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Revista discente do Programa de Pós-graduação em Meios e Processos Audiovisuais da ECA/USP NOVEMBRO 2017 [ISSN: 2238-8699]
NÚMERO 9 NOVEMBRO 2017
A Revista Movimento é um periódico científico semestral, organizado pelos alunos do Programa de Pósgraduação em Meios e Processos Audiovisuais da ECA/USP.
Universidade de São Paulo Reitor Marco Antonio Zago Vice-Reitor Vahan Agopyan ___
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Todos os artigos assinados são de responsabilidade de seus autores e não refletem necessariamente a opinião da revista. A reprodução total ou parcial dos mesmos é autorizada, mediante apresentação de créditos.
Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais Coordenadora Esther Imperio Hamburger Vice-Coordenadora Irene de Araújo Machado
ISSN: 2238-8699
Imagem de capa: por Raissa Araújo Projeto editorial: Raissa Araújo Diagramação: Paula Pires Raissa Araújo Revisão: Andréa Scansani, Carolina Di Giacomo, Giancarlo Gozzi, Ivan Amaral, Marina Costa, Paula Pires.
___ REVISTA MOVIMENTO Escola de Comunicações e Artes ECA/USP Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais PPGMPA Av. Prof. Lúcio Martins Rodrigues, 443 - Prédio 4 Cidade Universitária - Butantã CEP 05508-020 São Paulo - SP - Brasil movimento@usp.br www.revistamovimento.net facebook.com/revimovi
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Televisão ontem e hoje multiplicidade em telas Conselho Editorial
A presença da televisão em quase 100% dos lares brasileiros já seria motivo suficiente para instigar as mais diversas reflexões sobre o impacto das práticas televisivas em nossa sociedade. No entanto, pensar a televisão e suas implicações como meio de comunicação sempre foi tarefa de considerável dificuldade e, igualmente, de profunda importância. Não bastasse seu alcance, em mais de meio século de sua primeira transmissão, a televisão se reinventa em formatos, se transmuta em múltiplas telas e se expande em narrativas transmídias. Propondo o desafio de pensar a televisão, o Dossiê da 9ª edição da Revista Movimento é composto por artigos que analisam aspectos formais e estéticos de obras seriadas e que abordam as relações entre a TV tradicional, novos formatos de broadcasts que surgiram com a chegada do digital e a convergência das mídias, encarando a dificuldade em refletir sobre um meio de comunicação que está tão presente na vida dos brasileiros mas compreendendo também esta mídia num contexto de convergência dos meios e profundamente imerso na transmidialidade. São abordagens que consideram a televisão como um rico universo de possibi-
lidades de análise, para além do lugar-comum que a percepção desse meio pode se encontrar tradicionalmente. O artigo “Digressões do Estilo Régio na estética televisiva”, de Marco Túlio Ulhôa, analisa a microssérie “A pedra do reino” (2007) de Luiz Fernando Carvalho a partir da ornamentação do seu discurso teatral e das digressões intertextuais do estilo régio na estética televisiva. Esta abordagem, considerando interlocuções para análise, também se faz presente no artigo “A construção do arquétipo da Sombra no roteiro da série Supermax”, em que Bartira Campos dialoga com os estudos sobre os arquétipos nas obras de C.J. Jung, Christopher Vogler e Joseph Campbell para entender como os roteiristas da série de terror/suspense “Supermax” (2016), exibida na TV Globo e na plataforma Globo Play, se utilizaram da concepção de sombra em seus personagens para produzirem uma série inédita (em seu conteúdo, formato e exibição). Já a recepção é o interesse central do artigo “Terapia Midiática: um lugar entre a produção e recepção de Sessão de Terapia”, que propõe um estudo de recepção do seriado brasileiro “Sessão de Terapia”, veiculado pelo canal
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pago GNT. Heitor Leal Machado, seu autor, analisa diferentes aspectos da terceira temporada da obra como roteiro, figurino e ritmo, em diálogo com comentários publicados por espectadores na página oficial do programa no Facebook. Por meio desta análise e de uma discussão teórica que parte dos estudos de recepção, o autor defende que a interação entre o programa e seu público remete a um processo terapêutico, daí o conceito de “terapia midiática”. Ainda no campo da receptividade, mas considerando questões de transmidialidade, o artigo “Narrativas seriadas norte-americanas: o início e a consolidação do ato de shippar”, de Enoe Lopes Pontes, traça uma análise entre o estilo do enredo presente em certas narrativas seriadas televisivas e o percurso particular dos chamados shippers, grupos de fãs caracterizados por “torcerem” pela união de certos casais nas tramas de suas séries favoritas. A autora destaca a trajetória de certas séries norte-americanas que seriam favoráveis a esse tipo de recepção por grupos de fãs, a fim de compreender como diferentes fatores tecnológicos, temporais e de gênero específicos favoreceriam, teoricamente, o despontar de um estilo de fandom particular: o shipper dos seriados de TV. Partindo diretamente para a convergência dos meios e seu impacto na construção da linguagem televisiva, o artigo “A televisão das meninas do YouTube” de Grasiele Silva de Sousa estabelece um interessante paralelo entre o surgimento e a popularização da plataforma de streaming de vídeos online YouTube desde meados dos anos 2000, e o alcance mundial conquistado pela hegemonia da televisão broadcast até hoje. A autora nos instiga a pensar o quanto esta nova plataforma de comunicação interativa inverte a lógica da TV tradicional, ao nos oferecer um potencial de transformar-nos simultaneamente em emissores e receptores de informação ativos. Seu trabalho destaca a análise sobre canais de “conselheiras de beleza” do YouTube voltados para públicos femininos, cujas produções amadoras apropriam-se de formas televisivas anteriores à era dos computadores. Ainda neste campo, o artigo “Percep-
ções e proposições sobre interatividade narrativa na Televisão Digital”, de Bruno Machado, busca mapear um conjunto de particularidades técnicas relativas à televisão ao observar como estas características interferem na sua construção enquanto linguagem, da TV analógica à TV digital. Em diálogo com autores nacionais e internacionais de peso sobre o tema, o autor foca sua análise nas dimensões narrativas da TV ao nível da convergência digital, buscando compreender como a interatividade digital e o fluxo televisivo possibilitariam a produção de dramas interativos formatados especialmente para esta linguagem. A 9ª edição da Movimento também apresenta dois textos alheios ao tema do Dossiê, porém igualmente instigantes na reflexão sobre o audiovisual. Um deles nos estimula a pensar o reaproveitamento de forma bem humorada das imagens que figuram num mundo. Em “O remix que faz rir”, Haroldo França analisa as características e técnicas usadas em vídeos remixes, montagens feitas a partir do reaproveitamento e manipulação de outros vídeos e áudios, focando na questão do humor. Para concluir a edição, o artigo “O discurso sem palavras: uma visão sobre o filme Nós, de Artavazad Pelechian” de Giuliano Ronco lança luz sobre a carreira do importante cineasta armênio que coloca o espectador à distância, dando a ele um olhar omnisciente sobre toda a humanidade e não apenas sobre alguns indivíduos com suas aspirações e objetivos. Assim, o artigo contextualiza histórica, social e esteticamente a trajetória do cineasta armênio Artvazad Pelechian para, em seguida, partir para uma análise simbólica das imagens e sons que compõem um de seus principais trabalhos: o filme “Nós”, apresentado para a conclusão de seu curso no Gerasimov Institute of Cinematography, em Moscou. A equipe editorial da Revista Movimento espera que os artigos aqui dispostos instiguem e estimulem as pesquisas e debates que se aprofundam neste tema tão desafiador que segue sendo a televisão, suas narrativas e suportes diversos. Boa leitura!
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SUMÁRIO
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Digressões do estilo régio na estética televisiva | Marco Túlio Ulhôa
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A construção do arquétipo da Sombra no roteiro da série Supermax | Bartira Bejarano Campos
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Terapia midiática: um lugar entre a produção e recepção de Sessão de Terapia | Heitor Leal Machado
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Narrativas seriadas norte-americanas: o início e a consolidação do ato de shippar | Enoe Lopes Pontes
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A televisão das meninas do YouTube | Grasiele Silva de Sousa
102 Percepções e proposições sobre interatividade narrativa na Televisão Digital | Bruno Machado
LIVRE 114 O remix que faz rir: Auto-Tune e humor no YouTube | Haroldo França
130 O discurso sem palavras: Uma visão sobre o filme Nós, de Artavazad Pelechian | Giuliano Ronco
DOSSIÊ Digressões do estilo régio na estética televisiva Marco Túlio Ulhôa
Digressões do estilo régio na estética televisiva Marco Túlio Ulhôa1 Universidade Federal Fluminense
Resumo: O artigo analisa a microssérie A pedra do reino (2007), dirigida por Luiz Fernando Carvalho, a partir da ornamentação do seu discurso teatral e das digressões intertextuais do estilo régio na estética televisiva. Metáfora criada pelo personagem Quaderna, protagonista do romance escrito por Ariano Suassuna, o estilo régio opera como uma síntese dos recursos expressivos de seu autor e dos conceitos da arte armorial, fornecendo elementos ao seu processo de adaptação e, respectivamente, ao debate sobre a natureza estética do meio televisivo. Palavras-chave: televisão; A pedra do reino; Luiz Fernando Carvalho; Ariano Suassuna. Abstract: The article analyses the TV series, A pedra do reino (2007), directed by Luiz Fernando Carvalho, based on the ornamentation of his theatrical discourse and the intertextual digressions of the regal style in television aesthetics. A metaphor created by the character Quaderna, protagonist of the novel written by Ariano Suassuna, the regal style operates as a synthesis of the expressive model of his author and the concepts of the armorial art, providing elements to its adaptation process and, respectively, to the debate about the aesthetic nature of TV productions. Key words: television; A pedra do reino; Luiz Fernando Carvalho; Ariano Suassuna.
Doutorando do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense, na linha de pesquisa de Estudos de Cinema e Audiovisual. Orientador: Prof. Dr. Maurício de Bragança. Bolsista CAPES-DS. E-mail: mtulhoa@gmail.com. 1
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A relação dialética que conjuga a cultura popular nordestina e as referências da arte erudita ocidental, além de fundamentar os aspectos simbólicos e conceituais das obras do poeta, escritor e dramaturgo, Ariano Suassuna (1927-2014), é a evidência da forma como a arte armorial se define como uma síntese cultural. No entanto, segundo a pesquisadora Idelette Fonseca dos Santos, mais do que uma síntese, a obra de Ariano Suassuna promove uma “consciência dessa distância que o autor não procura apagar, mas ao contrário valorizar e definir como espaço da sua criação literária” (SANTOS, 2009, p. 162). Nas palavras da pesquisadora, a originalidade do Movimento Armorial constituise a partir de um ciclo de empréstimos dos modelos poéticos da cultura popular, na criação de uma arte sujeita a revisões e atualizações. Uma obra alimentada por citações, como o Romance d’A pedra do reino, encontra-se necessariamente numa fase “antropofágica”, segundo a expressão do “Manifesto Antropofágico”. O texto “devorador”, ou “grafofágico”, alimenta-se de citações profundamente integradas, seja na narrativa, que passam a assumir metaforicamente, seja no universo semântico, que alimentam em “palavras sagradas”, seja no discurso, que legitima pela sua simples presença, e finalmente, no imaginário da obra, do qual as citações formam o brasão e emblema. (SANTOS, 2009, p. 155).
As intertextualidades da obra de Ariano Suassuna reiteram, portanto, a convergência entre os elementos que a constituem e os conceitos que as predefinem. Um exemplo, é o projeto metalinguístico do livro, Romance d’A pedra do reino e o Princípe do sangue do vai-e-volta (1971), em que os intuitos criativos do protagonista D. Pedro Dinis Ferreira-Quaderna visam criar uma amalgama expressiva baseada na defesa da unidade de estilo e beleza da arte ibero-sertaneja, definida como estilo régio. Apontado como a evidência do gênio de seu criador, o gênero pretende-se como uma legítima expressão dos povos castanhos do sertão, cuja função é transformar a realidade austera do mundo sertanejo em um grande estilo épico e heroico. Através de contos e relatos de seus antepassados, o personagem utiliza suas memórias para compor o seu “romance heroicobrasileiro, ibero-aventuresco, criminológico-dialético e tapuio-enigmático de galhofa e safadeza, de amor legendário e de cavalaria épico-sertaneja”. Uma grande obra literária que almeja sintetizar a “verdadeira identidade nacional”, além de restaurar o prestígio e a honra de sua família através de uma saga capaz de reunir referências eruditas, políticas e nov 2017 | REVISTA MOVIMENTO
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intelectuais. Ambicionando o título de “Grande Gênio da Raça”, o personagem-narrador confere ao estilo, a fusão entre a prosa e o verso sertanejo, fazendo dos devaneios poéticos de sua escrita e imaginação, uma linguagem faustosa capaz de “enriquecer a verdade”.
A ambivalência do estilo régio conjuga em seus sentidos ornamentais e espírito artístico, a dimensão culta e hermética do conceptismo barroco e as noções gregárias da estética popular medieval. Exercendo uma grande influência no processo de adaptação do romance à microssérie, A pedra do reino, dirigida por Luiz Fernando Carvalho e exibida pela Rede Globo de Televisão em 2007, o caráter intertextual e dialético do estilo régio potencializa as figuras de linguagem adotadas pelo regime audiovisual da produção. O viés alegórico da literatura de Ariano Suassuna é absorvido pela ornamentação do discurso visual da série televisiva e pela projeção metafórica de suas técnicas narrativas. Adotando princípios relativos aos procedimentos literários da obra original, a produção amplia a estrutura dinâmica dos signos preexistentes no romance, produzindo formas cujas novas funções plásticas e retóricas angariam a riqueza dos conceitos estéticos que emolduram as suas imagens.
A intertextualidade na obra de Luiz Fernando Carvalho As pesquisas de Idelette dos Santos em torno das demandas eruditas e populares da arte armorial definem a escritura do estilo como um jogo elaborado de citações que coloca o texto no centro de uma rede transtextual complexa. “A citação está na base da criação da obra, que deve ser a um só tempo resumo, antologia e recriação de toda a memória cultural, tornando-se pedestal do novo texto” (SANTOS, 2009, p. 140). Em analogia aos estudos em torno das artes barroca e neobarroca, do poeta e escritor cubano, Severo Sarduy, os processos intertextuais da arte armorial podem ser compreendidos como procedimentos que, deflagrando a cadeia hereditária de suas estruturas significantes, se realizam por meio de uma escrita marcada pelas reminiscências que deixam suas marcas sem aflorar na superfície do texto. Distinguindo a superficialidade figurativa de algumas manifestações intertextuais, Sarduy propõe que a intertextualidade seja compreendida como um conflito no cerne dos dispositivos factuais e conceituais da obra, caracterizando os artifícios de seu
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estilo, a medida em que estes “estiverem situados nos pontos nodais da estrutura do discurso” (SARDUY, 1979, p. 170). No seu jogo de referências, o espaço metafórico incide na infinidade de um horizonte artístico a ser desvendado, em que as filigranas do texto se introduzem na superfície plana da obra como elementos alógenos, mas que intrínsecos à operação de cifragem que constitui a escritura, participam, conscientemente ou não, do ato da criação. Na profusão dos elementos ibéricos, islâmicos, sertanejos, exotéricos, cabalísticos, indígenas e primitivos que fundamentam a genealogia cultural do Romance d’A pedra do reino, a alusão ao estilo e à escrita de Dom Quixote de la Mancha (1605), de Miguel de Cervantes, destaca a importância daquela que é a referência primordial da obra de Ariano Suassuna. Nas palavras do escritor, o livro de Cervantes é a obra que melhor aporta e une os elementos cortesãos e eruditos da tradição renascentista e greco-latina, com os elementos da épica popular, do romanceiro ibérico, da novela picaresca, da novela de cavalaria e da tradição dos contos orais e memoriais do povo espanhol e mouro. A inspiração buscada por Suassuna na narrativa de Dom Quixote é respectivamente adotada por Luiz Fernando Carvalho nas diversas dimensões de sua adaptação e, principalmente, na caracterização do personagem Quaderna. A ligação de Suassuna à Cervantes e de Quixote à Quaderna implica na plasticidade da série fazendo do protagonista, um arquétipo de seu personagem inspirador. A pesquisadora Ilana Feldman observa a maneira como esse movimento paródico evoca toda uma tradição cultural que se conecta com a produção televisiva de Luiz Fernando Carvalho: Sabe-se que toda obra inventa seu autor. Hamlet inventou Shakespeare, Quixote inventou Cervantes, Ulisses inventou Homero e Pedro Dinis Ferreira Quaderna, tendo devorado – antropofagicamente – Shakespeare, Cervantes e Homero, inventou Ariano Suassuna. Se todo escritor é então escrito pelos livros que pensa estar escrevendo, o mesmo se pode dizer de alguns cineastas e diretores, cujas obras não apenas escrevem um mundo dotado de plena autonomia como lhes inscrevem a própria vida. (FELDMAN, 2007)
Entretanto, as referências existentes em A pedra do reino vão além das apreciações do universo armorial e das citações presentes na obra de Ariano Suassuna. Responsável por aproximar a teledramaturgia brasileira às inúmeras referências da arte,
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Luiz Fernando Carvalho destaca-se pela consolidação de sua obra como uma linguagem autoral no meio televisivo. Confesso apaixonado pela história da arte, o diretor projeta na plasticidade de suas imagens, a inspiração de artistas como Giotto, El Greco, Goya, Caravaggio e Velázquez, revelando características importantes da natureza estética do seu trabalho. Desde as suas primeiras produções televisivas, passando pelo filme Lavoura arcaica (2001), Luiz Fernando Carvalho angaria elementos da pintura que ressoam fortemente em suas produções. É o próprio diretor quem comenta a especificidade das suas referências no campo das artes plásticas, a partir do papel desempenhado pela pintura no seu único longa metragem: Com relação aos pintores, você tem toda a pintura tenebrista espanhola, que representa um período próximo à dominação do Império Árabe na Península Ibérica, com uma grande predominância dos fundos negros e a presença dos dourados, que também dialogam com Rembrant. As figuras alongadas do El Greco, entram por Caravaggio, Tiziano, Van Gogh, Degas, Munch, Millet, Cézanne [...] Tem os closes também, o rosto afilado [...] os Cristos do Velázquez, da iconografia russa também, já que a religião daquela família seria cristã ortodoxa. (CARVALHO, 2002, p. 101)
Na minissérie Hoje é dia de Maria (2005), o diretor, além de se apropriar da obra de Cândido Portinari, reuniu a equipe envolvida na produção para assistir um seminário sobre a vida e a produção do pintor, proferido por João Candido Portinari, filho do artista e responsável pelo Projeto Portinari. Dentre as referências à obra do pintor presentes na minissérie está o Morto, um dos personagens desenvolvidos com material descartável pelo diretor artístico, Raimundo Rodrigues. Esculpido em madeira e com o corpo coberto de panos e serragem, o personagem tem mãos, pés e rosto avantajados como nas figuras de Portinari. Hoje é Dia de Maria nasceu da alegria que tive ao me deparar pela primeira vez, já adulto, com os contos populares recolhidos da oralidade popular brasileira por Silvio Romero e Câmara Cascudo, entre outros. Logo depois vieram as pinturas de Candido Portinari e as cirandas recriadas por Villa-Lobos, depois peguei na mão de Soffredini e as do Abreu. Mas estes mestres iniciais, necessariamente, arrastam outros mais distantes. Portinari era apaixonado por Velázquez, Villa por Bach. Todos sabemos o enorme caldeirão cultural ainda em ebulição por essas bandas. Além do mais, acredito em um patrimônio genético do Brasil, suas histórias, suas raças, suas línguas, seus sons; tudo ainda vive, tudo
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me dá a sensação de que, como arquétipos, estão à espera de reencantar para continuarem suas missões éticas e estéticas. (CARVALHO, 2006)2
O resgate do estilo barroco promovido pelos modernistas brasileiros no início do século XX, é um dos acontecimentos que aproximam conceitualmente estas duas correntes e que, de alguma forma, iluminam as ligações entre tais estilos na obra de Luiz Fernando Carvalho. O apelo do diretor a artistas como Villa-Lobos, Portinari, Bach ou Velásquez é fundamental na definição do seu trabalho como um exercício de análise estética da história e da cultura brasileira. Em A pedra do reino, além de se apropriar dos elementos das pinturas e gravuras armoriais de Gilvan Samico, Francisco Brennand e do próprio Ariano Suassuna, é possível dizer que no âmbito das influências provindas das artes plásticas, a série não se reduz aos dados da experiência armorial, mas visa a autonomia na criação de uma nova plasticidade. As pesquisas realizadas pelos armoriais nos campos da música, da dança, da poesia, da cerâmica, da escultura e, com menos consistência, do cinema e da arquitetura3, também deixaram marcas em A pedra do reino. No entanto, foram as suas investigações no campo do teatro, a principal referência na adaptação do romance de Suassuna. Para Idelette dos Santos, nenhuma arte permite aproximar-se mais da armorialidade do que o teatro. O seu caráter oral reencontra na improvisação, a riqueza do canto e a música das palavras, a partir de uma encenação que realiza a total integração entre a poesia, a música e também as artes plásticas. “O teatro constitui, portanto, o espaço privilegiado da ‘armorialidade’, e também foi o seu laboratório, pois os anos de elaboração e maturação da arte armorial correspondem ao período mais intenso de produção e reflexão teatral de Ariano Suassuna” (SANTOS, 2009, p. 221). A relação entre o teatro e a literatura de Ariano Suassuna é de tamanha grandeza que, muitas vezes, torna-se um impasse definir em qual meio o seu trabalho repercutiu Trecho extraído da entrevista disponível como material textual inserido no fac-símile do DVD Hoje é dia de Maria, distribuído pela Globo Marcas e Som Livre, lançado pela Rede Globo de Televisão em 2006. 2
O Movimento Armorial nunca se expressou com pertinência no cinema e na arquitetura. No campo da sétima arte, os seus integrantes vislumbram nas aproximações entre a estética armorial e o cinema de Glauber Rocha, uma inspiração para realizar um cinema autenticamente sertanejo. No campo da arquitetura, as considerações de Ariano Suassuna foram mais pertinentes, na medida em que o escritor almejou na influência de Gaudí, uma arquitetura armorial da desmesura e do sonho: violenta e colorida. Uma arquitetura repleta de massas e espirais, primitivamente barroca, que integraria a pintura, a escultura e a cerâmica.
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com maior relevância. Obras como Auto da Compadecida 4(1955) e O santo e a porca (1957) são consideradas algumas das dramaturgias mais importantes da cultura brasileira.
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O Romance d’A pedra do reino também ganhou uma adaptação para o teatro dirigida por Antunes Filho e encenada em 2006. Entretanto, as adaptações das obras de Ariano Suassuna para o cinema e a televisão foram frutos de alguns desentendimentos. Por diversas vezes o escritor se negou a ceder os direitos de filmagem de suas obras. Luiz Fernando Carvalho conta com o título de diretor que mais adaptou as obras do escritor. A primeira peça teatral escrita por Ariano Suassuna, Uma mulher vestida de sol (1947), inscrita em um concurso promovido pelo TEP (Teatro do Estudante de Pernambuco), conquistou o prêmio Nicolau Carlos Magno, mas não chegou a ser encenada. A sua estreia só viria a acontecer 47 anos depois, em 1994, quando foi adaptada por Luiz Fernando Carvalho e exibida pela Rede Globo. Em 1995, foi a vez da peça, Farsa da boa preguiça (1960), também adaptada pelo diretor e exibida pela emissora. O teatro armorial e sua conexão com a linguagem da microssérie A pedra do reino, devém da recusa de Ariano Suassuna ao naturalismo do teatro moderno europeu do século XIX e da maneira como a concepção armorial pretende discutir valores teatrais desde a antiguidade. Os gêneros do nordeste brasileiro são herdeiros da tradição do teatro ocidental. A tragédia grega, a comédia latina, a comédia dell’arte, os autos barrocos ibéricos, o teatro isabelino inglês, o teatro clássico francês e o teatro alemão são gêneros que Ariano Suassuna atribui à tradição espetacular e à forma como o texto dramatúrgico era concebido procurando uma transfiguração teatral do mundo e não uma imitação
Depois de ser encenada em vários de países, a peça Auto da Compadecida foi impedida por Ariano Suassuna de ser representada nos Estados Unidos pelo Actor’s Studio. O motivo da recusa está relacionado ao fato de que para ser encenada, os direitos de filmagem da peça deveriam ser cedidos. O desejo de Suassuna era que o filme fosse realizado no Brasil. Em 1969, o filme A Compadecida, dirigido por George Jonas, estreou como a primeira adaptação cinematográfica da peça. Em 1987, foi a vez do filme Os Trapalhões no Auto da Compadecida. Entretanto, Ariano Suassuna resistiu em autorizar as filmagens dirigidas por Roberto Farias, com receio de que a sua linguagem não se afinasse com o perfil dos Trapalhões. Após o término do filme, o escritor se confessou contente com o resultado, principalmente, com o uso da trilha sonora composta pelo músico Antônio José Madureira. Em setembro de 2000, a terceira adaptação da peça foi exibida pela Rede Globo. Dirigida por Guel Arraes, O Auto da Compadecida é uma série dividida em quatro capítulos que, posteriormente, foi editada e comercializada como um longametragem.
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A adaptação da peça O santo e a porca, escrita por Adriana Falcão e dirigida por Maurício Farias, foi exibida pela Rede Globo no ano 2000, em meio aos episódios da série Brava Gente.
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rasteira da realidade cotidiana. Nesse sentido, a presença de elementos como os narradores, o verso, a música, os figurinos suntuosos ou miseráveis, as máscaras, os tipos humanos, as danças e os acontecimentos extraordinários, a seu ver, contribuíam para criar, no palco, outra dimensão da realidade. Dentre os gêneros do teatro popular europeu que deixam as marcas mais evidentes em A pedra do reino está a comédia dell’arte. Após se desenvolver na Itália no século XV, com o intuito de se opor à comédia erudita, a comédia dell’arte, através de apresentações itinerantes, onde os atores (muitos deles dentro de uma mesma estrutura familiar) se apresentavam em carroças e palcos improvisados, se propagou como um teatro satírico e picaresco. As suas farsas tinham a pretensão de divertir ridicularizando a nobreza, o clero e os próprios plebeus. Na sua linguagem se estabeleciam diálogos com a música e as artes circenses, através de jogos de acrobacia, malabarismos e mímicas. Objetos cênicos, figurino, máscaras e bonecos incrementavam a apresentação, de forma que, observando os seus elementos, é possível dizer que a microssérie tem grande relação com o seu espírito artístico, na medida que faz da adaptação do Romance d’A pedra do reino, uma peça comandada pelo velho palhaço Quaderna. No momento em que o protagonista-narrador inicia a encenação de sua epopeia, ficam explícitas as referências ao gênero italiano. Para ressaltar a contaminação da cultura brasileira pela cultura ibérica, medieval e barroca, o figurino usado por Quaderna é inspirado no personagem Cucurucu da comédia dell’arte e nos palhaços negros, Mateus e Bastião, que integram o folclore dos Cavalos Marinhos e das Folias de Reis.
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FIGURA 1 – D. Pedro Dinis Ferreira-Quaderna. FIGURA 2 – Cucurucu. fonte: CARVALHO, 2007.
