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[ ficha técnica ]
[ índice ]
DIRECTOR
[ editorial ]
Pedro Jordão
Pedro Jordão
mecanismos
p03
REDACÇÃO
invólucros significativos Bruno Gil, Carina Silva, Carlos Guimarães, Carolina Ferreira, Irina Sales Grade, Joana Alves, José Brites, Pe d r o C a n o t i l h o , Ve r a P i n t o
p04
Ana Dourado ao ritmo infernal das coisas paradas
p08
COLABORADORES Ana Dourado, Ana Fróis, A. Joana Couceiro, Eduardo Mota, João SantaRita, Nuno Grande, Pedro Baía, Pedro Ganho, Vasco Pinto GRAFISMO Bruno Gil, Eduardo Nascimento, Mário Carvalhal, Pedro Jordão, Rui Aristides IMPRESSÃO
José Brites mecanismos da arquitectura
p12
João Santa-Rita a crítica como instrumento
p14
Nuno Grande
Imprensa de Coimbra, Limitada
dominique perrault
TIRAGEM
A. Joana Couceiro & Pedro Baía
p16
400 exemplares ISSN 1645-3891 PROPRIEDADE NUDA/AAC – Núcleo de Arquitectura
[ 1º acto ]
casa em casas novas
p23
Ana Fróis & Eduardo Mota fractais
p26
Joana Alves
CONTACTOS NUDA/AAC – Núcleo de Arquitectura Departamento de Arquitectura Faculdade de Ciências e Tecnologia Universidade de Coimbra Colégio das Artes Largo D. Dinis 3000 Coimbra
[ prova final ]
grau zero: os limites dos modelos
Ana Fróis [ contaminações ]
al berto
Mário Carvalhal
tel [ darq ] : 239 851 350 fax [ darq ] : 239 829 220
[ cheese-ham files ]
e-mail: nuda_aac@hotmail.com
Vasco Pinto
#4
p34
[ ? ] rcr aranda pigem vilalta
nu [outubro 2002]
p32
p35
p30
[ editorial ]
Mecanismos Pedro Jordão *
1. O que me permite expressar uma ideia, ao dispor estas palavras no papel, é a linguagem. É o mecanismo da comunicação. Mas não existe uma linguagem porque não existe um mecanismo. Posso comunicar através da escrita, da música, da matemática ou de códigos visuais. Posso comunicar de infinitas maneiras, dependendo do mecanismo a que recorra. 2. A arquitectura não é, não pode ser una. A sua pluralidade, simultaneamente inevitável e imprescindível, reside na multiplicidade de linguagens e de processos que a constróem. Mecanismos. As possibilidades são imensas. Posso, por exemplo, produzir arquitectura através de um processo geométrico (e como tal, matemático) como o fractal, tal como o fez Peter Eisenman ou Greg Lynn. (A geometria é a linguagem dos homens, dizia Le Corbusier.) Posso também partir da música, de todas as artes a mais directamente comparável com a arquitectura. De La Tourette de Le Corbusier até à Stretto House, de Steven Holl, os exemplos são muitos e evidentes. Num sentido mais lato, podemos inclusivamente considerar a crítica como um mecanismo que vai condicionando e estimulando a arquitectura. 3. Antes da introdução do valor do tempo (a quarta dimensão) na arquitectura, o exterior dos edifícios, a sua pele, traduzia-se essencialmente numa fachada, sendo tudo o resto negligenciado. Não havia, na grande generalidade, uma noção clara de percurso, interessavam apenas os pontos de vista estáticos. A pele actuava apenas como um cenário. E se mudança veio com o Modernismo, o actual movimento Sobremoderno levou o valor da pele ao seu expoente máximo. A pele tornou-se fulcral, em alguns casos um mecanismo quase autónomo. 4. Deyan Sudjic, o director da Bienal de Arquitectura de Veneza 2002, defendeu recentemente, aquando da abertura do evento, que a arquitectura é arquitectura, é matéria, demarcando-se das representações fantásticas que devem ser deixadas à arte, numa alusão à Bienal de 2002 dirigida por Massimiliano Fuksas, com as suas instalações, vídeos e outros processos virtuais. Aparentemente, uma questão de matéria vs. virtual. Acontece que o virtual, sendo, por definição, imaterial, também pode ser matéria. 5. Se eu escrever luz artificial, o mais provável é que ninguém pense em nada mais do que iluminação. De facto, até há bem pouco tempo, era exclusivamente assim que era tratada. Um mero instrumento, parente pobre da excelsa e tão amada luz natural. Mas há uma consciência recente que nos aponta a luz artificial como um interessantíssimo mecanismo perfeitamente capaz de construir espaço. Alguém entendeu que não deviam ser deixadas à arte, pelo menos em exclusivo, as suas capacidades geradoras de espaços arquitectónicos, observadas, por exemplo, nas obras de James Turrel ou em imensos espaços cénicos, momentos em que a arquitectura sobe ao palco. Mas também na Torre dos Ventos, de Toyo Ito ou no Laban Centre, o novo projecto de Herzog & de Meuron. 6. Se a arquitectura é criada através dos espaços, então a arquitectura é criada através de limites. Talvez seja necessário redefinir esses limites. Talvez resida aí o equívoco. No ignorar de novos mecanismos. Um limite físico, palpável, como uma parede de tijolo ou betão, não é o único limite possível. O limite está em nós, na nossa percepção do espaço. Pode ser uma questão meramente visual ou mental. Pode ser virtual. Deixará, por isso, de ser arquitectura? * aluno do 6º ano do Departamento de Arquitectura da Universidade de Coimbra
p 02.03
Invólucros Significativos invólucro_pele_fachada_superfície_membrana_véu_filtro_facies_rosto_ecrã_envelope Ana Dourado *
A passagem de uma arquitectura visual a uma arquitectura táctil é testemunho da passagem do tema da imagem ao da matéria: do mundo surreal ao mundo da pop art e ao da arte povera 1 Invólucro, pele, superfície, membrana, véu, filtro, facies, rosto, ecrã, envelope. Vários termos para um mesmo conceito: pele é membrana activa e reaccionária, plena de significado e textura material. Regradora da relação interior/exterior, o invólucro, ou pele, é potência de luz e sombra, densa na sua materialidade táctil e funções, sensível e consciente da imagem do edifício face à urbe: em sábio silêncio dilui valores de escala; mediática comunica como ecrã, novo transmissor urbano; reactivo interage como ser animado presente, pleno na sua simplicidade formal e pureza silenciosa.
