ARRISCAR É PRECISO PROGRAMAS DE TV LOCAIS MIRAM AUDIÊNCIA DE FORA
CARLOS É INVISÍVEL
PROTAGONISTA DE FLORIANÓPOLIS É FIGURANTE NA VIDA ALHEIA
VOTAR É IMPRECISO
ELEIÇÃO NÃO GARANTE CONEXÃO ENTRE COTIDIANO E POLÍTICA
REPÚBLICAS GRÉCIA MÚSICA ENERGÉTICOS OOBY DOOBY
ÍNDICE 12 - Energéticos 14 - Ooby Dooby 16 - Papéis 19 - Concertos 21 - Repúblicas 26 - Votos 34 - Carlos 40 - Quixotes 47 - Juventude 50 - Grécia
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EDITORIAL LACUNA Entre tantos elogios jogados redação adentro este mês, um dividiu a Naipe. Fomos chamados de alternativos. Foram poucos os leitores que disseram isso, mas vale uma reflexão. Alternativos. O adjetivo foi usado com a melhor das intenções, e a Naipe o acata em parte. Gostamos da ideia de ser uma nova alternativa no mercado, algo sempre bem-vindo, mas tememos que a palavra tenha se engessado. Alternativo é quase sempre usado para se referir à cultura underground, a coisas de baixo ibope, a uma revolta permanente com tudo que está estabelecido. Como quem gosta de lógica já percebeu, se você oferece sempre a mesma alternativa não está mais oferecendo alternativa nenhuma. Seria um desperdício reunirmos profissionais que viajaram o mundo todo e trabalharam em grandes empresas paulistanas e norte-americanas apenas para mostrar o velho lado b das coisas. Que tal mirar o futuro e mostrar o lado x, y, z? Santa Catarina precisa muito mais que mídias do contra. Precisa de jornalismo local com qualidade nacional. Os jornais daqui miram um público muito diversificado, tentando falar ao mesmo tempo com gerações de graus de instrução muito diferentes. É de se esperar que as novas gerações – que têm grande oportunidade de estudar muito mais que as anteriores – se identifiquem pouco com esses jornais. O apelo é maior entre um público mais tradicional. Portanto a Naipe quer apenas preencher essa lacuna, e não apedrejar janelas. Arriscando definições, eu diria que fazemos algo como pop muito inteligente, ou jornalismo realmente curioso, crítico e autocrítico. Isso, talvez, já seja motivo mais que suficiente para nos acharem alternativos. Mas nosso objetivo vai além, como se pode ver nesta edição.
Boa leitura, abraços! Thiago Momm, editor-chefe
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A Naipe é uma publicação da editora Naipe Comunicações Ltda. Redação, administração, publicidade e correspondência à rua Victor Meirelles, 600, Kobrasol, São José.
Diretor executivo: Marlos Momm; Diretor administrativo e de publicidade: Thiago Steiner; Editor-chefe: Thiago Momm, thiagomomm@ revistanaipe.com; Repórter fotográfico e editor: Jerônimo Rubim, jeronimo@revistanaipe.com; Repórter: Rosielle Machado, rosielle@revistanaipe.com; Comercial: Daniele Marchi, comercial@revistanaipe. com; Gerente comercial: Moriani Baptista, moriani@ revistanaipe.com Direção de arte: Lobotomáticos, info@lobotomaticos.com; webdesign revistanaipe.com: In Vitro Digital. Foto da capa: Gabriel Rinaldi. Impressão: Coan. Jornalista responsável: Thiago Momm, MTB 45919/SP.
FALE REALMENTE CONOSCO: Para resmungos e sugestões, fale com nossos editores pelo tel. (48) 3035-4969 ou o e-mail naipe@ revistanaipe.com. Assinaturas: assinatura@ revistanaipe.com Para anunciar, fale com nosso diretor de publicidade Thiago Steiner, (48) 7811 4700, thiagosteiner@ revistanaipe.com. N A I P E • 07
CARTAS
NAIPE, O RETORNO AMORES ACRES ENSAIO RETRATA POEMAS ÁSPEROS DE BUKOWSKI
BAGUNÇA IS BUSINESS BALADÕES UNIVERSITÁRIOS RENDEM CINCO DÍGITOS
ODISSEIA VIRTUAL INFINITA, PORNOGRAFIA ONLINE AFETA VIDA REAL
DISCOS FILMES DANTE BOTECOS BARCELONA
A Naipe é linda! Achei muito legal a existência e a contribuição fotográfica da Naipe. Gerônimo W. Machado, via revistanaipe.com Revista Naipe. Daqui, feita por jovens daqui e para jovens daqui, mas igual as melhores publicações do mercado nacional. Ricardo Macuco, via Facebook Achei a revista de vocês via Twitter. Em São Paulo temos uma parecida, a Offline, porém não tão abrangente. Gostaria de fazer free lances para vocês. Aceito qualquer tipo de pagamento. Júnior, estudante de Publicidade da Mackenzie (SP), via email
Você acha a Naipe feia? Escreva naipe@revistanaipe.com
OBREIROS DESTA EDIÇÃO Bruno Ropelato é um fotógrafo prodígio de 21 anos que faz Artes Visuais na Udesc. São deles as imagens de Cones, grávidas e serrotes (p.22). Gabriel Rinaldi é fotógrafo free lancer em São Paulo, onde trabalha para grandes revistas das editoras Trip e Abril. Para a Naipe 3, construiu as narrativas de Votar é impreciso (p.26) e Carlos é invisível (p.34). Jerônimo Rubim é editor de Naipe. Apreciou música clássica e bebeu com uma figura lendária da ilha. Disso resultaram Música de garagem (p.21) e Carlos é invisível. Polívios Tzaki é garçom e grafiteiro em Atenas. A maré alta da crise grega chegou à sua porta. Disso resultou Férias frustradas (p.50).
Rosielle Machado é repórter de Naipe. Sentou no sofá para escrever Quixotes locais (p.40) e se levantou para escrever Cones, grávidas e serrotes. Thiago Momm é editor-chefe de Naipe. Viajou no tempo para escrever Balneário rocks (p.14) e em livros de política para Votar é impreciso. O sempre elogiado visual da Naipe cabe ao Lobotomáticos, estúdio de criação dos irmãos-sinapse Bruno e Diogo Rinaldi. Bruno foi diretor de arte por sete anos em agências publicitárias dos EUA. Diogo trabalhou como desenhista industrial nos EUA e no Brasil.
10• N A I P E
NAIPE? QUE NAIPE?
Em apenas três meses, a Naipe já acumula comparações com veículos nacionais. Isso porque reuniu a melhor soma de currículos de uma revista e site de SC – conheça-nos na seção A Naipe / Quem faz do revistanaipe.com. Nosso projeto tem quatro frentes:
Revista A distribuição da Naipe é gratuita e dirigida. A revista é entregue na Grande Florianópolis, em Balneário Camboriú e em Itajaí, nos campi da UFSC, Univali, Unisul, Estácio de Sá, Udesc, Assesc e outras. Parte dos exemplares destinase a bares, cafés, lojas de shoppings e baladas.
revistanaipe.com Com conteúdo novo diariamente, o site da Naipe vai muito além de um site comum de revista mensal. Leia mais na página ao lado.
Projetos especiais A Naipe envolvida com causas diversas, como aproveitamento da sobra do papel utilizado na impressão da revista.
Naipe promo Um canal direto entre os universitários e os produtos dos anunciantes da Naipe.
Naipe, Playboy e TPM No dia 17 deste mês, a Naipe participa de uma mesa-redonda com Jardel Sebba, editor da revista Playboy, e Nina Lemos, repórter da revista TPM e integrante do trio feminino 02 neurônio. O evento é gratuito e faz parte da 9ª Semana de Jornalismo da UFSC. O tema da mesa é Linguagens particulares: como escrever para públicos específicos. A pergunta-chave é “Como investir em publicações que inovem de alguma forma e se comuniquem com seus públicos sem subestimá-los?”. Quem representa a Naipe é o editor-chefe da revista, Thiago Momm, formado em Jornalismo pela própria UFSC, em 2005.