A natureza nômade e a grande proximidade com o público são aspectos que conectam o gênero ao teatro popular nordestino. Através de personagens míticos; cantos; roupas feitas de farrapos ou ornamentadas; músicas folclóricas; versos e prosas; dos teatros de mamulengo (teatro de títeres e bonecos); e dos elementos das festas populares como o boi, o caboclo de lança, o cavalo-marinho e o bumba-meu-boi, é que se caracterizam os elementos do teatro e da cultura nordestina, cujas influências dos gêneros europeus ainda são notáveis. As observações de Ariano Suassuna sobre o teatro popular nordestino clareiam questões fundamentais sobre as suas origens. A tradição do espetáculo popular possui formas que pertencem, ao mesmo tempo, ao litoral e ao sertão. Essas formas, segundo Suassuna, ora se conectam com as suas origens ibéricas, como a “Nau Catarineta” e as “Cheganças”, baseadas nas lutas de cristãos e mouros da Península Ibérica, ora são reinventadas pela “civilização do açúcar” do litoral, ou pela “do couro” do sertão, como o bumba-meu-boi e o teatro popular de bonecos. Para o escritor, no seu conjunto, esses espetáculos podem servir a um teatro nacional, possível de ser religado à tradição do grande teatro mediterrâneo europeu. Esse trajeto artístico e histórico indica o caminho de um teatro brasileiro que religa dramaturgos e atores à uma “corrente do sangue tradicional mediterrâneo, do qual somos herdeiros, na qualidade de povo ibérico, negro, judeu, vermelho e mourisco” (SUASSUNA, 2012, p. 70). 14
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Por mais que a dimensão teatral de A pedra do reino se vincule às ideias de Ariano Suassuna sobre o teatro popular nordestino e as suas origens, tal relação não seria completa se não levasse em consideração o papel da arte circense na definição do seu espírito artístico. Foi o contato de Ariano Suassuna com o circo, ainda criança na cidade de Taperoá, uma das memórias mais importantes de sua vida. A figura do palhaço marcou a infância do escritor, de modo a fazê-lo se considerar, anos mais tarde, um palhaço e dono de circo frustrado. “Meu trabalho de escritor, de professor, de falso profeta fraco e pecaminoso, de cangaceiro sem coragem, de organizador de espetáculos armoriais de música e de dança, de cavaleiro sem cavalo e de criador de cabras sem-terra, não passa da tentativa de organizar um vasto Circo” (SUASSUNA, 2012, p. 210). Entre os palhaços da infância, Gregório, astro do circo Stringhini, foi o mais importante. Segundo as análises das pesquisadoras Adriana Victor e Juliana Lins: “A lembrança de Gregório está, até hoje, marcada na literatura brasileira: é ele o palhaço-narrador do Auto da Compadecida” (VICTOR; LINS, 2007, p. 27). A caracterização de Quaderna, em A pedra do reino, como um palhaço que rege o espetáculo teatral e circense, não é apenas uma menção ao espírito dos clowns, mas é o que estrutura a narrativa retrospectiva da adaptação. Quando, na infância, Ariano Suassuna estabelece seu primeiro contato com o circo, tais lembranças perpetuariam como inapagáveis em sua imaginação. No primeiro capítulo da série, quando Quaderna, também na infância, assiste a sua primeira cavalhada e conhece a dimensão cultural de seu povo, tal acontecimento é o que desatina a sua ambição de sintetizar no estilo régio, o folclore sertanejo e as suas origens. De modo semelhante, a vivência infantil de Suassuna e Quaderna encontrariam, posteriormente, os frutos da intelecção capazes de transformarem a visão ingênua de um circo e seus palhaços em imagens assimiláveis ao romanceiro ibérico: “a visão do Circo é fundamental para se entender não só meu Teatro mas toda a poética que se encontra por trás dele, do meu romance, da minha poesia e até da minha vida” (SUASSUNA, 2012, p. 212). O Circo é, portanto, uma das imagens mais completas da estranha representação da vida, do estranho destino do homem sobre a terra. O Dono-do-Circo é Deus. A arena, com seus cenários de madeira, cola e papel pintado, é o palco do mundo, e ali desfilam os rebanhos de cavalos
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e outros bichos, entre os quais ressalta o cortejo do rebanho humano – os reis, atores, trágicos, dançarinas, mágicos, palhaços e saltimbancos que somos nós. (SUASSUNA, 2012, p. 209)
Os sincretismos do teatro popular nordestino e as noções de Ariano Suassuna sobre a teatralização da vida do homem do sertanejo, engendram na estética armorial um caráter dialógico que também se expressa na série de Luiz Fernando Carvalho. De acordo com Ilana Feldman, o sonho da “obra de arte total” parece ser o ponto de partida dessa opera mundi barroca que almeja construir uma síntese do universo artísticos de seus realizadores: Na opera mundi de Luiz Fernando Carvalho, tanto em Hoje é dia de Maria como, mais radicalmente, em A pedra do reino, a encenação contempla, incorpora e devora, almejando totalizar, todas as formas de manifestação artística, que, ao gosto do barrocco, cujo sentido literal é “acumulação”, une e mistura cinema, teatro, poesia, pintura, circo, ópera, literatura, romance, odisseia, sátira, tragédia, picardias, cordel, maracatu, papangus e novelas de cavalaria. Do popular ao erudito, da artesania à tecnologia, da ancestralidade à busca da nacionalidade, a mão barroca e o “estilo régio” de Luiz Fernando Carvalho orquestram excessos, intensidades, contrastes, júbilos sem limite, jorros declamatórios e diversos registros e linguagens. (FELDMAN, 2007)
Na realização de A pedra do reino, Luiz Fernando Carvalho e sua equipe buscaram representar o folclore nordestino preservando os seus principais elementos. Para isso, os atores receberam aulas de iniciação aos passos da dança do CavaloMarinho, uma espécie de teatro popular de rua, original da zona da mata pernambucana. O folgueto é acompanhado por instrumentos como a rabeca, o bagé, o pandeiro, o ganzá e o apito. O seu ritmo é embalado por um misto de música, dança, poesia, coreografias, loas e toadas. Normalmente, a encenação reúne cerca de 76 personagens divididos em três categorias: animais, humanos e fantásticos, com máscaras e roupas próprias. Rabequeiros renomados, como Mestre Salustiano e Luiz Paixão, foram alguns dos músicos que participaram das gravações de série. Os palhaços Mateus e Bastião da tradição do cavalo-marinho foram, respectivamente, representados por José Borba da Silva e Luiz Carneiro. O poeta Affonso Romano de Sant’Anna ressalta o apelo barroco da música regional nordestina e armorial:
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(...) no Brasil a charamela e a rabeca, predecessoras da clarineta e do violino, continuaram em uso sobretudo no Nordeste nos espetáculos de bumbameu-boi e outras manifestações populares. O Movimento Armorial, no Recife, conhecido nacionalmente a partir da década de 1970 e liderado por Ariano Suassuna, procurou resgatar esses instrumentos. Antônio Nóbrega, mímico, ator, bailarino e músico, encarnando figuras populares que têm a mesma vitalidade daquelas da commedia dell’arte, atualmente apresenta espetáculos nos quais chega a tocar Bach na rabeca, à maneira nordestina, invertendo o curso do tempo e dando um toque tropical ao Barroco. (SANT’ANNA, 2000, p. 143)
As pesquisas capitaneadas por Ariano Suassuna na fundamentação de uma teoria da música armorial, foram realizadas a partir do Departamento de Extensão Cultual da UFPE e da sua participação na criação da Orquestra Armorial de Câmara, do Quinteto Armorial, da Orquestra Romançal Brasileira, do Balé Armorial do Nordeste, do Balé Popular do Recife e da Orquestra Popular do Recife. De acordo com Idelette dos Santos, a criação desses grupos visava realizar uma política de pesquisa e criação artística com objetivos concretos ligados aos órgãos municipais, tais como a Orquestra Sinfônica do Recife, o Coral Guararapes, a Orquestra Popular, o Balé Popular do Recife e a Orquestra Municipal. Na música, a estética armorial visa uma sonoridade áspera ligada àquilo que Suassuna definiu como a “civilização do couro”, cuja sonoridade da rabeca, dos pífanos e da viola são elementos indispensáveis para compor uma música “forte e despojada como o próprio Sertão” (SUASSUNA, 2012, p. 193). Uma autêntica música erudita de raízes sertanejas. As análises de Adriana Victor e Juliana Lins ressaltam como os sons pastoris, os reisados, os cavalos-marinhos, as cirandas e maracatus constituíram as bases para as criações dos músicos armoriais: As linhagens indígena, negra e ibérica, principalmente as barrocas, serviram de objeto de estudo para os artistas. A ideia era que a arte popular não fosse simplesmente reproduzida com instrumentos eruditos, mas sim recriada. Que ela servisse de chão e raiz para a construção de uma nova arte brasileira. O folheto de apresentação da Orquestra Armorial dizia que o grupo pretendia “fincar os pés nas raízes barrocas e populares do sangue nacional brasileiro”. Ariano também propôs a valorização de instrumentos musicais populares, como a rabeca, o pífano e a viola sertaneja. (VICTOR; LINS, 2007, p. 81)
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Apropriando-se das pesquisas realizadas pelos armoriais, a trilha sonora original de A pedra do reino foi composta pelo músico mineiro Marco Antônio Guimarães. Repetindo a parceria com Luiz Fernando Carvalho na composição da trilha do filme Lavoura arcaica, o músico criou sons baseados na mistura de ritmos ibéricos, árabes, indianos, nordestinos, ciganos e indígenas. Além de contar com músicas compostas exclusivamente para a série, a trilha conta com 13 músicas do Quinteto Armorial e uma do Quarteto Romançal. Estas faixas foram organizadas em um álbum duplo produzido e comercializado pela Som Livre. Um segundo disco de trilhas da série também foi organizado com músicas de outros compositores e interpretes nordestinos, tais como Mestre Salustiano, Luiz Paixão, Siba, Josildo Sá e Renata Rosa. Ligadas, ou não, ao Movimento Armorial, elas foram selecionadas como parte de um projeto de armorialidade que pontua a música como uma das forças motrizes do movimento. As pesquisas de Idelette dos Santos apontam como Ariano Suassuna concebeu um método de composição da música armorial. Primeiramente, parte-se da pura referência aos signos da música popular, passando à uma “superação” pautada pela transposição de gênero, chegando à recriação que dá origem a um novo material. Tendo a música ibero-mourisca e as músicas e danças africanas e indígenas como pontos de partida, o escritor inclui no escopo de suas pesquisas, uma série de gêneros sonoros ligados ao sertão e ao litoral. A música afro-brasileira; as cantorias; o coco; o canto gregoriano; a música indígena; música ibero-árabe; o cantochão e outros estilos fazem com que a composição armorial resida “menos na escolha do material folclórico do que no tratamento desse material” (SANTOS, 2009, p. 171). Foi criando uma tensão no desenvolvimento dos elementos já existentes nesses estilos que Suassuna orientou pesquisas em torno dos modelos musicais, em busca de uma música contrapontística e modal, de acordo com o estilo que definiu “barroco primitivo brasileiro”. A relação entre a cultura popular e as produções de Luiz Fernando Carvalho é fruto de pesquisas anteriores à realização de A pedra do reino. Desde a realização de Uma mulher vestida e sol e Farsa da boa preguiça, quando, pela primeira vez, o diretor adapta obras de Ariano Suassuna, até a realização das duas temporadas de Hoje é dia de Maria e das produções do Projeto quadrante. Baseada na obra de Carlos Alberto
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Soffredini, a história da pequena Maria que, sonha em cruzar o sertão até as franjas do mar, conjuga elementos folclóricos, míticos e oníricos presentes em contos compilados por Câmara Cascudo, Mário de Andrade e Sílvio Romero. Em Capitu (2008), adaptação da obra de Machado de Assis, o diretor abusa da expressividade teatral, criando uma óperarock, cuja montagem obedece mais aos apelos oníricos da narrativa e aos movimentos musicais e coreográficos da interpretação, do que ao naturalismo do romance original publicado em 1899. O antinaturalismo de A pedra do reino pode ser compreendido como um conceito amplo no corpo da obra. Ao dar vida ao personagem Quaderna à maneira de um títere de tons quixotescos, Luiz Fernando Carvalho concebe o personagem como um legítimo mamulengo do teatro de marionetes nordestino. Pois, de acordo com as pesquisas de Idelette dos Santos, o contato com os mamulengos está na origem da pesquisa teatral de Suassuna impulsionada pelo Teatro de Bonecos do TEP. No entanto, o antinaturalismo da microssérie não se restringe a atuação, agregando os aparatos cênicos, de modo a estabelecer um diálogo com os artifícios do teatro. Ao travar tal relação, a série rompe com o modelo naturalista das teledramaturgias brasileiras. Pois, normalmente, para as telenovelas produzidas pela Rede Globo são criadas cidades cenográficas nos estúdios do Projac no Rio de Janeiro, que visam o aspecto realista da narrativa. Ao contrário das demais teledramaturgias da emissora, as cenografias das produções de Luiz Fernando Carvalho evidenciam o seu caráter artificial. A desproporção das formas, a recriação de elementos da natureza com materiais artificiais e jogos de luzes são exemplos dos recursos utilizados que ressaltam a artificialidade do material cenográfico. A minissérie Hoje é dia de Maria foi inteiramente gravada em um grande domo: o antigo palco onde foi realizado o Rock in Rio III. O espaço, em formato circular, concebido como uma representação do globo terrestre, foi todo reciclado para a produção. A estrutura foi montada sobre o solo natural de terra, sem base de concreto. Internamente, o cenário era composto por um ciclorama de 170m de comprimento por 10m de altura, totalmente pintado à mão e que circundava toda a extensão da cúpula. O painel é resultado do trabalho do artista plástico Clécio Regis. A tela pesava mais de uma tonelada e consumiu 2.170 litros de tinta. Conforme Maria mudava de paisagem, o ciclorama era
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repintado sem ser desmontado. A grandiosidade e artificialidade da estrutura tornou-se uma aposta original, na medida em que os seus aparatos técnicos foram notados em sua engenhosidade e caráter artesanal como, por exemplo, no uso dos refletores que simulavam o Sol, ou mesmo, no caso do oceano totalmente composto por engrenagens, placas rígidas, tecidos e plásticos que simulam os efeitos das ondas do mar. Em Capitu, algumas partes da cenografia foram desenhadas com giz. A artificialidade da linguagem ganha tamanha importância no trabalho de Luiz Fernando Carvalho que, no último capítulo das desventuras de Maria, a narrativa chega a incorporar cenas que revelam os bastidores da filmagem, mostrando em um mesmo plano, a representação dos atores e o trabalho da equipe. O deslocamento do ilusionismo da narrativa intervém, portanto, em privilégio da imaginação e da criatividade reiterando a forma como Sarduy analisa a arte barroca como uma apoteose do artifício, pautada por uma artificialização que se liga à irrisão da natureza através de seus arabescos e volutas. A ideia de trabalhar um espaço que não fosse a realidade em si, mas que se constituísse como sendo a representação emocional de uma determinada realidade, assim como os sonhos, sempre me interessou. Não estou trabalhando com a mentira. Eu não minto para o público: “Isto é um céu verdadeiro!”, “Aquela casa não é pintada”, “Aquilo não é um painel”. Não. Muito ao contrário, estou propondo aos espectadores um jogo com a imaginação, um exercício tênue de visibilidades. Cabe, isto sim, à grande capacidade imaginativa dos intérpretes de pegar na mão do espectador e trazê-lo para dentro do jogo. Não é uma narrativa que te desloca do tempo histórico, uma narrativa glamorosa, falsa, alienante, mas sim uma pequena tentativa de trabalhar no espaço misterioso da infância, que existe entre a realidade e a imaginação de todos nós. (CARVALHO, 2006)
O projeto cenográfico de A pedra do reino foi composto por um misto de locações externas e internas da cidade de Taperoá. A cidade paraibana foi quase que inteiramente modificada em suas fachadas e texturas, remetendo às antigas cidades sertanejas. Uma cidade cenográfica foi construída no final da rua principal de Taperoá, conhecido como Chã da Bala. Concebida como uma cidade-lápide, com detalhes inspirados em um cemitério local, a ideia de Luiz Fernando era criar um espaço de louvor à memória dos antepassados nordestinos:
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Assim que entrei na cidade cenográfica eu disse: ‘Olhe, me dá a impressão de uma cidade tumular e eu tenho impressão de que o Luiz Fernando Carvalho fez isso de propósito para, pela ideia da morte e da lápide, ele chegar a uma eternidade que é o que eu procuro’. E soube que realmente não havia sido por acaso, eles fizeram uma pesquisa em todos os cemitérios da região e foi assim que construíram uma cidade literária e mítica de Taperoá. (Ariano Suassuna)6
A produção de cenografia, chefiada por João Irênio, contou com cerca de 80 pessoas da região para construir e adereçar a cidade cenográfica em pouco mais de 25 dias. As casas existentes ganharam novos revestimentos, o chão recebeu 40cm de terra e a área de 2 mil metros quadrados foi toda fechada ganhando 35 nichos e transformandose em uma arena octogonal. Para cobrir a praça da cidade foi construído um butterfly retrátil, o maior já feito na América Latina, usado para controlar a luz natural. Um portal com o espaço interno arquitetado como uma igreja foi construído para servir de ligação entre o mundo externo e o universo mágico da arena. Também foi erguida uma edificação representando os Arcos de Roma, além de uma das casas da arena ter sido usada como ateliê para os camarins e caracterização. Trabalho que ficou a cargo de Vavá Torres e quatro assistentes. Localizada na cidade cenográfica, a casa foi a escola onde Ariano Suassuna realizou o curso primário. A carroça de Quaderna, posicionada no centro da arena, foi inspirada nas carroças ciganas contando com dois palcos giratórios, cujo movimento circular representa os ponteiros de um relógio. Uma forma de trabalhar o tempo cíclico como metáfora na obra. Também foram usados, como locações, uma cadeia desativada (cenário do inquérito); a Serra do Pico – o ponto mais alto de Taperoá; e uma área na cidade vizinha de Cabaceiras. O cenário do inquérito é semelhante a um octógono tridimensional, intercalando paredes móveis que se deitam no chão com duas arquibancadas. Do terceiro capítulo em diante, o inquérito torna-se o eixo central da narrativa, o que possibilita aos espectadores observarem as alterações que o cenário sofre no decorrer das cenas. O espaço, todo em madeira, multiplica-se em diversas formas, a partir da disposição dos atores e da câmera. Essa versatilidade da cenografia que permite rápidas improvisações é uma das
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Depoimento disponível no portal do Projeto Quadrante. (http://www.quadrante.globo.com)
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características do teatro que encontra na microssérie, um diálogo com a mobilidade da câmera, projetando a função de um cenário que serve como um espelho não-simétrico da realidade, capaz de unir as propriedades técnicas e estruturais do palco das peças ambulantes e o jogo de perspectiva do meio audiovisual. Na ocupação da cidade de Taperoá pelo Projeto Quadrante, diversos espaços foram cedidos a fim instalar os envolvidos na produção da série. Para criar o aparato necessário, Luiz Fernando Carvalho contou com equipes de figurino, arte, cenografia e caracterização compostas pelos mesmos profissionais da minissérie Hoje é dia de Maria, com exceção do estilista Jum Nakao. Além do ateliê de caracterização localizado na praça principal, foi criado um ateliê de figurino no Casarão da Secretaria Municipal de Saúde de Taperoá, onde Luciana Buarque comandou o time de 18 costureiras, camareiras, bordadeiras, rendeiras e aderecistas. De acordo com o depoimento da figurinista no documentário making of, Taperoá (2007), o trabalho de pesquisa para a realização das roupas voltou-se para a arte medieval em busca de suas texturas e cores. Foram usados tecidos nobres e trabalhos manuais de confecção local, como rendas e bordados, além de materiais como metal, plástico, couro, chapas de fotolito, lata, tapeçarias, restos de ossos, palha, madeira e palitos de picolé. Matéria prima utilizada tanto na confecção dos figurinos quanto na criação dos objetos elaborados no ateliê de arte. Um galpão de ensaios foi criado na antiga fábrica de algodão da cidade. Neste espaço, o diretor e sua equipe, Ricardo Blat, Tiche Viana, Lúcia Cordeiro, Mônica Nassif e Pedro Salustiano prepararam o elenco. A Biblioteca Raul Machado, casa onde, no romance, Quaderna exercita seu amor pela literatura, foi usada pelo ator Irandhir Santos como local de preparação na criação do personagem. Um ateliê de arte e cenografia também foi instalado na Casa do Forte, residência pertencente à família Suassuna que abrigou a oficina comandada por Raimundo Rodrigues, envolvendo 24 artesãos na criação de objetos cenográficos, entre coroas, espadas, marionetes, bichos selvagens e mais de 40 cavalos em tamanho natural feitos com sobras de palha de milho, carnaúba, estopa, resto de isopor, ossos, latas, serragem e papel. Todos os bonecos foram equipados com mecanismos de movimentação. A equipe de artesãos contou com profissionais reconhecidos, como Mestre Zé Lopes, um conceituado criador de mamulengos,
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responsável pela produção dos bichos articulados utilizados na série. Trabalho que amplia o imaginário da obra e o seu diálogo com o teatro popular de bonecos. Na realização de Hoje é dia de Maria, além de contar com o trabalho de Raimundo Rodrigues e do Grupo Galpão, Luiz Fernando Carvalho convidou os grupos Teatro de Bonecos Giramundo e Imaginário Periférico, para participarem da criação das duas temporadas da minissérie. A tarefa de construir um elenco de bonecos foi atribuída a esses grupos que se encarregaram em dar vida a um universo totalmente produzido com materiais reaproveitados e trabalhados artesanalmente. Na série, assistimos à metamorfose de animais e atores em cavalos sobre rodas, pássaros de madeira e ventríloquos, originando um tratamento que se estende aos elementos de A pedra do reino e que, segundo o seu diretor, está ligado ao tempo, pois a ideia de se reaproveitar materiais é reencontrar “a antiga vida daqueles objetos assim como a alma daquelas histórias” (CARVALHO, 2006).
Objetos que, mesmo em frangalhos, assim que colocados lado a lado com outros restos, nos possibilitariam o renascimento de um objeto novo, e uma forma nova, sem abrirmos mão da precariedade, muito ao contrário. Daí a importância de um artista plástico como o Raimundo Rodrigues na equipe da Lia Renha. Nossa história é então saída de uma antiga gaveta de brinquedos velhos, quebrados, faltando peças e partes, mas que carregam uma dose de imaginação aos olhos de quem vai bulir com eles, pois estão carregados de sonho humanos (CARVALHO, 2006).
Conclusão As escolhas estéticas realizadas por Luiz Fernando Carvalho na realização de A pedra do reino apontam, portanto, para um campo de digressões culturais, artísticas e conceituais que iluminam as relações entre a sua produção e os regimes de enunciação do meio televisivo. As concepções de gosto que dão forma aos elementos visuais e narrativos da série demonstram o caráter dialógico do processo de interação entre os diferentes textos e elementos que modelam o processo de adaptação do romance de Ariano Suassuna. O hibridismo das formas, a polifonia das vozes, as analogias simbólicas e relações dialéticas das valorações “neobarrocas” de A pedra do reino dizem sobre a prática de uma escrita que é, sobretudo, um movimento intencionalmente destinado a nov 2017 | REVISTA MOVIMENTO
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abranger as possibilidades dadas aos seus respectivos leitores. Com isso, conforma-se uma implicação visivelmente política dos fatos da estética televisiva, na medida em que posturas éticas predefinem os investimentos culturais de Ariano Suassuna e Luiz Fernando Carvalho, ocupando-se em fornecer uma perspectiva não só sobre a matéria criada, mas sobre o meio que a permite ser experimentada. Ao fim da encenação do espetáculo memorial d’A pedra do reino, Quaderna toma uma rabeca às mãos e parte pelo sertão afora, em uma imagem que contempla o horizonte e encerra o ciclo que liga o território introduzido na sequência inicial e a paisagem que permanece aberta e inacabada no plano final. O imaginário do sertão perpetua em A pedra do reino, como o ideal de um mundo mítico. “Estilo régio” é o nome dado à linguagem que pretende conectar esse espaço fabular aos sonhos e às pretensões de seu autor. Estilo através do qual o criador de Quaderna expressa o seu semelhante desejo de linguagem, por sua vez, aberto e entregue à criatividade de Luiz Fernando Carvalho. Eis que, sem compreendermos o universo mítico da obra de Ariano Suassuna, pouco podemos notar diante das imagens de sua adaptação, ao passo que a abrangência poética de seu estilo e espirito artístico, ao mesmo tempo que permanece aberta à imaginação, o faz em virtude de sua própria tradição cultural.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CARVALHO, Luiz Fernando. Hoje é dia de Maria (Fac-símile - DVD). Globo Marcas; Som Livre: Rio de Janeiro, 2006. . Roteiros e cadernos de diário de elenco e equipe A pedra do reino. Escrito por Luiz Fernando Carvalho e outros. São Paulo: Editora Globo, 2007. . Sobre o filme LavourArcaica. Cotia – SP: Ateliê Editorial, 2002. FELDMAN, Ilana. "A pedra do reino: A opera mundi de Luiz Fernando Carvalho". In: Revista Cinética. 2007. Disponível em: <http://www.revistacinetica.com.br>. SANT’ANNA, Affonso Romano de. Barroco: do quadrado à elipse. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. SANTOS, Idelette Muzart Fonseca dos. Em demanda da poética popular: Ariano Suassuna e o Movimento Armorial. 2ª ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2009. SARDUY, Severo. "O barroco e o neobarroco"; In: MORENO, César Fernández. América Latina em sua literatura. São Paulo: Perspectiva, 1979. SUASSUNA, Ariano. Almanaque Armorial. Seleção, organização e prefácio Carlos Newton Júnior. 3ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2012. . Romance d’A pedra do reino e o Príncipe do sangue do vai-e-volta. 9ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2007. VICTOR, Adriana; LINS, Juliana. Ariano Suassuna: um perfil biográfico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
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A construção do arquétipo da Sombra no roteiro da série Supermax Bartira Bejarano Campos1 Universidade de São Paulo Resumo: O artigo propõe identificar aspectos implícitos e explícitos da construção do arquétipo da Sombra no roteiro do primeiro episódio da série Supermax, produzida e exibida pela TV Globo concomitante com a plataforma digital Globo Play. Para tanto, parte sobretudo da perspectiva de Christopher Vogler com seu estudo dos arquétipos mitológicos para o desenvolvimento de estruturas narrativas míticas e de C.G. Jung com a análise da imagem arquetípica da Sombra projetada em personagens e situações míticas, como símbolos de natureza coletiva. O conceito psicológico da Sombra é uma metáfora útil para compreender características de vilões e antagonistas. Palavras-chave: roteiro; supermax; arquétipos; sombra; séries televisivas. Abstract: The article proposes to identify implicit and explicit aspects of the Shadow archetype’s construction in the Supermax’s first episode script, produced and displayed by TV Globo and Globo Play streaming. To do so, it mainly departs from the perspective of Christopher Vogler with his study of the mythological archetypes for the development of mythical narrative structures, and from C. G. Jung with the analysis of the Shadow archetypal image projected into mythical characters and situations, as universal’s symbols. The psychological concept of Shadow is a useful metaphor for understanding villains and antagonists characteristics. Key words: screenplay; supermax; archetypes; shadow; TV series.
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, sob orientação do Prof. Dr. Eduardo Simões dos Santos Mendes. E-mail para contato: bartirabc@usp.br
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Dentro de um formato de criação até então ousado para a TV Globo, a série Supermax (2016) nasce a partir de um processo criativo nos moldes da Writer’s Room, aqui, denominada Sala de Roteiristas. Trata-se de uma nova forma de criar conteúdo na televisão aberta brasileira, conforme publicado pelo Jornal Folha de S. Paulo (2016, Ilustrada, C1): “Os roteiros da série Supermax foram escritos por vários autores em uma sala, à moda das writers rooms americanas, debatendo-se por horas, chefiados por Marçal Aquino, Fernando Bonassi e pelo diretor artístico do canal”. O Jornal Estado de São Paulo (2016, Cultura, s/p) publica que: “Supermax é fruto de um processo inédito de criação, um esquema que se conceituou chamar de ‘writers room’, com mais de cinco profissionais gabaritados. É literalmente uma sala de escritores a trabalhar conjuntamente o desenvolvimento do roteiro.” No âmbito da difusão, Supermax estreia de forma distinta dos demais conteúdos televisivos exibidos até então em rede nacional: onze episódios da série são disponibilizados na íntegra - no mesmo dia - na plataforma digital Globo Play2, e apenas posteriormente são exibidos individualmente com dia e hora marcada dentro da grade da TV, com exceção do décimo segundo e último episódio, disponibilizado em streaming somente após a sua exibição oficial na televisão. Outro fator inédito é que o projeto insere a teledramaturgia da Rede Globo na ficção de gênero terror e suspense, com elementos de reality-show, dentro de um formato de narrativa seriada com tramas sequenciais que difere-se totalmente das telenovelas da casa, não somente pela sua curta duração. Supermax aproxima-se mais das series televisivas americanas e carrega fortes referências narrativas e visuais das séries The Walking Dead (2010), True Detective (2014) e Stranger Things (2016). Cada um dos nove roteiristas envolvidos são reconhecidos por seus trabalhos anteriores dentro deste gênero, apenas para citar alguns exemplos: Marçal Aquino escreveu “O Invasor” (2002), Fernando Bonassi, “Os Matadores” (1997), Dennison Ramalho foi colaborador de José Mojica Marins, Juliana Rojas escreveu “Sinfonia da Necrópole” (2014), Raphael Montes é autor do romance “Suicidas” (2012), e Bráulio Mantovani escreveu “Cidade de Deus” (2002). Como um dos documentos do processo de Plataforma streaming, é exclusiva para assinantes e exibe somente conteúdo da TV Globo em um formato similar à Netflix e demais plataformas de exibição digital de vídeo sob demanda.
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DOSSIÊ A construção do arquétipo da Sombra no roteiro da série Supermax Bartira Bejarano Campos
construção de uma série, roteiros são textos que seguem determinado padrão de apresentação e carregam marcas inevitáveis do estilo de cada roteirista (SALLES, 2008), mesmo que o roteirista não seja apenas um, como é o caso de produtos criados em Sala de Roteiristas, onde estilos individuais convergem em uma identidade única de grupo. Os roteiristas criam de forma colaborativa, portanto, a série Supermax que conta a história de doze pessoas confinadas em uma prisão de segurança máxima desativada no meio da floresta amazônica, para a gravação de um reality-show. Em comum, todos os personagens escondem um segredo, um crime, uma culpa. Logo no primeiro episódio, os participantes perdem o contato com a produção do programa. À deriva e enclausurados, todos precisam lidar com uma série de acontecimentos obscuros e sobrenaturais, o que inclui uma misteriosa peste que se alastra, e é capaz de transformar um ser humano em um animal descontrolado. No submundo da prisão Supermax é onde moram monstros reprimidos e ocultos, personificados na figura do vilão Baal, criatura mutante e assassina. Já na sinopse descrita acima, percebemos que a narrativa complexa é tecida entre muitos personagens, uma única locação, e o fato de serem todos criminosos. Os crimes, no entanto, são segredos revelados pouco a pouco ao longo da trama por meio de diálogos, ou por flashbacks. Os crimes expõem a essência dos personagens, que têm em comum, acima de tudo, o arquétipo predominante da Sombra. Traços obscuros do caráter e aspectos obscuros da personalidade. Camadas mais baixas da personalidade que quase não se distinguem da pulsionalidade de um animal. Composta pelas porções reprimidas, inferiorizadas e culposas de uma pessoa, dominantes no âmbito inconsciente e que anseiam uma integração à consciência. Fonte de conhecimentos e forças que por algum motivo são mantidas em segredo. (JUNG in ANAZ, 2017, s/p) Mesmo que a obra de Carl G. Jung se insira no contexto da psicologia analítica, observamos relevantes aspectos do conceito de arquétipo, especificamente do arquétipo da Sombra e de seus simbolismos, onde os estudos de Joseph Campbell e Christopher Vogler se fundamentam. Jung observa no inconsciente de seus pacientes fenômenos impessoais que manifestam-se sempre nos sonhos através de motivos mitológicos, como
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é também o caso das lendas e contos em toda a parte do mundo. Denomina, então, esses motivos mitológicos de arquétipos, que são os modos ou formas típicas em que esses fenômenos coletivos são vivenciados (JUNG, 1988). A Sombra é o arquétipo que representa o lado mais sombrio da psique, o caos, a selvageria e o desconhecido. Estas disposições latentes são frequentemente projetadas nos outros. Tais projeções, representações e interpretações ocorrem também na forma de narrativas, em histórias, literatura, filmes, e, aqui neste caso, em séries televisivas.
Os personagens-sombra do episódio 1 A força do primeiro episódio de uma série televisiva, o denominado “episódio piloto”, carrega em si a missão de mostrar ao espectador todo o potencial da série, e fazer com que ele se fidelize, se possível naqueles 40 minutos (ou na duração do episódio, que no caso de séries pode variar entre 25 a 45 minutos, aproximadamente). Sarah Sepulchre, em seu livro Décoder les séries télévisées, nos aponta a importância do episódio piloto: Produzir um piloto é um verdadeiro desafio pois é necessário dar uma ideia extremamente precisa do potencial da série, mostrar as diferentes facetas dos personagens, apresentar os embriões que irão se desenvolver nos episódios seguintes, e, ao mesmo tempo, não sobrecarregar a narrativa. (SEPULCHRE, 2011, p. 56, tradução nossa).3
A construção do arquétipo da Sombra se faz de forma explícita já nas cenas iniciais do primeiro episódio de Supermax, com a apresentação do personagem coadjuvante Luisão, em uma fusão de momento presente, com mini-doc em flashback: 3 –INT –HELICÓPTERO - DIA Close de um homem (LUISÃO) usando um capacete. Ele encara a câmera. LETTERING: “Luisão”. EFEITO DE COMPUTAÇÃO GRÁFICA leva a imagem do close para um mini-doc de 20 segundos.
Texto original: “Produire un pilote est une vraie gageure car ll faut donner une idée extrêmement precise du potenciel da la série, montrer les différentes facetes des personnages, présenter les germes des épisodes suivantes, sans cependant trop en faire.”
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CORTA PARA: MINI-DOC: A câmera grava como se fosse um documental. A imagem mostra Luisão, usando apenas um short, esmurrando com as mãos protegidas por bandagens uma velha geladeira presa no teto de um galpão por correntes. Ele fala olhando para a câmera. LUISÃO Na luta eu vejo as coisas como elas são: soque quando tem que socar, e chute quando tiver de chutar. Deixe o adversário arranhar sua pele e depois esmague a carne dele.
(ALVARENGA et al., 2015, p.1)
No depoimento e nas ações de Luisão transparece a construção óbvia de um personagem agressivo, impulsivo e passível de ser temido. Nos perguntamos, por que tanto ódio? O que ele teria guardado dentro de si que precisa vir à tona? “O arquétipo conhecido como a Sombra representa a energia do lado obscuro, os aspectos nãoexpressos, irrealizados ou rejeitados de alguma coisa. Muitas vezes é onde moram os monstros reprimidos de nosso mundo interior” (VOGLER, 1997, p. 101). Nesta cena que introduz Luisão como ex-lutadorde MMA4, trata-se também de “se encontrar com seu lado primitivo e negligenciado quesurge sob a forma de um caçador, grosseiro e rude” (JUNG, 2008, p. 289). A opção por criar também personagens estereotipados é válida no contexto televisivo, principalmente em canais de grande difusão, como forma de facilitar a compreensão do público para determinada função dramática. Logo em seguida, na mesma cena, dois protagonistas, Bruna e Nando, são apresentados: O rosto de uma mulher (BRUNA) também de capacete, encara a câmera. LETTERING: “Bruna”. MINI-DOC: Bruna está falando para a câmera. Ela está num cemitério. BRUNA Eu adoro passear em cemitério. Me faz pensar.
MMA (Mixed Martial Arts), também conhecida como “vale-tudo”, é uma modalidade das artes marciais que permite uma grande variedade de técnicas de luta.
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ENTREVISTADOR (OFF) Pensar em quê? BRUNA Na morte. Ninguém gosta de pensar na morte. Eu gosto de saber que uma hora acaba e pronto. Fica tudo assim... É calmo, né? Bruna sorri para a câmera. BRUNA (CONT’D) Parece muito estranho pra você? CORTA PARA: Efeito de computação gráfica leva a imagem para o close de um homem (NANDO), que também usa capacete, e que encara a câmera. LETTERING: “Nando”. MINI-DOC: Nando tem um caderno de desenho nas mãos. No caderno há um desenho bem realista de uma estrada onde um cavalo se chocou com um carro. As entranhas do cavalo se espalham pela pista. O carro que bateu numa árvore pega fogo. Enquanto mostra o desenho, Nando fala com a câmera. NANDO Eu fiz esse desenho quando eu tinha treze anos. Eu sonhei com essa cena um dia antes da minha mãe morrer num acidente de carro. Ele pega um RECORTE DE UM JORNAL VELHO e mostra para a câmera. NANDO (CONT’D) Essa foi a foto do acidente da minha mãe que saiu no jornal. PLANO-DETALHE: O desenho é fiel à foto do acidente. NANDO (CONT’D) Será que se eu tivesse mostrado esse desenho pra minha mãe, eu teria evitado a morte dela?
(ALVARENGA et al., 2015, p. 2-3)
O arquétipo da Sombra, no caso de Nando, está de certa forma implícito na cena. Trata-se de um padre “politicamente correto” que é constantemente atormentado por visões e premonições negativas na forma de pesadelos. Essa construção se dará minuciosamente ao longo da temporada e culminará na transformação de Nando em um nov 2017 | REVISTA MOVIMENTO
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animal mutante, o que ao fim lhe confere também o arquétipo do Camaleão. No entanto, em seu arco dramático, ele nunca deixará de ser Sombra. Aqui, na cena citada, vemos a construção de um personagem tímido, traumatizado e que carrega o sentimento de culpa por não ter evitado a morte da própria mãe. A Sombra pode representar o poder dos sentimentos reprimidos, aflorados sob a forma das visões de Nando e de sua aptidão para o desenho comprovadamente premonitório. “Ela pode representar um trauma profundo ou uma culpa, que quando exilados para a escuridão do inconsciente e emoções, escondidas ou negadas, podem se transformar em algo monstruoso que quer destruí-lo” (VOGLER, 1997, p. 102). A Sombra também é constituída por um potencial inexplorado, como a afeição, a criatividade ou a capacidade intuitiva que ficou sem se expressar (Idem, p. 106), características que transparecem com exatidão na cena de apresentação do personagem Nando. A opção dos autores por criar um personagem padre facilita ao espectador a identificação por alguém “do bem”, que tem também como função revelar o futuro através de pesadelos fielmente reproduzidos nos episódios. A metáfora do sonho/pesadelo é muito pertinente no âmbito da psicanálise, mais ainda quando tais pesadelos carregam fortes imagens simbólicas relacionadas ao arquétipo da Sombra. Já na apresentação da personagem Bruna, uma das protagonistas da série, o cemitério e a “paz” oriunda da morte formam um conjunto que destoa da aparência angelical da atriz Mariana Ximenes. A Sombra pode, simplesmente, ser aquela nossa parte obscura contra a qual estamos sempre lutando, em nosso combate contra os maus hábitos ou velhos medos (Ibidem, p. 102). Bruna, porém, não parece lutar contra seus maus hábitos, ela parece estar convicta em assumir ao mundo o seu lado obscuro. Essa energia, da Sombra, pode ser uma força interna poderosa, com vida própria e com seu próprio sistema de interesses e prioridades (Ibidem, p. 102). Bruna, mais adiante na cena 11, dialoga com Sergio, o Herói que possui um lado Sombra:
CORTA PARA:
Na cozinha vazia, o capitão Sergio, copo de cerveja na mão, está observando o interior da despensa pelo vidro. Bruna entra no ambiente e se aproxima.
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BRUNA Você foi policial, né? SERGIO Fui. BRUNA E você já matou alguém? Sergio fica incomodado. BRUNA (CONT’D) Como é que foi? Sergio olha para Bruna sem entender aonde ela quer chegar com aquela pergunta. BRUNA (CONT’D) Desculpa, é que eu sou enfermeira. Já vi muita gente morrer. Eu fico curiosa para saber como cada um reage nessa hora. Sergio reflete por um momento. Ele olha para as câmeras presas ao teto. SERGIO Eu senti alívio. BRUNA Alívio? SERGIO O cara mereceu. Era um estuprador, tinha matado cinco meninas. Por um instante a expressão no rosto de Sergio tornase grave. INSERT Flashback. Sergio, fardado com o uniforme de uma tropa especial da PM, avança por um beco na favela, perseguindo um homem. Ele atira e o homem cai. Ao ouvir um ruído às suas costas, ele se volta, de arma em punho – a tempo de ver surgir alguém com um revólver na mão. Um menino. Sergio atira, o menino cai. Ele se aproxima do menino. No rosto de Sergio, desespero. Na mão do menino, uma arma de madeira. De volta à cozinha, a expressão de Sergio é tensa. Bruna percebe.
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BRUNA Que cara é essa? Ele ia morrer de qualquer jeito na cadeia, não ia? Sergio concorda com um movimento de cabeça e depois toma um gole demorado de cerveja.
(ALVARENGA et al., 2015, p. 21-22)
O Herói guarda um segredo, agora revelado ao espectador sob a forma de um flashback. O Herói é também assassino, matou um menino inocente. Bruna não sabe. No desenrolar dos episódios, Sergio e Bruna, quando juntos, assumem os arquétipos do Herói e da Musa. Porém, interpretaremos que os personagens são principalmente Sombras que possuem uma combinação poderosa com outros arquétipos, sendo que o do Herói e o da Musa são apenas máscaras, uma função dramática. “Os próprios Heróis podem ter um lado de Sombra” (VOGLER, p.103), mas, no caso de Sergio, a Sombra pode ter um lado de Herói. Um Herói sombrio. Um anti-herói, cuja construção da complexidade do personagem é muito almejada no processo de criação dos roteiros. Constrói-se um personagem multifacetado, digno de inúmeras máscaras, para assim, tentar fugir dos estereótipos. Percebemos que especificamente no desenvolvimento do perfil do personagem Sergio a preocupação em destacá-lo dos outros do grupo é evidente, visando assim apresentá-lo como provável herói ou alguém que possa ter aspectos potenciais de herói ainda não manifestados ou ocultos. Por este motivo é que, aqui, nos referimos também ao personagem como Herói e Sombra. Já na cena 5, o personagem Dante, explicitamente Sombra, é apresentado: MINI-DOC: Diante de um trem-fantasma, Dante fala para a câmera. DANTE Eu trabalho aqui faz uma cara já. LETTERING: “Dante”.
Em corte descontínuo, vemos Dante dentro de um carrinho passeando dentro do trem-fantasma. A câmera que documenta Dante está num carrinho na frente dele. Em meio aos sustos do brinquedo, Dante dá seu depoimento.
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DANTE (CONT’D) A galera vem aqui pra levar susto, tá ligado? Sei lá, acho que isso dá uma aliviada nos medos de verdade que cada um sente. Mas, velho, eu não consigo me separar dos meus medos. Eu acho assim: tem que ir, vai, e se der medo, vai com medo mesmo. Dante faz uma careta, encarando o monstro do trem fantasma. (ALVARENGA et al., 2015, p.10)
O cenário – trem-fantasma – obviamente obscuro, também acentua a construção da Sombra no e ao redor do personagem. Dante é um jovem que vive permeado de elementos sombrios que transparecem nos diálogos e na sua aparência. Podemos observar na cena 11, o processo de construção e afirmação da Sombra em Dante: CORTA PARA: Um quarteto de participantes, integrado por Sabrina, Dante Bruna e Padre Nando, avança por um corredor mal iluminado em missão exploratória. Todos estão com seus copos. Padre Nando é o único que não está bêbado. Bruna observa as tatuagens nos braços de Dante. São escritos. BRUNA Você escreveu um livro no seu corpo? DANTE Um livro, não. Um diário. Bruna pega no braço de Dante. Você escreveu em inglês?
BRUNA
DANTE É um som do Marilyn Manson. Dante passa a entoar a canção. DANTE (CONT’D) “Puttingholes in happiness/ We´llpaintthe future Black IF needsany color -- Nossa sentença de morte é uma história e quem estará cavando o túmulo quando você me deixar morrer? Por favor corra comigo até o inferno.”