exposição marcante para a arquitectura no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque (MOMA), reunindo cerca de trinta projectos para dez países distintos. Exemplos como a Fábrica de Brinquedos de Giegen (o primeiro passo anónimo para os primórdios da transparência na modernidade, de 1903) ou as obras de Pierre Charreau e Mies Van der Rohe ilustram este fenómeno quando ele encontra um novo fôlego para a década de 90 do último século. No presente, Lightness atinge enorme ressonância com valores de reflexividade, luminosidade, dissolução de contornos, dissolução de escala face ao contexto, opacidade. O vidro ultrapassa os conceitos de transparência literal, em detrimento da função de revelar assume a de velar.
Face aos excessos da condição sobremoderna, a arquitectura contemporânea segue o caminho da redução. Redução não no sentido de reducionismo, mas em direcção ao essencial, ao sublime, ao verdadeiro conceito de wabi. Este expressionismo matérico é alcançado pelo domínio do detalhe que leva o material ao extremo para mostrá-lo independente de outra função que não a de ser2. É um minimalismo material que transcende a ambiguidade do less is more e se concentra no sensorial. Neutralidade, transparência e materialismo, reduzem o edifício quase à negação; rejeitando a ambiguidade do cheio/vazio de que a colunata é paradigma e confundindo o claro/escuro através de jogos de semi-transparências, tornando o vazio/cheio numa mesma forma em que só variam texturas. Trata-se de uma nova poética do espaço.
No Kunsthaus de Bregenz, Peter Zumthor explora o tema da natureza e contraste de dois materiais diferentes: betão e vidro, a que correspondem conteúdo e contendor. O conteúdo, monolito de betão polido que materializa paredes e tecto numa mesma linguagem, é envolvido por um invólucro, estruturalmente independente de vidro que confere ao interior uma luz sem sombras. O detalhe é revelado conferindo à leveza das placas de vidro uma materialidade corpórea, a sua densidade material. Na ténue fronteira entre transparente e translúcido, o invólucro uniforme muda de aparência de acordo com a posição do observador, luz do dia ou época do ano. A pele semitransparente, quase aquosa, reveste e reduz o edifício à essência de ser, ao objecto de arte, de arte urbana. Segundo Zumthor: Ce qui m’intéresse est de voir comment un bâtiment construit dans un site particulier rayonne et modifie le lieu, comment il amène ce qui à toujours existé à une nouvelle apparence3.
[ imaterialidade vs. materialidade_vidro ]
[ pele_materialidade táctil_arte povera ]
O vidro, na sua clara evidência, foi um dos primeiros materiais a ser explorado como material epidérmico. O vidro entrega a pele a uma sublime nudez. Como nos pavilhões de vidro e espelho de Dan Graham, a ambiguidade nasce do reflexo potenciador de uma sobreposição de imagens entre exterior/interior, numa ambígua dissolução objecto/ambiente.
Alguns arquitectos contemporâneos procuram a expressão dos materiais banais, uma espécie de estética low-tech, e introduzem-nos em novos contextos, conferindo-lhes novos significados de tal forma que se torna difícil discernir exactamente a qualidade matérica. Jacques Herzog (Herzog & De Meuron) afirma: Para construir (..) nós pegamos em tudo o que está disponível: tijolo, betão, pedra e madeira, metal e vidro, palavras e imagens, cores e cheiros4. A diversidade destes materiais perfurados, ou dispostos em rede, conferem a uma
Lightness: transparência e ligeireza na arquitectura dos anos 90 (1995) relançou o debate. Foi a última
1. Mirko; Pele,Parede,Fachada,in DA 03, Documentos de Arquitectura, outono, 2000 2. Herzog & De Meuron, Continuidades in Herzog & De Meuron, El Croquis 60, 1993 3. O que me interessa é ver como um edifício construído num certo sítio resplandesce e modifica o sítio, como ele remete o que sempre existiu a uma nova aparência , Peter Zumthor in Matiére D’Art: Architecture Contemporaine en Suisse, Centre Culturel Suisse, Birkäuser,2001.pp40 4. Herzog & De Meuron, Continuidades in ElCroquis 60, 1993.pp22 5.idem nu [outubro 2002]
superfície maior ou menor profundidade, simultaneamente massa e luz, peso e leveza, e geram por vezes uma luz sem sombras. O monolitismo, feito de betão, vidro ou de chapa expõe o material ao tacto e à contemplação, libertao de significados formais e entrega-o às suas próprias variações: o betão molhado, o vidro iluminado ou serigrafado, a sombra mutante da torção das tiras metálicas. Uma arquitectura táctil que nos remete à arte povera, às obras de um seu protagonista, Joseph Beyus (1921-1986). Beyus introduz com a sua obra temas como a concepção, desenho, escala, expondo as qualidades físicas da matéria ao valor do tempo, num processo que transcende o evento concreto e converte-se em expansão da experiência e da sensibilidade. O seu trabalho alimenta a obra de muitos arquitectos contemporâneos, como Peter Zumthor e Herzog & De Meuron. Quando Herzog & De Meuron reflectem Beyus nas suas obras, procuram concentrar-se na invisibilidade da forma, na sua transformação em mero meio de concretização da espacialidade táctil do quotidiano e da mutabilidade dos materiais face à luz ou à intempérie. O edifício é transformado em objecto pela sua materialidade táctil, questionando a escala da envolvente, como no Centro de Sinalização de Auf dem Wolf, onde, na fachada de cobre, o material está para definir o edifício, mas o edifício está em igual medida destinado a tornar o material visível5. A membrana de cobre eleva o edifício ao conceito de objecto, questionando os valores de escala. Por sua vez, este objecto dá a revelar o cobre para além da matéria. Em tiras contorcidas o material fino e frio adquire espessura num jogo de luz e sombra. O edifício expõe o material a novos significados. Com o edifício Ricola, em Mulhose, Herzog & De Meuron expõem a mutabilidade do betão à intempérie, contrapondo a vulnerabilidade deste material à frieza das chapas serigrafadas de policarbonato. Imutável face à intempérie, a membrana serigrafada reage à intensidade de luz, ganhando espessura, opacidade ou reveladora transparência, que leva o olhar do transeunte a tornar-se penetrante, a participar como parte integrante do projecto. Como Joseph Beyus afirmava: tu que observas, tu és um artista também. É através deste jogo de significado/significante, desta materialidade táctil
