem perder a inovação da mídia e a dinâmica das diversas grades e emissoras. Não significa que as produções sejam de caráter documental, e sim que o espectador, encampado pela libido cognoscendi, tem a chance de interpretar o texto através da vertente documentarizante e estender o perfil aplicado a este ou aquele objeto para um momento da emissora e do contexto histórico em que vive, esteja sua percepção ligada de algum modo a manifesto de ordem política ou artística, ou pura demanda de mercado agora enraizado. No caso de Oz, o criador Tom Fontana admite que tudo começou quando a HBO, após o controle na programação da emissora passar para Chris Albrecht, abriu as portas para seu projeto, e no livro The Revolution Was Televised, de Alan Sepinwall, comenta a sensação que teve ao receber carta branca para comandá-lo: “Quando eu sentei pela primeira vez com Chris (Albrecht), e ele disse ‘vou te dar toda a liberdade criativa que quiser’, pensei, ‘isso é ótimo’. Mas você logo emenda, ‘Cara, se eu estragar tudo, o próximo que vier aqui o Chris vai dizer “é, é, é, eu dei toda a liberdade criativa ao Fontana, e ele me ferrou”. Então eu senti esse incrível fardo de responsabilidade com meus irmãos e irmãs roteiristas. E eu fiquei tão excitado que as séries que vieram depois eram tão diferentes de Oz, e tiveram sucesso. Elas continuaram construindo a reputação da HBO” (SEPINWALL, p. 30, tradução minha).
Por conta deste pontapé inicial, a HBO estreou seu primeiro drama com duração de uma hora na grade e abriu oportunidade para novas produções, tais quais Sex and the City, The Sopranos e The Wire (a consolidação da Era de Ouro em dobradinha), Six Feet
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Under, Carnivàle, etc. Este momentum propiciou à emissora a chance de criar identidade própria em seus projetos e fortalecer o slogan “It’s not TV, it’s HBO”, acompanhada de suas concorrentes AMC (Mad Men, Breaking Bad, The Walking Dead), FX (Nip/Tuck, Rescue Me, Damages, Sons of Anarchy) e Showtime (Dexter, Homeland). Oz, o teatro urbano experimental e celeiro de atores desta geração (Martin, 2014), abriu as portas para que os gêneros televisivos deixassem para trás certos conceitos estabelecidos e evoluíssem para o diálogo histórico e social contemporâneo. Novas vanguardas Emergentes durante os anos 90, ambientes e espaços antes esquecidos ou retratados somente em posição de hostilidade foram construídos e penetraram a cultura mainstream americana e mundial na posição de vanguarda da televisão. A Terceira Era de Ouro compilou práticas discursivas quê, aglomeradas em estruturas sociais e hierárquicas, remodelou o apetite do público e da crítica, tais quais os clipes de Michael Jackson na MTV. Gêneros fechados foram suprimidos e inovadoras abordagens transformaram o conteúdo dos maiores produtores – estes que também figuram na posição de críticos, compreendem o establishment e forjam novos gêneros, agora pavimentados e reforçados pela aceitação da ampla indústria audiovisual (Altman, 2012). Coube a Oz, de Tom Fontana e com o aval da HBO, dar o primeiro passo. Por meio de práticas culturais, o plot da penitenciária Oswald State permitiu ao canal HBO introduzir a formação de novos “grupos de gêneros” por força de micro poderes (Mittel, 2001, p. 8), em consonância direta com a voraz realidade expansiva de acesso a conhecimentos e informações sociais, aliada à procura pela descoberta do íntimo, do secreto e do outro que não conhecemos tão a fundo. A construção destes universos, de morais e cernes ambíguos e nuance realista, representa claro avanço dos métodos de diálogo e recepção da indústria para com o público – este inserido numa gama de possibilidades e gêneros multifacetados, porém centralizados na versatilidade de anseios banais e ações inóspitas do ser humano.
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Desta maneira e ante o exposto, há a possibilidade de estabelecer critérios para perpetuar no âmbito do período destacado em questão, a Terceira Era de Ouro, leituras de caráter documental que dialogam entre diferentes emissoras, produções e narrativas – muitas delas sobre questões marginais – que ascenderam simultaneamente aos olhos dos públicos de nicho e majoritário, em clara fusão de demanda ambivalente, via práticas discursivas de reverberação social e histórica. Emerald City e seus detentos, vocalizados pela onisciência crítica de Augustus Hill, foram o laboratório de uma irreverente revolução cultural que prosperou e arrebatou o entretenimento a partir do desfecho do século XX. Hoje, colhemos os frutos.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ALTMAN, Rick. What is generally understood by the notion of film genre?. In: __Film/Genre. Londres, BFI, 2012, p. 13-29. _____________. Where do genres come from?. In: __Film/Genre. Londres, BFI, 2012, p. 3048. BUREAU OF JUSTICE STATISTICS. Prisoners in 2013. Distrito da Colúmbia., U. S. Department of Justice, 2014. JOST, François. Do que as séries americanas são sintoma?. Porto Alegre, Editora Meridional/Sulina, 2012. MARTIN, Brett. Homens Difíceis: os bastidores do processo criativo de Breaking Bad, Família Soprano, Mad Men e outras séries revolucionárias. São Paulo, Editora Aleph, 2014. MITTEL, Jason. A Cultural Approach to Television Genre Theory. In: Cinema Journal. SCMS, v. 40, n. 3, 2001. ODIN, Roger. Filme documentário, leitura documentarizante. In: Significação, n° 37, 2012. p. 10-30 SEPINWALL, Alan. The Revolution Was Televised: The Cops, Crooks, Slingers, and Slayers Who Changed TV Drama Forever. Estados Unidos da América, Touchstone Books, 2013.
Filmografia A Cock and Balls Story, episódio n. 25 de OZ, de Tom Fontana. Home Box Office, Estados Unidos da América, 1997-2003. 56 episódios, DVD (55min). The Bill of Wrongs, episódio n. 27 de OZ, de Tom Fontana. Home Box Office, Estados Unidos da América, 1997-2003. 56 episódios, DVD (55min). BREAKING BAD, de Vince Gilligan. AMC, Estados Unidos da América, 2008-2013. 62 episódios, DVD (43-58min). CARNIVÀLE, de Daniel Knauf. Home Box Office, Estados Unidos da América, 2003-2005. 24 episódios, DVD (45-60min). MAD MEN, de Matthew Weiner. AMC, Estados Unidos da América, 2007-2015. 92 episódios, DVD (47min).
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SIX FEET UNDER, de Alan Ball. Home Box Office, Estados Unidos da América, 2001-2005. 63 episódios, DVD (46-72min). THE SOPRANOS, de David Chase. Home Box Office, Estados Unidos da América, 19992007. 86 episódios, DVD (43-75min).
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