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Sabrina acha aquilo muito chato e se afasta do grupo. Bruna sorri. Dante se volta para o padre Nando. DANTE (CONT’D) Você acredita no diabo, padre? NANDO Acredito. E quero ele bem longe de mim.
(ALVARENGA et al., 2015, p. 24)
O tempo todo, durante os doze episódios, Dante desafia a própria morte bem como desafia a fé de Nando. Os roteiristas optam por, já neste primeiro episódio, construir os personagens dentro de seu potencial narrativo-dramático que será assumido no decorrer da trama. Parece-nos que Dante busca provocar o “afloramento” do lado Sombra do padre, já que a sua própria Sombra é tão escancarada, tatuada e estereotipada. Voltando ao inicio da ação na cena citada, os personagens “avançam por um corredor mal iluminado em missão exploratória”, o cenário revela-se cada vez mais sombrio e labiríntico no decorre das cenas; e também no decorrer dos outros episódios da temporada. Porém, já neste primeiro episódio, o espectador passa a conhecer as instalações da prisão: seus corredores e seus quartos escuros, úmidos e misteriosos, ao mesmo tempo em que os personagens os descobrem. Para onde levam os corredores da prisão? O que está atrás de todas essas portas? Sobre a construção e apresentação do cenário, nos remetemos à uma interpretação de Carl G. Jung, no livro “O Homem e seus Símbolos”: O labirinto do porão com estranhos corredores, quartos e portas sem chave lembra a velha representação egípcia do mundo subterrâneo, um símbolo bem conhecido do inconsciente e de suas desconhecidas possibilidades. Mostra também como se está “aberto” a outras influências do lado sombra do nosso inconsciente, e como elementos bizarros e estranhos podem ali penetrar. (JUNG, 2008, p.166)
Antes, o apresentador, Bial, releva ao espectador e aos personagens o aspecto profundo e sombrio que cada participante carrega:
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APRESENTADOR (NA TV) Tem uma coisa importante que vocês ainda não sabem: todos vocês têm uma coisa em comum. Câmera percorre os rostos dos participantes. Há uma certa inquietação entre eles. APRESENTADOR (NA TV CONT’D) Ninguém imagina o que é? Os participantes se entreolham com mais atenção. JANETTE Ai, que suspense. Fala logo. APRESENTADOR (NA TV) Você, Janette, cometeu um erro na vida, não é verdade? Surpreendida pela pergunta, Janette não confirma nem desmente. APRESENTADOR (NA TV – CONT’D) Cometeu, sim. Lembra que num reality aparece tudo: o que você fez, o que não fez e até o que fez e não sabe. Na tela, o apresentador se volta para os demais participantes. (...) APRESENTADOR (NA TV – CONT’D) Todos aí foram acusados de algum crime. Todos vocês já tiveram ou ainda têm algum problema com a lei. Por um instante, o silêncio pousa sobre os participantes, como se refletissem sobre a questão formulada pelo apresentador. APRESENTADOR (NA TV – CONT’D) Mas qual o crime que cada um cometeu? Quem é inocente? Quem já foi condenado? Será que vocês vão conseguir esconder esse segredo do público? Será que a dureza das provas não vai revelar a verdade que cada um precisa esconder pra ganhar o jogo? E se o crime for revelado e o público perdoar? Os participantes voltam a se entreolhar, como se procurassem adivinhar que crime cada um ali cometeu.
(ALVARENGA et al., 2015, p. 10-11)
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“A face negativa da Sombra, nas histórias, projeta-se em personagens chamados de vilões, antagonistas ou inimigos” (VOGLER, 1997, p. 101). Em uma narrativa onde todos os personagens possuem o arquétipo da Sombra, e todos são inimigos uns dos outros por estarem em um jogo, quem é o vilão? Quem é mesmo o herói? Um vilão é o herói de seu próprio mito “Ao planejar uma história, é importante lembrar que muitas figuras de Sombras não se consideram vilões ou inimigos. De seu ponto de vista, um vilão é o herói de seu próprio mito” (VOGLER, p. 104). Neste primeiro episódio, a construção dos heróis é feita sob a forma de protagonismo. Se Sergio ganha destaque, tanto em seus diálogos como em sua ações, portanto presumimos que trata-se de um dos protagonistas, que provavelmente se revelará mais por seus atos heroicos do que por seus aspectos de Sombra. Sergio começa a assumir o protagonismo quando põe-se em oposição ao personagem Artur, o ex-jogador de futebol réu de um latrocínio. No diálogo presente na cena 9, a posição Policia vs. Ladrão é construída: SERGIO Eu sou a favor de jogo limpo. Artur fica frente a frente com Sergio e o encara, belicoso. ARTUR O juiz marcou pênalti. E na frente de cem mil pessoas eu peguei a bola, escolhi o canto, fiz o gol e entrei pra história. Se você fosse gremista, ainda podia se meter na conversa. Mas já que não é, fica na tua. SERGIO Isso é jeito de falar comigo? ARTUR Essa frase a gente ouvia muito dos polícia que iam lá no morro achacar a gente. Eu, moleque, perdi muita chuteira pra filho de alemão. Eu não gosto de polícia. SERGIO Normal. Nunca vi bandido gostar de polícia. Artur dá um súbito empurrão em Sergio, que revida, empurrando-o de volta. (ALVARENGA et al., 2015, p. 23)
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Porém, não podemos esquecer que Sergio também é réu em um homicídio culposo, revelado em primeiro diálogo com Bruna. “Um tipo perigoso de vilão é o ‘homem correto’, a pessoa tão convencida de que sua causa é justa que nada pode detêlo” (VOGLER, 1997, p. 105). É justamente este o perfil do herói proposto na série Supermax. Na última cena do primeiro episódio, novamente o embate Polícia vs. Ladrão revela-se em mais um diálogo entre Sergio e Artur, onde a preocupação no processo de construção dos personagens é justamente criar uma dúvida entre quem é o protagonista, quem é o vilão e quem é herói. Sabendo-se que, no final das contas, não importa a máscara que estão usando, são todos Sombra. CORTA PARA: No interior da caixa, Sergio e Artur estão sentados frente a frente, se encarando, molhados de suor. Ambos tiraram a parte de cima do uniforme e vestem apenas as calças. O silêncio desconfortável dura algum tempo e só é quebrado pelos ruídos que Artur produz com seu desconforto estomacal. Ele cospe de lado. É visível seu mal-estar. A temperatura chegou aos 58 graus. SERGIO Por que você não desiste? Cê tá verde, cara! ARTUR Vai esperando, polícia. SERGIO Não vai ser vergonha nenhuma, Artur. Todo mundo sabe que a tua saúde tá uma merda. Muito tempo no pó. ARTUR Eu tô limpo, cara! Tu tem é inveja por que eu ganhava por mês o que tu não vai juntar nessa tua vida inteira de merda. SERGIO Você acabou, Artur.
(ALVARENGA et al., 2015, p. 32)
“Uma história é tão boa quanto seu vilão, porque um inimigo forte obriga o herói a crescer no desafio” (VOGLER, 1997, p. 103), mesmo que vilão e herói estejam dentro de
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um único personagem. Fato que ocorre quando, segundo Vogler, o protagonista-herói está tomado pela Sombra. Na metade do episódio, o apresentador coloca à luz o crime de Diana, ré confessa. Cria-se assim múltiplas tramas ao envolver cada personagem em um conflito pessoal distinto, que irá refletir em sua postura e imagem perante o grupo. APRESENTADOR (NA TV – CONT’D) E você, Diana. Vamos conhecer a sua história? EFEITO de computação gráfica leva a imagem para Diana dando uma entrevista para o reality. DIANA Parecia um sonho. Ele era carinhoso, fazia eu me sentir a pessoa mais importante do mundo. Mas era muito ciumento. MONTAGEM DE FOTOS. Festa de casamento: Diana e o marido, 20 anos mais velho. Parecem felizes e apaixonados.(...) ENTREVISTADOR(OFF) E ele sabia que você era garota de programa? DIANA Sempre soube. A gente se conheceu assim. Mas eu parei. Quando a gente casou, eu já não saia com mais ninguém. Mas ele achou que era meu dono. Na cabeça dele, é como se ele tivesse me comprado só pra ele. Eu demorei pra entender isso. Imagens de Diana, mais jovem, em fotos sensuais de um site de acompanhantes. DIANA (CONT’D) De repente ele virou um monstro. O monstro era ele, não eu! Eu aguentei muito tempo. Mas aí ele começou a sair com outra garota e -- Se eu não me defendesse era eu que tava morta agora. Ele me disse isso, ele me agredia, me ameaçava. MONTAGEM: reportagem do crime. É um programa em tom sensacionalista. Letreiro indica que são imagens de arquivo da época. (...) Reconstituição em computação gráfica tosca: o casal
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discute no quarto. Jonas dá um tapa na cara da mulher. Diana pega uma arma na gaveta da cômoda e atira na cabeça do marido. APRESENTADOR DO JORNAL (OFF) Segundo o depoimento de Diana Almeida Magalhães, o casal discute no quarto por conta de uma traição do marido. Jonas a agride. Descontrolada, Diana pega uma arma e atira na cabeça do marido, que cai imediatamente. Imagem “real” da câmera de segurança de um elevador: Diana entra com três malas que parecem pesadas. (...) De volta à entrevista do reality, Diana se defende de maneira firme. Está sinceramente emocionada. DIANA A gente nunca sabe quem é de verdade a pessoa que tá na nossa frente. Eu não sou um monstro, eu tava desesperada! Eu tinha que me defender. Quando acaba a mini-bio, há um silêncio denso na sala. Todos encaram Diana.
(ALVARENGA et al., 2015, p. 13-14)
Para Jung, a Sombra não consiste apenas em omissões. Apresenta-se muitas vezes como um ato impulsivo ou inadvertido. Antes de se ter tempo para pensar, explode a observação maldosa, comete-se a má ação, a decisão errada é tomada, e confrontamo-nos com uma situação que não tencionávamos criar conscientemente. Além disso, a sombra expõe-se, muito mais do que a personalidade consciente, a contágios coletivos. (JUNG, 2008, p.165).
Logo na sequencia, Diana tenta humanizar-se perante ao grupo ao justificar seu crime: Ela se vira para a câmera e diz: DIANA Eu não sou uma pessoa ruim, eu jamais... Eu era uma mulher agredida diariamente.. Eu já paguei pelo que eu fiz, eu mereço uma segunda chance. Eu quero que as pessoas me vejam aqui como eu sou de verdade.
(ALVARENGA et al., 2015, p. 14)
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As Sombras não precisam ser totalmente malvadas, mesmo que um crime hediondo seja assumido. Elas também podem ser humanizadas quando ficam vulneráveis. Afinal, matar alguém assim passa a ser uma verdadeira escolha moral, e não apenas um reflexo impensado (VOGLER, 1997, p. 105). Diana, que assim como Dante é construída como personagem estritamente Sombra, na cena 7 também desafia Nando ao mesmo tempo em que tenta humanizar-se ao público e aos olhos do padre:
DIANA Ex-padre? Será que o seu crime é pior que o meu? NANDO (IRÔNICO) Não tem crime sem perdão, se o arrependimento for sincero. DIANA Você acredita mesmo nisso, padre? NANDO “Haverá mais alegria no céu por um pecador que se arrepende do que por noventa e nove justos que não precisam se arrepender”. Diana consegue sorrir. DIANA Eu sofri muito, padre. O padre encara Diana.
(ALVARENGA et al., 2015, p. 17)
No caso de Diana, bem como no do padre Nando, o pecado, o perdão, a dádiva, o castigo, a sinceridade, mais todos os sentimentos sadios e naturais que todos consideram que muitas vezes não deveriam mostrar, encontram-se neste diálogo. “A raiva sadia ou a dor, se empurrada para o território da Sombra, pode acabar virando uma energia perniciosa, que ataca e solapa de maneiras inesperadas” (VOGLER, 1997, p. 106), como a “energia” que levou Diana a matar e esquartejar o próprio marido. Mas que, a todo custo, ela busca a aceitação por parte do grupo e o perdão de um ex-padre que, ele mesmo, esconde um segredo obscuro.
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As sombras podem ser todas as coisas de que não gostamos em nós mesmos, todos os segredos obscuros que não queremos admitir, nem para nós. As características a que renunciamos, ou que tentamos arrancar, ainda sobrevivem e agem no mundo das Sombras do inconsciente. (IDEM, 1997, P. 101)
Em nossa interpretação, cujo recorte nos aponta para a construção do arquétipo da Sombra proposto por Christopher Vogler, vemos que a principal função dramática do apresentador é a de homogeneizar os personagens dentro deste arquétipo: 6 –INT–PAVILHÃO DAS CELAS - DIA Os doze participantes do reality percorrem o corredor das celas, identificando aquela que cabe a cada um deles. Alguns hesitam antes de entrar. APRESENTADOR (OFF) Você daria dois milhões de reais pra alguém que cometeu um crime? Alguém que pode ter feito algo terrível(...) Diana é vista em sua cela no momento em que, de forma metódica, dispõe sobre a mesa uma série de frascos de medicamentos, todos com tarja preta. APRESENTADOR (OFF - CONT’D) E Diana? Será que ela vai aguentar a pressão e conseguir mesmo uma nova chance? CORTA PARA: Nando aparece em sua cela fixando um crucifixo na parede. APRESENTADOR (OFF - CONT’D) E o Nando, então? Um ex-padre! Que mal ele pode ter praticado? (...) Neste instante, a tela é ocupada por um mosaico com imagens das câmeras de vigilância, mostrando os doze participantes em suas celas. APRESENTADOR (OFF – CONT’D) Nas próximas semanas, você vai saber, de verdade, quem é cada um desses homens e mulheres. Isto é Supermax! Um reality como você nunca viu!
(ALVARENGA et al., 2015, p. 15-16)
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A preocupação em fazer jus ao piloto com o gancho para os outros episódios fica claro na última fala do apresentador. Mas, o que fica mais claro ainda no âmbito da construção dos personagens está nesta cena, nas entrelinhas da voz off, junto às imagens dos
personagens
dispostas
em
sequencia
e
separadas
pelos
cortes
secos:
independentemente de suas origens e de sua personalidade, todos ali na prisão Supermax apresentam a face negativa da Sombra e é a partir deste pressuposto que a série irá se desenvolver nos próximos episódios. “Os arquétipos a serem descobertos e assimilados são precisamente aqueles que inspiram, nos anais da cultura humana, as imagens básicas dos rituais da mitologia e das visões” (CAMPBELL, 2007, p. 27). Aqui, a desconstrução de trechos do roteiro do primeiro episódio possibilita uma análise da construção da estrutura mítica do arquétipo da Sombra, presente não somente nos personagens, mas também no cenário, nas ações e nos diálogos, como opção dos autores para, sobretudo, inserir a série Supermax dentro do gênero terror/suspense em que se propõe. Outro grande fator em comum entre os doze personagens da série é que todos são “Ex”, ou seja, são reconhecidos por “terem sido”. Como exemplo, vejamos os citados nos trechos do roteiro: Luisão é ex-lutador, Nando é ex-padre, Bruna é ex-enfermeira, Sergio é ex- policial, Diana é ex-garota de programa, Artur é ex-jogador de futebol. O fato de estarem em um reality-show proporciona visibilidade e uma segunda chance, já que todos deixaram de ser o que eram em virtude de um crime por eles cometido. É interessante perceber que todos agora são somente criminosos confinados e neste contexto colocam à luz o lado Sombra, como o que ocorre com participantes de um reality-show: são expostos até esquecerem que estão sendo vistos. Tanto a oferta de um novo gênero na Rede Globo, quanto a estratégia de difusão – onde a grade da TV dialoga com a exibição streaming – foi pensada visando o público jovem que migra da televisão para as mídias digitais. Como resultado, a audiência de Supermax é baixa dentro dos padrões da emissora, com uma média de 9 pontos no Ibope. No entanto, o site de notícias G1 (2016, Tecnologia e Games, s/p) publica que a série “foi uma experiência vitoriosa” no que se refere à plataforma digital Globo Play, e que: “o espectador foi fisgado pelo consumo em sequência dos capítulos de Supermax, a primeira
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série da Globo disponível no digital antes da exibição na TV.” O resultado do Ibope hoje pode ser frágil já que a audiência fragmenta-se cada vez mais em virtude dos meios digitais. Em relação ao conteúdo, o jovem espectador vai também em busca de personagens e de gêneros televisivos que se aproximam mais das séries americanas de suspense. Os personagens-sombra são fundamentais para conduzir narrativas do gênero, independente da plataforma de exibição.
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DOSSIÊ A construção do arquétipo da Sombra no roteiro da série Supermax Bartira Bejarano Campos
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Terapia midiática Um lugar entre a produção e recepção de Sessão de Terapia Heitor Leal Machado1 Universidade Federal do Rio de Janeiro Resumo: O artigo apresenta o percurso metodológico e os resultados alcançados em nosso estudo sobre a série Sessão de Terapia (2012-2014). Consideramos a mídia parte irredutível da sociedade, da cultura e da experiência moderna, de maneira que até mesmo os mais íntimos desejos e emoções das audiências podem ser vivenciados no ambiente midiático. Tal interação resulta na criação de fortes vínculos emocionais, inclusive em um processo aqui chamado de Terapia Midiática, capaz de alterar as maneiras de sentir e perceber a vida. Para entender melhor este fenômeno, utilizamos como inspiração as dimensões teóricometodológicas da Análise Televisual associadas a um estudo de recepção. Palavras-chave: Sessão de Terapia; Televisão; Ficção Seriada; Audiências. Abstract: The article presents the methodological path and the results achieved in our study about the TV series Sessão de Terapia (2012-2014). We consider the media as an entrenched part of society, culture, and modern experience, in a manner that even the most intimate emotions and desires of the audiences can be encountered in the media environment. Such interaction results in the creation of strong emotional bonds, including the process called here as Media Therapy, capable of altering the ways to feel and realize life itself. To better understand this phenomenon, we use as inspiration the theoretical-methodological dimensions of Televisual Analysis associated with a reception study. Key words: Sessão de Terapia; Television; Serial Fiction; Audiences. Doutorando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura na Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO/UFRJ), linha de Mídias e Mediações Socioculturais, sob orientação da Prof. Dra. Beatriz Becker. É Mestre pelo mesmo PPGCOM e bacharel em Cinema pela UNESA. E-mail: heitorlmachado@gmail.com. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/2080136547542571. 1
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O teaser anuncia: “O que está por trás das palavras, dos gestos, do que não é dito? Todas as noites, um terapeuta procura desvendar os segredos e os dilemas de seus pacientes"2. A narração na voz do diretor Selton Mello sintetiza os episódios de Sessão de Terapia (2012-2014), seriado adaptado do original israelense com várias versões locais3. Ao longo de sua exibição, a produção brasileira recebeu elogios da crítica e reuniu um público fiel, que muitas vezes “fazia terapia” ao assistir o desvelar dos segredos de quatro pacientes por temporada, um em cada dia da semana. Porém, nas sextas-feiras, o paciente era o próprio terapeuta Theo Cecatto (Zécarlos Machado), em sessões com sua supervisora Dora (Selma Egrei). A série tem um formato singular cujo enredo se desenvolve “num consultório de psicanálise”4. Busca, assim, representar uma sessão terapêutica, oferecendo ao telespectador um programa com potencial de questionar e “reorganizar” a consciência e identidade do sujeito por meio de uma experiência de ordem sensível, como propõe a própria psicanálise (SODRÉ, 2006, p. 37). Considerando as atuais dinâmicas de comunicação e a mídia como parte irredutível dos processos socioculturais (SODRÉ, 2006; DEUZE, 2012), assumimos que mídia e vida estão interligadas de maneira tão expressiva que algumas das experiências emocionais mais íntimas, como sessões de terapia, podem ser mimetizadas no ambiente transmidiático5. Tal processo de interação entre uma obra e sua audiência, aqui chamado de Terapia Midiática, resulta em fortes vínculos emocionais que alteram as maneiras de perceber e sentir a vida. Neste trabalho, apresentamos o percurso metodológico e os resultados alcançados em um estudo da 3ª temporada de Sessão de Terapia (2012-2014), desenvolvido primeiramente como dissertação de Mestrado no Programa de Pós-Graduação em Disponível em: <http://gnt.globo.com/series/sessao-de-terapia/videos/3375265.htm>. Acesso em 31 jul. 2017. BeTipul (2005-2008) foi criada pelo produtor, diretor, roteirista e também terapeuta Hagai Levi. Posteriormente, o formato foi adaptado em muitos países, como Argentina, Rússia, Japão e Itália. In Treatment (2008-2010), a versão norte-americana produzida pela HBO, é a mais famosa. 4 Disponível em: < http://gnt.globo.com/series/sessao-de-terapia/ >. Acesso em 31 jul. 2017. 5 A transmidiação pode ser compreendida como toda produção de sentido baseada na “reiteração, pervasividade e distribuição em distintas plataformas tecnológicas (...) de conteúdos associados cuja articulação está ancorada na cultura participativa estimulada pelos meios digitais” (FECHINE; FIGUEIRÔA; CIRNE, 2011, p. 27). 2 3
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Comunicação e Cultura da UFRJ (ECO/UFRJ). A pesquisa propõe uma reflexão sobre as formas de organização dos dos5 sentimentos nas relações estabelecidas entre a produção e o consumo dos conteúdos televisivos. Para isso, combina uma Análise Televisual (BECKER, 2012, 2014) dos últimos 35 episódios da série a um estudo de recepção, feito a partir dos comentários compartilhados pelo público na página oficial do Facebook 6entre 04 de agosto e 21 de setembro de 2014, período em que foi exibida pelo canal pago GNT.
Mídia e cultura terapêutica Se diversas experiências sociais, culturais e afetivas são vivenciadas na mídia, podemos também crer em um espaço midiático que privilegia as práticas terapêuticas, corroborando com as percepções de Furedi (2004) e Illouz (2008, 2011) sobre esta forma de cultura. É característica da contemporaneidade, e reflete a influência de um éthos terapêutico na formação da imaginação cultural que prioriza determinadas formas de trabalhar a emoção e a subjetividade em prol de um bem-estar individual. Antes circunscrito aos consultórios especializados, hoje o terapêutico está presente e diluído em diversas áreas da ação humana. É uma prática discursiva entre o científico, a cultura de elite e o popular, e que, ao longo dos anos, conformou um extenso léxico capaz de significar e organizar a experiência. Expressões como stress, trauma e autoestima se tornaram corriqueiras e designam inúmeras perturbações de ordem psíquica (FUREDI, 2004). Expandido, o terapêutico se tornou uma forma de pensar que molda uma série de percepções públicas sobre variadas questões (ibid., p. 22). Por este motivo, podemos afirmar que o terapêutico é, em síntese, todo o corpo de afirmações proferidas por psicólogos e especialistas, e o conjunto de textos por meio dos quais estes desempenham um papel social (ILLOUZ, 2008, p. 15). Na mídia, isto é percebido em diferentes gêneros e formatos, de filmes do Woody Allen (ILLOUZ, 2008) até talk shows como Casos de Família (FREIRE FILHO; CASTELLANO; FRAGA, 2008). 6
Disponível em: < https://pt-br.facebook.com/SessaoDeTerapia >.
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Para melhor identificar como o terapêutico atravessa a produção e a recepção de Sessão de Terapia, definimos suas quatro principais características a partir das contribuições de Furedi (2004), Freire Filho (2010, 2011) e Illouz (2003, 2008). São elas: 1) Verbalização do diálogo, pois o discurso terapêutico redefine as maneiras de comunicar ao introduzir um modelo de comportamento marcado pela comunicação verbal; 2) Ordem da felicidade, marca que sugere aos indivíduos uma noção de bens imateriais, como o bem-estar e a felicidade; 3) Sugestão de autoajuda, prática que valoriza a saúde emocional; as enunciações de especialistas são articuladas na mídia como espécie de receituário constituído por instruções sobre o que é saudável, aceito ou não pela sociedade; 4) Publicização da intimidade, característica que desloca a intimidade dos indivíduos do privado para o público. Narrar e problematizar a vida cotidiana se torna algo comum, especialmente no ambiente midiático. Estes são aspectos da cultura terapêutica que estimulam o indivíduo a organizar suas próprias emoções, agir e interpretar o mundo com o objetivo de superar suas dificuldades e alcançar um ideal de felicidade. Instituído como parte do senso-comum, do que é social, cultural e institucionalmente aceito (SILVERSTONE, 2002), o terapêutico apresenta nuances que podem passar despercebidas no decorrer das práticas discursivas midiáticas, as quais sugerem o bem-estar individual como parte do imaginário coletivo contemporâneo. Nesse contexto, a televisão desempenha um papel relevante, pois acentua estas marcas com diferentes combinações de códigos verbais e não-verbais. Na teledramaturgia, o terapêutico surge com frequência, principalmente por meio da incorporação de consultores/especialistas na elaboração dos conteúdos 7 . As ficções seriadas norte-americanas costumam trazer estes personagens para dentro das narrativas; é o caso de produções como Cheers, Frasier, Os Sopranos e Arrested Development. Já as telenovelas inserem os mais variados transtornos psiquiátricos nas tramas, embora nem
Especialista em Serial Killers, Ilana Casoy é inspiração para Luana Piovani em nova série da Globo. Disponível em: <http://cartaodevisita.r7.com/conteudo/7389/especialista-em-serial-killers-ilana-casoy-e-inspiracaopara-luana-pio vani-em-nova-serie-da-globo >. Acesso em 31 jul. 2017. 7
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sempre a audiência se comporte em acordo com as expectativas dos produtores8. A linguagem singular de Sessão de Terapia repercutiu de maneira muito positiva frente ao público. O seriado acabou estabelecendo uma relação estreita com sua audiência, a qual, por sua vez, também buscava uma determinada experiência com a televisão. Afinal, não são apenas as formas de produzir e circular que variam e se transformam, mas também as formas de ler o conteúdo televisivo. Certamente a série se propôs a entreter, mas, além disso, ofereceu um ambiente para propor soluções aos conflitos internos do público, ainda que em sintonia com a cultura terapêutica. Como veremos a seguir, por meio do consumo de um produto televisivo e de diferentes processos de interação, estes indivíduos puderam estabelecer um tipo de contato afetivo que, segundo os próprios, ajudou na resolução de questões íntimas, operando como uma espécie de terapia pela TV.
Uma leitura crítica de Sessão de Terapia Nesta etapa, buscamos identificar as principais características de linguagem de Sessão de Terapia e seus modos de construir sentidos sobre a vida social. Para isso, buscamos inspiração na Análise Televisual (AT), metodologia desenvolvida pela professora e pesquisadora Beatriz Becker, a qual auxilia a compreender e interpretar os sentidos dos textos audiovisuais, construídos pelas combinações de diferentes códigos e estratégias enunciativas (BECKER, 2012, 2014). Reunindo referências da Análise do Discurso9, dos Estudos Culturais e da Media Literacy, a AT se desenvolve em três etapas Em Passione (2010), o autor Silvio de Abreu introduziu na trama Gerson (Marcello Antony), uma personagem com um segredo indizível: era um voyeur, viciado em observar práticas sexuais pouco convencionais. O segredo foi desvelado pelo seu psiquiatra, Dr. Flávio Gikovate, um profissional convidado pelo autor que, “além de imprimir grande verdade nas cenas, ainda traz um olhar diferente que não acredito que um ator pudesse trazer”. Tal revelação, no entanto, decepcionou o público e a crítica, provocando reclamações e piadas na web. Mais em <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/826091passione-leva-diva-de-psiquiatra-para-centro-da-historia.shtml>. Acesso em 31 jul. 2017
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Em acordo com as contribuições da Semiologia dos Discursos Sociais, três postulados servem como guia relevante na AT: o da Semiose Infinita, o da Economia Política do Significante e o da Heterogeneidade Enunciativa (PINTO, 1995). O postulado da Semiose Infinita pressupõe que todos os acontecimentos sociais resultam em produção de sentidos e que todo produto cultural é um discurso. O segundo postulado, o da
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complementares: a contextualização das condições de produção da obra a ser analisada, a análise televisual e a interpretação dos resultados. A segunda fase, a Análise Televisual propriamente dita, compreende uma análise quantitativa e outra qualitativa, em que se aplicam seis categorias básicas e três princípios de enunciação. As seis categorias da análise quantitativa são: Estrutura do Texto, que avalia os elementos do texto audiovisual; Temática, referente às discussões privilegiadas no mesmo texto; Enunciadores, para identificar os atores sociais e como atribuem sentido à narrativa; Visualidade, para "ler" as imagens e analisar a composição do cenário, figurinos e demais recursos gráficos; Som, correspondente às trilhas, ruídos e elementos sonoros; e Edição, que compreende a forma como o texto é montado. Já a análise qualitativa é baseada em três princípios de enunciação: o primeiro, a Fragmentação, corresponde ao caráter da programação televisiva, sempre organizada em blocos dispersos pela grade. O segundo princípio, a Dramatização, avalia a presença da matriz melodramática, que envolve emocionalmente o espectador através de determinadas técnicas e recursos audiovisuais. O terceiro é a Definição de Identidades e Valores, que identifica como o produto julga e qualifica determinados problemas e conflitos. A Análise Televisual conta, ainda, com o auxílio das características do discurso terapêutico previamente apresentadas e com as contribuições do Obitel Brasil/UFSCar10, que também explorou a recepção da última temporada de Sessão de Terapia (MASSAROLO et al., 2015). Economia Política do Significante, tem origem na Antropologia e considera os acontecimentos culturais através da lógica de produção, circulação e consumo, formando um mercado simbólico em que a construção de sentido dominante acontece no e pelo discurso. Finalmente, o postulado da Heterogeneidade Enunciativa auxilia a relativizar “o poder da mídia frente à hegemonia do receptor, ao propor que todo o discurso é composto por inúmeras vozes, cuja consciência e controle o enunciador só detém parcialmente” (BECKER, 2012, p. 240). O Observatório Íbero-Americano da Ficção Televisiva, ou Obitel, contribui há mais de dez anos nas pesquisas de televisão. Suas publicações anuais e bienais reúnem os resultados das metodologias aplicadas e os registros quantitativos, as tendências e estratégias utilizadas no mercado televisivo. É realizado por diversos pesquisadores distribuídos nos países integrantes (Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Espanha, Estados Unidos, México, Peru, Portugal, Uruguai e Venezuela). A pesquisa “Comunidades de fãs e suas redes discursivas: um estudo sobre as séries ficcionais ‘Sessão de Terapia’ e ‘O Negócio’” foi realizada entre 2014 e 2015 pelo Grupo de Estudos sobre Mídias Interativas em Imagem e Som (GEMInIS), coordenado pelo professor João Carlos Massarolo, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Para mais informações sobre o grupo, acessar: <http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/1519774412251748>. 10
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O seriado foi produzido por Roberto D'Ávila e teve 115 episódios sem intervalos comerciais11, organizados em três temporadas veiculadas pelo GNT, canal da Globosat com direcionamento para o público feminino. Durante o período de exibição, o programa foi ao ar de segunda à sexta-feira, às 22h30, com reprise aos sábados e domingos em forma de maratona, e era também disponibilizado na plataforma de tv-everywhere do Canal, o GNT Play12. Como a pesquisa se propôs a investigar o processo de recepção da obra a partir dos comentários publicados no Facebook, fizemos apenas a Análise Televisual da 3a e última temporada, exibida entre 04 de agosto e 21 de setembro de 2014. Uma novidade desta temporada de Sessão de Terapia foi seu roteiro totalmente inédito, posteriormente incorporado ao formato narrativo do seriado, se tornando uma franquia de mídia (MASSAROLO et al., 2015, p. 159). Por questões culturais e de audiência, a produção local deu ênfase à relação familiar de Theo fazendo “uma adaptação bastante agressiva, no sentido de transformar os personagens e a literatura em personagens brasileiros, uma coisa que fale com o nosso público” (D’AVILA, 2015 apud MASSAROLO et al., 2015, p. 158). Esta diferença é perceptível quando se compara a versão brasileira à americana, na qual, por exemplo, os filhos do terapeuta Paul Weston (David Byrne) pouco aparecem. O enredo dá continuidade aos acontecimentos das temporadas anteriores e traz personagens conhecidas pelo público. Já divorciado, Theo tira um pequeno período de férias para realizar o sonho de velejar e retorna decidido a continuar sua prática clínica e se reaproximar da família. No entanto, o terapeuta descobre por sua filha Malu (Mayara Constantino) que Rafael (Johnnas Olivas), seu filho mais velho, está passando por problemas com drogas. Como nas temporadas anteriores, cada dia da semana é dedicado a um paciente. Nas segundas, Theo atende Bianca (Letícia Sabatella), que relata uma vida marcada pela violência do marido, Tadeu (Nicolas Trevijano). O enredo sofre uma virada com a revelação de que Bianca é portadora de um grave transtorno psiquiátrico. As terças são de Diego, levado ao consultório por Neusa (Ondina Clais Castilho), espécie de governanta 11 12
Apesar da ausência de comerciais, o programa era patrocinado por empresas como Vivo, Nívea e Unilever. Disponível em: <http://globosatplay.globo.com/gnt/>.
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que o criou após a morte da mãe. De família rica, Diego é criativo e inteligente, mas começa a beber para chamar a atenção do pai, Frederico (Marco Antônio Pamio), que possui outra família e desconfia da própria paternidade. Felipe, o paciente das quartas, é o único herdeiro de uma grande empresa, administrada por Carmen, que controla a vida do filho. Felipe está noivo de Nicole, mas vive há três anos um relacionamento homossexual com Guto (Rafael Primot). Milena, às quintas, é uma personagem conhecida do público; viúva de Breno, personagem da 1a temporada, ela procura Theo e depois se revela portadora de um raro tipo de Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC). Nas sextas, diferente das outras temporadas, Theo faz uma supervisão em grupo coordenada por Evandro (Fernando Eiras), psicólogo famoso que está no Brasil para oferecer um curso na Universidade de São Paulo (USP). Ele convida, além de Theo, Guilherme (Celso Frateschi), psicólogo e escritor famoso conhecido de Theo da faculdade, e Rita (Camila Pitanga), uma jovem terapeuta renomada que atende na clínica de Guilherme, mas está insatisfeita com o trabalho e o relacionamento dos dois, mantido em segredo e revelado ao longo dos episódios. No meio da temporada o grupo é desfeito, e Theo retorna para três últimas sessões com Dora, enquanto se envolve com Rita, agora solteira. Para a análise dos 35 episódios da temporada utilizamos a plataforma oficial do canal, o GNT Play, parte do Globosat Play, serviço oferecido aos assinantes da Globosat de diversas operadoras e que pode ser acessado por computadores e aplicativos de diferentes dispositivos. A plataforma, inclusive, era indicada pela própria página no Facebook 13. Seguindo o percurso metodológico proposto, concluímos que toda a linguagem de Sessão de Terapia é simples e, ao mesmo tempo, complexa. Por meio das marcas da superfície do texto televisivo, observamos como a simulação do processo terapêutico é sugerida ao público; uma intencionalidade percebida na própria regularidade diária, que simula o
Para assegurar a ausência de discrepâncias entre o conteúdo exibido na TV e o disponibilizado na plataforma, gravamos os cinco últimos episódios da temporada. Quando comparados, não apresentaram diferenças, mantendo as características da exibição original. Porém, é importante reconhecer que as novas plataformas, mesmo facilitando os estudos televisivos, não permitem perceber as variações da exibição original, como é o caso do episódio 13, exibido em 20 de agosto de 2014. O episódio seria de Felipe, mas por um erro de programação foi exibido o do dia seguinte, de Milena. Atualmente a 3ª temporada se encontra indisponível.