e corpórea, que estes edifícios comunicam com o espectador e se revelam à cidade como transmissores urbanos de verdades veladas pela sua intensa materialidade. Jean Lyotard escreve: material: é aquilo sobre o qual se escreve uma mensagem, seu suporte 6 . Na arquitectura contemporânea essa mensagem está presente, ora implícita num expressionismo matérico que ressuscita os nossos mais adormecidos sentidos, ora explícita em membranas revestidas de texto ou imagens efémeras, numa metáfora de arquitectura contemporânea como ecrã. [
pele_novo
transmissor
urbano
]
Na Biblioteca de Ebersweald, concebida pelos arquitectos Herzog & De Meuron, usa-se um processo serigráfico, transmitindo fotografias para a superfície de betão e vidro. A pele é concebida como um tecido que conta uma narrativa, expondo o trabalho fotográfico de Thomas Ruff, que reúne fotografias de jornal que formam a composição. A pele situa-se no meio caminho de body art e graph-art. De facto, já desde os anos 60, os arquitectos têm mostrado interesse na pele dos edifícios como forma de comunicação, olhando-os como novos transmissores urbanos. As peles dos edifícios tornam-se superfícies programáveis, membranas fotossensíveis que narram, desenham e informam a organização espacial dos edifícios e suas funções. A arquitectura torna-se ela própria uma unidade de receber, emitir informação. Talvez, no futuro que os smart-materials prometem – processar imagens externas, imagens do junkspace de Koolhaas, das serigrafias de betão de Herzog. Aproximando-se da pop art de Barbara Krüger ou Jenny Holzer, a membrana ou pele interage com o transeunte. Será esta a resposta à Electronic Age? Toyo Ito procura esta resposta quer em teoria quer na prática. Para o arquitecto japonês já não podemos usar a parede grossa e pesada convencional para nos protegermos do mundo exterior, pois estes devem funcionar como sensores agudos que detectem o fluxo de electrões. E mais, a membrana deve ser flexível e suave. A arquitectura (...) deveria chamar-se traje dos média. Um traje transparente para um corpo
6. AAVV; Capas/Layers, AT nº11, AT ediciones, Abril,1998. pp.14 7. Ito, Toyo; Tarzanes en el Bosque de los Media, in Toyo Ito, 2G-Nº126, 1997.pp.141 8. Herzog & De Meuron, Continuidades in ElCroquis 60, 1993.pp21 9. Koolhaas, Rem; Converstions with Students, Princeton Architectural Press, 1996. 10. definição de envelope in Koolhaas, Rem; Mau, Bruce; SMLXL, Monacelli Press Yolo,1995. pp320 11. Editorial da revista Prototypo#003, Stereomatrix_arquitectura Lda, Janeiro 2000. p 04.05
transparente e digitalizado7. A Torre dos Ventos (1986) é um protótipo desta resposta para a arquitectura no bosque dos média. O filtro, ou membrana, é literalmente um processador de luz, que reage à envolvente como camaleão: de dia, as chapas de alumínio velam a estrutura; de noite, milhões de pontos de luz tomam poder, sensíveis ao ruído do tráfego e à força do vento criam verdadeiros jogos de luz. A Torre dos Ventos é a materialização simbólica do fenómeno de metamorfose pela luz de muitas cidades ao anoitecer. Este projecto nasce de um assumido processo de packing, de dar uma nova facies a uma antiga torre de ventilação e de depósito de água. Muitos autores, descrentes na sobrevivência da arquitectura contemporânea, induzem-nos para pensamentos apocalípticos em que a pele, responsável primeira de tal decadência, é motor principal de processos de packing, que absortos pela superfície caem na superficialidade. Este fenómeno remete-nos para a discussão da pele como elemento dependente ou independente do edifício, a pele defendida por Herzog ou o envelope de Koolhaas.
va l o r e s e s p a c i a i s . E s p a ç o d e t ra n s i ç ã o interior/exterior, no sentido literal, que se representa a si próprio, ora semi-transparente, ora opaco e fechado, outras vezes ecrã de imagens. A pele não é só superfície, mas espaço que absorve tanto interior como exterior. [ edifício_pele ] No extremo oposto ao fenómeno Bigness e suas repercussões no conceito de pele, situa-se o edifíciopele designado por Xavier Gonzalez por pliegue. Trata-se de uma interiorização do exterior ou viceversa. A pele não é elemento na concepção de um todo – é o motor de concepção, o próprio todo. A pele ou membrana é plano contínuo que define cobertura, fachada, chão, tecto, parede. Numa viagem alucinante que nos leva do interior ao exterior, como num jogo que nos remete à perda total de referências. Os trabalhos do atelier Foreign Office ilustram este fenómeno. O Terminal Marítimo Internacional de Yokohama (1995) é um exemplo inegável. A membrana da cobertura ondula-se, deforma-se para deixar passar a luz ou mergulha até alcançar a cota do piso inferior e converte-se em chão do volume interior, no qual anteriormente era tecto, num jogo de planos contínuos sem fim.