AMORES ACRES ENSAIO RETRATA POEMAS ÁSPEROS DE BUKOWSKI
BAGUNÇA IS BUSINESS BALADÕES UNIVERSITÁRIOS RENDEM CINCO DÍGITOS
ODISSEIA VIRTUAL INFINITA, PORNOGRAFIA ONLINE AFETA VIDA REAL
DISCOS FILMES DANTE BOTECOS BARCELONA
REVISTANAIPE.COM
Cinema Teatro Música Dança Moda Artes Visuais Design Arquitetura Performance Oficinas Jornalismo Debates Ação Educativa Ação Social
de 20 a 24 de setembro
Espetáculos teatrais
De porões a superclubes Sim, baladas são pop e todo mundo quer ver fotos da noite. Mas a Naipe vai além. Inovamos trazendo retratos espontâneos e textos que além de contextualizar os lugares descrevem, com muita peraltice, comportamentos na madrugada. As baladas cobertas são variadas, indo de happy hour da universidade e porão alternativo a superclubes de música eletrônica.
In On It direção de Enrique Diaz Micro Revolução de um Ser Gritante direção de Silvana Abreu Era Uma Vez no Pântano do Gato direção Carmen Fossari
Paper Macbeth direção Sassá Moretti Anestesia direção Fábio Salvatti Zylda: Anunciou é Apoteose! direção Vera Collaço e José Ronaldo Faleiro
Retrato de Augustine direção Brigida de Miranda Mandrágora/Maquiavel direção Clélia Mello
Mostra de Receitas Come tíveis S Tal Grupo
Apenas uma Fase em Off direção Zélia Sabino
Oficina O Ator-Performer
Ilha desconhecida “Uma coisa que eu gostei é que lendo as matérias [do site] tenho a sensação de não conhecer mais Floripa! Tem muita coisa que eu nem imaginava acontecendo e fico feliz que alguém esteja fazendo o serviço de mostrar que a cidade é viva e tem muito a oferecer, apesar dos pesares.” Marco Zimmermann, cervejeiro de panela e capa da Naipe 1, por email
Siga a Naipe no twitter: @revistanaipe Adicione a Naipe no Facebook procurando por naipe sc Leia a revista em versão digital no revistanaipe.com
ministrante Silvana Abreu A Ação Educativa pretende atingir alunos da rede pública, para que tenham acesso às mais variadas formas de arte, colocando-os em contato direto com as atividades através de visitação a ateliês, apresentações musicais, teatrais e cinema.
www.semanaousada.ufsc.udesc.br Realização
Patrocínio
Apoio
SOPÃO•FRASES & ENERGÉTICOS
HERÓI NAIPE Frases de Oscar Wilde que lemos este mês
“Um cavalheiro é a pessoa que nunca machuca os sentimentos de alguém sem querer” “As pessoas estragam os romances tentando fazer com que durem para sempre” “Sou tão esperto que às vezes não entendo uma única palavra do que eu digo” “Sempre que as pessoas concordam comigo sinto que devo estar errado”
CCRIOU RIOU Consumo de energéticos quase dobra em seis anos no país, e fábricas locais arriscam poções
Quando chegou a terras tupiniquins, o energético não era mais que uma propaganda com bonecos que criavam asas. Crianças não entendiam, pediam que os pais comprassem. “Red Bull não é pra criança”, ouviam. Crescidinhas, mas não traumatizadas, elas hoje são consumidoras da santa mistura de taurina e cafeína. O energético sonha um dia ser o refrigerante. De 2004 para cá o consumo brasileiro cresceu 74,6%. A quantidade de marcas aumentou só em Santa Catarina são pelo menos meia dúzia de fabricantes. Em postos de gasolina, supermercados e academias, as possibilidades parecem infinitas: Red Bull, Monster, Nitrix, Vibe, Effect, Extra Power, Flying Horse, Burn, Gladiator, Wild Dragon, Night Power, No Fear, Bad Boy, TNT, Baly, Red Horse, Flash Power. As marcas pipocam tanto que até a terra do chope já
12• N A I P E
S A S AASAS tem a sua. Lançado há dois meses, por enquanto o Blue Wish é vendido apenas em Blumenau e região. Sócio da empresa, Felipe Steiner viu o mercado em crescimento e decidiu investir. Ele admite que a competição é meio feroz. No caso do Blue Wish, é a cor azul hipnotizante que faz o papel de pega-consumidor. O Nitrix, produzido em Balneário Camboriú desde 2007, escolheu se diferenciar pelo preço – é vendido em embalagem pet e não nas latinhas esguias metalizadas. O Baly, feito em Tubarão, decidiu chamar a ex-BBB Priscila Pires e deixar o marketing fazer sua mágica. O negócio é se diferenciar. Sites muito loucos com house music de fundo são quase obrigatórios. Tem até quem imagine que nas fábricas de energético se produz ao som de tuntz tuntz. Na vontade de ser
diferente o Red Horse Power, de Joinville, toca Eminem e rock na sua página. Com tantas opções, o público fica mais seletivo. O estudante de Agronomia da UFSC Douglas Loch (foto) toma energético pelo menos duas vezes por semana. Para aguentar o tranco do trabalho, compra as marcas tradicionais, segundo ele mais fortes. Quando faz esquenta, vai no que estiver mais barato. Desconfia da abundância: “Não compro esses de dois litros que custam o preço de uma latinha”. Há fartura por aqui, mas nada comparável ao mercado americano. Nos EUA, tem até energético do Mario Bros, dos Simpsons e um chamado Deep Throat, com o maroto slogan: “Keep it up all night”. Santa Catarina ainda chega lá.
SOPÃO•BOTECOS & BOCADAS
BALNEÁRIO ROCKS Na cidade mais eletrônica do estado, Ooby Dooby ousa com cardápio e trilha sonora anos 50
N A I P E • 15
Leia mais sobre bocadas
.com em revistanaipe.com
Adriano Bettin é um homem de topete. Na eletrônica Balneário Camboriú, ele e seu amigo Vinícius Blaszezyk abriram, em fevereiro, o Ooby Dooby, uma hamburgueria e casa de rock anos 50. “É um universo paralelo, uma outra dimensão dentro da cidade”, anuncia Adriano.
nomes como Red Cutters, Rockabilly Stunts, Yellow Box. Nos dias de semana, com rock anos 70, 80, 90, o público é razoável. Mas na sexta e no sábado o Ooby bomba, 200 saudosistas e novos apreciadores de rock clássico pra mais.
Agora quem não sai de lá é a publicitária Ana Resner, uma fã de Franz Ferdinand e outros rocks atuais que descobriu no Ooby Dooby os primórdios do gênero. Sexta, sábado e quarta ou quinta ela bate ponto. Não é raro que seja, às 5h, a última cliente. No Ooby, Ana se tornou fã de Elvis Presley, Johnny Cash, Spray Cats. E lá se apegou à jukebox de fichas gratuitas e 50 discos antigos. “A galera até desiste [quando eu começo a usar]”, sorri malignamente para a Naipe, ao lado de uma geladeira azul calcinha 1953. Em cima da sua mesa há um busto do amado Elvis.
“Estamos reavivando casais”, empolgase Adriano, também animado com as “golas levantadas e várias dancinhas engraçadas” que vê. Tudo isso ele conta com um forte sotaque paulistano. Foi em São Paulo que ele roubou a inspiração de hamburguerias retrôs como Joaquins, Prime, Fifties, e foi de lá que trouxe suas costeletas, seu topete e um apego de vida inteira ao rock anos 50 e sua cultura.