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pacto terapêutico entre Theo e seus pacientes por meio do poder organizacional da TV. A cada episodio, são articuladas diferentes instâncias narrativas, com arcos independentes para cada paciente, enquanto os acontecimentos da vida do terapeuta estabelecem o núcleo evolutivo que une os episódios ao longo das temporadas. Com episódios de mais ou menos 25 minutos, Sessão de Terapia não possui intervalos comerciais e se constitui pelos blocos de recapitulação, introito, abertura, sessão de terapia e créditos. Seu texto é orientado pela repetição de acontecimentos anteriores relatados pelos pacientes em relação aos acontecimentos presentes, que podem ou não se desenrolar dentro do consultório de Theo. Com isso, a série incorpora elementos dos seriados e das telenovelas, e são raras as elipses, flashbacks ou flashforwards, pois tudo se desenvolve em sequência cronológica. É uma narrativa linear e, ao mesmo tempo, fragmentada, característica que se revela, principalmente, na construção de arcos narrativos em um dia especifico da semana, o que possibilitaria o telespectador a acompanhar apenas um paciente sem a necessidade de assistir a todos os episódios (MASSAROLO, et al., 2015). Como toda a estrutura textual do seriado é organizada pelos diálogos entre as personagens, isto o torna extremamente verbal, em acordo com as marcas do discurso terapêutico sistematizadas. Há, ainda, uma grande multiplicidade de enunciadores, pois ao longo da temporada são introduzidas personagens apenas citadas pelos pacientes, como Guto, namorado de Felipe, ou Tadeu, marido de Bianca, o que torna o elenco e as vozes mais plurais. Mesmo assim, tudo é organizado pelas vozes dos especialistas, em um jogo com recortes precisos das posições discursivas, que acabam evidenciando o terapêutico como a solução para os conflitos. Por outro lado, há também a indicação de uma forte presença do outro nas práticas das personagens, pois Theo não pode lidar com seus conflitos sem a ajuda de Dora ou outro terapeuta que supervisione sua prática, sempre no limiar do que um profissional pode ou não fazer em determinadas situações. Embora discuta uma série de assuntos, esta temporada de Sessão de Terapia se alterna entre quatro núcleos temáticos mais ou menos rígidos: Prática Terapêutica, Transtornos Psiquiátricos, Família e Homossexualidade. O primeiro é o basilar, responsável
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por definir a estrutura e o enquadramento do seriado, que representa os acontecimentos de uma suposta sessão de terapia. Relatos, falas, repetições, lembranças e interpretações estruturam o “miolo” do episódio, guiado pelo jogo discursivo entre especialista e paciente que escancara a intimidade do consultório de terapia. Já os Transtornos Psiquiátricos refletem os casos abordados, como o TOC de Milena, o Transtorno de Personalidade Limítrofe de Bianca, o alcoolismo de Diego e o vício de Rafael, que chega a ser internado e problematiza a questão da internação em casos de dependência química. A terceira temática, Família, é importante, pois todos os arcos revolvem o seio de famílias de classe média. Além disso, Theo deve não só atuar como especialista, mas como pai, equilibrando a vida profissional e familiar, as quais se desenrolam em um mesmo espaço simbólico. A última temática, Homossexualidade, se vincula à trama de Felipe, que vive um dilema entre o relacionamento com Guto e sua família. A estética de Sessão de Terapia é amparada por recursos visuais que conotam seriedade e conferem credibilidade ao especialista. Visualmente, é um seriado de cores sóbrias e raras cenas externas, com figurinos que acompanham o perfil das personagens e os identificam como pessoas de grupos sociais economicamente favorecidos, de classes média ou alta. Enquanto isso, parte significativa do texto é construída por planos, contraplanos e closes, com movimentos pontuais que aproveitam a profundidade de campo oferecida pelo cenário, valorizado como consultório e ambiente doméstico, que também abriga os conflitos da família de Theo. Já a luz sofre alterações no decorrer das sessões, marcando o tom dos relatos, a passagem do tempo e as condições climáticas. Porém, o som decepciona14: algumas vezes as vozes parecem abafadas ou entram em O GNT Play não oferece legendas aos usuários, impossibilitando a assistência do seriado por deficientes auditivos. Pode ser que a exibição original, na TV, oferecesse Closed Caption aos telespectadores, mas um comentário publicado em 2012 por Malu Dini, antes da estreia do programa, indica que, na época, o serviço não era oferecido. A espectadora diz que: “Eu estou ansiosa pra ver esta série! Vi a première na GNT e estão de parabéns pela direção! A única coisa que me deixa receosa é que eu sou deficiente auditiva e necessito de legenda para entender - minha paixão por séries internacionais veio por meio das legendas, já que foi a única forma de compreendê-las. Gostaria de saber se terá a opção de ativar o Closed Caption no seriado. Obrigada!”. A página não respondeu o comentário. O site Crônicas da Surdez publicou também, em 2011, uma reclamação sobre a ausência do serviço no canal. Disponível em: <http://cronicasdasurdez.com/falta-de-legendaclosed-caption-no-gnt-e-na-rbstv/>. Acesso em 31 jul. 2017. 14
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conflito com a trilha sonora composta por Plínio Profeta. Mas há uma boa mixagem, que dá maior profundidade estética à obra ao incorporar diferentes elementos sonoros, como o barulho de helicópteros, latidos de cachorros e buzina de carros. Assim, a série busca diferentes formas de articular a dramaticidade televisiva e os diferentes códigos audiovisuais. O silêncio, por exemplo, se torna um recurso importante, uma vez que faz parte do processo comunicativo e da ação discursiva do seriado. Aliado a ele, o close capta as expressões dos atores que, muitas vezes, apenas trocam olhares. Em geral, o ritmo do seriado é lento. A subversão da ordem televisiva, que busca sempre modos mais rápidos e inovadores de mostrar, dizer e seduzir, faz com que a série se desenvolva em poucas cenas, com raros deslocamentos geográficos ou temporais. Mas há cenas mais dinâmicas, como a última sessão de Bianca15. Confontrada por Theo, a pacienteentra em crise e destrói parte do cenário. A reação da personagem é enfatizada pelo uso da câmera na mão para acompanhá-la pelo espaço, além de cortes rápidos e planos aproximados. Nota-se, com frequência, a presença da matriz melodramática na construção do texto. Todas as narrativas giram em torno de conflitos familiares e a série oferece uma percepção do comportamento humano ancorada em uma perspectiva terapêutica onde o que está em jogo é o saudável ou não. O excesso, um dos recursos do melodrama mais atribuído às novelas, é mascarado pelo formato do programa, que convalida o transbordar das emoções. A caixa de lenço entre Theo e seus interlocutores deixa claro que a sala/consultório é um espaço legítimo para as emoções aflorarem sem qualquer julgamento. Este jogo discursivo acontece através da Prática Terapêutica, que opera como um mecanismo que intensifica a dramaticidade, mas também a oculta ao esmaecer a fronteira entre realidade e ficção enquanto reitera o saber terapêutico. A intensificação da verossimilhança se dá, por exemplo, na articulação de conceitos da área. Busca, assim, atenuar qualquer presença mais expressiva do melodramático que possa ameaçar o
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Episódio 31 – Bianca – Temporada 07.
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seriado frente ao público. No diálogo abaixo16, isto se nota quando Theo explica à Felipe a compreensão do Complexo de Édipo pela psicanálise: FELIPE: Não sei, é muito incômodo pensar nesse negócio de Freud que todo gay tem Complexo de Édipo. Me dá muita aflição pensar que uma coisa tem a ver com a outra. THEO: Que coisa? FELIPE: Do Édipo matar o pai, casar com a mãe sem saber o que está fazendo. THEO: Mas quando Freud associa essas duas coisas ele não está falando em matar o pai. FELIPE: Ele está falando o quê? THEO: Eu vou te explicar assim, de uma maneira bem simplificada, tá? Por volta dos 4 ou 5 anos, é comum a criança ficar muito apegada a mãe, sentir ciúme do pai e até brigar com ele por ela. E quando o pai não consegue se impor diante do filho, a criança vai se apossando cada vez mais da mãe e se afastando do pai. Por isso, a criança pode não ter uma identificação paterna, e só interiorizar as características femininas, da mãe. Isso pode levar a criança a ter o mesmo gosto da mãe; o gosto por homens. FELIPE: Então não tem nada a ver com, sei lá, querer ficar com a mãe? THEO: Você tem medo de sentir desejo pela sua mãe? FELIPE: Você está bem louco, Theo. Como assim? Cê acha que.... Não, nunca. Nunca quis transar com a minha mãe. THEO: (Risos) O que eu quis dizer é que a relação mãe e filho, ela é muito sensorial, física, prazerosa. Qual o primeiro prazer? Ser amamentado. Pelo o que você me conta, a sua mãe sempre foi uma presença marcante, de repente, ela via você como uma extensão masculina dela [...].
Ao mesmo tempo, também há críticas à própria cultura terapêutica. Rita, por exemplo, critica a forma como Guilherme conduz seu trabalho qualificando a clínica do terapeuta como um “supermercado”, se referindo ao grande número de pacientes que entram e saem e à “comercialização” da prática terapêutica17. Assim, o seriado explicita como define seus valores reproduzindo em seu enredo certas noções que qualificam a
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Episódio 13 – Felipe – Sessão 03
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Episódio 33 – Felipe – Sessão 33.
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família e a experiência contemporânea. Porém, o texto promove a ordem da felicidade e oferece sugestões ao público com uma linguagem pedagógica capaz de ser entendida por ampla maioria, reforçando o saudável. Isto acontece, principalmente, por meio das personagens Bianca e Milena, portadoras de transtornos mentais graves. No trecho abaixo18, é possível perceber como a obra é didática e amoral, e reforça os limites entre o que pode ser patológico ou não: THEO: Sim, mas você passa o dia fazendo faxina. MILENA: Ah, o dia não. Eu limpo, eu faço uma limpeza pesada de manhã. Depois à tarde eu dou uma geral. E a noite, dependendo da bagunça do Vitor, eu dou uma arrumadinha. Por isso que eu não tenho mão de madame, Theo. Eu uso álcool 90. É isso que desinfeta. THEO: Mas deve ser muito cansativo fazer isso todos os dias. Você não pode se dar folga nem um dia? [...]. E mesmo sem a bagunça dele você continua limpando? MILENA: Pelo menos eu tenho o que fazer. THEO: Talvez você esteja fazendo faxina não só como uma forma de se ocupar, mas também como uma forma de aplacar uma enorme ansiedade. Alguns sentimentos precisam vir à tona, e quando você se mantém em atividade, esses sentimentos parecem que se dissipam. Sabe qual é o problema, Milena? É que mais cedo ou mais tarde esses sentimentos vão voltar ainda mais intensos. Isso vai exigir de você um esforço ainda maior para ter a sensação de que esses sentimentos estão sobre controle. Isso vai te deixar exaurida, esgotada. É preciso que você entenda que isso é um ciclo vicioso, e que esse comportamento só vai gerar mais ansiedade e é bem possível que essa ansiedade se intensifique cada vez mais. [...] Você pode estar desenvolvendo um Transtorno Compulsivo Obsessivo, o TOC. Eu sei que você pode não ter tido uma experiência boa anteriormente, mas eu acredito que fazer uma consulta com um bom psiquiatra pode ser um passo importante no seu processo terapêutico. MILENA: Eu não preciso de um psiquiatra, Theo.
Enfim, todas as narrativas revolvem o seio de famílias de classe média e a ênfase nas emoções não dá margem para que questões econômicas, sociais e de representatividade sejam abordadas. Rita, por exemplo, é a única personagem negra da temporada, enquanto Felipe se encaixa no padrão ideal de homossexual: jovem, branco,
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Episódio 09 – Milena – Sessão 02.
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intelectualizado, bonito e de classe média, características que nem todos os indivíduos gays possuem e que podem promover discriminações por procedência geográfica, cor de pele, classe social, e outras variáveis diante da intolerância de alguns indivíduos (BENÍTEZ, 2007, p. 135). Tal perfil reforça que, para ser aceito pela sociedade, o homossexual deve atender à determinados padrões de beleza, inclusive para despertar o desejo e o interesse da audiência19. Com isso, o seriado não aproveita seu potencial crítico e político para promover maiores debates sobre temas controversos e necessários, como a legalização das drogas e a identidade de gênero. Ou seja, há uma limitação nas contextualizações dos problemas tratados, pois tudo é interpretado e solucionado pela prática terapêutica. Contudo, nesse contexto, Sessão de Terapia não deixa de ser inovador. A obra incorpora elementos audiovisuais distintos e os articula através de uma linguagem diferenciada, que busca subverter o ritmo acelerado e fragmentado da TV para propor um momento de reflexão ao público. A recusa de artifícios comuns da linguagem televisual, como o flashback, exige que todo o texto seja sustentado pelos diálogos das personagens. Em tempos em que a ênfase comunicativa se dá pela imagem, o seriado vai na direção contrária, e torna a palavra o elemento primordial de um programa televisivo. Através da Análise Televisual, foi possível desconstruir os complexos códigos verbais e não-verbais que caracterizam os modos de dizer, mostrar e seduzir (PINTO, 1995) de Sessão de Terapia. Constatamos, assim, que a obra se esforça em oferecer ao telespectador uma Terapia Midiática; isto é, um processo comunicativo que busca simular o contrato de prática terapêutica na e pela mídia, e que propõe ao espectador um momento de reflexão sobre a própria conduta, além de ilustrar resoluções para diferentes conflitos e sugerir uma organização emocional pautada pelo gerenciamento das emoções como forma de alcançar a felicidade e o bem-estar, o que, ao mesmo tempo, também padroniza certas condutas e práticas sociais.
Gays de Império são os homens mais desejados pelas mulheres, diz autor. Disponível em: <http://noticiasdatv.uol.com.br/noticia/novelas/gays-de-imperio-sao-os-homens-mais-desejados-pelasmulheres-diz-autor-4620>. Acesso em 31 jul. 2017. 19
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A recepção de Sessão de Terapia Antes do estudo de recepção, fizemos uma breve pesquisa sobre os índices de audiência utilizando notícias e informações coletadas pelo Obitel/UFSCar (MASSAROLO et al., 2015), pois o GNT não divulga os números oficiais. Em números absolutos, só foi possível contabilizar os do GNT Play, aproximadamente 140 mil views 20 . Alguns pesquisadores afirmam que o arco de Bianca, por ter mais visualizações, indicaria o uso da plataforma pela audiência para construir a própria narrativa, acompanhando os arcos dos pacientes favoritos de forma independente (MASSAROLO et al., 2015, p. 168-169). Porém, em nossa análise dos números de visualizações individuais, constatamos que apenas o primeiro episódio, de Bianca, teve mais views. Na época, algo em torno de 16 mil, enquanto todos os outros 34 episódios marcavam entre 3 a 6 mil, indicando que mais usuários assistiram apenas à estreia, e não necessariamente acompanharam ou fragmentaram a estrutura do seriado. Nesse contexto, isto revela como os indicadores para medir as audiências ainda são insuficientes (BECKER, 2014; MASSAROLO et al., 2015), o que exige a flexibilização de propostas teórico-metodológicas capazes de auxiliar nos estudos de recepção. A página oficial do Sessão de Terapia no Facebook foi um dos poucos espaços de maior interação entre o público e a obra. Porém, sempre por opções pré-determinadas, como curtir, compartilhar ou comentar, atividade que exige uma mínima produção discursiva
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. Esta é uma plataforma bastante complexa, pensada por seus
desenvolvedores como uma rede de informação com grande potencial comercial, mas compreendido por seus usuários como uma rede social. E, apesar de apresentar discrepâncias entre os números de comentários mostrados e coletados, foi nela que constatamos maior atividade dos interagentes22 com a obra, motivados pelas publicações Algo em torno de 2 pontos no Ibope. Em 2015, 1 ponto no Ibope da TV aberta equivalia a, aproximadamente, 67 mil domicílios na Grande São Paulo. Disponível em: < goo.gl/2xpzSy >. Acesso em 31 jul. 2017. 21 No Facebook, a sessão de comentários de cada publicação funciona como um espaço de interação discursiva espontânea entre a obra, representada pela página institucional, e múltiplos atores, a maioria parte da audiência. 22 Na era da convergência e da cultura participativa, os consumidores de mídia podem se tornar 20
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da própria página. Por isso, dividimos esta etapa em dois momentos distintos: primeiro avaliamos a circulação da série no ambiente transmidiático com a ajuda das postagens compartilhadas pela própria página, para depois, a partir dos comentários coletados destas publicações, investigar como é a interação do público com a obra e quais são os sentidos produzidos, interpretados e em circulação. Utilizamos as contribuições do Obitel Brasil para analisar as 85 publicações, postadas durante o período de exibição da 3ª temporada. O Observatório faz um relevante trabalho de monitoramento anual de todo o conteúdo ficcional exibido no país e desenvolveu um protocolo metodológico para investigar como as telenovelas circulam e estabelecem interações com as audiências no ambiente transmidiático. Conforme sugerido por esta metodologia, optamos pela análise de um espaço habilitado que promove o engajamento da audiência através de determinadas estratégias de produção, ainda que não necessariamente ofereçam desdobramentos narrativos23. Como Sessão de Terapia tem poucos derivados24, identificamos apenas 04 estratégias utilizadas, de modo que as 85 publicações postadas pela página oficial no Facebook foram classificadas entre: 37 conteúdos de antecipação, adiantando ao espectador informações sobre o episódio do dia; 02 conteúdos de recuperação, para promover o resgate dos episódios no GNT Play; 02 remixagens, resultado da apropriação e ressignificação do conteúdo original em algo interagentes; isto é, aqueles que agem com o outro (PRIMO, 2003, p. 8). 23 Sob esta perspectiva, foram identificadas e sistematizadas nove categorias ou estratégias de produção de conteúdos transmídias, divididas em duas grandes categorias: as estratégias de propagação e estratégias de expansão. As de propagação s desdobram em outras duas categorias: conteúdos reformatados (subdividida entre conteúdos de Antecipação, Recuperação e Remixagem) e conteúdos informativos (Contextuais ou Promocionais). As estratégias de expansão também se dividem em duas: Conteúdos de extensão textual (subdividida em Extensões narrativas e Extensões diegéticas) e Conteúdos de extensão lúdica (Extensões vivenciais ou Extensões de marca). Nesta pesquisa, identificamos o uso de 4 destas categorias, como descritas acima. As outras categorias são: Conteúdos informativos contextuais, os quais contribuem para o entendimento do universo proposto e auxiliam na imersão ao fornecer informações que contextualizem a obra para a audiência; Extensões narrativas, produções narrativas complementares ou auxiliares desenvolvidas em outras mídias; Extensões diegéticas, aquelas que oferecem conteúdos adicionais que não fazem parte do mundo ficcional e, sem incidir no desenvolvimento das ações, convocam o consumidor a mergulhar no mundo diegético; Extensões vivenciais, as quais estimulam o consumidor a mergulhar no universo ficcional através de uma proposta de vivência que implique envolvimento direto e ativo; Extensões de marca, conteúdos que deslocam do nível simbólico para o material o envolvimento e o consumo do universo (Ver Fechine et al., 2013, p. 19-60). 24 O único desdobramento oficial é um livro que narra os acontecimentos da 1ª temporada em forma de diário.
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novo; e 44 conteúdos informativos promocionais, entre vídeos e fotos dos bastidores que revelavam o seriado como um produto de entretenimento. Esta etapa preliminar permitiu pensar nas estratégias de produção dos conteúdos que buscam estimular o engajamento das audiências. Serviu, ainda, como um ponto de partida para o segundo momento do estudo, pois os comentários coletados em printscreen 25 derivavam destas publicações. Inspirada na tipologia conduzida por Becker (2014), nossa segunda etapa buscou investigar como a audiência de Sessão de Terapia interagiu e quais foram os sentidos produzidos. Assim, aplicamos as seguintes categorias na análise dos comentários coletados: Dúvidas, que compreende as mais variadas perguntas, como questões sobre os horários de exibição, personagens, temporadas, como acessar o GNT Play, se há sites que não precisam de login e senha (espaços de consumo não-habilitados e ilegais) e até mesmo dúvidas sobre conceitos de Psicologia (“então o parceiro também pode contribuir no caso de um codependente?”). Os Elogios se referem aos comentários positivos, geralmente breves e repetitivos, emitindo opiniões mais genéricas (“muito bom”, “parabéns pelo sucesso”). Os Críticos classificam as percepções mais elaboradas, que discorrem sobre as características estéticas e enunciativas do seriado. Indicam, também, aspectos negativos (“mostrou o lado humano da terapeuta/supervisora” ou “a série é excelente, mas é curta demais, não leva o tempo de uma sessão real”). Os Institucionais são os comentários da própria página em resposta ao público; embora não pertençam à recepção, revelam a interação da obra e do público no espaço designado, como a resposta para a dúvida de uma espectadora: “Olá Inês! Hoje, a partir das 21h30 e, domingo, a partir das 18h, tem reapresentação de todos os episódios da semana em sequência!”. A última categoria, Outros, compreende o que não se refere diretamente à obra ou que não se pode extrair subjetividade; são enunciações de caráter complementar, como risadas, anúncios ou usuários marcando outras pessoas (“Viu isso, Leonardo Almeida?”). Como a maioria dos comentários coletados eram breves ou redundantes, 25
Tecla ou comando que permite o dispositivo capturar imagens da própria tela.
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optamos por trabalhar com um corpus mais volumoso, de 7920 comentários, dos quais: 362 Dúvidas; 4894 Elogios; 1527 Críticos; 32 Institucionais; e 1106 Outros. O baixo número de enunciações por parte da produção indica um mau uso do Facebook para interagir com o público, que em muitas publicações ficava sem qualquer resposta da página. No que se refere ao alto número de Elogios, isto pode ser justificado porque, de acordo com Lopes (2011), estes espaços de interação costumam avaliar a obra positivamente a fim de evitar maiores discordâncias. Já os comentários Críticos foram muito relevantes, e apesar de raros os comentários puramente negativos, todos apontavam diversos aspectos interessantes sobre o seriado. Observamos as mais variadas práticas de consumo das audiências, e algumas enunciações revelaram atrasos na programação ou a impossibilidade de acessar a obra no exterior. Não avaliamos os dados referenciais das audiências, mas foi possível perceber que grande parte dos interagentes eram mulheres. Outra expressiva parcela era de profissionais da Psicologia que declararam considerar sua prática reconhecida e bem representada, enquanto avaliavam, comentavam e aprendiam com as ações de Theo. Estes mesmos terapeutas acabavam endossando os ensinamentos da série. Um exemplo é o comentário de Silvia Ivancko, que em 08 de agosto disse: “Sou terapeuta e professora de pós, e depois de tantos filmes e programinhas ridicularizando nossa profissão, é com muito orgulho que finalmente assisto uma representação séria, verdadeira; que valoriza a terapia e o terapeuta! Agradeço imensamente ao Selton e toda sua equipe!”. Comprovamos também algumas percepções da AT, como o som, que recebeu críticas do público. Natália Russo, em 20 de agosto, que o áudio é abafado pela própria estética da obra. Ela diz acreditar que isto tem a ver “com o ambiente do seriado. É uma “sala” de atendimento psicoterápico, as pessoas não falam alto. Acredito que seja por isso que o som é mais baixo. Existe também a imagem de serenidade que o Theo demonstra nas falas dele, não teria a mesma impressão se ele usasse um tom de voz normal”. No entanto, em 25 de agosto, Rúbria B. Reis afirma que não se trata da altura do som, “mas sim a ‘nitidez’ (qualidade)”. Porém, não foram encontrados elementos que indicassem a fragmentação das
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narrativas de acordo com os interesses dos interagentes; parece-nos que estes, sempre que possível, tentam cumprir com o pacto de regularidade sugerido pelo produtor. E, ao mesmo tempo em que o público demonstrou receptividade a temáticas ainda controversas, como a homossexualidade, notamos um certo conservadorismo no que se refere à sexualidade da mulher, pois a iniciativa de Rita na relação com Theo gerou incômodo em parte da audiência, que considerou a atitude ousada. Edna Muller achou o figurino uma “insinuação”, enquanto Joyce Braz de Andrade afirmou que Theo “merece ser feliz, mas essa Rita chegou se oferecendo, na certa estava esperando o paciente sair. Queria ver mais Guto e Felipe”. De acordo com parte do público, o seriado trouxe mais entendimento sobre a vida contemporânea e fez circular um tipo de conhecimento específico através de uma estética diferenciada. Muitos espectadores não esconderam a expectativa depositada no programa em operar como uma ferramenta útil na superação de problemas pessoais. De acordo com estes interagentes, havia uma grande identificação com as personagens, e alguns, inclusive, se definiam como pacientes de Theo, reforçando o processo de imersão oferecido pela obra, que se propôs a simular uma sessão de terapia. Um exemplo é o comentário de J.J. Martins, que afirma: “Nunca NADA na televisão me arrancou tantas lágrimas, me despertou tanta dúvida sobre mim mesmo e me proporcionou tanta ‘sede’ de me conhecer de verdade [...] pois somos todos pacientes do sr. Theo Cecatto também sabia?”. Outro é o de Aline Tomanquevez: “Faço psicanálise, mas o Sessão de Terapia parecia uma sessão minha, o compromisso que eu tinha e as análises que eu fazia depois". Gabri Cambraia Rodrigues, em 29 de agosto, realçou os vínculos com a obra: “Sem demagogia: esse programa mudou a minha vida!”. Já Ivani Pacheco atribuiu ao programa seu retorno à terapia e afirmou se reconhecer “em cada paciente, mas a Milena que mais me mostrou que preciso de ajuda embora não tenha TOC, ainda, mas ser perfeccionista e não errar nunca sempre me fez e me faz muito mal”. O grande grau de envolvimento com o seriado provocou forte identificação em alguns interagentes, que inclusive compartilharam aspectos das próprias vidas. Alexandre Persona relata que fez "[...] a besteira de abrir uma empresa para trabalharmos
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juntos, pois ela estava desempregada, [...], enfim, me ferrei! A empresa foi a falência, acabou o dinheiro, e agora... o amor acabou. Mas, vou dar a volta por cima! Desculpem o desabafo". Já Fernanda Bueno relatou o sofrimento no relacionamento com o ex-marido, agradecendo à equipe pelo “alívio” proporcionado: “ É incrível como aceitei tanta tortura psicológica durante 13 anos do meu ex-marido. [...]. Chorei muito vendo a magistral interpretação de Letícia e da minha vida muito perto daquilo. Veio tudo abaixo. E as lagrimas que engoli para seguir em frente e lutar eu soltei de uma vez. Foi um alívio. Obrigada Selton, Zécarlos, Letícia e equipe”. Por fim, tais depoimentos evidenciam o que chamamos de Terapia Midiática, um processo comunicativo capaz de estabelecer um tipo de prática terapêutica através da televisão e que envolve um produtor, um produto e sua respectiva audiência. Contudo, é preciso reiterar que tais percepções não correspondem à totalidade da audiência, embora exemplifiquem os inúmeros sentidos que podem surgir das diferentes práticas de consumo.
Terapia Midiática: significações da vida entre a produção e o consumo Nesta análise, investigamos os processos estabelecidos entre a produção e o consumo de um seriado de TV, um “entre-lugares” em que os sentidos são construídos, chamado muitas vezes de mediações. Foi possível concluir que Sessão de Terapia realmente inspira a criação de vínculos com sua audiência, que a consome em busca de uma catarse psicanalítica através da mídia. É um processo estabelecido por um enquadramento que propõe uma espécie de Terapia Midiática e é lido como tal pela audiência. Isso não é exclusivo do programa, de forma que outros produtos culturais podem também servir como “terapia” para o público, disposto a se envolver de forma muito intensa com os universos propostos. Furedi (2004) aponta a cristalização da matriz terapêutica a partir da presença de determinados termos, como autoestima e stress, em textos de jornais; palavras popularizadas ao longo dos anos 1980 e 1990. De acordo com Freire Filho (2011, p. 723726), a primeira ocorrência do termo autoestima na revista Veja se dá em 1975, mas cresce
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ao longo dos anos. Só em 2007 a palavra foi mencionada 84 vezes. De acordo com o site do Conselho Federal de Psicologia26, existem mais de 300 mil psicólogos no país, de forma que o mercado de atendimento clínico chega a ser considerado como “saturado” (PEREIRA; PEREIRA NETO, 2003, p. 26). Tais exemplos indicam como a série reflete o éthos terapêutico, hoje influente em diversos setores da vida social. Porém, é importante pensar, como lembra Philip Rieff, autor pioneiro no que diz respeito à cultura terapêutica, que “cada cultura tem sua própria ordem de terapia” (RIEFF, 1966, p. 15). E, numa época marcada pela ubiquidade da mídia, cultura participativa e fragmentação de conteúdos e audiências, isto nos leva a crer que a Terapia Midiática está mais nas mãos do receptor que do emissor, afinal, é o público que “dita as regras” do jogo ao ler um produto de uma determinada forma (McLean, 1988). Milton Pinto (1999) já dizia que a ordem se manifesta discursivamente, mas suas orientações não ditam de maneira absoluta comportamentos e interpretações. Vimos que a teledramaturgia tende a inserir em suas tramas diferentes abordagens que permeiam a cultura e a prática terapêutica, o que não garante o comportamento da audiência de acordo com a intenção dos produtores-emissores. Isto fica mais claro quando McLean (1988) mostra que toda narrativa é uma performance; isto é, uma ação passível de variabilidade e julgamento, submetida ao olhar e avaliação de outros. Para a autora, desconstruir o discurso é investigar a relação entre emissor e receptor, ambos pressionados por inúmeras forças sociais e culturais que controlam a linguagem e a ação individual. Neste processo, o afeto, compreendido por Illouz (2011) e Sodré (2006) como uma energia psíquica que leva à ação e é composto pela compressão de significações culturais e relações sociais, também atua como uma mediação importante. Por isso, a narrativa pode ser descrita como uma relação performática ativa, variável e até mesmo afetuosa, mas que envolve a interação contratual entre alguém que narra e outro que ouve, reconhecendo as respectivas expectativas e obrigações a serem cumpridas. Porém, 26
Disponível em < http://www2.cfp.org.br/infografico/quantos-somos/ >. Último acesso em 20 set. 2017.
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no decorrer dessa interação performática entre narrador e ouvinte, este pode simplesmente rejeitar ou aderir ao jogo. “Se eu me torno um ouvinte, mesmo um ouvinte forçado, eu posso ainda lhe lembrar que as palavras, em último caso, podem significar apenas o que minha mente as permitem significar” (McLEAN, 1988, p. XII). Desse modo, concluímos que os sentidos da série são efetivamente construídos nas relações e mediações estabelecidas entre a produção e o consumo. A Terapia Midiática surge justamente das estratégias de interação propostas pelo seriado aqui sistematizadas e dos modos em que esses “jogos” são apreendidos pelas audiências. É um jogo sutil, que convida o espectador a olhar o outro para ver a si. Tal processo comunicativo envolve dois agentes e um pacto a ser cumprido, onde ambos se afetam e se deixam afetar. O afeto, aqui, desempenha um papel importante, pois ajuda a estabelecer vínculos profundos com aqueles que consomem a série mediante uma certa ordem temporal, determinada pela forma de exibição, acesso e consumo de cada episódio. Assim, Sessão de Terapia oferece palavras que tentam dar sentido aos dilemas vividos pelo público por meio dos processos de identificação e restituição. Nesse caso, ouvir e se sentir ouvido, mesmo que através da mídia, pode trazer um verdadeiro sentimento de bem-estar que só cabe àqueles que participam de tal interação, e a mais ninguém. Enfim, se o afeto é uma energia trocada nas interações sociais, e a mídia, hoje, é parte de tal tecido, unindo tudo e a todos, podemos afirmar que as tecnologias de informação e comunicação têm um potencial afetivo ainda a ser explorado pelos produtores e receptores.
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Narrativas seriadas norte-americanas O início e a consolidação do ato de shippar Enoe Lopes Pontes1 Universidade Federal da Bahia Resumo: Contar o caminho percorrido pelos fãs de narrativas seriadas que torcem por casais de suas tramas, os chamados ships, está diretamente ligado ao próprio percurso deste estilo de narrar enredos. Através de uma breve contextualização histórica, o presente artigo visa traçar a trajetória das séries norte-americanas a fim de compreender como as décadas, gêneros e inovações tecnológicas formaram um estilo de fandom específico: o shipper de seriados de TV. Palavras-chave: Séries, seriados, fandom, ship, shipper. Abstract: Tell the path travelled by the serial narratives fans that cheers for couples, the so-called ships, is directly linked to the very course of this style of storytelling. Through a brief historical context, the present article aims to trace the track of the North American series, in order to understand how decades, genres and technological innovations have formed a specif fandom syle: the TV Shows shippers. Key words: Series, serials, fandom, ship, shipper.
Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia, sob orientação da Profa. Dra. Regina Lucia Gomes Souza e Silva. E-mail para contato: enoelopespontes@gmail.com 1
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Marcos Históricos As narrativas seriadas surgiram na França, no século XIX, e têm seu início através da linguagem escrita. Em jornais eram publicados, periodicamente, capítulos de romances divididos em partes, deixando sempre os acontecimentos sem conclusão até o encerramento da obra. O nome dado para este estilo de texto foi folhetim e seu surgimento ocorreu em 1836. De acordo com Estima e Flores (2010, p.2), no começo, a escrita possuía gêneros variados, que iam de resenhas de livros, histórias longas e curtas, à até variedades. Porém, ainda em 1836, o costume de realizar publicações fictícias fatiadas passou a ganhar mais forma e espaço, tendo em vista, principalmente, a questão financeira. Por isso, os autores buscavam instigar o leitor a continuar acompanhando as narrativas, interrompendo-as em momentos cruciais para as histórias. No Brasil, inicialmente, os folhetins estrangeiros eram traduzidos e publicados nos jornais do país. Com o tempo, autores nacionais começaram a aparecer. Os dois principais escritores brasileiros deste gênero foram Machado de Assis, com publicações como Cinco Minutos e Quincas Borba; e José de Alencar, com histórias como Senhora e O Guarani. “Algumas de suas obras só foram publicadas em livros, depois de obter sucesso entre o público leitor” (ESTIMA E FLORES, 2010, p. 3). Com o surgimento do rádio vieram as radionovelas. Inspiradas na estrutura dos folhetins publicados em periódicos, o tipo de programa fazia bastante sucesso e era um dos estilos com maior audiência das emissoras radiofônicas do período. De acordo com a autora Lia Calabre as características dessas histórias se baseavam em: “(...) histórias seriadas, irradiadas às segundas, quartas e sextas-feiras ou às terças, quintas e sábados. (...) indo de um mês até dois anos”, (2007, p.2). Ainda na primeira metade do século XX, com o advento do cinema, a ideia de realizar narrativas em série foi lançada para as telas de cinema. Mais próximo dos filmes B, que deixavam o lucro em primeiro plano, os filmes seriados tinham entre dez e quinze episódios e contavam com um enredo no qual era mostrado mocinhos e mocinhas combatendo vilões, em uma grande aventura. Neste princípio, o conteúdo baseava-se em fórmulas simplificadas de roteiros e
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tinham por objetivo prender a atenção do público, criando nele o hábito de frequentar salas de cinema para descobrir o que iria acontecer com as personagens das tramas. Esse formato criava uma expectativa para a próxima exibição. A partir desta estratégia de roteiro surgiu o cliffhanger2, que é exatamente a situação desesperadora na qual as personagens se encontram e instiga a curiosidade dos espectadores. A partir dos anos 1940, com o surgimento da televisão, as histórias serializadas foram aparecendo neste meio, começando pela telenovela Farraway Hill (1946). O primeiro seriado norte americano foi I Love Lucy (1951-1957), do canal de televisão CBS. A série inaugurou a utilização do termo sitcom, que significa comédia de situações/costumes3, deixando para produções futuras um legado para este subgênero, principalmente nos quesitos cenários, personagens, roteiros e enredos. Normalmente uma sitcom tem duração de 30 minutos de exibição, porém com os intervalos comerciais chegam a durar em médias 22 minutos. São histórias curtas que se desenvolvem em apenas um episódio e cada um conta uma história diferente e embora cada episódio tenho uma ligação com o próximo, a necessidade de continuação não é prioridade. (MESSA, 2006, p. 3).