[ Koolhaas vs. Herzog_fenómeno bigness ] [ Fim... ] Para Herzog & De Meuron, as superfícies de um edifício devem estar sempre ligadas ao seu interior. Os edifícios nascem de uma quantidade de conexões entre distintos sistemas8. Em contraponto, não podemos deixar de evocar o conceito de Bigness defendido por Rem Koolhaas. Segundo Koolhaas, a partir de certo tamanho de um edifício, a escala torna-se de tal forma enorme que a distância entre centro e perímetro, coração e pele, é tão vasta que o exterior jamais pode esperar fazer qualquer revelação do interior9. A pele, envelope, convertese em elemento de unidade, o invólucro que confere homogeneidade a uma multiplicidade de programas. Segundo a definição de Koolhaas – envelope: dentro da pele deste enorme edifício, os programas estabelecem-se como grutas ou projectos autónomos de tal forma que a pele do edifício possui papel próprio na vida da cidade respondendo às solicitações do contexto10. Observando alguns dos seus projectos, como ZKM (1989), ou a Biblioteca de França (Paris_1989), a pele adquire
Falar de pele, resumindo-a a uma mera superfície inerte de significados justificada em si na supremacia tecnológica, descrente na concepção espacial do edifício como um todo, é afastarmonos do verdadeiro sentido da arquitectura tal como Alberti a definiu. Ao arquitecto cabe o papel de ver as coisas como se os olhos estivessem em perfeita harmonia e acordo com a mente [...]. Só com esta tomada de risco se consegue resgatar a arquitectura das existências superficiais. Depois é vivê-la, com a sua pele ao lado da nossa: cimento, tijolo, alumínio, aço, látex, madeira, papel, ar, água 1 1 .
* aluna do 6º ano do Departamento de Arquitectura da Universidade de Coimbra
no sentido dos ponteiros do relógio: Torre dos Ventos, Toyo Ito, 1986, Yokoama [Japão] Biblioteca Universitária, Herzog & De Meuron, Eberswalde [Alemanha] Centro de Armazenamento e Produção Ricola, Herzog & De Meuron, Mulhose [França] Terminal Marítimo Internacional, Foreign Office Architects, Yokoama [Japão] Centro de Sinalização Auf dem Wolf, Herzog & De Meuron, Basileia [Suíça] Centro de Arte y Tecnologia ZKM, Rem Koolhas, Karlsruhe [Alemanha] nu [outubro 2002]
p 06.07
Ao ritmo infernal das Coisas Paradas José Brites *
O longe e o perto entre Arquitectura e Música Goethe dá a Arquitectura como sendo a Música em estado de imobilidade; como se tivesse sido congelada no tempo. Colossal disparate ou evidência pertinente? Estabelecer paralelos/comparações entre diferentes disciplinas, por questões de disparidade de natureza, pode tornar-se redutor ou absurdo, mas ainda assim pertinente: não se pode isolar um ofício do outro, sabendo que estes reagem em conformidade ao seu contexto e é assim que se completam. Podem é surgir pontos de discórdia. Na pesquisa efectuada para redigir este artigo ocorreu-me discordar da comparação efectuada por alguns autores entre pauta e projecto arquitectónico – ainda que ambos sejam um método de representação material prévia de algo que está por surgir, enquanto que o desenho ilustra de facto o objecto a construir, a pauta é apenas uma espécie de manual de instruções, um faça-você-mesmomas-tem-de-experimentar-primeiro-para-vercomo-fica-depois, porque todos aprendemos a olhar para lá e a ver, mas só alguns aprendem a olhar para lá e ouver (não, não é gralha). Na verdade é difícil falar de arquitectura sem a exposição de exemplos concretos: sem imagens de obras feitas, sem desenhos de rigor, sem esquiços, por mais breves que sejam, etc., mas seria impossível falar de música com base em exemplos literalmente concretos: não se agarra uma nota ou uma pausa e mesmo uma pauta pejada de notações é apenas música no estado latente, não é som, e o som não tem uma imagem que se possa desenhar. No entanto, as duas realidades tocam-se. Entre um e outro extremo, o do palpável e perene por excelência, e o do intocável e efémero por natureza, criaram-se laços, relações íntimas de lógica formal, estética e estrutural. Palladio feat. Pitágoras A cumplicidade entre os raciocínios musical e arquitectónico ascende à Antiguidade Clássica e prende-se com a questão de proporção harmónica das dimensões de edifícios e compartimentos. Através de experiências efectuadas com um monocórdio, Pitágoras tinha concluído que quando duas cordas, numa razão de comprimentos de 2 para 1, eram sujeitas a uma tensão igual, geravam
um intervalo sonoro correspondente a uma 8ª. Da mesma forma, quando a razão de comprimentos era de 3 para 2, o intervalo gerado era correspondente a uma 5ª e, numa razão de 4 para 3, a uma 4ª. Estas conclusões provavam que intervalos sonoros podiam ser traduzidos por razões matemáticas de números inteiros. Em consequência da harmonia que traduziam, estas razões passaram a ser aplicadas em arquitectura: os compartimentos cuja razão entre os lados fosse de 1/2, 2/3 ou 3/4 eram harmoniosos. As questões renascentistas de proporção harmónica respeitantes à construção de edifícios baseiam-se nestes mesmos princípios: Alberti baseou-se nestas proporções para nelas encontrar a beleza e harmonia tanto das edificações romanas como do próprio universo, Palladio partiu delas para obter outras razões ainda. Entre os exemplos mais cabais da utilização destas proporções encontra-se a igreja de San Francesco della Vigna, em Veneza, da autoria de Francesco Giorgi. As proporções das áreas respeitantes à nave, capela-mor e capelas laterais, por exemplo, são precisamente de 1/2, 2/3 e 3/4, respectivamente, sem contar com as diversas relações que depois se observavam entre estas proporções. As razões harmónicas de Pitágoras – o diapason, o diapente e o diatessaron (a 8ª, a 5ª e a 4ª) – motivaram séculos de estudo de proporções arquitectónicas e originaram inúmeros tratados, como De Harmonia Mundi, de Francesco Giorgi.