Mas o som não parte apenas da jukebox. Há bandas de blues ou de rock com
Freakzinhas suaves
Em Balneário, ele e o paranaense Vinícius (cabelo normal) se deram conta de que não havia nada parecido. Só viam casas muito heavy metal, com brigas, e nisso tiveram a sacada de abrir um lugar de vibe light. “Aqui dá umas pin-ups, umas freakzinhas mais suaves”, diz Adriano. Entre as pedidas seguras do cardápio, o Ooby Burguer Classic, com maminha e batatas-fritas, 160g, r$ 16; entre as obstrutoras de artérias, French Fries Volcano, fritas com bacon e cheddar, também r$ 16. Garçons e garçonetes trabalham a caráter. Um deles começou como um civil qualquer; hoje, tem topete e costeletas à semelhança do chefe. É obrigatória, a costeleta? Mais ou menos. “É voluntária mas ficou obrigatória”, sorri Adriano. Vai lá: O Ooby fica na Av. Atlântica, 2554, Balneário Camboriú; tel. 47 3056 7796
SOPÃO•PAPEL ADA
PANFLETAGEM SAFADA Em breve volta pelo centro, Naipe acumula 14 papéis de puteiro
“Ô irmão, não quer subir pra conhecer as vagabunda?”, pergunta o mano de boné e piercing colorido no queixo, papel na mão. Apesar da proposta tentadora, a Naipe nega o convite só para ser abordada dez metros depois por outro moleque, que oferece outro papel e sussurra: “Esse aqui só tem gatinha”.
Ser homem no centro de Florianópolis significa ser acossado por inúmeros entregadores de panfletos que prometem realizar suas fantasias em horário comercial. Entregadores que prometem “só coisa fina”, ”trocadas de óleo” e “cantinho do mel” a partir de r$ 25. Que te empurram papeizinhos com axezentos traseiros em fotos (ditas) reais da “Rainha do OT loira casada, viciada em oral total 100% completa” ou da “Shaiane seios fartos, olhos verdes natural”. Correndo o risco de parecer um pervertido, o repórter aceitou os 14 panfletos oferecidos em uma breve volta pelo centro às 14h de uma quartafeira. “A concorrência tá grande”, se espanta um entregador ao ver a miríade de papeizinhos acumulada. Aparentemente, os anúncios dão certo. “Levo de cinco a sete pessoas num dia”, garante Ricardo*, há dois meses guiando homens aos destinos luxuriosos – salas em prédios comerciais. Os horários de pico são 9h e 17h, e os clientes, sempre diferentes. “É desacreditável, irmão”. Se o negócio vai bem para as senhoritas, não vai mal para seus ajudantes. Ricardo ganha r$ 40 por dia de
trabalho, mais r$ 3 por cliente que, conduzido às salas, deita com as moças. “Tirei 90 conto sábado passado, irmão”, vangloria-se. Em duas semanas, seus rendimentos ultrapassam um salário mínimo.
Vão broxar Querendo saber o que atrai tanta gente e já nem aí por parecer devasso à luz do dia, o repórter aceitou o convite de Ricardo e subiu pra conhecer a casa das “Belas gatas”. Tudo dura 20 segundos: cinco mulheres vestindo apenas lingeries cheias de frufrus já estão em pé, esperando a escolha do cliente, na pequena ante-sala do apartamento; o sofá e as divisórias de plástico que separam os quartos são cinzas, e o lugar não tem cheiro; algumas das meninas têm barrigas salientes demais para a profissão. Não há o que conversar e elas estão apenas esperando que você escolha com qual quer se enroscar. Um outro cliente não escolhe nenhuma e a Naipe se retira com ele. Na saída, uma morena nos fuzila com as lentes de contato esverdeadas e pragueja: “Os dois vão broxar hoje”. * Nome fictício
N A I P E • 17
SOPÃO•OUVIDOS
A PERIFERIA É POP Mano Brown lota El Divino em dia de double sashimi
Aos 40, Mano Brown tem novas convicções. Esquecendo as rusgas passadas com o mundo dos “prayboy”, o rapper aportou na ilha para show em um El Divino (em dia de double sashimi) lotado. Brown bem que tentou apresentar seu novo projeto musical – de rimas menos contundentes e batidas mais alegres –, mas as gatinhas de meias rendadas, os gatinhos de camisetas polo e os manos de correntes no pescoço exigiram e ele concedeu: voltou a 1994 para cantar os maiores sucessos dos Racionais MCs. “Quem vive de passado é museu, prefiro o agora”, resmungou. Os extasiados fãs nem ligaram.
LINHA DIRETA Soundcloud aproxima DJs e ouvintes Na busca por espaço, cada vez mais DJs aderem ao Soundcloud, visto por muitos como melhor que o MySpace. Entre tantos motivos, porque permite ao usuário escutar e baixar simultaneamente músicas ou até sets inteiros, além de facilitar comentários e compartilhamento dos sons.
“O Soundcloud melhora a conversa dos ouvintes com quem faz a música”, resume o DJ Di Bento, residente do Alternative Lounge, em Joinville. Ele pagou r$ 150 para poder postar até 12 horas de música no site – quem não paga tem apenas 2 horas. Agora, passa
seu Soundcloud para as pessoas antes do MySpace. “Serve muito para quem está começando ou tem fama nacional, mas os DJs tops não precisam [ter perfil no site]”, diz. De fato: Anderson Noise está lá, David Guetta não está.
MÚSICA DE GARAGEM Espaço de casa vira sala de concertos em Jurerê Internacional A garagem de Piero Giacomo é a mais cara de Jurerê Internacional. É também a mais movimentada e interessante desde que ele construiu lá um auditório para apresentações de duplas a quintetos de câmara. Com entrada franca para 156 pessoas (válida pelo menos este semestre) e apresentações de renomados artistas locais e internacionais, desde junho o Jurerê Classic mexe com a vida de quem aprecia música erudita na cidade. Tudo ideia – e boa-vontade – de Piero, 24 anos degustando caipirinhas brasileiras como turista e 7 como morador da ilha. É ele quem saca muitos euros do bolso para bancar esse manjar artístico quinzenal: da construção aos cachês, a conta é dele. “Sou um amante da música. Queria construir uma joia da música clássica” nos diz o italiano, sotaque carregado e sorriso bonachão.
Piero contou com a consultoria de especialistas para montar o Classic, e a qualidade é atestada por Alberto Heller, pianista que já tocou em diversos países, atuou como jurado em inúmeros concursos e já se apresentou no local. “É um auditório com acústica de alta qualidade, com conforto e sem qualquer barulho externo. Não conheço outro auditório particular dessa categoria no Estado”. Para quem acha a ilha inculta, a procura impressionou os organizadores: a primeira apresentação teve que ser repetida menos de 24 horas depois para comportar a procura. Dezenas de pessoas ficam na lista de espera das apresentações transmitidas ao vivo pelo auditoriojurereclassic.com.br. “Tem gente que compra Ferrari número 1, Ferrari número 2, Ferrari número 3. Eu não, prefiro promover a arte e oferecer algo refinado para as pessoas”, diz o inexistente Piero, que anda de Vectra.
Piero (no meio) conversa com músicos durante ensaio. Francesco Malatesta, primeiro à esquerda, é o primeiro violinista do Teatro de Ópera de Roma, Itália.
N A I P E • 21
CONES, GRÁVIDAS E SERROTES
Repúblicas universitárias abrigam infinidade de cacarecos e apego pelo convívio por Rosielle Machado, com fotos de Bruno Ropelato
O cone é obrigatório. Em qualquer república universitária, ele está lá: em algum lugar entre as geladeiras quase sempre vazias e os pole dances, pianos, violões, piscinas, grávidas, serrotes, placas de trânsito, pranchas de surfe, casinhas de boneca, cães, gatos e (às vezes, não que os moradores achem graça) ratos. Viver em república é mais que colecionar cacarecos. É dividir privacidade, experiências, cozinha, banheiro. É se revezar na limpeza, separar contas, compartilhar barulhos. O cotidiano tem aspectos parecidos, mas cada casa tem suas peculiaridades.