Após o sucesso de I Love Lucy, bem recebido pelo público e pela crítica4 outros programas tomaram conta do cotidiano dos espectadores como Rin tin tin (1954-1959) e Jennie é um gênio (1965-1970). A primeira narrava as aventuras de um pastor alemão, que dava nome ao seriado. A história se ambientava no século XIX e contava como o cão salvava um garoto órfão de situações arriscadas. A segunda série já fazia parte dos títulos ficcionais da televisão dos anos 1960 e mostrava o cotidiano atrapalhado do Major Nelson (Larry Hagman), que precisava lidar com as confusões na sua rotina, após ter encontrado um gênio (Bárbara Eden) numa garrafa, em uma ilha deserta.
Traduzindo literalmente: à beira do abismo. É um recurso para provocar suspense, uma situação de grande risco ou emoção para as personagens. Essa ferramenta provoca no público a curiosidade e a vontade de continuar acompanhando a narrativa. 3 Em inglês Situation Comedy. 4 A série teve um total de seis temporadas e ganhou 4 Emmy Awards. 2
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Até a década de 1960, grande parte da programação ficcional televisiva abordava temáticas familiares e politicamente corretas, ignorando as profundas mudanças sociais e culturais em questões comportamentais, sexuais, raciais e de gênero que ocorriam na época. A situação muda na década seguinte, com a estreia da série Mary Tyler Moore Show (CBS, 19701977), sobre uma mulher de 30 anos, solteira, independente e bemsucedida que trabalha como produtora de um programa jornalístico de televisão. A sitcom marca uma troca de paradigma ao substituir a família biológica pela família do ambiente profissional e de amigos. (SANTOS, 2010, p.6).
Apesar de algumas mudanças nos enredos e formatos das histórias seriadas ficcionais acontecerem no final das décadas de 1970 e 1980, foi a partir dos anos 1990 que as séries começaram a ganhar maior complexidade narrativa. Séries como Arquivo X (19932002), Twim Peaks (1990-1991), Seinfeld (1989-1998) Família Soprano (1999-2007) trouxeram novas características na forma de escrever os programas, com novos estilos de trama fora do padrão vigente como, por exemplo, misturar a duração dos desfechos dos acontecimentos ou os gêneros. De acordo com Jason Mittel (2006, p.31), foi nesse período que começaram a surgir seriados de TV que não utilizavam as fórmulas convencionais mais simples como, por exemplo, finalizar os acontecimentos de uma ação num mesmo episódio, criando uma continuidade durante a temporada. Para o autor, os anos 1990 podem ser considerados como a era da complexidade narrativa. Outra questão que foi mudando gradualmente a forma de produzir e receber os seriados foi o desenvolvimento tecnológico e a ideia de conteúdos transmidiáticos. Dexter (2006-2013), True Blood (2008-2014) e Lost (2004-2010) foram alguns dos programas utilizaram outros meios para disponibilizar materiais para os fãs, além do próprio conteúdo que era exibido na televisão, a exemplo de webséries, sites, HQ’S e até mesmo livros. Em True Blood, por exemplo, blogs, vlogs e cenas extras eram mostrados nas páginas oficiais da série. A principal ação ocorreu quando os autores criaram um diário filmado da personagem Jessica Hamby (Deborah Ann Woll)5, que narrava seu cotidiano quando se tornou presidiária, na sexta temporada.
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O nome da página era Baby Vamp Jessica. Link: www.babyvamp-jessica.com
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Classificações As narrativas seriadas possuem algumas características específicas que marcam seus formatos e criam algumas definições que deixam mais claras de qual forma um enredo se encaixa em estilos de séries distintas. Primeiramente, sabe-se que um seriado é dividido em episódios. No caso da telenovela, em capítulos. Há na estrutura do programa uma fragmentação da história, que é vista periodicamente, num espaço de tempo determinado pela emissora. Geralmente, elas são exibidas semanalmente, com intervalos entre uma temporada e outra, para as férias da equipe do programa, como são os casos de Once Upon a Time, Buffy – The Vampire Slayer e The Big Bang Theory, por exemplo. Porém, existem algumas exceções, no que se refere ao intervalo entre um episódio e outro ou a uma temporada. O caso mais específico é o do seriado britânico Sherlock, que demora cerca de um até dois anos para exibir novos conteúdos para os espectadores, criando um longo hiatus 6 em sua transmissão. Chamamos de serialidade essa apresentação descontínua e fragmentada do sintagma televisual. No caso específico das formas narrativas, o enredo é geralmente estruturado sob a forma de capítulos ou episódios, cada um deles apresentado em dia ou horário diferente e subdividido, por sua vez, em blocos menores, separados uns dos outros por breaks para a entrada de comerciais ou outros programas. (MACHADO, 2000, p. 83).
Há também, de acordo com Arlindo Machado (2000, p.84), três principais estilos de histórias serializadas que podem ser produzidas. A primeira, intitulada pelo autor de capítulos, trata-se de um enredo com conteúdo único, que tem fatos lineares ocorrendo durante os episódios, como é o caso da telenovela, de alguns seriados e minisséries. O segundo caso, chamado por Machado (2000, p.84) de episódios seriados, tratase de narrativas que têm histórias completas, com início, meio e fim durante sua exibição. Os acontecimentos tratados em um dia na trama não são necessariamente relembrados e tão pouco interferem posteriormente. Esse tipo de enredo, geralmente, está localizado no gênero da comédia, como é o caso dos programas Monty Phyton’s Flying Circus (1969-1974) e Sai de Baixo (1996-2013), por exemplo. “Nesse tipo de estrutura, ao contrário da Hiatus: Termo utilizado por espectadores de seriados para indicar o período de pausa entre episódios e temporadas de uma série. 6
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modalidade anterior, não há ordem de apresentação dos episódios: pode-se invertê-los ou embaralhá-los aleatoriamente, sem que a situação narrativa se modifique”, (MACHADO, 2000, p.84). No terceiro caso, intitulado de unitários, a única característica que Machado (2000, p.84) afirma que se mantém da história é o espírito da série, porém tudo muda em cada episódio, sejam as personagens, os atores, a equipe de produção ou a temática. Quinta dimensão (1963-1964) e Comédia da Vida Privada (1995-1997) se encaixam nessa categoria e possuem em suas tramas enredos distintos em todas as suas exibições. Para além das classificações de Arlindo Machado (2000), há uma dinâmica de modificações constantes nas estruturas narrativas, no universo dos seriados. Algumas séries de televisão não se encaixariam nos casos citados pelo autor. Um exemplo de uma história que tem outro modelo de roteiro é Skins (2007-2013). O programa possui sete temporadas e divide-se em três arcos, que duram dois anos. O objetivo dos roteiristas era contar o cotidiano de adolescentes londrinos, em seus últimos períodos do colégio. Dessa forma, quando este ciclo acaba, e as personagens vão para a faculdade, o contexto é renovado e se inicia uma nova geração de jovens. Essa estrutura perdurou até a sexta temporada, totalizado três fases distintas de meninos e meninas. Já na última etapa da série, foram exibidos seis episódios que mostram o futuro de três personas mais populares entre o público: Cassie (Hanna Murray), Effy (Kaya Scodelario) e Cook (Jack O’Connell). As narrativas seriadas ficcionais possuem esse hibridismo em sua estrutura, podendo apresentar distintas características de produção. Em uma classificação determinada pela autora Gaby Allrath (2005, p.5-6), existem dois tipos de categorias que dividem os seriados ficcionais. No primeiro, estão os enredos serializados (Serials), que possuem uma trama contínua, com as mesmas questões abordadas do início até o final da trama, como acontece com as telenovelas, por exemplo. Em outro grupo estão são as narrativas em série (Series). Elas possuem episódios com início, meio e fim desenvolvidos num mesmo dia de exibição. Nessa categoria de seriado se encaixam programas como The Simpsons (1989-), Family Guy (1999-) e Hart to Hart (19791984). No seriado A Feiticeira (1964-1972), o público acompanha a rotina da família Stevenson,
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que possui como matriarca do grupo uma bruxa. No programa, o espectador se depara sempre com uma nova peripécia na trama, que se encerra no mesmo episódio. Além das duas classificações realizadas por Allrath (2005, p.5-6), a autora explica que há entre essas duas categorias, estilos híbridos de narrativas, que mesclam as estruturas. Num quadro comparativo, Alrath (2005) traz quatro tipos intermediários de estilos de história que podem ser estabelecida.
Imagem retirada do livro Estratégias narrativas nas séries de televisão (ALRATH, p.6, 2005)
Murder She Wrote (1984-) é uma série de investigação, que segue uma linha mais próxima do enredo em série, porém traz elementos contínuos para história, mas nada em grande escala. Já Ally Mcbeal (1997-2002), apresenta o caráter híbrido através de uma dupla forma de conduzir a história. Enquanto a personagem principal resolve o problema de seus clientes da firma na qual trabalha, momentos do seu cotidiano são postos em questão. Enquanto suas defesas jurídicas possuem desfecho num mesmo episódio, sua vida pessoal tem detalhes desenvolvidos em alguns outros períodos da série. No caso de Buffy – The Vampire Slayer (1997-2003), para além dos monstros7 enfrentados pela protagonista em cada episódio, que se tornava completamente independente dentro da trama, existia um grande vilão da temporada, que precisa ser errotado. Buffy apenas triunfava na temporada final, quando a moça descobre finalmente uma forma de salvar o mundo, deixando o conflito do programa resolvido para o público.
Na bibliografia sobre seriados e no universo dos fandom, esse tipo de recurso é chamado de Monster of the Week, monstro da semana, no qual os personagens principais duelam com algum vilão e o derrotam num mesmo episódio. Essa denominação, de acordo com Allrath (2005, p.5-6) surgiu com o seriado Arquivo
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Por fim, em Arquivo X (1993-2002) havia uma maior complexidade narrativa. A série apresentava hibridismo, indo de conflitos resolvidos em um mesmo episódio ou em uma mesma temporada, até conseguir levar uma mesma questão na trama durante todo o seu período de exibição. Este seriado é o que mais chega perto do estilo trazido pelas telenovelas, no sentido de que as peripécias da trama possuem início no episódio piloto e vão até o final do programa. Outra característica que distingue os seriados de televisão é a duração de cada episódio. Geralmente, as comédias, principalmente as “sitcoms” possuem 30 minutos, contando com intervalos comerciais. Os dramas11, as dramédias e algumas séries cômicas ficam em torno de 40 até 50 minutos. Existem algumas exceções, como Sherlock, série dividia em três etapas, com uma hora cada. As classificações das narrativas ficcionais seriadas podem apresentar modelos clássicos como os citados por Machado (2000) e Allrath (2005) ou entrar em categorias híbridas, com o objetivo de gerar mais curiosidade do espectador e os instiga a continuar acompanhando o seriado por um maior período de tempo. Essas estratégias podem servir também para o aumento da complexidade do roteiro, deixando as histórias mais interessantes e preenchidas de novas formas de se produzir uma série televisiva.
Fandoms e os seriados norte americanos De acordo com Pedro Curi (2012, p.208-209), o surgimento da ideia do “ser fã” veio com o esporte e de seus seguidores, no final do século XIX. Os jornalistas precisavam de um termo para falar sobre aqueles que acompanhavam fervorosamente alguma equipe esportiva e utilizaram um diminutivo da palavra fanaticus. Quando este indivíduo está junto com um grupo de pessoas que possuem admiração pelo mesmo produto, personagem, figura pública ou atividade, dá-se o nome de “fandom”, que “é uma abreviação de “fan kingdom”, ou seja, ‘reino do fã” (MATOS, 2013, p.140). Essa nomenclatura existe para determinar um tipo específico de espectador e o que os difere do restante do público é, de acordo com Matt Hills (2002, p.9-10) a forma pela qual estes interagem seu objeto de admiração. Para o autor, o afeto intenso não determina um fã e sim a necessidades deles de possuírem uma identidade social e a forma pela qual
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eles se debruçam sobre o objeto de admiração. Dentro desta distinção, a figura do fã acaba ficando estigmatizada, por serem considerados obcecados por determinado assunto ou figura pública. No primeiro capítulo do livro Textual Poachers, o autor Henry Jenkins (1992) explica que a dedicação dos fandoms e a imagem de seus indivíduos eram marcadas por uma lógica estigmatizada de figuras obsecadas por algo ou alguém. Porém, na década de 1990, essa visão foi se modificando aos poucos, a partir do momento o qual a academia passou a direcionar o seu foco sobre este fenômeno da recepção. O olhar apaixonado do público e as distintas formas de relacionamento criadas a partir disto, tornaram-se instigante para os pesquisadores. O que é interessante sobre os fãs é que eles constituem particularmente uma ativa e vocal comunidade de consumidores, na qual as suas atividades são direcionadas para os processos de apropriação cultural, (JENKINS apud HILLS, 2002, p. 10, tradução nossa8).
Em O sentido do Público (2005, p.103), Jean-Pierre Esquenazi traça uma breve discussão, buscando compreender a razão pela qual o público torna-se fã de alguma produção, artista, grupo ou personagem. A partir deste questionamento, o autor traça algumas suposições como a alta oferta de produtos que empolgam os indivíduos de início, mas estes logo se esquecem daquele material e partem para o próximo. O autor (2005, p.105) também caminha para hipótese de que há uma forte identificação do consumidor com aquele objeto de admiração. Quando as pessoas enxergam a si próprias em uma produção, elas passam a criar afetividade e dedicação. Outra possibilidade apontada por Esquenazi (2005, p.105) é a de acreditar que este fator se dá por uma espécie de armadilha da indústria cultural que se aproveita das fragilidades
de
alguns
indivíduos
para
prendê-los
através
dos
fanatismos.
Independentemente das razões pelas quais os fãs seguem alguma obra ou personalidade o fato é que eles movem um mercado consumidor. No caso de narrativas fictícias,
Original: What is significant about fans in relation to de Certeau’s model is that they constitute a particularly active and vocal community of consumers whose activities direct attention onto this process of cultural appropriation. (HILLS, p.10. 2002)
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principalmente seriados, os “fandoms” buscam afetar os rumos das tramas, principalmente procurando realizar contato com os produtores. Algumas vezes, suas tentativas são bem-sucedidas, mas, na maioria dos casos, como aponta Jenkins (1992, p.28), os resultados não são positivos. Muitos já traçaram o surgimento de uma cultura de fãs de mídia organizada, até a década de 1960 quando ocorreram os esforços para pressionar a NBC para colocar Star Trek de volta no ar, um movimento que trouxe um modelo para as recentes tentativas de mudar as decisões das redes de televisão, como foram os casos altamente divulgados das séries Beauty and the Beast e Cagney and Lacey, de 1988. (JENKINS,1992, p 28, tradução nossa9).
Ainda assim, existem na história dos seriados casos positivos de intervenção dos fandoms. Entre 2007 e 2009, fãs conseguiram evitar o cancelamento de duas séries graças a atitude de buscar formas salvar o seriado e não esperar que os produtores tomassem a decisão final. O público fiel de Jericho (2006-2008) organizou uma campanha online, chamando a atenção do porta-voz da emissora CBS, Chris Ender, que declarou que aquele tinha sido o maior apoio a um produto da televisão na internet, até aquele período. Os espectadores de Chuck (2007-2012), chamados de “chucksters”, apostaram em uma outra lógica, mas também foram bem-sucedidos. Pensando em estratégias comerciais, o “fandom” criou uma campanha para a lanchonete Subway, que concordou com a parceria e lançou um sanduiche com o nome da personagem principal do seriado. Se o sistema de classificações pudesse medir com eficácia o valor real da audiência televisiva, a Nielsen10 teria sido capaz de dizer à NBC que essas pessoas que compram o sanduiche na Subway estavam assistindo a Chuck em números que justificavam os dólares gastos em publicidade pela Subway.Assim os fãs compraram sanduíches e salvaram o programa. (Jenkins, 2014, p. 15).
13 Original: Many have traced the emergence of an organized media fan culture to late 1960s efforts to pressure NBC into returning Star Trek to the air, a movement which has provided a model for more recent attempts to reverse network decisions, such as the highly publicized efforts to save Beauty and the Beast or Cagney and Lacey de 1988 (JENKINS, 1992, p.28) 10 Empresa que oferece pesquisas de Mercado, através de métodos próprios. Com sede em Nova Iorque, a Nielsen tem origem alemã e estadunidense.
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Além dos grupos já citados, existem muitas outras aglomerações de fãs de seriados que participam frequentemente nas redes sociais, como é o caso dos “Vampire Maniacs”, de The Vampire Diaires (2009-); “Liars”, de Pretty Little Liars (2010-); “Gleeks” (20092015), de Glee; “Sherlockians”, de Sherlock Holmes (2010-); “Trekkies”, de Star Trek (19661969), entre outros. Os rótulos para os fãs são adotados tanto no discurso acadêmico como no popular – “Trekkies”, “Beastie Girls”, “Deadheads” – que identificam eles por suas associações com certos programas ou estrelas. Fãs, como outros consumidores de cultura popular, lêem intertextualmente bem como lêem textualmente e seus prazeres estão ligados à essa justaposição que eles criaram entre conteúdos específicos de um programa e outros materiais culturais. (JENKINS, 1992, p. 37, tradução nossa)11.
A participação dos fãs, e essa vontade de marcar presença dentro do “fandom”, também funciona como medidor de afetos para seus grupos. Os autores Nathália Rezende e Marcos Nicolau (2014, p.5), explicam que níveis de participação e influência dentro dessas comunidades são fatores relevantes para distinguir os componentes deste tipo de comunidade e que não se pode colocá-los num bloco homogêneo, como se fossem uma massa amorfa e única. Dentro dessas comunidades existem subdivisões, que são determinadas pela quantidade e a qualidade da participação dos fãs. Citando o exemplo do seriado Once Upon a Time, dentro da sua comunidade dos espectadores apaixonados, intitulada “Oncers” , existem os “shippers” de Swan Queen, que torcem para que as personagens Regina Mills e Emma Swan se tornem um casal dentro da narrativa. O envolvimento dos indivíduos participantes dos fandoms, que vem da produção de materiais como fan fics, fan arts e reviews e os comentários que envolvem este universo fazem deles mais ou menos notórios na comunidade. Este fator é uma característica da torcida por Emma e Regina, mas também pode ser visto em outros grupos. Both academic and popular discourse adopt labels for fans — “Trekkies,” “Beastie Girls,” “Deadheads” —that identify them through their association with particular programs or stars. Fans, like other consumers of popular culture, read intertextually as well as textually and their pleasure comes through the particular juxtapositions that they create between specific program content and other cultural materials. (JENKINS, p.37, 1992).
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Como em diversas outras comunidades de fãs, esta se dedica à criação de textos e objetos relacionados à obra. Vídeos, montagens, ilustrações, fan fictions, marcadores de livro, roupas, acessó- 144 rios e até esmaltes. Também a utilização das diversas frases de efeito do personagem principal, a trivia e as referências são formas de disputa e troca de capital simbólico (BOURDIEU, 2007) muito presentes entre fãs de uma maneira geral. (MATOS, 2013, p.143-144).
As “shippers” de Swan Queen possuem alguns membros do “fandom” mais notáveis. Nos Estados Unidos, o casal de fãs, Emma e Tilda, ficou conhecido por seus cosplays de Once Upon a Time, através das redes sociais Twitter e Tumblr. No Brasil, a 12
Swen mais popular se chama Luiza Yalle. A jovem escreveu fan fics populares no “fandom” e fundou um grupo no Facebook intitulado Igreja Swan Queen é o Amor, no qual é chamada de pastora por seus integrantes. Durante algumas postagens, acompanhadas no período entre 2015 e 2016, Yalle era constantemente solicitada para tirar dúvidas, organizar festas e elaborar teorias.
Imagem retirada do grupo de Facebook Igreja Swan Queen é o amor, em outubro de 2015.
Em outros seriados, a comunidade de fãs também se reunia/reúne em grupos virtuais ou não, com o objetivo de debater e compartilhar informações e pensamentos sobre os seus programas preferidos. O “fandom” de Arquivo X foi intitulado de X-Philes e 12
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Swen: shippers de Swan Queen.
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se dividiam entre os “shippers” de Mulder e Scully e os No Romos (No Romance), como será explicado mais adiante. O seriado Lost (2004-2010) criou uma segregação na sua comunidade de fãs, principalmente a partir do primeiro episódio de sua segunda temporada. Intitulado Man of Science, Man of Faith, a exibição narrou dois tipos de caminhos possíveis para a trama, pela perspectiva das personagens Dr. Jack Shepphard e John Locke. A partir disso, duas equipes se formaram na ilha, no âmbito ficcional e no “fandom”, no mundo real. No Brasil, na antiga rede social Orkut existia o grupo Locke X Jack, no qual os integrantes discutiam: qual seria o melhor caminho para acompanhar a história da série, a razão ou a confiança no destino? Essa disputa seguiu até o desfecho da história, em 2010. O clima de tensão também é estabelecido entre fãs e criadores das narrativas ficcionais. De acordo com Jenkins (2008, p. 231), algumas tensões são estabelecidas entre produtores de conteúdo e consumidores. Para exemplificar a sua teoria, o autor relata o caso da saga Harry Potter que incomodou a distribuidora, pois o “fandom” começou a produzir materiais próprios como sites, fics e fan arts. O cenário no qual se localizam estes indivíduos, empossados de diversas ferramentas trazidas pelos avanços tecnológicos, fazem com que exista um perda do controle dos realizadores. Apesar de todo o atrito, as comunidades continuam existindo, seja com Potter ou qualquer outro objeto de admiração. A partir da compreensão das características sobre os “fandoms” de narrativas seriadas ficcionais é possível compreender essa paixão que envolve os espectadores e que causa influência no processo de recepção, criando uma comunicação do público entre si e com os realizadores dos produtos midiáticos. Essa dedicação e esmero também está presente em um tipo específico de comunidade de fãs. Algumas pessoas focam na torcida para casais dentro de narrativas ficcionais ou fora dela. Partindo do estudo destes “reinos” é possível observar a figura do shipper13. Este fenômeno que acaba por interferir na interpretação dos seguidores dos programas. A prática do shipping (sic) parece ser um dos principais elementos de sociabilidade presentes nesta comunidade. O termo vem de relationship O termo “shipper” é um diminutivo para relationshippers (Scodari e Shelder, 200, p.240). A autora do presente artigo utiliza “torcedor para casais” como sinônimo deste termo. Mais adiante todas as nomenclaturas serão esclarecidas.
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(relacionamento, em inglês) e dá conta da capacidade que estes fãs têm de se envolver afetivamente com os relacionamentos amorosos entre personagens de ficção, muitas vezes até criando casais que não existem na obra original. (MATOS, 2012, p.144).
Ships nas Séries A palavra ship é uma abreviação do termo em inglês relationship, que quer dizer relacionamento em português. O mais próximo que se pode chegar de um equivalente para o contexto brasileiro seria casal, mas não apenas no sentido romântico. Sendo assim, quando os fãs desejam que uma dupla de uma obra fictícia ou não permaneça junto ou interaja mais – caso não seja uma torcida para romance e sim familiar ou de amizade - na história, eles estão torcendo para eles, esperando que esta vontade se torne realidade na narrativa. Muito antes do termo ship se tornar popular, existia o conceito de slash pairing. A nomenclatura surgiu nos anos 1970, com o “fandom” do seriado Star Trek. Os fãs começaram a sentir que existia um clima de romance entre as personagens Kirk e Spock. De acordo com Jenkins (1992), alguns espectadores não gostaram da ideia dos roteiristas e mandaram cartas para cessar qualquer tipo de intenção da produção em formalizar uma relação homoafetiva na tela. A nomenclatura de ship se iniciou nas séries na década de 1990, com os fãs de Arquivo X (The X Files). A história da série era centrada em Dana Scully e Fox Mulder, agentes do FBI e trabalhavam juntos em casos não solucionados, que envolviam fenômenos paranormais. Eles formavam um equilíbrio entre si, pois enquanto Scully era incrédula, o detetive Mulder acreditava firmemente na existência de forças sobrenaturais e em extraterrestres. Uma parte do ‘fandom” do seriado passou a torcer para que os dois tivessem um relacionamento amoroso. De acordo com páginas de fãs na web, foi a partir daí que começou a se utilizar o termo “ship” e “shipper” para denominar os casais da ficção e seus torcedores. Ninguém sabe ao certo se este dado é concreto, porém o público mais cativo de seriados, principalmente os espectadores de Arquivo X, possuem a teoria de que o fenômeno de “shippar” surgiu com Mulder e Scully. Toda a trajetória do casal na série e a reação dos fãs em relação às escolhas dos
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criadores é relatada no artigo Visible Fandom: Reading The X-Files Through X-Philes, de Christine Wooley, (2001, p.35). Durante a exibição da série o “fandom” acabou dividindose em duas partes, devido àd vontade de alguns de que exista um relacionamento amoroso entre as personagens principais da narrativa. Desta forma, surgiram dois grupos: os “No Romo” (No Romance), que em português quer dizer Sem Romance. A relação entre Mulder e Scully cria assim um espaço fundamental para o engajamento dos espectadores com a representação e as possibilidades de intersubjetividade, estendendo o foco dos X-files para o processo de criação de sentido para o reconhecimento dos limites e da necessidade de tal trabalho, Para a construção de narrativas e para nossas conexões entre si (WOOLEY, 2002, p.35-36)14.
Apesar da prática de torcer para casais nãos ser algo novo para os espectadores, principalmente os fãs, foi no início dos anos 2000 que começaram a surgir as junções dos nomes dos casais para facilitar a comunicação entre os “shippers”. Em 2005, quando os atores Brad Pitt e Angelina Jolie iniciaram um romance, a mídia passou a fazer uso desta estratégia e o costume de popularizou. No caso dos dois artistas foi dado o apelido de “Brangelina”.
Notícia do site da Revista People, em 2005 Original: The relationship between Mulder and Scully thus create a pivotal space for the viewers’s engagement with the depiction and possibilities of intersubjectivity, extending The X-files’s focus on the process of creating meaning toward an acknowledgement of the limits and necessity of such work as they relate both to the construction of narratives and to our connections to each other. (WOOLEY, 2002, p.35-36) 14
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No universo das séries, a junção de nomes também aconteceu neste mesmo período, principalmente nas comunidades de fãs das séries mais populares da época. Nas quintas temporadas dos programas Lost (2004-2010) e Grey’s Anatomy surgiram ships Jate, Skate e Suliet
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e Calzona, Merder, Japril, Mallie , respectivamente, os fãs começaram
interagir e se organizarem mais para falar sobreo ato de shippar. As redes sociais foram fundamentais para o processe de dinamização da comunicação dos “fandoms”, fazendo com que o contato fosse em maior escala, criando relações internacionais entre membros de comunidades de fãs. Para além dos fórums em sites, como já existiam desde Arquivo X, a disseminação dos desejos individuais dos espectadores contribuiu para aumento desse fenômeno. Um exemplo disso é a utilização da plataforma Tumblr pelos espectadores assíduos do seriado Once Upon a Time. Os fãs realizaram uma pesquisa em 2015 e contabilizaram 160 torcidas para casais distintos do programa. Para disseminar suas teorias, eles criaram diversos perfis no aplicativo. Já no quesito discussão e debates, eles deixam para o Facebook. Por fim, o Twitter é usado principalmente para fazer pedidos para a equipe da série e mandar recados para as torcidas rivais.
Conclusão Existiu todo um percurso para que a interação entre os shippers ocorresse da maneira que foi. Seja pelas características estilísticas, inovações tecnológicas ou estratégias comerciais, o fato é que os grupos de fãs tornaram-se um fenômeno, tanto pela forma de interagir quanto por sua quantidade. A partir da contextualização deste caminho traçado pelas produções ficcionais televisivas é possível notar como o engajamento e a paixão pelas tramas foram crescendo e como os cliffhangers pode interferir neste processo. A partir deste trabalho, é possível pensar o quão poderosa pode ser a voz da recepção quando esta ganha algum tipo de espaço onde possa mostrar seus ensamentos desejos. Até que ponto pode chegar o poder dos produtores de sentido no século XXI? O quanto a internet tem a capacidade fazer crescer a visibilidade do público e torná-lo
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Jate – Jack e Kate; Skate – Sawyer e Kate; Suliet – Sawyer e Juliet. Calzona – Callie e Arizona; Merder – Meredth e Derek; Japril – Jackson e April; Mallie – Callie e George.
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também um agente realizador? A presente pesquisa busca justamente iniciar as reflexões sobre as novas configurações de um espectador multifuncional, ainda mais participante e que traz outras formas de interação com os conteúdos midiáticos como na criação de material de fãs.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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DOSSIÊ A televisão das meninas do YouTube Grasiele Silva de Sousa
A televisão das meninas do YouTube Grasiele Silva de Sousa1 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)
Resumo: O YouTube é uma plataforma de compartilhamento de vídeos que popularizou-se em pouco tempo. Desde meados dos anos 2000, ele conquistou milhares de usuários pelo globo, algo comparável ao alcance de formas de comunicação como a televisão broadcast. Só que, agora, estamos falando de um tipo de interação em que somos todos potencialmente emissores e receptors de informação. Daremos atenção a alguns aspectos relacionados ao modo como um grupo de mulheres, aqui denominadas por conselheiras de beleza, se relacionam com o vídeo amador no YouTube, a partir da apropriação de formas televisivas anteriores à era dos computadores. Palavras-chave: televisão; vídeo amador; YouTube; conselheiras de beleza. Abstract: YouTube is a video-sharing platform that became popular in a short period of time. Since the mid 2000s it has earned thousands of users across the globe, something comparable to the range of previous forms of audiovisual broadcasting communication such as television, except for the fact that now we are talking about a type of interaction in which we are all potentially transmitters and receivers of information. We will give attention to some aspects of a women’s group, which we will call beauty counselors. They interact with amateur video production on YouTube, taking advantage of previous television forms that existed before the computer era. Key words: Television; amateur video; YouTube; Beauty counselors.
Mestra em Psicologia Clínica no Núcleo de Estudos da Subjetividade Contemporânea da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC/SP, sob a orientação da Profa. Denise Bernuzzi de Sant'Anna. com a dissertação “Uma edição de si: as meninas do YouTube”. 2015. 133 f. E-mail para contato: grasisousa@gmail.com. 1
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O YouTube é uma plataforma de vídeo criada em um dos escritórios de garagem do Vale do Silício na Califórnia e lançada oficialmente no ano de 2005 por Chad Hurkey, Steve Chen e Jawed Karin. O intuito era oferecer um serviço de compartilhamento de vídeo online voltado ao usuário comum, que não teria familiaridade com uma linguagem de programação de dados. Pouco mais de uma década após sua criação, o YouTube é provavelmente o site mais popular de sua categoria. Antes mesmo de apresentarmos dados que confirmem este êxito, podemos fazer uma simples verificação de nossos hábitos de navegação na rede e compararmos a quantidade de vídeos que assistimos e publicamos provenientes de outras fontes com os do YouTube. Dados do ano de 2008, “de acordo com vários serviços de medição de tráfego da web, já figurava de maneira consistente entre os dez sites mais visitados no mundo” e havia alcançado a marca de 85 milhões de uploads (BURGUES & GREEN, 2009, p.18). Na atualidade, o número de visualizações diárias ultrapassam um bilhão e são postados mais de 300 horas de conteúdo por minuto2. Ao analisarmos uma bibliografia de referência sobre a recente história do YouTube encontramos pelo menos três motivos iniciais para esta espécie de “revolução” do consumo de cultura audiovisual online. O primeiro teria relação com a recomendação da plataforma por um renomado site de notícias sobre tecnologia, o que provavelmente influenciou seu uso. O outro seria relativo à interface que oferece recursos e funcionalidades de interação - muitas vezes assemelhando-se a uma rede social, um fórum de discussão, uma página de pesquisa com sugestão de conteúdos correlacionados ao que se assiste. O terceiro fator, certamente o que mais queremos considerar, teria relação com a maneira como as pessoas se apropriam da plataforma (BURGUES & GREEN, 2009, p.19-20). Junto ao primeiro slogan do YouTube, Y our Digital Video Repository 3 (BURGUES & GREEN, 2009, p.35), era apresentada a seguinte mensagem:
Conforme os dados que a própria plataforma divulga. Ver: <https://www.youtube.com/yt/press/ptPT/statistics.html>. Última visualização em 20/02/2017. 3 Seu repositório de Vídeos Digitais, tradução da autora. 2
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Exiba seus vídeos favoritos para o mundo. Faça vídeos de seus cães, gatos e outros bichos. Publique em seu Blog os vídeos que você fez com sua câmera digital ou celular. Exiba seus vídeos com segurança e privacidade aos seus amigos e familiares no mundo todo... e muito mais! (BURGUES & GREEN, 2009, p.20).