Carl
nos
degraus
da
Acrópole
O vocabulário do arquitecto inclui termos como intenção, movimento, ritmo, desfecho, etc (o que, devo confessar, me deu um certo gozo nos meus primeiros tempos de Darq). Ritmo, disse eu. Que ritmo poderá transmitir algo cuja função e natureza é a de estar absolutamente parado? Musicalmente, entende-se ritmo como repetição de determinadas estruturas harmónicas ou melódicas com uma certa periodicidade. Arquitectonicamente, ritmo implica a repetição de módulos, de elementos de dimensões uniformes ou de quaisquer outros elementos que componham um edifício. Ou seja, profundamente imiscuído no conceito de ritmo arquitectónico está o de repetição. A regularidade de aplicação de um elemento construtivo resulta, de forma subliminar, numa sensação de estabilidade, de movimento regular.
De Harmonia Mundi, Francesco Giorgi (1525) Igreja de San Francesco della Vigna, Francesco Giorgi, Veneza (1534) Pavilhão Philips, Le Corbusier com Xenakis, Bruxelas (1958)
nu [outubro 2002]
Cox
O exemplo mais escandaloso do que estou a dizer será provavelmente o Parthenon, na acrópole de Atenas: a cadência de colunas é quase absolutamente regular em toda a volta do edifício, excepto nos cantos, onde a distância entre os fustes é encurtada de forma a criar maior equilíbrio visual. O alinhamento de tríglifos e métopas obedece igualmente a uma cadência regular. 1, 2, 3, 4; repete; repete outra vez; repete; da capo al fine. Tem cabimento a analogia entre o entablamento do Parthenon e, por exemplo, Komm, lieber Mai de Mozart, graças à unidade de compasso (6 por 8) que rege a peça (análogo à medida dos tríglifos) e ao fraseado que se repete de quatro em quatro compassos (análogo ao conjunto de tríglifos e métopas que se repete regularmente). Excêntrica ou não, a nível formal penso que seria mais oportuna a comparação com Carl Cox ou qualquer coisa do género: uma sobreposição de ritmos exageradamente regulares com uma ou outra variação aqui e ali para não parecer mal. Loos meets Schoenberg Se já na Antiguidade se tinham estabelecidos os cânones para o pensamento arquitectónico ocidental, foi preciso esperar até ao barroco para a tradição musical do ocidente tomar forma. Isto para dizer que os paralelos que tenho vindo a estabelecer são possíveis hoje, porque, pelo menos até ao séc. XIX, há um sério caso de des-sincronia entre arquitectura e música no que toca ao estabelecimento de cânones e valores. Porém, isso não invalida a correspondência entre os dois ofícios face ao desenrolar da história e ao efeito que esta surtiu naqueles. No início do séc. XX os percursos dos dois pensamentos parecem corresponder-se. De uma forma voluntariosa, tanto na arquitectura como na música, surge um movimento de reacção contra os conceitos estabelecidos. É na Viena do virar do século que Adolf Loos e Arnold Shoenberg (pai do atonalismo e dodecafonia) se cruzam e se comprometem na procura de um discurso autónomo, de uma nova linguagem para as suas disciplinas, reagindo ao supérfluo, repudiando a utilização de ornamentos, empreendendo uma notável busca pelos valores da pureza e do essencial. Schoenberg partiu do tradicional sistema tonal em
p 08.09
busca da atonalidade, deduzindo as suas regras de composição, crente de que a liberdade de expressão só poderia ser assumida se tivesse base numa sintaxe definida, se respeitasse os limites de um código auto-imposto. A atonalidade era uma música ética despojada de todo o ornamento, que surgiu por circunstâncias históricas. Neste aspecto, a atonalidade é semelhante à arquitectura não tectónica de Loos, a qual era igualmente despida de ornamento supérfluo, pelo menos no que diz respeito ao exterior das suas casas. (…) a capacidade de Schoenberg transformar expressionismo em atonalidade encontraria a sua correspondência em todos os, também silenciosos, encaixotamentos da domesticidade tranquila de Loos1. Onde entram Xenakis, Bartók e Hendrix Crítico aceso do serialismo, do qual Schoenberg foi percursor, Xenakis tinha uma particularidade interessante: não só era compositor como arquitecto, e foi certamente dos compositores que mais entusiasticamente se dedicou a aliar as duas disciplinas. Xenakis trabalhou no atelier de Le Corbusier, colaborando na elaboração de diversos projectos, entre os quais dois de relevante interesse: o Convento Dominicano de Sainte-Marie de la Tourette e o Pavilhão Philips para a Exposição Mundial de Bruxelas de 1958. O interesse de la Tourette para o efeito advém da sequência de lâminas em betão espalhadas por diversos janelões ao longo do complexo e cuja cadência foi determinada por Xenakis. Esta sequência não partilha nem-pouco-mais-ou-menos da regularidade dos fustes do Parthenon – o intervalo entre as lâminas aumenta e diminui, provocando uma sensação de movimento a quem circula o interior do edifício e a quem o observa do exterior.