1. Castelo, famosa república próxima da UFSC, tem nove castelãos distribuídos em dois andares; o terceiro, considerado um espaço separado, abriga mais quatro pessoas; 2. Eder, que nos dias frios se entoca no saco de dormir, lamenta a falta de higiene dos antigos moradores e hoje prega a assepsia; seu quarto, no entanto, ainda não aderiu
Jam session noturna no quintal da Casa da Música, que reúne até 400 ouvidos em festas que além das tradicionais reclamações já renderam carta elogiosa de um vizinho
A Casa da Música, por exemplo, é um ninho de arte. Pertence aos pais de Rafael Camorlinga, que divide o espaço com mais oito pessoas. Na república há ensaios de seis projetos musicais, sessões de videoarte, jam sessions na cozinha e intervenções artísticas constantes nas paredes. O matagal no terreno e as garrafas de vinho barato no quintal quase fazem enfartar o pai de Rafael, visitante esporádico. A república Castelo de Greyskol (assim mesmo, em referência à cerveja) tem nove moradores e alguns quartos com pinturas de ovelhinhas – antes, a casa era uma creche inocente. Hoje, na porta, há uma luz vermelha acesa sempre que acontecem festas e churrascos. “Tem gente que não nasceu pra viver em república”, filosofa Eder Augusto, morador do Castelo. “Tem que saber conviver, distribuir chocolate na tpm das meninas, sabe? Você veio lá de sei lá onde, a gente cuida de você e você da gente, é meio que uma família”. Tudo muito lindo na teoria, mas sempre tem os que não sabem brincar. No Castelo, uma ex-moradora
ficou dez dias sem limpar as sujeiras do cachorro porque estava ocupada jogando GTA (!) no videogame. Depois do episódio, um período de dois meses de teste foi instituído para novatos. Em outra república, a do Seu Madruga, Renato Rodrigues teve que aprender como contornar tensões. “Um cara que morava aqui se viciou em pedra e roubou r$ 100 da caixinha do dinheiro. Até descobrir quem tinha sido, imagina o clima que ficou.”
Quarto com tanque A imagem de casas universitárias como campos de refugiados nem sempre é real. Na região da UFSC e Udesc existem repúblicas com ar-condicionado e piscina. Os preços variam de acordo com as regalias. Um quarto com tanque de lavar roupa (!)
e cheiro de fossa custa r$ 185; uma suíte com vista para a piscina sai por r$ 600. Pelo que paga no Castelo, Eder poderia alugar um apartamento pequeno, mas não troca a muvuca que o rodeia por nada. “É foda morar sozinho, aqui eu desço as escadas e sempre tem alguém pra conversar.” A intercambista italiana Nico, que passou um ano na Seu Madruga, também se empolga com a experiência. “Você sai do seu quarto e é como se estivesse na rua. Cheguei no Brasil sozinha, essa é a minha família.” O apego até faz esquecer que a permanência na república é transitória. Na Punta Cana, os seis habitantes já investiram em globo giratório, estroboscópio e televisão 50 polegadas. A próxima meta é uma mesa de sinuca. “Na verdade, a longo prazo a gente quer transferir a república pra Jurerê Internacional”, delira Everton Vasques. A Casa da Música também tem seus planos. Rafael diz que gostaria de montar um estúdio, transformar o espaço em ponto de cultura, dar aula para a comunidade e ter uma república de todas as artes, não só da música.
Massa “Nós seis bebendo não conta como festa, né?”, pergunta Everton, com copo de cerveja na mão às 16h de uma terça-feira. “Não? Então a gente faz umas duas por mês, por aí”. A casa tem até DJ residente. Na bebedeira mais memorável (ou não) foram 90 litros de cerveja. “Sobrou, claro, aí a gente fez a semana alcoólica. Até o cara que veio consertar o portão bebeu com a gente.” Nas farras infinitas, coisas exóticas acontecem: uma japonesa muda (!) dançando no pole dance, arremessos humanos do segundo andar para a piscina e sofá roubado. Nenhum dos moradores deu por falta do móvel até o dia seguinte. Na Casa da Música, as festas reúnem até 200 pessoas e já renderam uma linda
Meio-dia na Punta Cana
N A I P E • 23
Quarto com tanque e cheiro de fossa na Seu Madruga
carta de um vizinho que nunca esteve presente: “Obrigado pela música de ontem. Espero ser convidado para as próximas festas”. Em época de férias, as repúblicas subitamente se transformam em albergues. No Castelo, é cobrada uma taxa de r$ 8 por um colchão em algum canto. Na Punta Cana não é preciso pagar nada. “No carnaval tinha 25 pessoas, gente do Peru, da Grécia, da Argentina, tinha gente que nem era amigo de ninguém da casa e nós só fomos descobrir depois. Foi massa”, diz um nostálgico Thiago Turini, que vê no cotidiano republicano a vantagem de aprender a conviver com outras pessoas.
As cleptolembranças da Punta Cana, próxima a Udesc: colete salva-vidas da TAM, carrinho e cestinha do BIG, almofadas do Taikô, copo do Benvenuto Bar, bolachas de chope de lugares variados, cones. “A gente ganha muita coisa”, eufemiza Everton.
“Tem mais uma coisa de morar em República”, diz Eder. A Naipe prepara o ouvido para mais uma história etílico-lisérgica-lasciva de filme universitário americano, mas é surpreendida. “O tempo passa e você fica com saudade de quem já foi embora. A gente é muito amigo numa hora e na outra a pessoa vai embora”, protesta, ameaçando se emocionar.
VOTAR É IM
As campanhas cívicas se resumem a pregar o voto consciente; os especialistas e a prática mostram que a melhoria da política está muito além
MPRECISO por Thiago Momm e Jerônimo Rubim, com fotos de Gabriel Rinaldi
“Tenho 17 anos, ainda não sou desiludida com a política”, reflete a caloura de Arquitetura da UFSC Ana Carolina Nascimento, emendando um sorriso sardônico: “Mas não falta muito.” O voto dela e dos universitários Bruno Espíndola, Andréia Canello e Carmelo Cañas para presidente valerão 0,0000008% cada em outubro. Mesmo assim, é época de eles ouvirem que têm em mãos uma arma capaz de mudar o país, que as eleições são a festa da democracia, que basta se informar para votar bem, votar com consciência. Será simples assim? As próximas eleições podem ser vistas sob perspectivas bem diferentes. Uma é a de que o Brasil comemora 25 anos de democracia e o eleitorado recorde de 131,5 milhões. Outra é a perspectiva anacarolina, comum a inúmeros eleitores. Votar regularmente não impede as novas gerações de se desiludirem com a política. No Brasil ainda é difícil ver a conexão entre o ato isolado de votar e as milhares de decisões políticas que se seguem
“Quando eu tinha 18 anos eu era alienado sem querer. Hoje [com 27] sou alienado conscientemente” Carmelo Cañas, estudante de Jornalismo
C A P A • 29 Ao ouvir declarações como a de Carmelo é comum nos fingirmos espantados, esquecendo que fazemos igual ou pior. Ele, na verdade, é mais bem informado que a média dos eleitores, e mesmo outros universitários. Acompanha blogs políticos e fez um curso de política de dois meses na Assembleia. Em vez de estimulá-lo, as informações acumuladas o desanimam. “Quando eu tinha 18 anos eu era alienado sem querer. Hoje [com 27] sou alienado conscientemente”, explica. Na mesma toada, diz Ana Carolina: “Acho que, se eu me informasse melhor, avaliaria pior os candidatos.”
às eleições. Tanto a escolha do candidato como o acompanhamento do seu mandato são tarefas pouco adaptáveis à realidade do cotidiano. Mesmo nos países desenvolvidos é difícil ver as ações políticas como resultado das escolhas eleitorais: “Não só perdemos o controle sobre nossa forma de viver, como as autoridades também o perderam para forças além do seu alcance”, escreveu um dos grandes historiadores contemporâneos, o britânico recém-falecido Tony Judt. O resultado é o desânimo com o pleito. “Eu estava num churrasco em Canasvieiras e voto em Coqueiros. O Dário [Berger, candidato a prefeito de Florianópolis] estava muito na frente, então pensei ‘foda-se um voto’ e não fui”, conta Carmelo Cañas, estudante de Jornalismo da Estácio de Sá, sobre as eleições de 2008. A distância entre os bairros de Canasvieiras e Coqueiros é de quase 50 km. A distância entre as expectativas políticas de Carmelo e o efeito do que digitaria na urna era maior ainda.