No que se refere à cultura do vídeo fora da televisão convencional, desde o surgimento e comercialização das primeiras câmeras portáteis ainda na década de 70, uma importante questão surgiu: a busca de alternativas para difusão do material audiovisual gerado desde então, uma vez que a TV aberta não era o destino natural do vídeo caseiro e independente e o acesso oferecido pelas outras televisões (televisões locais de frequência UHF, TV a cabo e o videotexto) era insuficiente. Percebemos que a sugestão inicial do YouTube como um repositório de vídeos digitais (ou digitalizados), em certa medida coincide com uma demanda mais antiga que a própria plataforma, a da existência de um ambiente “público” e de grande alcance para a exibição de todo um acervo constituído fora das grandes emissoras de TV. Além disso, a possibilidade de circulação da própria informação audiovisual em escala global alterava significativamente a relação unidirecional que tínhamos com a mensagem difundida pela televisão, pois agora poderíamos experimentar uma comunicação bidirecional e nos tornarmos emissores e receptores de informação. Isto não passou despercebido no então novo slogan do YouTube: “Broadcast yourself”4 (BURGUES & GREEN, 2009, p.20). Se primeiramente a ênfase da plataforma foi estimular a construção de um arquivo online, a partir da migração de conteúdos realizados em outros ambientes e situações, num momento posterior incentivou-se a criação de conteúdos específicos para exibição no YouTube. E quem foi convidado a se transmitir em primeiro plano, fomos “eu e você”5. Note- se que, numa tradução literal, o nome YouTube pode ser entendido por “TV você”6, ou ainda “um canal feito por você”. Cada um de nós poderia realizar um
O mesmo que “transmita a você mesmo”, ou ainda, “transmita-se”. A expressão “eu e você” extraída do livro de Paula Sibilia, O Show do eu, faz referência à personalidade do ano eleita pela revista Times em 2006: as pessoas comuns, eu e você. “Quais foram os motivos dessa curiosa escolha? Acontece que você e eu, todos nós, estamos “transformando a era da informação”. Estamos modificando as artes, a política e o comércio, e até mesmo a maneira de percebermos o mundo.” (SIBILIA, P. 2008 p.8-9). 6 Tube em inglês significa tubo, canal, mas como gíria é o mesmo que televisão. 4 5
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canal de TV. Restava saber se isto resultaria em uma nova profissão ou em um novo passatempo para os amadores da telinha. Ou as duas alternativas juntas. O tipo de internet que se tornou hegemônica com a Web 2.0 e que nos convidou a criar e compartilhar conteúdos os mais variados, extraídos de relatos pessoais, de uma esfera da atividade trivial e do lazer, e também, de visões alternativas a uma informação pasteurizada e hegemônica da grande mídia, colaborou de modo decisivo para a construção de subjetividades dependentes de sua exposição e interlocução pública na rede (por meio de blogs, redes sociais, vídeos etc), produtoras de si como alguma pessoa que gostaria de ser (SOUSA, 2015, p.38)7. Nesse sentido, a possibilidade contemporânea da comunicação bidirecional - que nos liberaria da voz da autoridade, do especialista presente na Web seria um recurso tão relevante quanto o confessionário religioso, o divã e o diário íntimo um dia foram (e ainda podem ser) para os processos de formação e impasses das subjetividades. Entretanto, esta produção de si é bastante sensível às trocas de experiências validadas por uma amizade/socialização virtual e mais horizontal com relação à mediação/análise vinda da voz da autoridade. De outro lado, nossa participação na rede mundial de computadores a partir da internet comercial, um outro nome para a Web, inaugurou um ambiente propício à experiência do trabalho como uma combinação voluntária entre relações intersubjetivas, comunicacionais e afetivas. O que muitas vezes pode ser assimilado como uma forma de se entreter. Há uma infinidade de canais destinados a produzir informações sobre os mais diversos temas ou atividades, desde tutoriais para a execução de instrumentos musicais até a narrativa de games em tempo real, passando por vlogs de lifestyle 8. Em meio a tantos canais do YouTube que apresentam características tais como junção entre trabalho e lazer, desenvolvimento pessoal por meio da comunicação em rede e usos da linguagem da TV aberta no meio virtual, chamou-nos atenção a atividade realizada pelas Realizamos um estudo em nossa pesquisa de mestrado, sob o título: “Uma edição de si: as meninas do Y ouTube” em que relacionamos esse tipo de subjetividade surgida na era da comunicação digital a uma espécie de “edição de si”. 8 O Drumeo (https://www.youtube.com/user/freedrumlessons/videos) seria um exemplo do primeiro caso e o Cinemassacre (https://www.youtube.com/user/JamesNintendoNerd/videos) do segundo. Para um exemplo de lifestyle podemos citar o Verdeliss (https://www.youtube.com/user/Verdeliss/videos), última visualização em 30.9.2017. 7
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conselheiras de beleza. Uma das razões dessa escolha é a percepção de que com os canais de práticas de embelezamento se “consolidou” um tipo de linguagem televisual que é a mescla do que se aprendeu com a televisão unidirecional e aquilo que se desenvolve como expressão pessoal diante da câmera. Chamo de conselheiras de beleza um grupo de mulheres de diferentes localidades, com idade e classe social variadas, que realizam vídeos amadores sobre práticas de embelezamento. Esta denominação que atribuímos à atividade que elas realizam, mediadas pelo vídeo na rede, justifica-se como uma espécie de atualização das conselheiras de beleza de outrora, como as que estavam no rádio, nas colunas de revista, nos programas televisivos ou das vendedoras do tipo porta-a-porta de algumas marcas tradicionais de cosméticos. As variadas formas de encontro que as audiências desse tipo de assunto tinham como fonte (revistas, o rádio, a TV, a reunião domiciliar) eram determinadas por uma localização espacial e temporal pré-estabelecida, o que se altera radicalmente com a migração deste tipo de prática para a Web. Agora, as conselheiras estão online e por isso o tempo de se embelezar e de encontrar novas amizades é expandido para qualquer hora e lugar onde haja conexão com o ciberespaço9. Muito embora o tema do feminino relacionado à beleza já tenha sido rebatido e criticado pela história do movimento feminista, ele ainda nos rodeia e costuma impor-se às mulheres em certa faixa de auto-percepção que mais desautoriza que as libera dos modelos de discurso do gênero feminino a serem seguidos. O que vimos nesta experiência com os vídeos das conselheiras de beleza nos pareceu bastante peculiar, na medida em que algo se produz para capturá-las mas também gera outras experiências relacionadas à criação de uma nova profissão ou ainda a descoberta de um novo jeito de construir uma comunicação intersubjetiva. Talvez isso possa até mesmo confluir para o debate atual sobre empoderamento feminino. Virgínia Woolf em seu célebre ensaio Um teto todo seu (WOOLF, 1990), advoga Entendo ciberespaço na acepção de Pierre Lévy, proposta em seu livro Cibercultura, como um “novo espaço de comunicação, de sociabilidade, de organização e de transação, mas também novo mercado da informação e do conhecimento.” (LÉVY, 1999, p. 30) 9
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pela necessidade de um lugar separado das atribuições da vida social e familiar para se cultivar certa auto-percepção sobre si e pensar de forma crítica o existir, através da escrita. Buscava- se, também, entender a autonomia das mulheres pautada por uma possível independência financeira. “Dêem-lhe um quarto próprio e quinhentas libras por ano, deixem-na falar livremente e ponham de lado metade do que ela agora afirma, e um dia desses ela escreverá um livro melhor.” (WOOLF, 1990, p.116). Ainda que a produção de vídeos sobre, por exemplo, como se maquiar, cuidar dos cabelos, avaliar a qualidade de um cosmético, um passeio num dia de compras, possa parecer algo fútil, entendemos que progressivamente esta circunstância abriu espaço para que muitas delas aprendessem a se comunicar por meio da rede, criando de forma voluntária uma espécie de programa televisivo voltado a uma conversa bastante próxima e íntima com as “meninas” - modo carinhoso de chamar a audiência cativa. De certo modo este processo atualiza a prática problematizada na narrativa de Virgínia Woolf, ampliando-lhe o sentido. É desde o quarto, por vezes, o banheiro ou outro cômodo da casa que estas pessoas contribuíram decisivamente para a invenção de uma categoria de negócio no ramo da beleza, que vem mudando as estratégias de publicidade das empresas e, por isso, mais recentemente, foram reconhecidas na Web como “influenciadoras digitais” (do inglês digital influencer). Consideramos importante ressaltar que esta atualização da profissão de conselheira de beleza, como percebemos em nossos estudos, altera também o valor do trabalho doméstico, ou ainda, do reconhecimento público da atividade daquelas que estão dentro de casa. Seriam as novas conselheiras de beleza, donas de casa que aprenderam como transformar seu lar em um estúdio de gravação e as suas dicas e saberes triviais em pautas para seus programas? Vamos desviar desta resposta para acrescentar um dado que consideramos pertinente: alguns dos companheiros dessas empreendedoras digitais vêm se desligando de seus empregos formais na empresa, no escritório, para compor uma pequena equipe de trabalho, juntamente às esposas e namoradas10. São exemplos desta condição as Y ouTubers: Fabi Santina <https://www.youtube.com/user/fabisantina/videos>. Taciele Alcolea <https://www.youtube.com/user/barbiepahetaci/videos> Niina Secrets <https://www.youtube.com/user/NiinaSecrets/videos>. Flávia Calina <https://www.youtube.com/user/Fla1982/videos>. 10
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As bases desses vídeos amadores realizados por essas “meninas” conselheiras de embelezamento partem de uma relação bastante intuitiva com o aparato tecnológico e ao mesmo tempo mimética sobre alguns aspectos. Assim como nos foi permitido criar conteúdo para a Web sem dominar a linguagem dos computadores, a relação com o vídeo se deu pelo uso do equipamento desvinculado de um aprendizado específico. O que ocorre é que as formas de edição do vídeo e de uso de sua possibilidade expressiva, não avançaram muito além do que se fazia na televisão ao vivo (improviso, tomadas diretas, pouca edição, incorporação de ruídos, etc) e, por outro lado, reafirmaram certa perspectiva naturalista das histórias e fatos mostrados na televisão broadcast (como a novela, o programa de entrevistas, o comercial). Como efeito desta convenção, uma característica desses vídeos sobre embelezamento é propor uma conversa descontraída e, em certa medida, muito próxima à audiência. Imagina- se que a conselheira não se preocupa quando algo “sai errado” durante a gravação, porque ela faz dos seus interlocutores pessoas de seu convívio íntimo, para quem não haveria nenhum problema caso o nome de um produto fosse pronunciado incorretamente – o estrangeirismo no nome do cosmético é algo comum. O creme derrubado, o enquadramento ou foco da câmera desfeito, uma pausa que fica demasiado longa porque se esqueceu do script... Se um produto cai, coloca-se o mesmo novamente em seu lugar, e se for preciso mexer na posição da câmera ou no foco, tudo bem. Ao invés desses imprevistos serem corrigidos nos vídeos subsequentes, aos poucos foram assimilados como possibilidades desse tipo de evento. É com naturalidade que essas mulheres costumam lidar com as surpresas do “aqui e agora” sem ter que efetuar cortes ou edições das partes “reais” da vida. Outro exemplo interessante é o tipo de comentário que se tece enquanto uma situação está sendo contornada. A audiência é de fato envolvida na conversa, a ponto dela mesma ser impelida a responder instantaneamente ao diálogo. Por exemplo, durante a gravação do vídeo alguém entra sem avisar no quarto (o set). Enquanto escutamos o áudio da porta sendo aberta, vemos a garota direcionar seu rosto para trás e avisar a quem está ali – geralmente a mãe, o irmão, a avó – que está gravando. O vídeo não é interrompido, ele continua normalmente, apenas avisa-se à audiência: “era a minha avó”, risos. E é como se
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ouvíssemos do outro lado da tela: “sem problemas”, risos. Em outra situação, ouve-se o toque do celular e assim a conselheira de beleza comenta: “foi o meu celular não foi o de vocês não precisa procurer aí...”11. E deste lado de cá, respondemos: “ok!”. Estes dois exemplos seriam motivos para se interromper uma gravação. No entanto, foram incorporados à conversa sem a necessidade de cortes. Percebe-se que tudo é arranjado para garantir uma sensação de fluência natural do tempo. Ainda que a comunicação seja assimétrica – pois se tratam de pré-gravações – a conversa é vivida como “real”, já que é concebida como algo contínuo que não se interrompe. Em última instância, esses vídeos conseguem perpetuar o tempo de enunciação como um eterno presente conforme nos ensina Arlindo Machado, “[...] pois enquanto a fotografia e o cinema realizam congelamentos, petrificações de um tempo que, uma vez obtido, já é passado, a tevê e o vídeo apresentam o tempo da enunciação como um tempo presente ao espectador.” (MACHADO, 1990, p.76). A marca de atualidade que a televisão ao vivo inaugurou como linguagem no vídeo contribuiu de alguma maneira para que esse tipo de diálogo que as conselheiras realizam em seus vídeos pudesse ser instituído. Elas se apropriaram dessa experiência do aqui e agora, anteriormente exclusiva aos televisores espalhados pelo planeta, na televisão que estão produzindo no ciberespaço. Todavia, outras formas que não a de transmissão massiva também são referências para este fenômeno. Enquanto o modelo broadcast foi explorado como dispositivo da cultura do entretenimento, outros tipos de vídeo e por conseguinte de TV foram praticadas fora desse âmbito. Com o surgimento de máquinas portáteis – que em relação aos equipamentos dos estúdios, tinham operação simples, não eram pesadas nem difíceis de transportar – como o videotape (1952- 1956), o Portapack (1965) e o videocassete (1970), um tipo particular de expressão audiovisual começava a ser praticado por videomakers e artistas. O vídeo que estava sendo produzido e difundido fora do circuito televisual pôde investir no aprofundamento da função cultural da televisão, pois avançava-se na experimentação das possibilidades da linguagem (na época eletrônica), ao mesmo tempo
https://www.youtube.com/watch?v=pezaB17KliY&list=UUNWlx_0XxpUkci6PnCwH_dQ. Último acesso: em agosto de 2017.
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em que estava conectado com as inquietações mais agudas dos homens de nosso tempo. Ele executa, no domínio da televisão, uma função cultural de vanguarda, no sentido produtivo do tempo: ampliar horizontes, explorar novos caminhos, experimentar possibilidades de utilização, reverter a relação de autoridade entre produtor e consumidor… (MACHADO, 1990, p.10)
René Berger em seu livro The New Television (1977), que conhecemos por intermédio da obra do professor Arlindo Machado, nos apresenta uma classificação que consideramos preciosa para se compreender a dimensão estética e política das variantes da televisão fora de seu modelo convencional. Pensa-se em três modalidades: a macrotelevisão, a mesotelevisão e a microtelevisão. Seguindo a ordem enunciada, primeiro temos um modelo de TV voltado às grandes massas, cuja essência é a propaganda de produtos comercializáveis e/ou ideologias. Sua lógica de funcionamento é “one way ou unidirecional: a cada emissor hegemônico estão conectados milhões de receptores isolados que não lhe podem responder de forma autônoma” (MACHADO, 1990, p.37). Depois, viriam as televisões de pequeno alcance, tais como os sistemas regionais ou locais, que procuram um diálogo mais crítico com o público. Há, desse modo, a possibilidade de mudança de papéis, alternando a presença que ficava diante da tela ou no ar: “A dinâmica emissor-receptor é alterada para a de interlocutores (...) a noção de programa perde o seu caráter categórico, enquanto a distinção tradicional entre profissionais e amadores tende a ser abolida” (MACHADO, 1990, p.37). Por último, com a microtelevisão temos pessoas reunidas para fazer TV com equipamentos portáteis de vídeo e difundir essa produção em circuitos fechados. O leque de proposições vai desde a atividade
militante
até
experimentações
de
linguagens
pouco
convencionais
(consideradas como videoarte). Dada a acessibilidade desses equipamentos, a possibilidade de qualquer pessoa poder produzir e mostrar programas tornou-se um fato. Além disso, a lógica de operação dessas máquinas tem autonomia quase total quanto a um suporte laboratorial técnico. Estabelece-se nesse tipo de TV uma relação de interoperadores, ao invés da costumeira conexão emissor-receptor ou interlocutores, “isto é, as pessoas estavam aptas à comunicação eletrônica no nível de domínio de tecnologia” (MACHADO, 1990, .p.37).
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O YouTube, como vimos, desde seu nome sugere algum ponto de aproximação com a televisão, o que procuramos investigar. Sem o intuito de esgotar o assunto, demos atenção a algumas passagens dessa história da televisão e do vídeo que nos encorajaram a apresentar uma leitura do YouTube – essa parte relacionada aos vídeos amadores de embelezamento – como uma TV híbrida dessas três (macro, meso, micro) na classificação de Berger e descritas na sua possibilidade expressiva por Arlindo Machado. Vale lembrar que, do ponto de vista da organização de conteúdos postados no YouTube, estes se assemelham à estrutura mais elementar da macrotelevisão, com canais e programação diversa – no nosso caso, variações em torno do tema da beleza. Além disso, o canal vem com um marcador de audiência embutido. No menu de opções para interação do usuário é oferecida a possibilidade de se inscrever (subscribe) no canal e receber aviso de novas publicações. Com isso, é possível contar o número de assinaturas e o de acessos a cada vídeo. Essa informação é visível abaixo do quadro onde aparece a imagem, nos cantos esquerdo (subscribe) e direito (views), respectivamente. É possível também opinar diretamente sobre o que se assiste, com a escolha de curtir ou não (a famosa mãozinha com o polegar esticado e os outros dedos dobrados)12, o que difere substancialmente da pesquisa de opinião clássica e contém, portanto, traços de mesotelevisão. Dessa maneira, vemos que aspectos da lógica de avaliação de programas vistos na televisão de escala planetária se transferiram para a plataforma. Com a estrutura de contagem dos seguidores (ou “meninas”, como foram apelidadas na rede da beleza) e suas opiniões, inevitavelmente o cálculo efetuado se torna termômetro de aprovação ou não desses eventos. De modo efusivo, elas costumam agradecer nos próprios vídeos às pessoas que as assistem e incentivam a continuidade do canal. Quando este número atinge um novo marco – para algumas pode ser de mil inscritos, para outras ultrapassar a casa dos cem mil e até o desejado um milhão –, faz-se um vídeo comemorativo, uma festa em agradecimento a todos que tornaram, como elas dizem, “esse sonho possível”. Esse sonho, referindo-se ainda à TV broadcast, também tem que ver com a especulação
Cabe dizer que, além dessa contagem numérica, há a possibilidade de publicar um comentário escrito, o que aborda essa avaliação sobre os vídeos de forma menos estatística. 12
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comercial que elas gradativamente – por causa da audiência – negociam com o YouTube e empresas que desejam vincular a publicidade de seus produtos a essas mulheres e seus vídeos. É uma dupla satisfação: pessoal e profissional. Como se trata de uma televisão alternativa, podemos entender a plataforma a partir de seus usuários. Uma considerável parcela dos canais no YouTube são de responsabilidade de pessoas comuns e se realizam em condições bastante informais com relação a um laboratório ou estúdio de TV. Apesar dos resultados de audiência vinculados à lógica de difusão em massa, sabemos que as mesmas não se constituem exatamente como um grupo oficial de televisão. São muitos e pequenos canais ao invés de poucas e grandes emissoras. No YouTube somos todos interlocutores em potencial (mesotelevisão). Entretanto, como os assuntos vão ficando muito parecidos – é comum a repetição das mesmas práticas de beleza e tipos de vídeos – temos uma oferta massiva de conteúdos pasteurizados com efeito semelhante ao desenvolvido pela TV unidirecional. A quebra da hierarquia emissor-receptor no YouTube parece bastante instável. Há uma certa propensão a uma outra fórmula de comunicação que a seu modo reitera o modelo clássico broadcast. Para completar, queremos incluir uma estratégia recente de divulgação desses canais do YouTube que já foi exclusiva da televisão por assinatura. Já aparecerem nos outdoors da cidade de São Paulo anúncios sobre essas produções amadoras, incentivando o acesso à plataforma para, por exemplo, aprender a se maquiar com uma Y ouTuber (quem faz vídeo para o YouTube). Veja (FIG.1):
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DOSSIÊ A televisão das meninas do YouTube Grasiele Silva de Sousa
FIGURA 1: Publicidade de ponto de ônibus na região do centro da cidade de São Paulo. FONTE - acervo da autora, novembro de 2014.
Do ponto de vista estético, não arriscaremos um diálogo entre as investigações do vídeo como linguagem não convencional e o universo de produção audiovisual sobre embelezamento. No entanto, se percebemos nessa apropriação do vídeo por artistas e videomakers a vontade de emitir ideias próprias, teremos encontrado, guardadas as devidas distâncias, um ponto de contato entre a microtelevisão e os vídeos amadores do YouTube. Pois há ali também quem se dedique a gravar ideias que transmitem um olhar bastante particular e sensível. O caso é que o tema em voga é o de falar sobre si. A arte de gravar em primeiro plano no YouTube. Sem prejuízo dessa conclusão, é possível, como vimos, perceber que o YouTube constrói uma singular articulação entre as três categorias propostas por Berger, macro, meso e microtelevisão.
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DOSSIÊ Percepções e proposições sobre interatividade narrativa na Televisão Digital Bruno Machado
Percepções e proposições sobre interatividade narrativa na Televisão Digital Bruno Machado1 Universidade de São Paulo Resumo: Pretende-se mapear algumas particularidades técnicas próprias da televisão e observar como estas inferem em uma linguagem, concretizada tanto durante o seu percurso analógico quanto no seu atual estado digital. Focando nas suas dimensões narrativas, partimos de autores como Raymond Williams, Arlindo Machado, François Jost, Mark Gawlinski, Almir Almas e Deisy Feitosa para observarmos como essas propriedades são trabalhadas ao nível da convergência digital. Pretende-se apontar proposições de como a interatividade digital pode, em conjunto com o fluxo televisivo, caminhar para a produção de dramas interativos formatados para a televisão. Palavras-chave: televisão; convergência digital; interatividade digital; fluxo televisivo. Abstract: This article intends to map some of the technical properties of television and to observe how they can relate to this media’s own language, either during its analogic phase or in its current digital state. Focusing on television’s narrative dimension, we bring authors such as Raymond Williams, Arlindo Machado, François Jost, Mark Gawlinski, Almir Almas and Deisy Feitosa to acknowledge how these properties can be found during the process of digital convergence. As we link these two branches of technology, we understand that digital interactivity, when empowered to the telespectator and along with Flow, can generate TV-based interactive dramas. Key words: television; digital convergence; digital interactivity; Flow.
Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais na Universidade de São Paulo USP) dentro da linha Poéticas e Técnicas, com orientação do Profº. Drº. Almir Almas. Bacharel em Cinema e Audiovisual pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), com intercâmbio na graduação de Artes Visuais no Instituto Politécnico de Bragança (IPB) em Portugal, através do Programa de Bolsas da UFRB. E-mail para contato: bruno.rpm@gmail.com
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DOSSIÊ Percepções e proposições sobre interatividade narrativa na Televisão Digital Bruno Machado
1. O Sintagma da Televisão Como toda a tecnologia de imagens, a televisão tem atiçado as mentes tanto da engenharia quanto da filosofia. Individualmente, esses grupos traçam suas trajetórias, aprimorando o aparato técnico, de um lado, e a linguagem estética de outro. Mas há como pensar este universo em separado? O imbricamento entre esses dois polos parece estar cada vez mais visível, onde as experimentações de aperfeiçoamento do aparato abrem possibilidades para a arte no mesmo patamar que as inquietude dos artistas jogam luz para novos caminhos de aprimoramento da técnica. Logo, ambos os lados contribuem para o efeito final da experiência do telespectador. Neste aspecto, a relação entre o funcionamento do aparelho de televisão e a essência das imagens televisivas povoam a teoria em busca de desvendar este meio. O teórico Raymond Williams faz parte deste grupo. Em 1974, o acadêmico publicou pela primeira vez o importante trabalho Television: Technology and Cultural Form , no qual trouxe observações pertinentes sobre a televisão, propondo inclusive um interessante modelo de análise. Neste livro, Raymond Williams propõem o conceito de fluxo televisual, ou seja, a ideia de que na televisão os limites entre um segmento e outro não são tão marcados como em outros meios. Williams propôs que uma mudança significativa foi se desenvolvendo durante a concretização deste meio, passando do conceito de sequência como programação para o conceito de sequência como fluxo, ou seja, “o que está sendo ofertado não é, em outros termos, um programa de unidades separadas com inserções particulares, mas um fluxo planejado, no qual a verdadeira série não é a sequência de programas, mas o fato desta sequência estar transformada pela inclusão de outros tipos de sequências” (WILLIAMS, 2008, p. 91). Para o autor, é necessário observar os comerciais (ou as divulgações da própria programação da emissora) não como interrupções, mas como partes de uma sequência própria, a qual está incrustada na sequência de programas. Assim, seria a composição dessas sequências que formam o fluxo planejado, o verdadeiro broadcasting. Este conceito de fluxo planejado é defendido pelo pesquisador, advindo da ideia de que os programas das Redes de Televisão já não são pensados independentemente, individualizados, pelo contrário, eles são pensados como partes da sequência real em que
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estarão inseridos. E portanto para ele, na unificação dessas diferentes sequências de conteúdo, um novo tipo de fenômeno comunicacional precisa ser reconhecido, consequentemente sendo importante também observar estas dimensões nos momentos de análise de trabalhos televisivos. Neste livro, Raymond Williams (2008, p. 93) argumenta que a própria experiência de assistir televisão pode estar relacionado ao contato do telespectador com o fluxo que foi planejado pela emissora. O pesquisador Arlindo Machado também traz no seu icônico livro A Televisão Levada a Sério (2008) observações sobre a programação televisual. O autor observa algumas proximidades com o pensamento de Williams, frisando que “a televisão costuma borrar os limites entre os programas, ou inserir um programa dentro do outro, a ponto de tornar-se difícil a distinção entre um programa ‘continente’ e um programa ‘conteúdo’” (MACHADO, 2000, p. 28). E, ao avançar sobre a linguagem televisiva, o autor mapeia como algumas particularidades do meio influenciam este formato de fluxo, como a transmissão direta e a serialização, por exemplo. Porém, Machado acaba por defender um certo nível de singularidade do programa de televisão, optando por um modelo de análise que destaca a unicidade dos programas. Em um variado levantamento de produções televisivas, que passa pelo jornalismo, pelas transmissões ao vivo de importantes acontecimentos e pelas produções narrativas, o professor Arlindo Machado propõem mapear características próprias de cada um desses formatos de produção, defendendo que os “programas e os gêneros continuam sendo os modos mais estáveis de referência à televisão como fato cultural.” (MACHADO, 2000, p. 29). Outro fundamental teórico da televisão é o francês François Jost. Partindo de observações acerca da programação dos canais, ele ancora seu livro Compreender a Televisão (2010) dentro da reflexão sobre o ponto de vista do telespectador, defendendo a ideia de que a televisão adaptou suas emissões ao ritmo da vida do público, seus horários e preferências. Como resultado, o autor conclui, as emissoras ao passar dos anos foram estruturando suas grades, a escolha dos conteúdos que serão emitidos em determinadas faixas horárias, em um procedimento que não é neutro, pois a “seleção, como a sucessão e a aproximação dos programas são criadores de sentido e contribuem para forjar a identidade da emissora” (JOST, 2010, p. 52).
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Neste estudo, Jost (2010, p. 87-88) aponta que pelo menos três motivos influem nas decisões estratégicas das redes de televisão em estabelecer suas grades de programação: os gêneros mais apropriados ao público visado para uma determinada hora; a programação que é ofertada em outros canais; e, por fim, as cobranças da publicidade. Jost conclui que “as emissões, hoje, devem, ao mesmo tempo, adaptar-se às mensagens publicitárias e de autopromoção e preservar os telespectadores, que são convocados incessantemente para novos encontros” (JOST, 2010, p. 88). Assim, respondendo a problemática de como difundir a cada semana um programa análogo ao que foi exibido na semana anterior, uma estrutura de grade foi sendo fortificada ao combinar dois eixos, um horizontal e um vertical. Nas definições do teórico, o eixo horizontal visa capturar a atenção da audiência o maior tempo possível na mesma emissora, enquanto o eixo vertical busca fidelizar os telespectadores através da recorrência de determinado produto durante os dias, semanas e até anos (JOST, 2010, p. 90). O que destacamos como importante desses trabalhos é observar como algumas particularidades deste meio foram se estruturando como linguagem e que ainda hoje são fortemente definidores da estética dos conteúdos televisivos. Logo, notamos como esses autores destacam que o modus operandi da linguagem televisual tende a levar em consideração o fluxo, as interrupções comerciais, a divisão do conteúdo em blocos, a transmissão direta, a grade vertical, a grade horizontal e a narrativa serial.
2. E como fica com a Televisão Digital? Como já especifica em sua nomenclatura, na televisão digital o sinal de transmissão e recepção de imagem e som é de natureza digital, ou seja, toda informação é codificada, de forma binária, em dados. Esta é a principal diferença com a televisão tradicional, que codifica de maneira analógica seu sinal, acrescentando algumas novas funcionalidades e possibilidades para a linguagem televisual, como a multiprogramação e a interatividade, por exemplo. A pesquisadora Deisy Feitosa, em sua tese de doutorado A televisão na era da convergência digital das mídias: uma reflexão sobre a comunicação comunitária (2015), traz uma ampla explicação sobre padrões, funcionamento e potencialidades da televisão
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digital, para chegar nas definições da televisão digital brasileira. Fazendo comparações entre diversos países, a autora destaca que um padrão de TV digital é constituído por especificações técnicas essenciais para a realização da difusão e recepção do sinal de TV, como, por exemplo, o middleware, o sistema de codificação de áudio e vídeo e o sistema de transporte e a transmissão do sinal. Assim, nessas etapas, ocorre a preparação e o envio de fluxos de vídeo, áudio e dados que serão acessados pelo telespectador, onde o sinal a ser enviado passa por um processo de conversão do formato analógico para o digital (FEITOSA, 2015, p. 81). Resumidamente, as etapas de difusão e recepção do sinal de TV, no sistema digital, ocorrem da seguinte maneira: as informações (áudio, vídeo e dados) transportadas do emissor para o receptor são codificadas, comprimidas, encapsuladas em pacotes (fluxos elementares de áudio, vídeo e dados), multiplexadas, enviadas pelo MPEG-TS para serem moduladas e depois captadas por uma antena ou recebida por cabos. Em seguida, o fluxo é sintonizado, demodulado, demultiplexado (os dados são extraídos dos pacotes) e, enfim, decodificado para o conversor ou receptor de televisão. (FEITOSA, 2015, p. 82)
Um dos ganhos mais festejados com a transmissão em sinal digital é a melhora da qualidade de imagem e áudio, tornando-se cada vez mais superior devido ao processo de correção de erros. Mas essa transmissão em digital também traz novas potencialidades ao garantir um ganho de espaço na banda de frequência. Como nos lembra Feitosa, isso ocorre porque com a compactação digital o sinal pode ser fragmentado de ¼ até 1/10, possibilitando à banda comportar um número de 4 a 10 canais num espaço de 6Mhz, o mesmo espaço este que antes na TV analógica brasileira era ocupado por apenas um canal. Esta tecnicalidade possibilita a chamada multiprogramação, onde uma mesma rede de televisão pode exibir simultaneamente programas diferentes no mesmo horário (FEITOSA, 2015, p. 80). Assim, para que áudio, vídeo e dados, originários do módulo de produção de conteúdo da rede de televisão, possam ser transmitidos pelo canal de transmissão, eles precisam ser adequadamente comprimidos, codificados e empacotados para que caibam no espectro de 6Mhz. Dessa forma, torna-se necessário um Terminal de Acesso para receber esses pacotes de dados e poder realizar a descompressão e a conversão de sinais
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digital novamente em sinais analógicos. Esta função é realizada pelo conversor, ou Set-Top Box (STB), acoplado ao aparelho televisor. Este dispositivo que se encarrega de decodificar o sinal recebido é constituído por softwares e hardwares distribuídos em cinco camadas: aplicações, middleware, compressão, transporte e modulação (FEITOSA, 2015, p. 83). O middleware é considerado o alicerce da proposta de convergência digital, oferecendo ao televisor funções de um computador, já que é o responsável pelo funcionamento das aplicações interativas. Este elemento tem esse nome pois situa-se entre a camada de hardware e a de aplicações, sendo capaz de esconder toda a complexidade dos mecanismos dessas duas camadas, ou seja, ele basicamente faz a interface entre o hardware do Set-Top Box e as aplicações de software, onde a primeira provê o serviço de transporte dos dados e utilização dos recursos do terminal (compressão, transporte e modulação), enquanto que a segunda é composta pelos aplicativos e serviços do sistema de TV digital (aplicações) (BRENNAND; LEMOS, 2007, p. 100). Assim, “as aplicações que executam na TV digital interativa usam uma camada de middleware, que intermeia toda a comunicação entre a aplicação e o resto dos serviços oferecidos pelas camadas inferiores” (MONTEZ; BECKER, 2005, p. 82). Deisy Feitosa pontua que esta camada de interfaces de aplicativos permite a troca de informações do telespectador com a emissora de televisão, “por meio de áudio, vídeo ou dados, troca esta também chamada, nesse contexto, de interatividade” (FEITOSA, 2015, p. 82). Esta interatividade possibilitada pela transmissão em sinal digital pode ser então de três tipos: Interatividade Local (o conteúdo é transmitido unilateralmente para o receptor, de uma só vez, e o usuário pode interagir livremente com os dados que ficam armazenados no seu receptor); Intermitente (a interatividade é estabelecida a partir da troca de informações por uma rede à parte do sistema de televisão, como uma linha telefônica por exemplo. O recebimento das informações ocorre via ar, mas o retorno à central de transmissão se dá pelo telefone); e Plena (o usuário da TV digital necessitaria não apenas de antenas receptoras, mas também um canal de retorno transmissor para um contato direto com a emissora de televisão). Logo, o primeiro tipo de interatividade permanece ao nível do Set-Top Box, enquanto os outros dois ficam condicionados também a um canal de retorno. Com a transmissão em sinal digital, estas inovações tecnológicas apontadas aqui, como
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a multiprogramação e a interatividade, foram acrescentadas ao modus operandi da televisão, ficando a disposição para as emissoras utilizá-las criativamente em sua produção de conteúdo.
3. Televisão Digital Interativa: o que falta para o drama televisivo interativo? Para o pesquisador Mark Gawlinski (2003), a Televisão Interativa pode ser definida como qualquer coisa que permita um diálogo entre telespectador(es) e o canal de televisão. No livro Interactive Television Production, o autor pontua que as experiências entre a televisão e as possibilidades com a interatividade não é algo novo, pois há, desde os primeiros tempos da televisão, o interesse dos produtores e das grandes redes em criar programas mais participativos e dinâmicos com o público de casa. Tomando assim de partido essas primeiras observações, Gawlinski (2003, p. 5) conceitua a Televisão Interativa como um diálogo que leva o espectador para além da experiência passiva de assistir, permitindo que eles façam escolhas e tomem ações – mesmo que as ações sejam simples como preencher um cartão e deixá-lo no correio ou fazer um desenho na televisão. Neste trabalho, Gawlinski (idem, idem) destaca que essas experiências de participação
do
telespectador
foram
se
aperfeiçoando
através
dos
recentes
desenvolvimentos com a tecnologia, o que permitiu novas possibilidades para a televisão interativa. Em particular, as tecnologias de transmissão digital tornaram possível transmitir muito mais informação dentro de uma específica largura de banda, permitindo que os canais transmitam não só uma melhor qualidade de áudio e vídeo como também informação extra que se torna disponível para o público de acordo com sua vontade. Assim, o autor defende que as produções que exercitam as potencialidades dessas tecnologias digitais permitirão aos produtores de televisão explorar, em conjunto com os telespectadores, novos meios de interação. Em um vasto levantamento de exemplos e de propostas de produções interativas, Mark Gawlinski (2003, p. 12-26) trabalha neste livro alguns diferentes modelos que a tecnologia digital possibilita em termos de Televisão Interativa, dos quais destacamos os três exemplos a seguir: Televisão Expandida (Enhanced Television), a Televisão Pessoal (Personal Television) e a Internet na Televisão (Internet on Television). Para o autor, a Enhanced Television é um serviço que permite que os telespectadores, através de textos e 108
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gráficos integrados na programação, interajam com o canal de televisão, acessando informações extras enquanto continuam a assistir ao programa. Já a Televisão Pessoal é o serviço que dá ao telespectador a possibilidade de gravar e pausar a programação dos canais, permitindo que cada telespectador siga sua própria programação. Por fim, o modelo de Internet na Televisão é o serviço que permite ao público ver e usar informação disponível na internet através do aparelho televisivo. Em nossa leitura do trabalho de Gawlinski, frisando nosso interesse em pensarmos a construção de uma narrativa televisiva interativa, tendemos a nos focar nas suas observações sobre Televisão Expandida. Em Interactive Television Production (2003, p. 18), ele aponta uma grande vantagem deste modelo2, defendendo a ideia de que a interatividade a este nível pode incitar a participação do telespectador e até mesmo proporcionar novas experiências estéticas, já que neste tipo de tecnologia (...) a interatividade ocorre em estreita conjunção com algo que é provado ser imensamente popular e convincente - um programa de televisão. Como os espectadores podem continuar a assistir o programa, eles estão mais propícios a interagir. Além disso, a interatividade pode agregar valor ao próprio programa, talvez até mesmo alterando a experiência do espectador. (GAWLINSKI, 2003, p. 18)
Convergimos seu pensamento com o que já falamos anteriormente, apontando que neste modelo de Televisão Expandida a interatividade pode ser tanto local, intermitente ou plena. Para analisarmos alguns exemplos de programação interativa, utilizamos o canal britânico BBC como modelo. Esta Rede de Televisão atualmente mantém dois serviços de televisão interativa, o Red Button (Televisão Expandida) e o Red Button Plus (Internet na Televisão). O Red Button é o serviço padrão, acessível para a grande parte das televisões digitais, sem a necessidade de conexão com a internet; enquanto que o Red Button Plus é o serviço de Televisão Conectada, disponível em SmartTV e em Set-Top Box específicos, como o TiVO e o Y ouView, que possibilitam acesso do telespectador a conteúdos disponíveis nas plataformas do canal na internet.