resultantes da sobreposição dos dois meios, o arquitectónico e o musical, criando diversos politopos: espectáculos de som, arquitectura e luz. Contudo, Xenakis não chegou ao ponto de fundir (literalmente) os dois meios. Assim, numa espécie de paralelo aos politopos xenakianos vamos encontrar a Stretto House de Steven Holl. Trata-se de uma verdadeira transposição para arquitectura da obra de Béla Bartók, Obra para Cordas, Percussão e Celesta (1936). A peça de Bartók divide-se em quatro movimentos nos quais se torna evidente a distinção entre som pesado (percussão) e leve (cordas). A Stretto House é formada por quatro secções, análogas aos movimentos da peça de Bartók, cada uma composta por duas 'fases': uma de blocos regulares e outra de estruturas suspensas de metal curvilíneo. O interior dos blocos ortogonais apresenta diversas secções curvas, o que transmite a sensação de que as estruturas metálicas irrompem pelo seu interior, fluindo liquidamente através deles. A analogia com as inversões do primeiro movimento da peça de Bartók obteve-se invertendo a lógica de secções/planta – as secções tornamse ortogonais e a planta curva. As proporções das duas obras são igualmente análogas, obedecendo à sequência de Fibonacci, uma em número de compassos, conforme o animismo e fraseamento da peça, a outra em dimensões espaciais. Há outro tipo de exemplos, no que diz respeito à associação de música com arquitectura, que não obedecem a uma prática tão rígida de fazer coincidir as duas realidades. Lembro-me do comentário de Frank O'Gehry, aqui há uns tempos num canal do cabo, de que para o Guggenheim de Bilbao se tinha inspirado na música de Jimmi Hendrix e que tinha mesmo passado algum tempo à volta dessa ideia… Ao ritmo infernal das Coisas Paradas
A abertura oficial do Pavilhão Philips incluía um espectáculo conjunto de música e arquitectura, dispondo o complexo de diversos altifalantes, cujas emissões de som eram controladas. O objectivo passava por proporcionar ao visitante do edifício uma experiência sinestésica, aliando as sensações proporcionadas pela audição às de percepção do espaço. Até ao fim da sua vida Xenakis viria a trabalhar no sentido de explorar as sensações e efeitos
Por mais exemplos que apresente – grandes obras de grandes nomes – parece-me que os melhores e mais sonantes (o irresistível trocadilho bacoco) são os que conseguimos ouver (não, novamente não é gralha) espontânea e voluntariamente. Como daquela vez no Complexo Pedagógico, Científico e Tecnológico da Universidade de Coimbra em que, ao acabar de entrar naquele corredor curvo que dá acesso aos auditórios e salas e coisas do género, estaquei estupefacto. A meio caminho entre a
Kenneth Frampton, Adolf Loos: The Architect as Master Builder Convento Dominicano de Sainte-Marie de la Tourette, Le Corbusier com Xenakis, Eveux (1953) Stretto House, Steven Holl, Dallas (1991)
nu [outubro 2002]
porta e o Aristides detive-me perante o espectáculo que se desenhava curva fora: os ocasionais ripados no tecto; os vãos das portas, ora abertas ora fechadas, intervalados pelos esporádicos expositores de fundo verde lançados contra o branco da parede. Cada qual em sua cadência própria montavam no conjunto uma autêntica sinfonia arquitectónica percutida pelos pequenos candeeiros colocados no tecto. Como pequeno pormenor, quase que em tom jocoso, lá ao fundo, um relógio de metal pendurado na parede. Naquele momento e na minha cabeça, esta obra ganhou contornos completamente diferentes. De facto, nunca teria imaginado que Vítor Figueiredo compunha música. Ou quando, caminhando ao longo da estufa do Darq (a galeria norte do claustro do Colégio das Artes em Coimbra, actual Darq), não pude deixar de trautear qualquer coisa ao ritmo dos batentes de metal das janelas, algumas abertas outras fechadas, algumas com, outras sem vidro, que se repetiam por toda a estrutura metálica que, dali das escadas até ao fim do corredor, acompanhavam a cadência das colunas que no piso inferior as suportavam. Seja pensado ou casual, encontraremos ritmo em todo e qualquer lado: nos vãos dos prédios e nas vozes e ruídos que deles saltam, nas faixas interrompidas que decoram o alcatrão das estradas e no rugir dos automóveis que as atravancam, na skyline que enfeita o horizonte e no constante burburinho que a anima. Cada curva que desenharmos no passeio, fazendo soar os tacões dos sapatos no chão, será mais um trecho de notas que se inscreve numa enorme e invisível partitura ao ritmo infernal das Coisas Paradas. De cada vez que saírmos à rua deparar-nos-emos fatalmente com uma incessante ópera de proporções gigantescas, em enredo e em orquestra, encenada a cada instante sobre um atordoante cenário, tumultuoso de personagens, de cor, de som, de arquitectura.
* Aluno do 3º Ano do Departamento de Arquitectura da Universidade de Coimbra
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Mecanismos da Arquitectura João Santa-Rita *
O mundo enquanto envolvente física – natural e artificial – do homem é um fenómeno caracterizado pela existência de mecanismos diversos, os quais são em muito responsáveis pela sua evolução, bem como pela compreensão que hoje possuímos acerca do mesmo. Fenómenos esses – os mecanismos – que pela sua essência e carácter mecânico transmitem e traduzem uma noção de tempo – de repetição, de evolução, de percepção – em que o movimento e a dinâmica são uma constante. Por outro lado os mecanismos, os mais diversos, constituem também uma poderosa simbiose entre tempo e lugar, entre funcionamento e eficiência. Os mecanismos mais perfeitos, os mais belos, dir-se-ia no passado, serão porventura os que melhor traduzem a noção de adequabilidade – a de uma mecânica ao serviço de uma determinada finalidade e função. Os vários mecanismos são deste modo a expressão da invenção, do rigor e do desempenho com a maior perfeição, elaborados e concebidos também eles no maior dos equilíbrios através do qual os seus componentes existem idealmente do ponto de vista quantitativo, simultaneamente como valores máximos e mínimos – ou seja, qualquer evento mecânico não possui à partida, programaticamente, nem componentes a mais nem a menos. Este será um dos aspectos mais consideráveis e admiráveis do seu processo de invenção e do seu
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funcionamento, em muito ambicionado no passado, também pela arquitectura, embora distante do processo arquitectónico. Mas a arquitectura implica, ela mesma, por vezes para atingir a sua perfeição, a existência de componentes justificados por outros motivos que não apenas o da eficácia – o caso da dimensão do espaço público. A náutica, a aerónautica e o automóvel desenvolveram-se naquele pressuposto – da eficiência, do rigor – e atingiram no decorrer de todo o séc. XX uma perfeição e capacidade de resposta inimagináveis, resultantes de uma contínua e ininterrupta procura da sua evolução, através da qual os mecanismos e as suas possibilidades tendem a suplantar a própria expectativa do Homem, seu inventor. Mas o facto de que todas as construções decorrentes das engenharias atrás referidas são habitáveis, ainda que temporária ou momentaneamente, implica a existência de espaços não-arquitectónicos (?) desenvolvidos e inventados segundo os mesmos pressupostos e orientações – a noção, senão de um espaço mecânico, pelo menos de um espaço que aspira à mesma economia, eficiência e rigor dos mecanismos que permitiram a sua existência. Espaços (os dos aviões, os dos barcos, os dos automóveis) que se deslocam num tempo e numa área mais vasta – espaços, distintos do carácter estático dos da arquitectura, só comparáveis às construções nómadas ou provisórias e às enigmáticas representações da Walking City (Archigram), ou ainda, num modo quase pioneiro, à experimental Space House de Friederich Kiesler,