Pontos de vista assim são mais que justificáveis. “Há especialistas que defendem que a alienação política é a rejeição consciente de todo o sistema político”, escreve Marcus Figueiredo no livro A escolha do voto – democracia e racionalidade. A “alienação consciente” parte de algumas conclusões básicas: a de que não temos influência nenhuma no que o governo faz; de que as decisões políticas são imprevisíveis, incoerentes, aleatórias; de que as normas que regem as relações políticas são desrespeitadas; a de que votar é mera formalidade.
Piscina térmica pública Simplificando a coisa toda, as campanhas cívicas insistem em pregar o voto consciente. Mas o que seria votar consciente? Digitar dois números estando perfeitamente informado do que eles representarão? O mundo real é o mundo da informação incompleta e imperfeita – e de candidatos precários, com discursos que tendem para a vagueza. Mais que isso, é impossível prever os problemas que surgirão no futuro e as atitudes dos eleitos diante desses problemas. “As diferenças de postura dos políticos frente às questões sociais e econômicas cruciais
N A I P E • 31
em geral são tão sutis que, para discerni-las, seriam necessários conhecimentos que a grande maioria dos eleitores não tem”, escreve Marcus Figueiredo.
A estudante Andréia Canello lê sobre política, mas no mundo das informações imperfeitas escolheu um vereador a partir de conversas com o pai
Na vida real, isso se traduz em votos como a da estudante de Nutrição da Unisul Andréia Canello, 20. Sua tia e sua sogra já foram vereadoras. Desde os 16 anos ela faz questão de ler sobre política e percorrer os 250 km entre Florianópolis e o seu colégio eleitoral, em Lages. Mesmo assim, no mundo das informações imperfeitas votou em um vereador a partir de conversas de última hora com o pai. O resultado: “O vereador que eu elegi queria usar o dinheiro da Festa do Pinhão para construir uma piscina térmica pública na cidade”, lamenta Andréia – que teve o mérito de acompanhar quem elegeu. Para Marcus Figueiredo, mesmo eleitores “capazes de processar informações políticas relevantes talvez não achem racional despender tanto tempo e energia nessa tarefa”. Não bastasse, a informação não tornaria o voto infalível. No livro The political mind (ainda sem tradução no Brasil), o linguista e cientista político George Lakoff diz que “98% das nossas decisões ocorrem inconscientemente, sob a influência de emoções que nem sequer desconfiamos possuir”. Para Lakoff, é hora de pensar em um “novo iluminismo” e deixar de ver a razão como uma máquina de calcular objetiva e apaixonada. No caso das eleições, como bem sabem os marqueteiros, narrativas que exploram biografias e valores falam mais eficientemente ao eleitor do que dados. “O eleitor muitas vezes escolhe o candidato que mais o permite sonhar”, diz a mestre em Ciências Políticas pela Universidade de Lisboa Suzana Lupi, que não considera isso necessariamente ruim: “Tem que ter um espaço de liberdade [de imaginação] na decisão do voto.”
Confuso Para Alberto Carlos Almeida, diretor do Instituto Análise e autor de A cabeça do eleitor – estratégia de campanha, pesquisa e vitória eleitoral, o que decide são as informações mais prontamente disponíveis. “Para a maioria das pessoas, em primeiro lugar vem a avaliação do governo. Esse é o fator mais importante”, diz Almeida à Naipe, prevendo a vitória de Dilma Rousseff no primeiro turno como mais uma prova dessa teoria. Também levamos em conta, ao votar, fatores como identificação partidária, status socioeconômico, perfil dos candidatos, propostas eleitorais e outros. A identificação partidária não é a bússola mais confiável no Brasil. Dadas as regras eleitorais, os partidos precisam se aglutinar para conseguir votação suficiente. Isso se traduz em bandeiras confusas. Nos EUA, republicanos e democratas têm alguns valores claramente distintos, pelos quais o eleitor pode se orientar.
Resulta disso que em geral, no Brasil, é melhor se falar em simpatia do que em identidade partidária. A única identificação numerosa, afirma Alberto, é com o PT. Mesmo assim, sabe-se hoje que votar em candidatos do partido não é garantia da aplicação de certos valores. Os partidos são fluidos e traem com facilidade seu passado – logo, traem os eleitores que se identificavam com eles. Nessa salada, Bruno Espíndola, 22, estudante de Fisioterapia da Udesc, está confuso. “Os três principais candidatos [presidenciais] têm falhas, não vou votar com segurança. O PT já está há tempo demais no poder. O Serra é corruptível. A Marina tem a melhor história, tem diferencial, mas só tem 10% [das intenções de voto]”, avalia.
A identificação partidária, um dos fatores mais influentes na escolha do voto, não é a bússola mais confiável no Brasil
Ou seja, é foda.
Para se tornar um animal político A cabeça do eleitor – estratégia de campanha, pesquisa e vitória eleitoral, de Alberto Carlos Almeida; Record, 308 pág., r$ 42,90. A decisão do voto – democracia e racionalidade, de Marcus Figueiredo; UFMG, 240 pág., r$ 35. Reflexões sobre um século esquecido – 1901-2000, de Tony Judt; Objetiva, 504 pág., r$ 59,90. Eleições na estrada – jornalismo e realidade nos grotões do país, de Eduardo Scolese e Hudson Corrêa; Publifolha, 280 pág., r$ 29,90. Akropolis, a grande epopéia de Atenas, de Valerio Manfredi; L&PM, 248 pág., r$ 15. 32 • V O T O S
De Atenas ao twitter Na Atenas de quatro séculos antes do Cristianismo qualquer cidadão podia se levantar e apresentar a sua proposta. Mas não adianta ficar com saudades. Aristóteles e Rousseau previram que um sistema democrático assim só funciona para populações de até 10 mil pessoas. Mas que era lindo, era. O cidadão que apresentasse ideias deveria medir as palavras, porque se dissesse bobagem poderia ser multado. Hoje, deputados e vereadores podem propor até a criação de aeródromo para pousos de OVNIs, como já aconteceu, e não serão punidos. Olhos ligados na TV Câmara talvez se arregalem, internautas talvez disparem tuitadas, e outras propostas absurdas virão. Na antiga Atenas, as propostas aprovadas pela maioria eram redigidas em um decreto que sempre começava assim: “A cidade e o povo acharam justo que...”. O politikós, líder político, normalmente tinha o mandato limitado a um ano e prestava contas a assembleias e tribunais populares. “TV Câmara, TV Senado: primeiro, grande parte passa na TV a cabo; depois, esse formato é chato”, diz a cientista política Suzana Lupi, sobre nossa ligação diária com a política hoje. “A sociedade precisa criar novos mecanismos de participação. Vontade de participar existe”, opina. Nos últimos séculos assistimos à criação do Estado e sua consolidação. Não adiantou o anarquista francês PierreJoseph Proudhon (1809-1865) resmungar: “Quem quer que coloque a mão sobre mim para governar-me é um usurpador e um tirano – eu o declaro meu inimigo”. O Estado, no entanto, pode ser menos monstruoso que isso. O historiador Tony Judt escreveu: “Os Estados previdenciários [europeus] foram conscientemente planejados para atender ao amplo desejo de segurança e estabilidade (...) e excederam toda e qualquer expectativa”. Se hoje mesmo os desenvolvidos europeus o questionam é justamente graças ao meio século de prosperidade e segurança que os fez esquecer “os traumas políticos e a insegurança generalizada” anteriores. Assim, Tony Judt lembra que no século 20 às vezes pode haver Estado demais, mas às vezes também Estado de menos. Cabe achar a medida. E, especificamente no caso brasileiro, primeiro aprender para que serve o Estado.