As observações aqui feitas partem de um relatório disponibilizado pela própria BBC em seu site. Dados disponíveis em <http://www.bbc.co.uk/guidelines/futuremedia/desed/itv/itv_design_v1_2006.pdf>; Último acesso em Julho de 2017. 2
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Os dois exemplos permitem que a audiência acesse um complemento adicional da programação televisiva, como cobertura extra de eventos esportivos e culturais, loteria, meteorologia, assim como notícias globais e nacionais. Porém, para telespectadores com uma SmartTV, o Red Button Plus é o canal de acesso para os produtos digitais da BBC, através do aplicativo BBC iPlayer, onde a audiência pode descobrir e assistir seus programas favoritos on demand, inclusive independentemente da programação linear do canal. Ou seja, neste segundo, a internet não se comporta apenas como um canal de retorno, mas também como um Canal de Transmissão (sob demanda). De uma certa forma, tanto na Televisão Expandida quanto na Televisão Conectada à Internet um conteúdo principal continua sendo transmitido pela canalização, e as possibilidades interativas podem partir desta programação linear (GAWLINSKI, 2003, p. 1521). No caso da BBC, observamos alguns exemplos de aplicativos de interatividade que permitem que o telespectador permaneça assistindo à programação linear oferecida pelo tradicional broadcasting enquanto navega, ao mesmo tempo, por um conteúdo extra (mosaicos informativos, notícias, meteorologia, ficha técnica da programação etc). Porém, eles também podem permitir que o telespectador rompa o fluxo televisivo, permitindo que ele tenha uma liberdade em não mais seguir a programação linear proposta pelo canal, se comprometendo mais tempo com um programa especifico ou com a gravação de uma programação já exibida anteriormente (Televisão Pessoal). Destacamos entre os aplicativos para a televisão digital feitos pela BBC o programa Spooks Interativo, graças a sua experimentação no campo do drama interativo. Spooks foi uma série dramática com toques de ação e aventura que originalmente foi ao ar pelo canal BBC One na Inglaterra entre 13 de Maio de 2002 e 23 de Outubro de 2011, consistindo de 10 temporadas. Na trama, a série acompanha o trabalho de um grupo de espiões do MI5, em uma narrativa cheia de conflitos e reviravoltas. Em 2004, como um suporte para a terceira temporada da série, a BBC One lançou via TV Digital um drama interativo no formato de game. Após a exibição do episódio da semana, o aplicativo ficava disponível e a audiência poderia acioná-lo sem a necessidade de internet ou de qualquer canal de retorno, saindo do fluxo da programação linear e concentrando-se nas tarefas que o jogo permitia através de uma interatividade local.
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Porém, notamos que ao liberar o telespectador do fluxo programado, Spooks Interativo tornava-se totalmente independente das outras produções do canal e da própria série, já que a sua trama não se desenvolvia pelo aplicativo. Mais do que isso, a experiência deste drama interativo não trabalhava com as possibilidades narrativas proporcionadas pelo fluxo televisivo, como designado por Arlindo Machado, a saber: a serialização do enredo, o gancho de tensão provocado pela interrupção dos intervalos, e a combinação do seu conteúdo entre os comerciais publicitários e os trailers de outras produções da emissora (MACHADO, 2000, p. 28-30). No texto Televisão Digital: quando chega a interatividade? (2009), o pesquisador Almir Almas constata que a televisão digital precisa ser vista não só no campo do aparato técnico como também no campo da tecnologia de produção de conteúdo. Para o autor, um programa de televisão deve observar as novas aquisições tecnológicas como possibilidades de linguagem, ou seja, não só o aparato sofreu modificações como também a produção audiovisual passa a necessitar de um diálogo com a engenharia de software, já que agora “toda a produção de vídeo e áudio tem de ser agora transformada em dados para conversar com um sistema cibernético construído para gerar e possibilitar a interatividade” (ALMAS, 2009, p. 166). Logo, adicionada esta dimensão, o autor pontua que se torna fundamental também trazer para o debate a formatação estética destes conteúdos, ou seja, como mostrá-los ou disponibilizá-los para o telespectador. Por mais que Spooks Interativo traga estas experiências de interatividade para o contexto da televisão digital, não conseguimos ver neste aplicativo uma linguagem televisiva como apontadas pelos autores aqui trabalhados. Acreditamos que, nesta obra, ocorre uma transposição de um conteúdo televisivo para o universo dos games, mas que ao final ele funciona totalmente à parte da narrativa canônica da série. Ao nos depararmos com este produto, nos questionamos sobre a possibilidade de construir programas de televisão que, ao trazer as dimensões cibernéticas para a produção, pensem também nas dimensões do fluxo planejado e, logo, nas potencialidades narrativas que este possibilita.
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Conclusões Através do percurso que fizemos até aqui, acreditamos na necessidade de coincidir dois caminhos quando pensamos na produção de uma obra narrativa televisiva interativa: ela deve tanto manter as características que firmaram a grade das emissoras quanto trazer as novidades tecnológicas possibilitadas pela TV Digital. Primeiro, porque mantém as particularidades deste meio, diferenciando-se de conteúdos interativos para outras mídias como o cinema de museu ou a internet. Segundo, porque se mantém próxima do seu público habitual, tornando-se uma possibilidade de produção criativa e diferenciada ou uma expansão narrativa de um mesmo trabalho, muito mais do que um conteúdo extra de propaganda e divulgação, como é o caso de Spooks Interativo. Como o modelo de negócio da televisão mantém-se fiel ao fluxo linear da programação, declaramos que uma solução possível para as narrativas interativas é descobrir saídas dentro deste parâmetro, em vez de abandoná-lo por completo. Podemos apontar de primeira mão algumas possibilidades, como: utilizar de mosaicos/textos escondidos, mas que podem ser acessados por interatividade local, como elementos narrativos, reforçando o tema pensado pelos roteiristas; utilizar da multiprogramação em conjunto com o tempo direto para desmembrar uma narrativa em diversos pontos de vista mas que ocorrem no mesmo instante; utilizar das interrupções para exibir aos telespectadores, que se mantiveram no fluxo, o que ocorreu em outras linhas narrativas; utilizar dos blocos de conteúdo para diversificar uma multinarrativa dentro do fluxo linear, instigando a curiosidade e o suspense. Essas opções apresentadas partem da nossa proposta ideal de manter um fluxo linear, de onde as ramificações podem insurgir (mas sem obrigação para o telespectador) em uma rua de mão dupla, pois todas elas devem convergir com esta narrativa básica em alguns momentos específicos para sincronizar a interrupção para os comerciais, mantendo intacta a noção do fluxo. Assim, a dúvida governante que propomos manter em mente é a probabilidade de um programa de conteúdo dramático ficcional utilizar das possibilidades interativas, trazidas pela televisão digital, e ao mesmo tempo trabalhar com um sintagma narrativo já sedimentado pela linguagem televisiva clássica.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMAS, Almir. “Televisão Digital: quando chega a interatividade?” In: NUNES, Pedro. Mídias Digitais e Interatividade. João Pessoa, PB: Ed. Universitária da UFPB, 2009. BRENNAND, Edna & LEMOS, Guido. Televisão digital interativa: reflexões, sistemas e padrões. São Paulo: Ed. Mackenzie, 2007. FEITOSA, Deisy Fernanda. A televisão na era da convergência digital das mídias. Uma reflexão sobre a comunicação comunitária. 2015. 372p. Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015. Disponível em <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27152/tde-24112015101553/publico/DEISYFERNANDAFEITOSAVC.pdf>; Último acesso em Agosto de 2017. GAWLINSKI, Mark. Interactive Television Production. Londres: Focal, 2003. JOST, François. Compreender a Televisão. Porto Alegre: Ed. Sulina, 2010. MACHADO, Arlindo. A televisão levada a sério. São Paulo: Ed. Senac, 2000. MONTEZ, Carlos; BECKER, Valdecir. TV Digital Interativa: conceitos, desafios e perspectivas para o Brasil. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2005. WILLIAMS, Raymond. Television: Technology and Cultural Form . London & New York: Routledge, 2008.
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LIVRE O remix que faz rir: Auto-Tune e humor no YouTube Haroldo França
O remix que faz rir Auto-Tune e humor no YouTube Haroldo França1 Universidade de São Paulo Resumo: No site YouTube é grande a produção de vídeo remixes, montagens feitas a partir do reaproveitamento e manipulação de outros vídeos e áudios exibidos previamente em diversos meios midiáticos. Muitos desses vídeos são cômicos. No Brasil e no exterior é popular a criação de music videos que tem como principal característica a transformação de falas, diálogos e discursos orais em canções, por meio de softwares de manipulação sonora como o Auto- Tune e Melodyne. Meu objetivo nesse estudo foi investigar as características e técnicas usadas em uma amostra de vídeos desse tipo, com enfoque na questão do humor e da cultura remix, em três canais do site YouTube (TimbuFun, AtillaKw e Viradrop). Para compor a base dessa análise, tomei como principais referenciais Henri Bergson, Henry Jenkins, Lawrence Lessig e Lev Manovich. Palavras-chave: Cultura remix; Auto-tune; Comédia. Abstract: On YouTube there is a great production of video remixes, montages made from the reutilization and manipulation of other videos and audios previously exhibited in various media. Many of these videos are comical. In Brazil and abroad is popular to create music videos that have as its main characteristic the transformation of speeches, dialogues and oral discourses in songs, through sound manipulation softwares such as Auto-Tune and Melodyne. My aim in this study was to investigate the characteristics and techniques used in a sample of videos of this type, focusing on humor and remix culture, in three YouTube channels (TimbuFun, AtillaKw and Viradrop). To compose the basis of this analysis, I took as main references Henri Bergson, Henry Jenkins, Lawrence Lessig and Lev Manovich. Key words: Remix culture, Auto-Tune, Comedy. Mestrando no Programa de Pós Graduação em Meios e Processos Audiovisuais da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, sob a orientação da Profª Drª Patrícia Moran Fernandes. Graduado em Comunicação Social pela Universidade Federal do Pará (2009). E-mail: haroldo.com@gmail.com
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LIVRE O remix que faz rir: Auto-Tune e humor no YouTube Haroldo França
A internet transformou o mundo em um arquivo. A experiência de viver e recordar fatos políticos, históricos, pessoais e afetivos é mediada pelas redes sociais, nas quais boa parte do material publicado fica salvo para consultas posteriores, em meio a comentários, curtidas e avaliações. Além de consultarem, os usuários eventualmente podem baixar o material disponível (texto, imagem, áudio) e nele inserir interferências, opiniões, diálogos com outros materiais e em seguida publicar novamente na rede. Esse ciclo infinito de postagem e reapropriação – ou remixagem – é o que define a atual experiência de ler e escrever o mundo nos meios virtuais. O termo “remix” é comumente descrito como uma técnica específica de reciclagem de produtos culturais pré-existentes. Como exemplos, podemos citar o remix musical, que usa parte da música original para criar uma outra música; os anime music vídeos (AMV’s), que colocam cenas de desenhos animados japoneses ao som de canções pop ou mesmo dublagens feitas em cenas de telenovelas, alterando seu contexto e significado. Lev Manovich (2012), pesquisador na área de novas mídias, afirma que estamos vivendo uma cultura remix. A partir da publicação do livro “O Gene Egoísta”, lançado por Richard Dawkins em 1976, a expressão meme se tornou difundida pelo senso comum e está ligada à repetição e replicação de uma mesma informação, com diferentes apropriações. Neste livro, o autor usa o conceito de meme como expressão cultural do gene, unidade básica de informação ou memória que um ser humano transfere conscientemente para outro. O termo tem origem na palavra grega “Mimeme”, que significa “algo que é imitado”. A principal característica do meme é a reinvenção. Outro termo conhecido é “viral”, que se refere a uma unidade de informação – que pode ter teor cômico ou não – que se espalha rapidamente pela rede, sem sofrer intervenções. Portanto, a diferença entre um viral e um meme é essa: enquanto o primeiro se espalha em sua integridade, o segundo evolui e se transforma constantemente. Um meme, portanto, é um remix, seja qual for sua linguagem: imagética, textual, sonora, oral ou audiovisual. Por meio de reapropriações, os usuários criaram um ambiente “festivo”, no qual tudo pode vir a ser uma brincadeira ou motivo de zombaria, como uma espécie de Carnaval ininterrupto. Esse é um terreno fértil para o exercício da criatividade e do
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humor. Esse humor é popular, pois sua expressão vem de todas as camadas sociais. Ao mesmo tempo, por ser compartilhado em rede, ganha contornos globais, que muitas vezes são assimilados pela cultura de massa. Nessa sociedade de ridentes, zomba-se das instituições religiosas, zomba-se dos políticos no poder, das celebridades, de anônimos, das crianças, dos animais de estimação, enfim, ninguém escapa da mira do humor na internet por um simples fato: todos estamos sendo vigiados. O riso é fruto de determinada cultura e sociedade (BERGSON, 1983). Quem faz rir, na internet, não são máquinas e nem entidades abstratas, e sim seres humanos. Pessoas fazendo outras pessoas rirem, tendo a mediação da tecnologia. Compreender o funcionamento disso pode ser interessante tanto do ponto de vista de quem trabalha com isso, quanto para a compreensão do ser humano atualmente. E para além disso, para quem pretende, hoje, trabalhar com humor no audiovisual e na internet, é recomendável também entender como funciona a cultura remix. Ainda que não seja possível explicar definitivamente a natureza do riso, ou seja, as condições suficientes para ter a certeza de que uma piada dita por alguém fará outra pessoa rir, o seu estudo pode nos ajudar a entender porque esta “funcionou” e aquela não. Sendo o humor um objetivo tanto da cultura popular como da alta cultura, é importante compreender seu modo de funcionamento. Digamos que seja publicado na internet um depoimento cômico em forma de vídeo. Esse material pode “viralizar” e se transformar em uma infinidade de memes. Suponhamos, então, que um desses memes faz um enorme sucesso, se tornando viral, e assim por diante. Nem sempre o material original (o primeiro) é cômico. Contudo, as alterações feitas a partir dele normalmente se pretendem risíveis. Por outro lado, um fotograma de uma novela nacional veiculada há uma década, que mostra uma mulher sorridente se olhando no espelho, pode ser transformado em um perfil no Instagram 2no qual todas as fotos postadas são esse mesmo frame, e o que varia é somente a legenda inserida na imagem. Os exemplos citados são hipotéticos, mas perfis desse tipo são comuns. Um meme é, portanto, uma forma de remixagem inserida em uma cadeia viral. 2
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Rede social baseada no compartilhamento de imagens.
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O objetivo principal dos memes cômicos de internet é provocar o riso, sem, necessariamente, ridicularizar ou diminuir alguém. Um dos memes mais expressivos que o Brasil já teve foi o da “Luíza no Canadá”. Em um comercial televisivo, um empresário apresentou a sua família, citando o nome de todos os que estão presentes, “menos Luíza, que está no Canadá”. Imediatamente depois da veiculação, se tornou meme, e qualquer frase que enumerasse pessoas ou objetos poderiam terminar com “Menos Luíza, que está no Canadá”. A repetição foi tão expressiva que algumas celebridades fizeram a piada publicamente, como o cantor Lenine e o apresentador William Bonner. Nesse caso, a figura de Luiza ou de seu pai não eram diretamente ridicularizadas. O divertimento se deu pela versatilidade que essa piada teve em se encaixar em diversos arranjos, a ser compartilhados por qualquer pessoa. A autoria desse tipo de trabalho nem sempre é reivindicada. Quanto mais sofisticada a técnica de reapropriação, maiores as chances de o criador assinar o trabalho, ou mesmo tentar se promover com isso, como no caso dos DJs que criam músicas remixando falas de vídeos que se tornaram muito conhecidos por seu teor cômico. Por outro lado, existem técnicas mais simples, chegando ao extremo oposto, quando no Whatsapp 3, por exemplo, é compartilhada a imagem de um grupo de zumbis, extraída de um filme qualquer, com a legenda “seguem fotos do final da festa de ontem”. Nesse caso, o sentido da imagem é alterado apenas pela legenda criada, não tornando necessários conhecimentos técnicos além dos que qualquer pessoa precisa ter se quiser manusear um smartphone. O domínio da tecnologia é, portanto, o que proporciona tal mediação entre nós e o mundo. Quem sabe operar sistemas mais complexos, como softwares profissionais de edição de áudio e vídeo, pode atrair bastante atenção se conseguir divertir as pessoas. Contudo, não se trata apenas do manuseio da tecnologia. Existem também as poéticas e técnicas – conscientes ou não – que norteiam as escolhas. Que material escolher? Porque combinar este com aquele? Inserir música ou não? Que tipo de música? Tudo isso faz parte da criação dessas obras. O presente estudo objetiva analisar remixes cômicos veiculados no site YouTube 3
Rede social e aplicativo de chat para smartphones.
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e que possuem como técnica a transformação de diálogos e falas cotidianas em canções, por meio de softwares como Auto-Tune e Melodyne. Para a análise, foi selecionada uma amostra de vídeos publicados pelos canais Timbu Fun, AtillaKw e ViraDrop. São canais que se dedicam a esse tipo de trabalho e, atualmente, são os três com maior quantidade de acessos. A questão estilística também foi levada em consideração, pois há, por um lado, diversas técnicas em comum utilizadas entre os três, e por outro, alguns traços próprios de cada um, que proporcionaram à amostra de vídeos uma diversidade e ao mesmo tempo uma familiaridade.
Correção e recriação do pitch O Auto-Tune surgiu em 1997, criado pela empresa Antares Audio Technologies, como um plug-in do software Pro Tools. Seu objetivo é a correção e afinação sonora na fase de pós- produção de gravação de música profissional, por meio da alteração do pitch (frequência) do som (KRAMER, 2014). Ele torna possível corrigir a afinação da voz de um cantor ou mesmo de um instrumento que não tenha entrado no "tom" correto da música. Além de ajuste de pitch, o aplicativo traz outras possibilidades como equalização, reverberação, e delay. O seu lançamento provocou mudanças significativas na indústria musical, tanto em termos técnicos como poéticos. O tempo gasto em diferentes tentativas de gravação de voz foi sensivelmente reduzido, pois uma gravação com pequenas falhas de afinação passou a poder ser aproveitada. Artistas que já faziam parte do cenário musical, como no caso do Hip-Hop, puderam experimentar novas formas de música, com a inclusão de trechos melódicos. Outros artistas que já cantavam passaram a experimentar novos efeitos sonoros por meio do software. Uma das variáveis do aplicativo se chama “Tempo de ajuste”. Para correções sutis, que não percam muito da naturalidade da voz, o tempo de ajuste deve ficar acima de 15. O que ocorre é que, seja por escolha estética ou inexperiência do produtor musical, são colocados valores abaixo disso e até zero, o que deixa a voz bastante robótica. O produtor musical Mark Taylor, que trabalhou no álbum “Believe”, da Cher (1998), experimentou configurar o tempo de ajuste em zero. O efeito, bastante exagerado,
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acabou agradando o público, de modo que a empresa Antares Audio Techologies conseguiu da artista permissão para divulgar que tal efeito era realizado com o software. O sucesso foi grande e, no final dos anos 90 e início dos anos 2000, o Auto-Tune prevaleceu na maioria dos estúdios de música pop (KRAMER, 2014). O produtor conhecido como T-Pain (Faheem Rasheed Najm) levou a sonoridade do tempo de ajuste em zero para o Hip Hop em 2003. Ficou tão conhecido por essa sonoridade específica que a Apple criou um aplicativo chamado “I Am T-Pain”, para usuários de iPhone, iPads e similares experimentarem o efeito na própria voz. Após essa popularização, o software de T-Pain passou a ser abertamente veiculado em programas humorísticos de televisão (KRAMER, 2014). Outros softwares foram lançados com o mesmo objetivo do Auto-Tune, com pequenas diferenças na interface. Atualmente, o mais popular é o Melodyne, que tem os mesmos objetivos. Em 2008, no YouTube, o usuário americano “Schmoyoho” começou a postar remixes em seu canal, criando uma série chamada “Auto-tune The News”4 (“Auto-tune Notícias”). Eram vídeos que remixavam notícias de telejornais nos EUA, transformadas em canções por meio da manipulação do áudio, acompanhadas de montagens no vídeo. Posteriormente, esse mesmo usuário criou outro formato de vídeo, que faria um sucesso muito maior, chamado “songify this!” (um neologismo que seria algo como “musicar isto!”). Trata-se de music videos feitos a partir de virais que circulavam na internet, desde vídeos caseiros até pronunciamentos do presidente Obama. Atualmente, o canal tem aproximadamente 700 milhões de acessos. Os mesmos mentores desenvolveram um aplicativo homônimo para smartphones, no qual o usuário pode dizer uma frase e ouvir a gravação transformada em música. Em outubro de 2014, o canal brasileiro Timbu Fun 5 iniciou seu trabalho, em moldes parecidos com o de Schmoyoho. A descrição da página diz: "O Timbu Fun cria remixes irreverentes com vídeos virais da internet. A nossa melhor cantora é a Dilma". Em apenas dois anos no ar, o canal já alcançou 26 milhões de visualizações. Contudo, este não é o único canal brasileiro a realizar esse tipo de remix. O canal AutoTuneBrasil6 tem Disponível em <https://www.youtube.com/channel/UCNYrK4tc5i1-eL8TXesH2pg>. Acessado em: 23/10/17. Disponível em <https://www.youtube.com/user/TimbuFun/videos>. Acessado em: 23/10/17. 6 Disponível em <https://www.youtube.com/user/faroffdmars/videos>. Acessado em: 23/10/17. 4 5
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como objetivo compartilhar trabalhos do tipo, publicados em diversos outros canais, como o Faroff 7, responsável pelo remix “System Of A Dilma”, que coloca a presidente como vocal da banda System Of A Down (enviado em outubro de 2011 e no momento com 3,5 milhões de acessos). Outro exemplo, ainda mais antigo, é o canal Zuare Comédia8, que possui uma produção mais extensa, publicando remixes desde outubro de 2010, usando o software Melodyne no lugar do Auto-tune, porém com o mesmo objetivo. O canal, hoje, possui pouco mais de 2 milhões de acessos.
Técnicas de humor O riso é algo que escapa a qualquer definição. Contudo, muitos filósofos, psicanalistas e outros intelectuais produziram obras que podem nos ajudar a formular técnicas por trás do que a sociedade considera risível. Na obra “O Riso”, Henri Bergson (1983) não pretende encerrar definitivamente o que é o cômico, ou determinar todas as suas formas de significação. Porém, traça algumas reflexões que podem nos ajudar a pensar nos efeitos risíveis gerados a partir de várias formas de expressão, desde o riso cotidiano até a comédia teatral. A princípio, o filósofo afirma que o riso é um ato essencialmente humano. O homem é o único animal que ri e o único que faz rir. Se por algum motivo possamos rir de um chapéu ou de uma árvore, é porque a imagem despertou em nós a lembrança de algo humano. Pelo mesmo motivo, o riso é político, ou seja, fruto do convívio em sociedade. Isso explica porque uma piada pode funcionar em um país e não em outro de cultura diferente. Outro aspecto importante abordado pelo autor: quem ri não sente compaixão, tampouco se identifica. Se alguém sofre em nossa frente, seja um personagem ou ser da vida
cotidiana,
jamais
nos
emocionaremos
e
riremos
de
sua
condição
concomitantemente. Podemos até transitar de um estado a outro, mas nunca sentiremos as duas coisas ao mesmo tempo. O riso é de ordem racional, fria, ao passo que a identificação e a compaixão são de uma ordem oposta, ou seja, emocional. Esses dois 7 8
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Disponível em <https://www.youtube.com/user/fanfaroff/videos>. Acessado em: 23/10/17. Disponível em <https://www.youtube.com/user/zuarecomedia/videos>. Acessado em: 23/10/17.
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extremos são os campos onde operam a comédia e o drama. Apesar do riso ser de ordem racional, sua lógica não o é. O autor afirma que o pensamento cômico é influenciado pela lógica da imaginação, que é diferente da lógica da razão. Quando há um desvio da segunda para a primeira, pode-se ter uma situação risível. Ele afirma que a lógica do risível tem algo de semelhante com a do sonho ou do devaneio. Podemos citar como exemplo da literatura clássica as alucinações do personagem Dom Quixote. São desvios cuja causa conhecemos: a excessiva leitura de romances de cavalaria. O riso, então, funcionaria como uma ferramenta social de correção, para tirar a pessoa do sonho e trazê-la de volta à realidade: “É fácil de ver, com efeito, que todo jogo de ideias poderá nos divertir, desde que nos lembre, de perto ou de longe, os jogos do sonho." (BERGSON, 1983, p. 140) Na lógica da razão, não faz sentido que uma Presidente da República faça uma “saudação à mandioca”, em um discurso público. Esse acontecimento, real, tem potencial cômico por si só. Entretanto, como isso foi dito no seio da política e da sociedade, ou seja, em um ambiente sério, tornou-se trágico. Contudo, o potencial cômico está ali, e para explorá-lo basta deslocar esse acontecimento para uma moldura lúdica, ou seja, para a lógica da imaginação. Isso acontece no vídeo “Saudação à Mandioca”, do canal Timbu Fun, no qual essa situação acontece na forma de canção, em um music video 9. Dentre muitas leis, teoremas e imagens levantadas pelo filósofo ao longo do livro, a ideia mais forte é a do “mecânico calcado no vivo” (BERGSON, 1983). De modo geral, a vida do ser humano seria como uma grande “máquina”, com padrões a serem seguidos, sistemas de valores intercambiáveis e movimentos repetitivos ao longo da sua existência. Entretanto, há um paradoxo: as pessoas que habitam essa sociedade não podem se comportar de modo mecânico. Precisam ser flexíveis e atentas a qualquer imprevisibilidade. Porém, é comum acontecerem erros, nos quais, digamos, uma peça sai do lugar ou não funciona corretamente. Quando esses erros acontecem, o ser humano revela o seu lado “maquinal”, se mostrando desatento, inflexível, agindo com rigidez. As pessoas não podem parecer máquinas, portanto esse erro precisa ser corrigido. A 9
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=ZMFX84cZpPM>. Acessado em: 23/10/17.
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ferramenta de correção para esse desvio, segundo o pensamento do filósofo, seria o riso. Portanto, o trabalho do comediante, nesse ponto de vista, é apontar ou provocar defeitos nessa “máquina”. Se rimos de uma pessoa que cai ao caminhar na rua, não rimos da queda em si, mas do fato de que percebemos que a pessoa acreditava que continuaria andando. Ela se deparou com um imprevisto e não teve atenção ou flexibilidade para superá-lo. Ou seja, ela agiu com incapacidade de responder adequadamente, com desatenção e rigidez, de forma mecânica. O autor usa da imagem do “mecânico calcado no vivo” para se referir à comédia em inúmeros desdobramentos. Um deles é a do brinquedo mecânico: Ora, a comédia é um brinquedo, brinquedo que imita a vida. E se, nos brinquedos infantis, quando a criança lida com bonecos e polichinelos, tudo se faz por cordões, não serão esses mesmos cordões, gastos pelo uso, o que iremos encontrar nos cordéis que articulam as situações da comédia? (BERGSON, 1983, p. 42)
Ao desenvolver esse raciocínio, Bergson apresenta diversos tipos de brinquedo, comparando seu funcionamento com o de diversos tipos de comédia. Uma delas é a do fantoche ou marionete. Ele os compara com personagens de diversas comédias que são manipulados por outros. Nesses casos, o personagem manipulado crê agir e falar livremente, quando, na verdade, está sob o controle de outro, como um simples brinquedo em suas mãos. O espectador ri porque não sente compaixão do ser manipulado, ficando do lado do “trapaceiro”, na posição de cúmplice. A partir desse raciocínio, é possível entender que as pessoas, nos vídeos escolhidos, estão transfiguradas em fantoches. Fantoches que cantam, e por vezes até dançam. Os autores dos remixes são os “trapaceiros”, donos e manipuladores desses bonecos, que tomamos emprestados para nos divertir e brincar. É muito importante esclarecer que, na visão desse pensador, o mecânico deve estar de fato calcado no vivo, ou seja, precisa parecer vivo, espontâneo, e não apenas mecânico. Para que o riso aconteça, é preciso que o mecânico e o vivo estejam encaixados em um corpo só: "É cômico todo arranjo de atos e acontecimentos que nos
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dê, inseridas uma na outra, a ilusão da vida e a sensação nítida de uma montagem mecânica." (BERGSON, 1983, p. 36) Um dos recursos de comédia dos quais o autor fala é o que ele chama de “interferência de séries” (BERGSON, 1983). Ela funciona pela combinação de dois fatores: independência e coincidência. Sendo a vida, na comédia, tomada como um corpo mecânico, um sistema de ações e relações formado por peças intercambiáveis, essa técnica consiste em inverter peças ou transportar blocos de significação entre sistemas que coincidam parcialmente. Na literatura, podemos exemplificar o exposto com o quiproquó. Dois ou mais blocos de personagens, cada um acreditando em uma versão da história, entram em conflito, pois entre as duas visões há uma série de coincidências que faz com que, parcialmente, cada uma das visões aparente ser verdadeira. O espectador, por sua vez, se diverte, pois sabe, melhor que todos os personagens, o que está acontecendo. Além do quiproquó, existem diversas outras formas de interferência de séries, em qualquer situação na qual, mediadas por alguma coincidência parcial, duas situações independentes se intercambiem, como é o caso da transposição do antigo em moderno, ou mesmo o caso dos trocadilhos linguísticos (BERGSON, 1983).
Sobre os vídeos escolhidos No caso dos remixes analisados, temos duas situações independentes: de um lado, uma situação gravada em vídeo, e de outro, uma canção composta para fazer rir. Quando o Auto- Tune consegue fazer as duas coisas coincidirem, obtém-se o riso: “Uma situação será sempre cômica quando pertencer ao mesmo tempo a duas séries de fatos absolutamente independentes, e que possa ser interpretada simultaneamente em dois sentidos inteiramente diversos.” (BERGSON, 1983, p. 23). Minois (2003) e Bakhtin (2008) apontam que o riso, além de ser universal (considerando-se as especificidades de cada cultura), tem como característica a ambivalência – sobretudo até o século XIX. Se, por um lado, pode-se zombar de tudo, por outro nem sempre o riso tem como único objetivo a ridicularização ou diminuição do objeto risível. Pelo contrário: muitas vezes, ao mesmo tempo em que o riso rebaixa, ele
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homenageia, amigavelmente. Seja no carnaval, na caricatura, na cultura popular ou na internet, o riso ainda pode apresentar essa função ambivalente, servindo tanto para denegrir como homenagear, tanto para diminuir quanto para reforçar uma característica positiva, em uma mesma piada. A principal diferença entre os canais abordados é a questão da escolha do gênero musical. Essa é uma questão fundamental, do ponto de vista cultural, para que a piada funcione ou não. A técnica da interferência de séries sugere que quanto maior a desarmonia entre uma situação e outra, maiores as possibilidades de se obter o riso. Em uma obra de intertextualidade audiovisual, podemos conceber áudio e vídeo como diferentes situações. Na vida em sociedade, há uma noção, baseada no senso comum, do encaixe entre grupos sociais e gêneros musicais. Cada gênero sugere, de forma estereotipada, um universo cultural ou mesmo uma tribo urbana simbolicamente atrelados. Essa ideia de encaixe entre situações, tida como ordinária pela cultura, pode ser distorcida com finalidades cômicas. Recorrendo novamente a Bergson (1983), a comédia se usa muito de arquétipos e estereótipos. Enquanto o drama foca nos detalhes, no indivíduo e em seus aspectos psicológicos, a comédia amplia essa visão para um panorama geral, que abrange a sociedade, dividindo-a em arquétipos sociais. Observamos indícios dessa ideia em vários dramas, cujos títulos trazem os nomes das personagens, como “Romeu e Julieta”, “Tartufo”, “Fedra”, etc –, enquanto que muitas comédias têm como título apenas um estereótipo, como é o caso de “O Avarento”, “O Misantropo”, “O Distraído”, etc. Como estamos falando de música como elemento central nesse encaixe intertextual, acredito, a partir da análise dos vídeos, que é interessante do ponto de vista cômico que o gênero escolhido seja facilmente identificável. Quanto mais estereotipado for o gênero, quanto mais este for um “tipo”, mais cômico será o encaixe. Há, no Brasil, alguns gêneros musicais que costumam trazer em suas letras alguma dose de humor. É o caso de alguns sambas, funks e sertanejos universitários, por exemplo. O canal AtillaKw 10
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prioriza esses gêneros, investindo em propostas que
Disponível em: <https://www.youtube.com/user/atilakw>. Acessado em: 23/10/17.
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incentivam o riso pela afirmação do potencial cômico dos arranjos e melodias. No canal ViraDrop 11o que ocorre é o inverso. A maioria dos remixes são feitos com música eletrônica, dubstep, pop e psy-trance, característicos das raves e festivais de música eletrônica. Nesse caso, o encaixe entre uma situação cômica, contida no vídeo original, e um gênero musical “sério” causa um contraste que provoca o riso justamente por esse paradoxo. O canal TimbuFun aposta em uma diversidade ampla de gêneros, indo do arrocha ao heavy metal. Contudo, há muita clareza na estereotipação dos gêneros, o que facilita o arranjo cômico entre música, texto e imagem. Nos exemplos analisados, considerando os dois sistemas independentes (canção e discurso oral), percebemos que na coincidência entre ambos ocorre, em cada um, um desvio. Por um lado, há a representação arquetípica de um gênero musical, e nesse corpo há um desvio, pois a letra da canção não se encaixa com os padrões recorrentes do estilo. Por outro, há um exemplo de oralidade, que por um desvio não é falada, e sim cantada. Nos dois casos, a “máquina” tem as peças trocadas, alterando seu funcionamento. De modo geral, todos os vídeos analisados apresentam, em sua intertextualidade, esse desvio da lógica da razão para a da imaginação, através de um jogo lúdico entre realidade e manipulação. Acredito, portanto, que para que uma música seja cômica, é interessante que ela se encaixe em um gênero específico. Dentre os vídeo remixes mais populares que encontrei, a maioria propõe gêneros musicais bem demarcados, como rock, zumba, reggae e funk. Vídeos com gêneros musicais pouco definidos ou experimentais não obtiveram tanta popularidade. O conteúdo dos vídeos originais oscila entre peripécias de crianças, falas e atitudes de pessoas com estado de consciência alterado (bêbados ou sob efeitos de outras drogas), discursos presidenciais e outras situações, inusitadas ou não, como uma menina ordenhando uma vaca, um rapaz exibindo um boné, uma senhora clamando a Deus em entrevista, etc. A escolha do vídeo a ser remixado muitas vezes parte de sugestões dos fãs do canal. Alguns remixes do ViraDrop e do AtillaKw revelam, na própria 11
Disponível em https: <www.youtube.com/channel/UCCjJ6nzg3-74FbISqmE_EcA>. Acessado em: 23/10/17.
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estrutura do vídeo, a imagem do comentário de um fã, que pede para que seja feito um remix de tal objeto. Essa é outra escolha fundamental: o que remixar? O público pede, mas também é possível que o criador tenha um insight a partir de algo que não seja, propriamente, cômico. O criador, por meio de sua imaginação, consegue observar determinado vídeo e perceber um potencial cômico imprevisto; algum elemento daquele vídeo, seja imagem, som ou texto, salta aos olhos como a possibilidade de algo risível. Nos vídeos analisados, há manipulações de imagem que ajudam a torná-los cômicos. Contudo, no geral, essas manipulações existem em função do som. Em “Estocando o Vento”12, vídeo em ritmo de zumba do canal Timbu Fun, podemos ver, atrás da presidente, pessoas dançando em uma academia no ritmo da música. Efeitos desse tipo ajudam a tornar efetivo, no campo da imagem, a proposta trazida pelo som. É como se a imagem confirmasse que o que o som diz está realmente acontecendo. Daí, é possível reforçar o efeito cômico. É preciso que haja, em tudo o que provoca o riso, vivo e ruidoso, um elemento absurdo, o que faz com que a compreensão não encontre satisfação. O riso é o efeito resultante da maneira como a atenção da espera é reduzida a nada. Essa transformação, que não é agradável ao entendimento, é precisamente o que provoca, de forma indireta, uma alegria muito viva. (KANT apud MINOIS, 2003)
O humor desses vídeos não age de forma isolada. Em vários casos há a incorporação de memes externos ao vídeo, sugerindo diálogos surpreendentes. O universo desses memes está em constante interceptação, renovação e diálogo. Por exemplo, no remix “Tô cagado de fome”13 do Timbu Fun é inserida de forma secundária Ruth Lemos, que ficou famosa em 2005 pela aparição que fez em um telejornal, na qual está confusa por um problema de delay em seu microfone e repete os finais das palavras, como “sanduiche-iche”. Há também o diálogo com as mais diversas linguagens, não apenas memes cômicos da internet. O canal Viradrop costuma utilizar cenas de filmes em seus remixes. Por meio da montagem, nessas cenas o personagem do filme pode receber uma ligação 12 13
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Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=dhwsJxV4hs4>. Acessado em: 23/10/17. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=mR1ZEZCR5fw>. Acessado em: 23/10/17.