na qual homem e construção se transformariam pelas interacções geradas numa entidade única e dinâmica. A casa – a construção – pela acção do tempo (atmosfera, luminosidade, etc) e pela presença humana, seria transformada de tal modo que a arquitectura seria convertida num mecanismo com um funcionamento idealmente contínuo. Mas a ideia de uma arquitectura, de um mecanismo arquitectónico, tem sido, na maioria das vezes, confundida com parafernália mecânica e explorada apenas nas suas componentes e vertentes de engenharia e, como tal, esse fenómeno tem sido menos compreendido pelos próprios arquitectos do que por outros autores. O espaço é a máquina, é a causa e a consequência de todos os mecanismos arquitectónicos. A porta que articula dois compartimentos, no apartamento da Rue Larrey (Paris) de Marcel Duchamp, constitui um subtil mecanismo de transformação do espaço. Traduz também uma noção alternada do tempo na qual o eixo de rotação representa a origem de todos os fenómenos de deslocação e de percepção dos espaços que articula. O espaço arquitectónico pode (?) aspirar a ser um mecanismo, não na dimensão e conceito da máquina, mas na lógica do seu modo de agregação, do modo sequencial e dinâmico em que se sucedem os diversos componentes espaciais da arquitectura. O objecto arquitectónico, tomado no seu todo, parece ser imóvel e, como tal, constitui
aparentemente a antítese de qualquer mecanismo. No entanto os seus espaços são ou poderão constituir verdadeiros mecanismos de articulação e percepção da arquitectura. A tão aspirada Promenade Architectural de Le Corbusier não será, assim, mais do que a criação de um mecanismo no qual o Homem, simultaneamente observador e habitante, constitui o elo essencial para o accionamento de todo esse sistema. Muitas das recentes preocupações arquitectónicas prendem-se com o confronto, com a intervenção, num mundo em constante transformação e evolução, no qual a arquitectura se constitui como uma acção de resistência através da qual, ela mesma, procura transpor aquelas que se julgaram ser as suas limitações e limites decorrentes do seu carácter construtivo, procurando novos modos de interacção com o homem e com as diversas envolventes – construídas ou não. A arquitectura, os seus espaços e o tempo definidos pela sua existência poderão assim continuar a constituir o mecanismo universal de relacionamento e de vivência do Homem.
* arquitecto
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A crítica como instrumento. O crítico de arquitectura entre manager e MC. Nuno Grande *
Os alunos que, como eu, ingressavam no curso de arquitectura da FAUP no início da década de 80, apercebiam-se lentamente do peso crítico que algumas das revistas da especialidade tinham no seio da cultura arquitectónica de então. Naqueles anos, o debate sobre a condição pós-moderna repartia-se pelos dois lados do Atlântico acentuando diferentes posições, algumas firmadas ainda nas década de 60 e 70. Neste contexto, passámos obrigatoriamente (uns mais entusiasmados, outros mais cépticos; uns por seguidismo, outros por auto-didactismo) pelos ensaios de Robert Venturi, Aldo Rossi, Kenneth Frampton, Charles Jenks ou Manfredo Tafuri; mas foi sobretudo através das revistas e dos seus mentores ideológicos que melhor nos apercebemos daquelas posições, em
própria forma de saber ver a arquitectura (para lá da que Zevi nos ensinara).
publicações como, entre outras, a Oppositons de Peter Eisenman, a Casabella de Vitorio Gregotti, a Lotus de Pier Luigi Nicolin, a 9H de Wilfred Wang ou a Quaderns de Josep-Lluís Mateo.
notar é que este fenómeno ocorre no preciso momento em que distintos arquitectos se juntam em grupos com nomes semelhantes ao daquele universo musical: MVRDV, WEST 8, NOX, PERIPHERIQUES, HOST, BLOCK,...
Até ao fim da década de 80, o mundo editorial da arquitectura manteve-se aparentemente pluralista sem deixar de ser ideológico, e cada editor nutria o que então se denominava de tendência. Em torno deste, os críticos funcionavam como uma espécie de managers para determinados arquitectos, divulgando os seus percursos e projectos, dedicando-lhes textos monográficos. Essa polarização crítica permitia-nos, enquanto alunos e ainda que de uma forma simplista, descodificar aquelas tendências e com isso enriquecer a nossa
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A partir do início da década de 90 (coincidindo com a queda de muros e divisões políticas na Europa) assistimos ao progressivo enfraquecimento ideológico no seio da crítica de arquitectura, ainda visível na forma como esta chega ao nosso actual universo pedagógico. Os críticos passaram da sua condição de manager à de MC [Master of Cerimonies] reduzindo o seu papel ao de apresentador do starsystem arquitectónico. De resto, um MC não é mais do que aquele elemento que, no universo musical do rap ou do hip-hop, apresenta a banda ao grande público, ilustrandoa com o glamour da sua voz; e o que é curioso
Deixando a caricatura de lado, a verdade é que muitos dos críticos mais influentes institucionalizaram-se – tornando-se em gestores, politicamente correctos, de museus públicos e fundações privadas no âmbito da arquitectura – ou foram engolidos por grandes grupos editoriais cada vez mais agressivos e competitivos, que procuram esbater os extremos ideológicos em tudo o que é escrito e divulgado pelas revistas (algumas mantendo os mesmos títulos de outrora). Esses
grupos passaram a encomendar aos arquitectos mais mediáticos a produção das suas próprias (e espessas) monografias, preferencialmente bem ilustradas e, aos críticos, prefácios apologéticos ou entrevistas em catálogos e exposições retrospectivas (quase sempre comissariadas por eles próprios) – vejam-se, por exemplo, a proliferação de monografias como S,M,L,XL ou de revistas como a El Croquis; outros editores pagamlhes ainda pequenos artigos de arquitectura em revistas da moda como a Art et Decoration, Blueprint e Wallpaper. Uma das principais vantagens deste nivelamento editorial reside no facto de ser agora possível comprar simultaneamente essas monografias e revistas no mesmo supermercado ou free-shop, poupando-nos tempo inútil em
uma sociedade progressivamente globalizada exige discursos parciais e bem informados sobre matérias decorrentes da arquitectura – paisagem, infraestrutura, habitação, cultura – ou mesmo discursos mais tematizados – cidades chinesas, shopping-malls, Lagos/Nigéria, Las Vegas, e tudo o mais que a investigação possa inventar, desde que haja quem possa pagar. No entanto, a investigação em arquitectura só poderá fortalecer a crítica de arquitectura se souber operar sobre a realidade, se a souber ler com discernimento e ironia. Se for apenas, e mais uma vez, a ilustração dessa realidade, então a investigação, tal como a crítica, torna-se inócua.