Ele foi pioneiro da comunicação nos calçadões da ilha; hoje, o megafone de Carlos Alberto da Silva reverbera principalmente o seu mundo particular
CARLOS É INVISÍVEL por Jerônimo Rubim, com fotos de Gabriel Rinaldi
Mercado público de Florianópolis, 20h de sexta-feira. Caminhando entre as mesas cheias dos bares, fotógrafo, designer e editores da Naipe se esforçam para sacar algumas fotos e conversar com Carlos. Ele está impaciente, imprevisível, indomável. Uma loira maquiada pergunta se estamos gravando para o horário eleitoral. – Estamos fazendo um perfil, a Naipe responde. – Dele?!, pergunta a loira. Carlos está alheio, preocupado com dois malacos que acabam de roubar seu celular. “Conheço os dois. Eles vão devolver, é só brincadeira”, garante, olhar vazio mirando o escuro da noite. Quando ele sai mais uma vez na busca inútil
dos ladrões, um garçom se aproxima e pergunta: “Perfil dele? É pro Globo Rural?” Carlos sempre foi um corpo estranho em Florianópolis. Megafone a tiracolo, visual estrambótico e fôlego de guri pequeno, ele é figura conhecida na cidade e também em Balneário Camboriú, onde passa os verões. Foi o arauto pioneiro das promoções imperdíveis das lojas populares, o showman da comunicação de rua nos calçadões da capital. Tanto quanto os aposentados jogadores de dominó ou os mandriões debaixo da figueira da praça XV, é parte do folclore urbano da ilha. Desde 1981, talvez 1984 – ele não lembra, a população menos ainda –, é impossível circular pelo centro sem ouvir sua voz ecoando nas paredes dos prédios. “Faço parte da história dessa cidade”, sentenciou Carlos noite dessas. “Do Brasil”, se empolgou outro dia.
Passadas quase três décadas, seu look a maior parte do tempo colorido e ousado de saias, vestidos e chapéus com chifres ainda causa certo constrangimento à ilha. “Acho que é giletão, gosta de se vestir de mulher”, arrisca um gordinho simpático que escuta um cacofônico discurso político de Carlos em frente ao Centro Legislativo da capital. “Faço esse trabalho desde os dez anos de idade. Um dia coloquei uma saia e a coisa exprodiu em Florianópolis, começou a dar ibope”, simplifica Carlos, sobre se travestir. A autenticidade até rendeu mais trabalho, mas também trouxe apelidos como “O corno do centro” e rótulos como viado e maluco. Essa demonização pública ao longo dos anos não parece ter afetado a obstinação de Carlos em aumentar os decibéis calçadões afora. “Incomoda. Fica falando aí e ninguém entende nada”, reclama o caixa de uma lanchonete que assiste ao discurso político. “Toma umas manguaça e parece que fala argentino”, ri o gordinho.
“Outro dia falei pro [comentarista da RBS] Moacir Pereira que ele tem que melhorar a dicção, falar mais devagar, falar como eu falo. Ele é um comunicador, as pessoas precisam entender o que ele diz”, Carlos me conta apressadamente, entre um anúncio e outro, engolindo algumas sílabas. Provoco que o incompreensível por aí, dizem, é ele mesmo, Carlos. “Quem não entende? Se não entende é surdo, é surdo, porra”.
Mulher, porra Depois de muitas tentativas – Carlos estava “muito ocupado, com muitas reuniões, hoje não dá, hoje não dá” – marco uma entrevista mais longa. São 11h15 no relógio do abafado boteco e Carlos está confortável. Tira a aparelhagem de som do ombro, pede um conhaque de alcatrão e finalmente conta sua história. Não a pública, mas a que há por trás da figura de
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cabelo moicano roxo, unhas com esmalte preto descascando e calças femininas à minha frente. Apanhou muito da mãe, fugiu de casa, passou fome, dormiu na rua, a irmã virou prostituta. Carlos enumera essas clássicas desgraças com distanciamento, como se falasse de coisas que realmente só têm lugar no passado, a blindagem dos desafortunados. Com a bravura dos que não têm nada a perder, mal tinha chegado à puberdade se mandou da Pernambuco natal, em um navio, para a Rio de Janeiro dos anos 70. Alguém soprou para mim sobre Cauby Peixoto na vida de Carlos. Jogo a pergunta em cima da mesa.
“Dormi com o Cauby, fui marido dele por dois anos”, escancara. “O problema é que o Cauby enchia a casa de guri novinho. Eu gosto de mulher, porra”. No Rio da época, Carlos apertou a mão de Tim Maia, Nelson Gonçalves, Jairzinho, Waldick Soriano em bares boêmios.
Mas o hoje se sobrepõe ao ontem. O trabalho volta à tona. Não bastasse passar o dia correndo atrás de patrocinadores e reverberando seu mundo particular no megafone, ele se alegra ao falar da profissão. Me mostra uma foto sua com Brizola e conta dos trabalhos que fez para Luiz Henrique, Esperidião Amin, Kleinubing, Pedro Ivo Campos. “Aos dez anos de idade eu já fazia propaganda pro Miguel Arraes lá em Recife, já era figura política, rapaz.” A conversa já passa de uma hora, e para o workaholic Carlos tempo é dinheiro. Ele pede licença e sai por dez minutos. Foi vender seus serviços a uma auto-escola e
aproveitou para apresentar a Naipe. “Quer ver tu ganhar dinheiro? Quando eu sair na revista tu vai ganhar rios de dinheiro, vai ficar doido, cara”, me diz, na volta, olhar perdido. À tarde ele vai a uma convenção de partido político. Época de eleições é um banquete para que suas habilidades verbais se traduzam em trocados dos candidatos. “Preciso trabalhar. Preciso pagar meu hotel”, diz Carlos, que recebe r$ 25 por hora de trabalho e paga r$ 40 a diária para viver na Conselheiro Mafra. No tempo em que os argentinos tinham poder de compra, Carlos ganhava bem durante o verão em Balneário Camboriú. Ao ouvido de muita gente chegou o boato de que ele era rico. Diz-se que ganhava até r$ 80 a hora. Hoje cobra um pouco menos que os seus próprios aprendizes. “Ele era muito bom. Foi o primeiro, me inspirei nele. Só que hoje vende mais a si mesmo que aos produtos”, diz Gilson dos Santos, expoente dos propagandistas de rua dos tempos globais. Gilson gesticula como um palestrante motivacional, e seu cartão oferece os serviços de “propaganda, gravação de CD, cerimoniais, apresentação de eventos” – com seu hotmail logo abaixo. Um vendedor de DVDs ouviu falar que no auge Carlos comprou carro importado à vista em uma concessionária. “Não, isso não. Mas ganhei muito dinheiro, verdade”. E onde foi parar a grana? “Acabou.”
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Aleluia Reencontro um cambaleante Carlos tentando se equilibrar em coturnos no Largo da Catedral dias depois. Ele me abraça e anuncia a Naipe no microfone como “a melhor revista do Brasil, internacional”. Então começa a enfileirar diversos números de candidatos, brinca com os motoristas parados no sinal, cumprimenta pedestres, canta Bob Marley, manda um “Aleluia!” para o rebolado de uma passante. “Tem muita mulher bonita na ilha”, anima-se. “Estou aqui há treze anos, ele foi sempre a mesma coisa, essa mesma figura”, conta Lima, dono de uma barraquinha de livros no Largo. Alguns ilheus balançam a cabeça negativamente com as brincadeiras. Outros passam sem olhar. Muita gente dá pelo menos uma risada, disfarçada que seja, de Carlos Alberto Silva, 52 anos.