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com um áudio do remix, ou mesmo ligar a televisão e ver o vídeo viral. A cultura remix trata a mídia não como um fim, mas como ela realmente é: um meio, um espaço de troca e transporte de informações. E esse espaço não se dá somente na relação com os produtos culturais, no campo da poética, mas também no campo da técnica e dos recursos tecnológicos. Dificilmente as pessoas que desenvolveram o AutoTune e o Melodyne o fizeram pensando na geração de piadas audiovisuais. O objetivo dos aplicativos é claro: correção sonora em etapa de pós-produção. A ressignificação desse uso é resultado do potencial de apropriação e inovação típico da cultura remix. De um lado, desenvolvedores lançam um plug-in, a partir de uma demanda específica da indústria de produção musical, reino da cultura comercial. De outro, o público responde com uma apropriação absolutamente inusitada dessa ferramenta, a partir do acesso aos arquivos. A grande mídia, por sua vez, reconhece essa força. Um exemplo disso é que Schmoyoho, criador da série “Auto-Tune The News”, foi contratado pela Netflix para a criação da trilha sonora de abertura da série “Unbreakable Kimmy Schmidt”14, que, não por acaso, é uma série de comédia. Quando a mídia se torna um espaço político, de ação e troca, o riso pode emergir, naturalmente, pois possui a mesma origem. O humor pertence tanto à esfera midiática quanto à cotidiana. Portanto, em uma cultura na qual trabalho e diversão se fundem, a produção de remixes também tende a levar à mídia o riso popular. Mesmo após ter sido profundamente estudado por filósofos, antropólogos e outros profissionais, o riso ainda escapa de nossas mãos quando tentamos analisá-lo. Um dos motivos para isso é que, sendo o riso um ato social, e sendo a sociedade um corpo em constante transformação cultural, as formas de rir também são constantemente atualizadas, influenciadas hoje pela cultura remix e pela tecnologia. Ao analisar a emergência do uso do Auto-Tune como recurso humorístico na web, é possível identificar tendências da comédia clássica que sempre existiram, contudo, com outra roupagem. A vida maquinal, hoje, dispõe de uma ampla database e de um vasto campo de possibilidades expressivas. Vemos, assim, a relevância de analisar o humor dentro do contexto cultural no qual acontece - nesse caso, em rede e totalmente mediado por softwares. 14
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=LIdFa1qLgNQ>. Acessado em: 23/10/17.
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LIVRE O discurso sem palavras: uma visão sobre o filme Nós, de Artavazad Pelechian Giuliano Ronco
O discurso sem palavras Uma visão sobre o filme Nós, de Artavazad Pelechian Giuliano Ronco1 Universidade de São Paulo Resumo: Este estudo inicia com uma contextualização histórica, social e estética a respeito da trajetória do cineasta armênio Artvazad Pelechian, para, em seguida, partir para uma análise das imagens e sons que compõem um de seus principais trabalhos: o filme Nós, apresentado para a conclusão de seu curso no Gerasimov Institute of Cinematography, em Moscou. Palavras-chave: Pelechian; documentário, ensaio, Vertov, montagem. Abstract: This study begins with a historical, social and aesthetic contextualization about the trajectory of the Armenian filmmaker Artvazad Pelechian, then proceeds to an analysis of the images and sounds that compose one of his main works; the film We, presented as the conclusion of his course at the Gerasimov Institute of Cinematography, in Moscow. Key words: Pelechian, documentary, essay, Vertov, montage.
Giuliano Ronco é professor, montador e produtor audiovisual. Pós-graduando no programa de Artes Visuais da ECA- USP, dentro da área de Teoria, Ensino e Aprendizagem, sob orientação da Prof.ª Dr.ª Maria Christina de Souza Lima Rizzi. E-mail para contato: directgiu@hotmail.com.
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LIVRE O discurso sem palavras: uma visão sobre o filme Nós, de Artavazad Pelechian Giuliano Ronco
Primeiras Palavras Em setembro de 1990 ocorreu na capital da Letônia um encontro entre delegações de diversos países, compostas basicamente por críticos de cinema, realizadores e estudiosos que se reuniram para uma semana de discussões e exibições em torno do tema "O Legado de Vertov e Flaherty no Documentário Soviético e Americano"2. Dentre os presentes, estava o professor Scott MacDonald da faculdade de Utica, NY, que assistiu pela primeira vez e se impressionou com o trabalho de um realizador armênio, conhecido pelo nome de Artvazad Pelechian. Embora tivesse recebido o Grand Prix do Festival de Curtas de Oberhauser em 1970 pelo filme Nós, além de homenagens em sua terra natal e na Rússia, Artvazad Pelechian ainda era um cineasta pouco reconhecido no continente americano, bem como em outras partes do mundo. Além da distância geográfica, outra significativa razão para a limitada audiência de seus filmes poderia ser atribuída ao corpo de sua obra, ainda que densa, de volume circunscrito. Naquela época, seus trabalhos como diretor de curtas e médias-metragens não chegavam a totalizar mais do que duas horas de material acabado. O emprego de uma abordagem associativa no uso das imagens, com a ausência do discurso verbal não constituía exatamente uma novidade. Como o próprio título da reunião indicava, os trabalhos de Pelechian podiam, e ainda podem, serem relacionados com o conceito vertoviano que remete a um cinema realizado com imagens retiradas da vida real, sem o recurso de "falsas dramatizações", "romances", "teatralidades" 3 . A substância da obra de Pelechian reside justamente no toque pessoal-poético no tratamento dos temas, com a construção de metáforas a partir da justaposição de imagens e sons extraídos da vida cotidiana (Para o filme Nós foram usadas imagens pertencem ao arquivo de Erevan). Além disso, escolhas identificadas na ordem de aproximação entre o filme documentário e o ensaio cinematográfico4 demonstravam um homem preocupado com as questões teóricas e estéticas do cinema. A natureza deste encontro está melhor descrita no livro A Critical Cinema 3: Interviews with Independent Filmmakers, escrito por Scott MacDonald, dentro do capítulo dedicado à Artvazad Pelechian. 3 Estas expressões foram retiradas de um manifesto escrito por Dziga Vertov em 1922. Curiosamente, o nome do manifesto é Nós: variante de um manifesto. 4 A respeito da definição de filme-ensaio, este artigo baseou-se na definição de Arlindo Machado, descrita no catálogo da mostra de Chris Marker, realizada em 2009. 2
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Seminários como o que ocorreu na cidade de Riga em 1990 serviram como um verdadeiro intercâmbio entre os participantes. Além de ficar fascinado com os filmes Nós e As Estações, exibidos durante o encontro na Letônia, o professor MacDonald aproveitou a oportunidade para conhecer pessoalmente o realizador armênio. Na pauta da entrevista, havia a inescapável presença de questões que permitissem ao público de seus filmes uma aproximação às possibilidades de sentidos criadas a partir de sua peculiar maneira de construir significados. Ao final da conversa, Pelechian encerrou com a seguinte frase: "Precisamente, os meus filmes não são sobre linguagem. A dificuldade é que um sujeito não pode expressar com palavras aquilo que encontra nos meus filmes. Se fosse possível dizer com palavras, o filme seria inútil. Palavras não podem expressar. Não se deveria falar sobre filmes, os filmes devem ser assistidos. É por isso que sempre fui contrário a entrevistas". (MACDONALD, 1998, p. 103).
Uma afirmação deste porte pode fazer sentido quando dita pelo realizador de um filme que não apresenta diálogos ou narração falada. Mas, como proceder quando o objetivo de um trabalho é justamente a análise de um filme realizado pelo autor da frase? É importante não esquecê-la e, se possível, resgatá-la no momento propício. Por mais que diretor tenha negado, o filme é também sobre a linguagem, sobre a especificidade de uma linguagem sem palavras. Este trabalho inicia sua análise sobre o filme Nós justamente por uma propriedade que não é exclusiva desta película, e sim uma característica marcante na obra de Pelechian como um todo: a ausência do discurso verbal. Durante todos os 24 minutos que compõem a versão definitiva do filme5, não existem comentários ou diálogos. A banda sonora é toda composta por música e alguns outros sons combinados com as imagens. Segundo o próprio autor: Um dos principais problemas do meu trabalho no filme foi a montagem de imagem e som. Procurei encontrar a unidade orgânica de ambos, de De acordo com o próprio Pelechian, o filme foi "repetidamente encurtado e submetido a alterações". Estas alterações, provavelmente, devem ter sido fruto das discussões e avaliações por parte de seus professores no Gerasimov Institute of Cinematography, em Moscou. LABAKI, Amir. A verdade de cada um. Cosac Naify: São Paulo, 2015, p. 167.
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modo que expressassem um único conceito, uma única idéia, uma única percepção emocional. Que o som fosse indissociável da imagem, e a imagem indissociável do som! Eu parti e parto do princípio de que nos meus filmes o som se justifica unicamente por sua função conceitual, imagética. Até nos ruídos mais elementares é preciso encontrar a máxima expressividade e, para isso, caso seja necessário, transformar sua sonoridade. Por essa razão, não há por enquanto nos meus filmes som direto ou narração. (LABAKI, 2015, p. 170).
O depoimento acima revela todo o cuidado que Pelechian teve com a montagem, ou melhor, com o entrelaçamento de som e imagem. Cada um dos fragmentos presentes em Nós fazem parte de uma meticulosa seleção e ordenamento que sugerem a construção de um sentimento, de uma certa nostalgia do pertencimento. Além da evidente afinidade com os trabalhos e escritos de Dziga Vertov, conferir ao som uma função conceitual também foi fruto de sua formação no Gerasimov Institute of Cinematography em Moscou, instituição que compete pelo título de escola de cinema mais antiga no mundo. Nós foi o último filme que Pelechian fez como aluno do Instituto. O diploma foi conferido logo após a apresentação deste último trabalho6. Dentre os notáveis professores que fizeram parte do Instituto está Serguei Eisenstein, que em 1929 escreveu Zayavleniye (Declaração, sobre o Cinema Sonoro) juntamente com Pudovkin e Alexandrov. Neste manifesto estão as possíveis perspectivas imaginadas que a narrativa sonora poderia alcançar a partir do desenvolvimento técnico. O texto faz menção ao uso do som como "potência" e como "caminho orgânico" para o desenvolvimento da arte cinematográfica7. Uma análise formalista de Nós revela o desenvolvimento das raízes acadêmicas de Pelechian. Outra afirmação presente na Declaração escrita por Eisenstein diz respeito à recepção. Segundo o texto: "para o desenvolvimento futuro do cinema, momentos importantes serão apenas os que fortalecerem e ampliarem os métodos de montagem que afetam o espectador"8. Este trecho ressalta ainda mais a importância de se atingir o público através de um trabalho que fosse capaz de alcançar a polifonia. Em outras palavras, o "correto" uso do som multiplicaria as camadas de interpretação, e o poder MACDONALD, Scott. A Critical Cinema 3: Interviews with Independent Filmmakers . University of California Press: Oakland, 1998, p. 97. 7 EISENSTEIN, Serguei. A Forma do Filme. Jorge Zahar Editora: Rio de Janeiro, 2002, p. 226. 8 idem, ibidem, p.225. 6
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conferido ao filme. A influência de Eisenstein no pensamento de Pelechian, assim como a importância de Vertov, são comprovadas no texto publicado pela revista Trafic nº29, em que Pelechian escreve: Desenvolvendo os princípios de montagem no cinema sonoro, Eisenstein acreditava que o mais importante era a interação contrapontística entre imagem e o som. Em seus trabalhos teóricos, ele se esforçou para "encontrar a chave para a comensurabilidade entre um fragmento de música e um fragmento de imagem".Vertov também abordou esse problema: "Um filme sonoro, e não uma versão sonorizada de um filme mudo. Um filme sintético, e não o som somado à imagem. Ele não pode ser exibido unilateralmente - apenas a imagem ou apenas o som. A imagem aqui é só uma das faces de uma obra multifacetada... Nasce uma terceira obra que não existe nem o som, nem na imagem, mas somente na ininterrupta interação do fonograma com a imagem". (Eu 10sublinho especialmente essas palavras.) (LABAKI, 2015, p. 164).
De acordo com o próprio Pelechian, o filme Nós foi concebido e realizado "como um filme de ficção"11. Talvez essa intenção esteja alinhada com a necessária construção de sentidos decorrente desta "modalidade discursiva apoiada numa montagem próxima do conceitual"12. Por outro lado, o uso que o diretor fez das imagens de arquivo permitiria ao filme posicionar-se no conjunto daqueles identificados com o documentário. Evidentemente, usar imagens que registraram a vida como ela se desenrolou na frente da câmera não é garantia para que um filme seja considerado como tal. No entanto, a evidência que permite tratar Nós como filme documentário veio do próprio diretor, ao manifestar a abordagem que fez do tema: Decidi expor a história de um povo não mediante a exibição de monumentos do passado, mas observando a contemporaneidade, as pessoas contemporâneas. Tentei me apoiar naqueles eventos e situações da vida real em que se percebem e se revelam de maneira mais claras as tradições históricas, os traços característicos da figura e comportamento do meu povo. (LABAKI, 2015, p. 166). O texto de Pelechian foi originalmente publicado pela revista Trafic nº 2, em abril de 1992. No caso, o parênteses foi escrito pelo próprio Pelechian. 11 LABAKI, Amir. A verdade de cada um. Cosac Naify: São Paulo, 2015, p. 165. 12 Descrição das qualidades que identificam um filme-ensaio em: MACHADO, Arlindo. "O Filme-Ensaio". In: Centro Cultural Banco do Brasil. Chris Marker: Bricoleur Multimídia. Rio de Janeiro: CCBB, 2009. 9
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O caso é que a única informação proveniente de discurso verbal no filme Nós é originária de uma cartela colocada no início do filme. Diz a cartela: "Os documentos utilizados neste filme são provenientes dos Arquivos Centrais do Estado e do Estúdio de Filmes Documentários de Erevan". Na realidade, esta é mais uma das marcas atribuídas ao trabalho do Pelechian como um todo: o uso recorrente de imagens filmadas por outras pessoas, e que recebem um novo tratamento nas mãos do diretor armênio. A combinação dos seguintes fatores: o não uso da linguagem verbal, a incorporação de imagens de arquivo, imagens estas que fazem parte de um recorte da vida tal qual ela se apresentou diante da câmera, a recusa no uso do som direto, a composição do som e da música de maneira orgânica e polissêmica com a imagem e o desenvolvimento de um pensamento de montagem particular são características que tornam o cinema de Pelechian, e particularmente o filme Nós, uma obra alinhada com as qualidades do filme-ensaio. Não obstante, para ser apreciada em toda sua potencialidade necessita de um tempo, que vai além da sua própria exibição, para poder ser absorvida, digerida e apreciada. Em outras palavras, o filme Nós não se esgota numa primeira visualização. Cabe para este filme o comentário feito por Marcel Martin: A maior parte dos filmes de qualidade admite vários níveis de leitura, conforme o grau de sensibilidade, imaginação e cultura do espectador. O mérito de tais filmes está em sugerir, para além do imediatismo dramático de uma ação, por mais profunda e humanamente apaixonante que seja, sentimento e idéias de ordem mais geral. (MARTIN, 2003, p. 92).
A opção por trabalhar os temas de modo a evitar o discurso verbal faz com que seus filmes permitam diferentes interpretações, que variam de audiência para audiência. Tal qual descreve Bill Nichols: "os argumentos exigem uma lógica que as palavras são mais capazes de transmitir do que as imagens"13. Ao optar pela ausência de palavras, Pelechian ao mesmo tempo em que permite a multiplicidade de interpretações para seus filmes, corre também o risco de não ser compreendido.
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NICHOLS, Bill. Introdução ao Documentário. Papirus: Campinas, 2005, p. 59.
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Análise das imagens e dos sons 14 O filme inicia com o rufar de tambores, ainda com a tela negra. Quando a primeira imagem aparece, o rufar dos tambores é sobreposto pelo naipe dos metais que, em êxtase, apresentam o rosto de uma jovem menina que encara a câmera. Ao olharmos para a imagem com cuidado, percebemos que trata-se de um pequeno fragmento que é repetido por 40 segundos, acompanhado do tema musical de apresentação grandiosa. Esta menina não tem uma individualidade no filme, ela é anônima. Uma criança que olha, de cima para baixo, o público que assiste o filme. A relevância deste fragmento é marcada por dois temas importantes: a criança, e o ato de olhar. A criança é símbolo de inocência, espontaneidade, de um estado anterior ao pecado e, portanto, de um certo estado edênico. O fato de ela ter sido filmada em contra-plongée realça ainda mais o seu caráter de elevação, primazia, e até transcendência. Além da posição do objeto em relação à câmera, temos também a quebra daquilo que é conhecido como a "quarta parede". A linha divisória que marca o espaço entre obra e público. Se pensarmos no título do filme, é possível inferir que este olhar direto para a câmera convoca o público a sair de sua posição de mero espectador, e a refletir sobre aquilo que a montagem irá organizar e propor. O próprio título é uma forma de incluir o público na experiência do filme. Nas palavras do diretor: Os armênios são simplesmente uma oportunidade que me permite falar sobre o mundo todo, sobre características humanas, natureza humana. Alguém pode desejar ver também a Armênia ou armênios neste filme. Mas eu nunca me referi a uma nacionalidade específica. Não me permitiria isto na época, e nem agora. Se eu me referisse apenas aos armênios, eu não teria tido coragem de intitular o filme Nós. Os armênios são um "nós" que é um pedaço de um "nós" maior. (MACDONALD, 1998, p. 97).
No texto publicado pela revista Traffic, Pelechian descreve detalhadamente suas intenções de usar imagens e sons como representativos de certos conceitos que estivessem em consonância com sua lógica de visão de mundo. Ora, o que o diretor confessa em seu texto é uso de imagens como símbolos que representam ou substituem outras coisas, além de contar com a formação de imagens na "consciência do espectador" (LABAKI, 2015, p. 166). Diante de tal confissão, e também devido ao fato de que o filme é intencionalmente criado com a ausência do discurso verbal, este texto propõe uma análise que inclua também o aspecto simbólico das imagens e sons para permitir um aprofundamento diante das possibilidades de evocação, associação e conjunto daquilo que é efetivamente mostrado. Este artigo leva em consideração a origem cristã do diretor, bem como sua declarada intenção (explicitada no mesmo texto da revista Traffic) de dedicar o filme aos seus contemporâneos e conterrâneos.
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Dessa forma, é possível afirmar que este olhar inicial é a representação de um conjunto, e não de um único indivíduo. O título do filme acontece no encontro dos olhares, daquele que foi filmado com aquele que vê o filme. Seria prudente também acrescentar, ou melhor, relembrar a presença de um terceiro olhar, o olhar do montador/diretor Pelechian. A seqüência a seguir apresenta uma série de aproximações de imagens de montanhas, feitas com uso de lentes, mais conhecidas como zoom in. O som combinado a estas aproximações é algo que simula uma respiração. Seria uma espécie de Baraka15? Não há, no filme, uma explicação para essas imagens. Sabe-se que a Armênia é um país que é compost majoritariamente por planaltos, com grande incidência de montanhas. Mas para quem não tem esse dado, a montanha por si só é portadora de uma extensa simbologia. Encontro entre o céu e a terra, a montanha representa a estabilidade, a imutabilidade, às vezes, até mesmo a pureza. A montanha é símbolo de iniciação. É onde o rio nasce, em oposição ao mar, onde o rio morre16. Mais de 98% da população armênia é cristã, religião para a qual a montanha adquire ainda maior importância simbólica. Segundo o livro do Gênesis na Bíblia, a arca de Noé repousa no Monte Ararat. Esta montanha tem um significado especial para os armênios, que vai além da questão religiosa. O Ararat fez parte do território uma vez conhecido como República Democrática da Armênia, antes de 1920. No entanto, conflitos armados e desavenças políticas fizeram com que grande parte do território armênio tenha sido anexado pela Turquia, inclusive a porção que inclui o Monte Ararat. Ainda hoje a montanha é cultuada pelos armênios como um símbolo de sua identidade nacional, e de seu irredentismo, presente, inclusive, em seu brasão de armas. Ao saber que o realizador do filme é um cineasta armênio, esse tipo de informação ganha certa relevância. Cabe ainda dizer que a imagem do Monte Ararat, além de ser visível a olho nu da capital do país, é a última do filme. Uma espécie de imagem de uma terra perdida e ao mesmo tempo prometida. Baraka é uma palavra de origem sufi (vertente mística do islã) que pode ser traduzida como sopro divino, espírito de vida. 16 CHEVALIER, Jean. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 2015, p. 616. 15
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Continuando com a análise do filme, em seguida às imagens da montanha surge uma outra seqüência carregada de simbologia. Ela começa com o som de uma bomba, mas a imagem que acompanha o estrondo é a do Sol cercado por nuvens negras. Aqui temos um exemplo de montagem que permite uma comparação entre o método usado por Pelechian e aquele proposto por Eisenstein em sua Declaração. A abertura interpretativa é fértil. Num primeiro momento, ouvir o som da explosão e o clarão na tela faz-nos imaginar que a imagem se trata mesmo de uma bomba. Apenas com o passar dos segundos é que o formato redondo do Sol se mostra com clareza. A composição entre som e imagem permite uma polissemia de sentidos. Cabe, neste momento da análise, o resgate das palavras de Pelechian reproduzidas no início deste trabalho: Precisamente, os meus filmes não são sobre linguagem. A dificuldade é que um sujeito não pode expressar com palavras aquilo que encontra nos meus filmes. Se fosse possível dizer com palavras, o filme seria inútil. Palavras não podem expressar. Não se deveria falar sobre filmes, os filmes devem ser assistidos. (MACDONALD, 1998, p. 103).
O que dizer deste Sol acompanhado do som de uma bomba? E como proceder a esta imagem no transcorrer do filme, e vê-la sucedida por outra imagem, em contraplongée, igualmente poderosa, como as mãos alçadas para o alto e que seguram um caixão com o mesmo Sol ao fundo? Tudo o que for dito aqui, a partir de agora, é interpretação. Ao lembrar, mais uma vez das palavras do diretor: "Não é possível dizer com palavras". Este trabalho, segundo Pelechian, se propõe ao impossível. O que pode, e deve ser resgatado, é a clara intervenção do realizador na costura destas imagens. A seqüência do caixão acompanhada do som de um coro de vozes é toda ela intercalada por imagens que pela rapidez e proximidade com que são exibidas parecem ser de: explosões, mar agitado que bate em rochas, fumaças, rochas que desmoronam, todas elas acompanhadas do som de explosão de uma bomba. Qual seria a relação entre esse conjunto de imagens: caixão erguido aos céus e explosões? Num primeiro momento o elo entre estas cenas é o tema da destruição, aniquilamento, morte ou fim. A morte, sabemos, é inevitável. Mas seriam também as 138
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explosões? Ao comparar estas ações estaria Pelechian fazendo uma referência à inevitabilidade do conflito, da guerra, como parte da cultura humana? Diante da história da Armênia para a época esta seria uma interpretação mais do que razoável. De qualquer forma, esta montagem explicita a qualidade de criação de um sentimento, inerente na execução de qualquer filme. A próxima sequência mostra uma série de planos onde uma multidão acompanha cortejos fúnebres. Mais uma vez o tema da morte, só que desta vez o pesar está mais evidente devido à presença das pessoas que acompanham o féretro. Trata-se de alguém importante devido à quantidade de pessoas nas ruas. E quais são estas ruas? Seria possível para um estrangeiro identificar que se trata da capital Erevan? Muito difícil. Há, no entanto, dentro deste episódio que o próprio diretor chamou de "Grandes Funerais"17, uma imagem que se destaca. Trata-se de um fragmento que mostra uma massa de gente em plano aberto. Este pedaço de filme é repetido por 54 segundos. Quando o pequeno trecho que não deve ter mais do que 10 segundos atinge aquilo que poderia ser identificado com o seu final, ele volta para o início em velocidade reversa, o que permite que ele seja alongado por tanto tempo. O efeito é interessante, e parece imitar o que seria um mar de gente. Mas haveria algum sentido a mais nesta circularidade presente na repetição do mesmo plano? A música por todo o episódio é o do coral de vozes, semelhante a uma missa. A transição deste episódio para o próximo aproveita o ponto de vista da câmera. Já que a massa de gente é filmada do alto, em plongée, a mudança de tema usa a escultura de um anjo, colocado sobre um edifício. O plano médio do anjo desfigurado segue depois do plano da massa, como se este anjo estivesse "olhando" para estas pessoas. O som começa a mudar, e o coral, pouco a pouco, é substituído por batidas ritmadas. O som das batidas ritmadas se junta às imagens de mãos em planos fechados, que retiram pedras do solo. É um tipo de trabalho pesado, mostrado repetidamente, de vários ângulos, mas sempre em plano fechado, com apenas as mãos e as pedras em quadro. Mais uma vez trata-se de mãos anônimas, e não de um sujeito específico. Daí a 17
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inferência de se tratar de uma citação ao esforço. E como acompanhamos anteriormente uma seqüência de destruição, mais do que esforço, pode-se deduzir que se trata de uma reconstrução. A idéia da circularidade retorna apresentada de outra maneira. Em determinado momento esta seqüência de planos com mãos que trabalham começa a ser intercalada por planos próximos de rodas de um avião, e rodas do que parece ser um trem sobre trilhos. O esforço manual é intercalado pela capacidade do homem em modificar a natureza a seu favor, com a criação da roda, e de máquinas que estão sobre essas rodas. O tambor ritmado ganha a companhia inicialmente de um ruído que imita a turbina de um avião, e a eles se juntam gradativamente outros ruídos de máquinas e engrenagens. O tema do trabalho e do esforço fica mais evidente à medida que as imagens de outros homens trabalhando começam a serem incluídas. Mãos sujas, operários, pedreiros. As figuras humanas dos trabalhadores são seguidas, através de um falso raccord, por imagens de pessoas que estão em veículos de mobilidade e, no entanto, estão paradas esperando com os veículos estacionados devido ao trânsito. A seqüência do trabalho parece dar lugar a uma outra seqüência, e esta mudança torna-se mais evidente com o plano de um leão enjaulado que anda de um lado para outro. As imagens desamparadas pela palavra permitem as mais variadas associações por parte da audiência. O leão enjaulado, as pessoas esperando dentro de seus carros que um trem passe. São figuras que remetem ao aprisionamento, condições impostas, sobreposição da natureza em favor da modernidade, imposição de uma regra. A nova mudança de bloco é marcada também pela mudança musical. Da sequência com carros no trânsito passamos para planos próximos de cabeças de cavalos, provavelmente puxando alguma carruagem, lembram O Homem com A Câmera, de Vertov. A câmera ainda permanece nas ruas, mas desta vez com maior ênfase aos rostos anônimos que circulavam. Se em Começo (filme anterior) a dramaturgia era construída a partir de movimentos de torrentes humanas e massas populares, nesse trabalho (Nós) procurei mostrar mais de perto também os indivíduos, aproximarme de suas almas. Nesse caso, porém, não determinei que meu objetivo fosse mostrar individualidades singulares. Mais uma vez, meu objetivo consistia em mostrar, por intermédio de alguns indivíduos, não apenas o
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particular, mas também o comum, de modo que as características das pessoas representadas estivessem subordinadas ao conhecimento do típico, para que na consciência do espectador fosse formada não a imagem de um único indivíduo, e sim a de uma nação. (LABAKI, 2015, p. 166).
Assim, este novo bloco valoriza mais os pedestres em detrimento dos motoristas. Pessoas em bondes, pessoas nas calçadas, o importante é que a câmera permanece no espaço público da rua. Diante do que Pelechian escreveu posteriormente, é possível sim ter uma idéia desta nação a partir dos fotogramas-fragmentos capturados. Novamente a mudança de "bloco" surge com a alteração da música. As pessoas que andavam pela rua funcionam como um elemento de ligação para outros planos de pessoas que andam e que trazem consigo animais domésticos. A música é composta pelo som de tambores, que aparecem também nas imagens, mas de maneira muito rápida e entrecortada. Existem também sons de animais. Seriam estes animais destinados a rituais de sacrifício? São carneiros, bodes, galinhas, gansos. Não é possível afirmar. Existem apenas imagens dos animais sendo levados, não se sabe para onde. A Armênia foi o primeiro estado a adotar o cristianismo. Suas tradições ritualísticas são parte do cotidiano da grande maioria da população. Uma voz lírica assume o lugar dos tambores, assim como pessoas filmadas individualmente passam pela câmera, no mesmo lugar e na mesma direção. Estariam elas indo para o tal ritual sugerido anteriormente? Repentinamente a imagem muda de espaço, mas a música continua. Saímos do ambiente da cidade e vamos para as montanhas. No entanto, não há uma quebra na sequência, pois a imagem apresentada é a de um homem que segura um carneiro vivo nos ombros enquanto sobe uma montanha. É uma imagem que juntamente com a música evoca um sentimento religioso. Para corroborar esta impressão, as imagens que se seguem são de planos próximos de velas sendo acendidas dentro de algum templo. O povo está sendo descrito pela sua tradição religiosa. Definitivamente, o novo bloco é dedicado a assuntos espirituais, pois logo em seguida das velas existem planos de sacerdotes cristãos com roupas muito diferentes. O único objeto que os relaciona é a cruz pendurada em seus pescoços. Tem início uma espécie de procissão tanto na cidade quanto no campo. Ouvem-se sinos junto com a
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música religiosa. E os planos de multidão caminhando são retomados. Neste segmento dois planos chamam mais a atenção por sua expressividade e pelo tempo maior de exposição que a eles foi conferido: o plano de pessoas em fila que sobem por uma montanha, o que demonstra a devoção religiosa, e o plano de pássaros que levantam vôo logo em seguida, símbolo de relações entre o céu e a terra18. Este relação entre céu e terra, ou seja, esta religiosidade é atingida quando em meio ao plano dos pássaros voando são retomados os sons de tiros e bombas. Mas, ao contrário de exibir armas, o que o filme mostra a seguir são imagens de pessoas trabalhando numa fundição. Uma nova mudança na música é acompanhada por closeups de um braço musculoso que opera uma britadeira. As pedras que o braço está quebrando não são mostradas, o que o filme mostra é o relevo pedregoso de uma montanha. Estaria o filme sugerindo que ainda falta muito a ser feito? Que este trabalho é interminável? A imagem da montanha entra por um silêncio. É a deixa para a volta da imagem que iniciou o filme: a menina que encara a câmera. O rosto inicial retorna com a mesma música triunfante, dessa vez permanece por pouco mais de 20 segundos. Mas, a lembrança é inescapável. Voltamos ao ponto de partida. Tudo o que estava entre estes dois momentos, afinal, o que significa? A explicação para esta separação é apresentada por Pelechian ao descrever o método que denominou montagem a distância: Ficou claro para mim que o mais interessante começa não quando uno dois fragmentos, e sim quando os desuno e coloco entre eles um terceiro, um quinto, um décimo fragmento. Na posse de dois planos fundamentais, portadores de importante carga de sentido, eu busco, em vez de aproximá- los, de chocá-los, criar entre eles uma distância. A idéia principal que quero expressar é alcançada da melhor maneira possível não na junção de dois planos, e sim em sua interação através de um grande número de elos. Alcança-se assim uma expressão de sentido muito mais forte e profunda do que por meio de uma colagem direta. Eleva-se o diapasão de expressividade, e cresce em grau colossal a capacidade informativa que o filme é capaz de carregar. A esse tipo de montagem eu chamo montagem distancial. (LABAKI, 2015, p. 172).
O plano fundamental em Nós é o plano da menininha que encara a câmera. A 18
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circularidade percebida durante alguns momentos do filme possui fundamento. Não obstante, ao plano do rosto da menina seguem imagens de repressão, material de arquivo de cinejornais de guerra, uma clara menção ao massacre dos armênios pelos turcos. O filme parece se encaminhar para o seu final, quando imagens de explosões são montadas em sincronia com os acordes da música que termina bombasticamente. Tratase de um falso final. O filme ressurge com imagens emocionantes de pessoas que se abraçam e choram. Não fica muito claro que tipo de situação é retratada. Podem ser rostos em um funeral, podem ser pessoas que aguardam alguma notícia. Depois de alguns segundos de silêncio e espera a dúvida começa a ser dissipada. Trata-se do retorno de armênios à sua terra natal. Pessoas se abraçam e se beijam com um avião ao fundo. Mais uma vez a idéia do retorno, da circularidade. Seria apenas o retorno dos armênios, ou uma referência à circularidade da vida, do ciclo de vida e morte, destruição e reconstrução? As interpretações são possíveis e cabíveis dentro do que o filme apresenta. Para ressaltar ainda mais o caráter dramático da seqüência, Pelechian intercala os reencontros com cenas de guerra, arquivos de imagens que mostram multidões correndo, cenas da cavalaria avançando contra a população. Com essa estratégia ele reúne possíveis causa e desfecho, num tom otimista, visto que existem reencontros apesar de tudo. Nas palavras de Pelechian: Quando o filme mostra o retorno dos armênios à sua terra natal, esses planos falam sobre a inadmissibilidade de guerras mundiais, que separam pessoas de suas terras, de seus concidadãos. Esses planos falam sobre a renovação de uma nação, sobre a formação de características contemporâneas do espírito nacional, desenvolvidas ao longo dos cataclismos sociais e processos revolucionários do século XX. (LABAKI, 2015, p. 169).
Nota-se que à medida que esta seqüência avança, são retomados alguns temas musicais expostos ao longo do filme, desta vez, eles estão sobrepostos uns aos outros.. Ao final dos reencontros, voltam as imagens do corpo do homem que operava a britadeira, desta vez em velocidade reversa. O tema da terra é representado por imagens em zoom out de diversas montanhas, ao contrário do zoom in no início do filme. A
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música se encaminha para o final e leva o público a crer que o filme acabou. Mas, Nós ainda não acabou. Depois da última imagem da montanha mergulhar para a tela preta em silêncio, nela permanecemos até o tema da menininha do começo do filme voltar a ser tocado. O mesmo rufar de tambores, a mesma entrada triunfal, mas com uma diferença: não é o rosto da menininha que acompanha a música. A imagem é a de algumas pessoas em balcões de prédios. O rosto da menina está apenas na mente do espectador que associa sua imagem à música. O plano final do filme, agora sim, é uma vista do Monte Ararat. Símbolo presente no brasão de armas nacional da Armênia, o território acabou sendo destinado aos turcos depois da Convenção de Teerã, em 1932. Este trabalho se encerra, e concorda, em parte, com a afirmação de Pelechian de que seria impossível falar sobre o filme. De fato, não é possível afirmar com certeza o que cada espectador poderá aproveitar da combinação desses fragmentos. No entanto, da mesma forma que as imagens e sons pedem um processo de "digestão" mais lento, as palavras ajudam neste processo de absorção, de imaginação, e de apreciação que se segue depois da exibição.
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REVISTA MOVIMENTO | nov 2017
LIVRE O discurso sem palavras: uma visão sobre o filme Nós, de Artavazad Pelechian Giuliano Ronco
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