QUIXOTES LOCAIS
QUITUTES•TV PL ANA
Pequenos programas de TV não só sobrevivem como se espalham Brasil afora
O estúdio de gravação do Show da Tarde oscila entre o minimalista e o esquisito: três cadeiras em frente a um papel de parede com mar, montanhas, por do sol e um baú com tesouro dourado reluzente. O apresentador Tadeu Soares se aproxima de um dos entrevistados e aponta para a câmera: – André, queres mandar um alô pra alguém? – Não, não tem ninguém assistindo. O momento foi eternizado pelo Youtube. Exibido no canal Primer TV, o Show da Tarde faz parte de um exército de pequenos valentes das emissoras locais em Florianópolis. Em meio a programas-para-ninguém e bizarrices, há qualidade e público fiel. O farto mundo da TV local é negócio – desde que se tenha grana e persistência até a coisa se encaminhar. Televisão local (exclua-se a RBS) funciona mais ou menos assim: compre um espaço x na grade de programação da emissora y por algo entre r$ 1500 e r$ 9 mil, dependendo do tamanho do x e da extensão do y. Invista em câmeras, microfones, iluminação e equipe. Encontre anunciantes e patrocinadores interessados em merchandising, anúncios, participações especiais, o que for. Tope (quase) qualquer negócio. Repita o processo a cada programa. Quem encara a empreitada derrapa um pouco até se firmar. Programas de vida curta são comuns, mas alguns se mantêm. O Bon Vivant é desses. No ar há sete anos, já passou pela Band, é exibido no Canal 20 e há dois meses conquistou o horário nobre de domingo na RIC Record local.
Vinícius assistiu TV catarinense a pedido da Naipe
“Acho que deu certo porque por mais que eu tenha nascido aqui, a linguagem do programa é universal”, orgulha-se o criador, apresentador, produtor, gerente comercial e faz-tudo, Leo Coelho. Além dele, a equipe tem um cameraman, que também é editor. “Quando eu apresentava o Esquenta, no SBT,
O adolescente its séries trocou o “tu” pelo ”você” na busca por audiência nacional
tinha umas 30 pessoas trabalhando, trouxemos até o Bezerra da Silva, mas foram quatro anos sem ganhar dinheiro. Não adianta inventar moda, o mercado daqui não absorve”, sintetiza Coelho. Mas tentativas de inovação não faltam entre os pequenos locais. Os slogans são ambiciosos: “Mostrando Florianópolis como você nunca viu” ou “Um programa que busca preencher uma lacuna na programação convencional da televisão brasileira”. O vanguardismo é tanto que a ilha se tornou até exportadora de seriado adolescente para o resto do país. É o sotaque manezinho em rede nacional. O its séries, exibido na RIC local há um ano e meio, agora também é transmitido, via revista Atrevida, em um canal do site UOL. Comparando o programa com a revista impressa da mesma empresa, o diretor da its Bruno Filomeno conclui que TV vale mais a pena: “Apesar de ser uma área arriscada, tem uma liquidez maior”. 42 • N A I P E
Fazer parte da grade de programação local já é uma vitória para as produções independentes. O que dizer então de quem exibe o programa em emissoras Brasil afora? O Senhor dos Implantes conhece a sensação. Ele é a estrela do reality show odontológico Doutor Sorriso, produzido em Porto Alegre há sete anos e veiculado aqui em Florianópolis pelo Canal 20. É exibido também no Rio de Janeiro. O Doutor Sorriso é um típico exemplo do faça-vocêmesmo dos pequenos programas. Não tem onde passar? Compre seu espaço. Não tem onde gravar? Construa seu estúdio. Não tem apresentadores? Chame dentistas. Personagens? Os clientes da sua clínica. Estrela? O dono. Prestes a ser exibido em Miami, Doutor Sorriso se transformará em Doctor Smiley e ganhará legendas em inglês. Na busca por audiência fora, o programa fica menos gaúcho - já o its séries tenta esconder o sotaque dos atores trocando o “tu” pelo “você”.
“É o melhor momento da regionalização”, vibra o diretor do Canal 20, Alexandre D’avila. “As emissoras locais têm apelo porque independente da sua estrutura e do custo de produção, a audiência procura informações locais”. Para ele, a qualidade das produções da ilha cresce. A espectadora assídua de TV local Fabíola Sena concorda. Seus canais preferidos são TVCOM e Canal 20.
Malhação A Naipe convidou um cobaia para assistir aos programas locais citados na reportagem. Assim que abriu o link da “TV Atrê” (canal da revista Atrevida, no UOL) para ver o its séries, o estudante de economia da UFSC Vinícius Hilbert soltou: “Lamentável”. No episódio, a adolescente chamada Bina chega ao novo colégio e é hostilizada por patricinhas mal intencionadas. No geral, Vinícius achou o programa na linha de Malhação. Mas se surpreendeu com as atuações, em sua opinião mais honestas que as da série global. “A gurizada não fica querendo parecer algo que não é, sabe? Para o públicoalvo, acho uma proposta interessante”. Leo Coelho resiste há sete anos e quer crescer com a nova Floripa
“A produção ainda tem muito a melhorar, mas o conteúdo é tão bom quanto programas do eixo Rio-São Paulo”, analisa Fabíola. “O melhor é que eu tenho acesso a informações que vou poder consumir, exposições em que posso ir, peças que posso assistir, lojas que posso visitar.” Quando vê um bom programa, ela manda sms para os amigos, liga para a irmã, comenta com a família nos almoços de domingo. “Acho que o preconceito contra produções da região é mais por desconhecimento. A gente vê tanto lixo de produção nacional, por que não prestigiar informações daqui?”
Sobre Bon Vivant, que já conhecia, disse acreditar que o programa se dará bem no horário nobre de domingo à noite, já que visa uma audiência com mais grana. “Acho a ideia funcional”. Quando o Senhor dos Implantes deu partida em seu Jaguar na abertura do reality show Doutor Sorriso, a Naipe esperava um frisson que não veio. “Não me surpreendo. Reality show dá pra fazer com qualquer coisa, né?”. Achou convencional, apesar do tema. “É o Extreme Makeover Dental Edition”, comparou. A pequena incursão em TV local não mudou sua opinião de não-espectador das localidades: “Não assisto programas daqui porque nada me chama a atenção a tal ponto”.
QUITUTES•NA ORELHA
CABINE LOTADA
Com 14 DJs por pista, festival eletrônico promove verdadeira paella musical
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N A I P E • 45 Existe um chavão de que música eletrônica é tudo a mesma coisa. Quem a escuta sem preconceitos sabe que não é. Alguns festivais, no entanto, não têm critérios claros, apostam na bagunça e dão munição aos preconceituosos.
O Opion Festival 2010, no dia 18 deste mês no Life Club, é o exemplo típico de uma salada eletrônica. Reunirá 28 DJs, o que em números absolutos não é problema nenhum. Um festival como o gigantesco Creamfields, que ocorre em vários países por ano, reuniu um line-up com quase 200 nomes na versão britânica, no final de agosto. Diluídos em mais pistas e dias, no entanto, os DJs foram 8 por espaço. Na Life, é quase o dobro: 15 tocarão house em uma pista, e 13, psy em outra.
“O cara precisa de pelo menos 90 minutos para ter um set consistente. Se os DJs tocam menos que isso o público não consegue discernir quem está tocando nem fruir o som”, diz o produtor musical Nery Bauer. A primeira pista da Life (20 horas aberta) terá média de 80 minutos por apresentação; a segunda (14 horas aberta), 64 minutos. Para o proprietário, Amilton Adulci, o que importa é que com tanta gente tocando “diferentes preferências são atendidas”.
Uma visita aos MySpace listados no flyer da Opion revela uma paella musical: tem DJ local com 8 amigos e nenhuma música disponível; tem israelense que acaba de acumular 300 mil visitas; tem psy muito bom, remetendo ao da dupla consagrada Infected Mushroom; tem mexicano com cara de emo louco; tem perfil fora do ar; tem o mesmo DJ, com nomes diferentes, anunciado nas duas pistas; tem os que estão trocando o site por outro agora mais cultuado pela profissão, o Soundcloud (ver box).
Qual o critério desse elenco tão variado? “Hum, nós ouvimos o público, cada pessoa fala num tal DJ...”, explica Amilton.
“Tem produtor que se perde [chamando DJs demais]. E acham o máximo que venha alguém de Israel, mas são gringos que saem barato quando é baixa temporada lá [no país deles]”, diz Davi Paes Lima, editor da revista House Mag, mesmo sem ser avisado pela Naipe que há alguns israelenses no elenco da Life.
“Cada DJ agrega um grupo de 500 pessoas. Esse é o interesse de juntar muita gente para tocar”, diz o consumidor de longa data de música eletrônica Ronaldo Zanellato. “De qualquer maneira, eu consigo distinguir quem está tocando”, garante, e, refletindo mais um pouco, acrescenta: “Se o DJ é ruim, principalmente, eu noto na hora.”
afroreggae.org.br twitter.com/jjafroreggae
multishow.com.br twitter.com/multishow
JUNTAR BRANCO COM PRETO PODE DAR COISAS MUITO MAIS INTERESSANTES DO QUE CINZA. 3A TEMPORADA DO CONExOES URBANAS. APRESENTACAO: JOSE JUNIOR, DO AfROREggAE. TODA QUARTA-fEIRA, AS 23h, NO MUlTIShOw.
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QUITUTES•LIVROS
A INFÂNCIA DA JUVENTUDE
Livro explica desenvolvimento do conceito de teenage e seu impacto no século 20
Você pode reclamar o que quiser da vida, não importa. Nas 558 páginas de A criação da juventude – como o conceito de teenage mudou o século XX, o jornalista inglês Jon Savage prova que há 120 anos teria sido muito pior.
Era muito pior porque os jovens muito mais trabalhavam que estudavam. Com o crescimento das metrópoles e da indústria, aderiam a gangues violentas – como os Hooligans, surgidos em 1898 – e viviam sem referência.
Como o conceito de adolescência ainda não existia, ignorava-se a importância de uma educação prolongada e de se entender melhor esse estágio da vida. Em 1762, Rousseau registrou que a puberdade tinha sintomas como “uma mudança de temperamento, frequentes explosões de raiva, uma perpétua agitação mental”. Apesar disso, não se falava em nenhuma fase intermediária entre a infância e a vida adulta. Para o direito civil, os jovens eram crianças até os 21 anos. Essa percepção demorou a mudar.
QUITUTES•LIVROS
Com o crescimento das metrópoles, a juventude integra a criminalidade: de 82 mil pessoas presas pela polícia dos EUA em 1889, 10,5 mil tinham menos de 20 anos.
O psicólogo americano Stanley Hall, um simpático barbudo de meia-idade, fez muito por essa mudança. Em uma conferência de 1898, cunhou o termo “adolescência”. Em seguida publicou Adolescence, dois volumes de 1500 páginas sobre o assunto. Ele defendia que a idade de deixar a escola deveria ser prolongada de 14 para 16, e que universitários deveriam ficar isentos das exigências da vida adulta: “O estudante deve ter liberdade para ser preguiçoso”, disse Hall, recomendando que para o “completo aprendizado da vida” o aluno também precisava “repouso, lazer, arte, lendas, romance, idealização e, em resumo, humanismo”.
Oscar Wilde, que provocou não haver “nada no mundo senão a juventude!”, publica O retrato de Dorian Gray.
Mas isso demorou a chegar. Em 1905, artigos sobre “meninos” e “delinquência juvenil” eram dez vezes mais numerosos que na década anterior. Nos anos seguintes, a Primeira Guerra criaria uma geração
Da criminalidade à publicidade Alguns anos-chave do amadurecimento do conceito de teenager
1889
1891 1898
O psicólogo americano Stanley Hall cunha o termo “adolescência”. Também em 1898, o alucinado ritmo musical ragtime explode nos EUA.
1920
A escola secundária começa a se massificar: 37% dos americanos de 14 a 17 anos se matriculam. Com o crescimento de 400% da população universitária no país entre 1880 e 1924, as indústrias cultural, de vestuário, cigarros, cosméticos e revistas apontam sua mira para esses novos consumidores.
1944
Os americanos passam a usar a palavra teenager para descrever a categoria de jovens com idade entre 14 e 18 anos. No ano seguinte, a New York Times Magazine publica A carta dos direitos do teenage. Toda a mídia compra o rótulo.
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completamente desalentada. Terminado o conflito, relata Jon Savage, “idealismo tinha virado palavrão. Todos os grandes temas haviam se pulverizado, e no lugar deles havia um hedonismo imprudente e afoito”. Esse ímpeto combinou com o surgimento do consumo de massa. Em 1922, pelo menos 45% dos adolescentes americanos iam ao cinema uma vez por semana, e dançavam-se ritmos como o ragtime e o jazz. Estava aí o protótipo do adolescente como o conhecemos hoje. Savage salpica inúmeros dados em um texto extremamente fluente, que alterna histórias privadas à pública. Seu foco, que começa em 1875, termina em 1945, “o ano zero” dos teenagers. As 558 páginas mais que compensam. A Naipe desconhece outra maneira de aprender tanto sobre um passado que nos diz tanto respeito.
Três livros que antecipam e resumem a época Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde (L&PM, 272 p., r$ 16,50) Ao se dar conta da própria beleza em um retrato seu, Dorian Gray diz que daria qualquer coisa, alma inclusive, para trocar de lugar com a pintura – que ela envelhecesse e ele nunca. O desejo é atendido e, corrompido pela lábia de um lorde safado, o belo rapagão se perde no festerê da aristocracia inglesa do século 19. O irlandês Oscar Wilde faz uma ode à vida libertina, intensa e decadente que idealizava para a juventude. Peter Pan, de J.M. Barrie (Cia. Das Letrinhas, 224 p., r$ 42) Peter Pan é o garoto eterno que vive aventuras fantásticas na mágica Terra do Nunca. O livro foi escrito para o público infantil mas teve grande apelo entre os adultos. Mantém sua influência e gerou a expressão “Síndrome de Peter Pan”, em referência a malandros que se recusam a crescer. Escreve Jon Savage em A criação da juventude: “Tanto Peter Pan quanto Dorian Gray profetizaram fantasticamente que o século 20 estaria centrado na juventude”. Este lado do paraíso, de Scott Fitzgerald (Cosac Naify, 334 p., r$ 69)
A criação da juventude – como o conceito de teenage mudou o século XX; Rocco, 558 p., r$ 84
Fitzgerald se baseia na sua própria vida de estudante de Princeton para analisar a vida e a moral do pós-guerra juvenil. A geração classe média alta que chegava à maioridade e tomava consciência do seu poder social foi descrita com ousadia e detalhes pelo autor. A partir de Este lado do paraíso, ficou claro que havia um novo tipo de juventude nos EUA, mais agressiva, ambiciosa e inclinada às tentações das bebedeiras, velocidade e sexo. Leia mais sobre lançamentos
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ENQUANTO ISSO•NA GRÊCIA
FÉRIAS FRUSTRADAS Atenienses ficam ilhados pela crise por Polívios Tzake, com foto de Thiago Momm Agosto em Atenas. Na minha memória, essa frase sempre foi sinônimo de um lugar abandonado – todos vão para as ilhas. Bem, até este verão. Neste mês, Atenas parece uma atriz pornô em ação: quente e ocupada. Poucas pessoas conseguiram deixar a capital para beber margueritas nas ensolaradas praias. Há rumores de que os sortudos bebem vinhos comprados em supermercados ou apenas água de torneira... A crise, amigo. Desde que ela começou, as pessoas aqui têm passado por situações extremas. Primeiro, havia medo. Medo de perder o dinheiro, o status, a namorada loira e cara. Então, perderam a alegria – especialmente aqueles que ficaram sem a namorada loira. Alguns enviaram suas economias a bancos estrangeiros e outros se voltaram à religião. Um amigo meu se casou só para ter dinheiro para as férias!*
Com crise, atenienses ficaram assim, sem poder contemplar ilhas como Mykonos
A crise econômica é muito séria. Sou garçom e encontro muitas pessoas diariamente. Todos parecem preocupados. Um verão quente sem férias significa um inverno aquecido por greves e demonstrações – e o único coquetel servido será o Molotov. Espero que as pessoas tenham algum tempo para aliviar suas tensões no oceano. E que possam protestar sem a perda de vidas.
Polívios Tzake é garçom e grafiteiro na Grécia. Todo mês a Naipe publica, neste espaço, a experiência de um colaborador pelo mundo. *Na Grécia, é tradição presentear os noivos com dinheiro.
Seu mundo FIAT é aqui.
Seu mundo FIAT é aqui.