livrarias – razão pelo que nos vamos todos tornando em Wallpaper persons na visão de Neil Leach, autor de The Anaesthetics of Architecture, um ensaio fundamental sobre esta temática.
o desejo de resgatar para o crítico de arquitectura um claro papel instrumental – o de agent provocateur do debate cultural, da prática projectual e portanto do enquadramento pedagógico que teve há décadas; um papel que só se tornará possível pelo (re)enquadramento da crítica (tal como das revistas, seu meio divulgador) num sistema de problematização e não de autocomplacência.
O verdadeiro problema parece residir no facto da crítica de arquitectura, de um modo geral, se ter enredado num processo de justificação e de ilustração da produção arquitectónica contemporânea, abandonando o contributo para a sua fundamentação ou questionamento. Alguns apontam a investigação académica (actividade cada vez mais auto-sustentável nas universidades anglo-saxónicas) como forma de (re)construir um discurso ideológico sobre arquitectura. Este poderá ser um caminho, uma vez que a complexidade de
O meu discurso, aparentemente moralista, encerra
* arquitecto, docente da Universidade de Coimbra
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Dominique Perrault
o desaparecimento da arquitectura
A. Joana Couceiro & Pedro Baía *
Paris, 13ème arrondissement. Grandes linhas de caminho de ferro a desembocar na estação de Austerlitz, auto-estradas, viadutos, silos, fábricas de incineração, pista de helicópteros, o flash de 250.000 veículos por dia, ..., a périphérique, o Sena. Elementos de grande escala constróem este lugar, vibrante e caótico. É lá, onde as oito vias da périphérique muralham Paris, que se ergue a caixa de vidro onde Perrault e o seu atelier contemplam de cima esse perpétuo e hipnotizante movimento urbano. Projecto de Dominique Perrault, o Hotel Industrial é um edifício que pretende ser a mélange de ateliers, empresas e escritórios, um espaço inteligente para manter um certo número de actividades na capital, que abriga, entre 40 pequenas empresas, a agência do próprio arquitecto. A estrutura transparente permite que a evolução destas actividades seja visível na fachada e que o edifício seja a expressão da realidade. Mas esta pele de vidro deixa ainda que toda a energia do lugar, desse inesgotável e incessante tráfego de objectos, dessa violência de fluídos, desse ruído da máquina, dessa sobreposição de vias, dessas massas cinzentas, ..., seja absorvida pelo próprio edifício que pousa, neutro, na paisagem. Nesta escala urbana não é tanto a forma ou textura do objecto que importam, antes a sua posição em relação a toda a configuração exterior. Através de uma visão optimista do mundo contemporâneo, Perrault confronta a cidade sem
complexos nem moralismos. Não há lugares malditos. Quando colocado perante um espaço complexo e sem ordem aparente, como a zona do Hotel Industrial, a atitude não passa pela negação da realidade, pelo ignorar dos problemas, mas pelo aproveitamento de toda essa energia em seu favor. Perrault é um apaixonado pelo caos que muitos tentam ordenar. O arquitecto deve aceitar (também) as arquitecturas medíocres. A presença incómoda de edifícios de duvidosa qualidade arquitectónica deve ser aceite como parte integrante da paisagem. Fazer outra coisa é dar mais prioridade à arquitectura que à vida e isso não só indica falta de tolerância, como demonstra imaturidade e apresenta resultados pouco satisfatórios; é completamente absurdo. O fascínio pelo pulsar de vida da cidade é evidente quando afirma preferir a périphérique à avenida Champs Élysées. E a grande circular de Paris, com os milhares de automóveis diários, remete-nos para a sua abordagem da arquitectura. O Homem não tem lugar na périphérique. A dimensão humana está ausente, o espaço é reservado para a escala do automóvel, para a sua velocidade. Perrault, à boa maneira corbusiana, faz a apologia da máquina, da indústria. Longe, o pulsar de vida dos Champs Élysées, e da Bastilha, e de Saint-Germain-desPrés... Paradoxalmente (ou não), Perrault explora as potencialidades de elementos vegetais nos seus projectos. E esta abordagem nada tem a ver com alguma nostalgia do passado, dessa natureza perdida, mas com o possível aproveitamento
périphérique | Estação de Austerlitz | atelier | Mediateca de Vénissieux nu [outubro 2002]
industrial. A natureza objecto, material como os outros. A natureza em estudo, alvo de pesquisa específica de forma a desenvolver as suas potencialidades. A natureza apropriada pelo arquitecto como um material industrial, como o são o vidro ou o ferro. Perrault cria uma relação entre a natureza e a arquitectura nos antípodas do organicismo; domestica a natureza, domina-a por completo. Faz dela (pode dizer-se) um uso brutalista, remetendoa para um plano artificial e cénico, como se pode ver no jardim interior da Biblioteca Nacional de França. Aí, grandes pinheiros suportados por vários cabos. A impossibilidade da vivência real, de percorrer o jardim ou de tocar numa árvore, demonstra, à semelhança de uma colagem, a procura de uma ideia abstracta de jardim. Perrault defende que os arquitectos devem envolverse na lógica de produção do mundo industrial. Do seu processo projectual faz parte a procura do desenvolvimento dos materiais de construção, do seu aperfeiçoamento de forma a responder às necessidades de projecto. A abordagem materialista, a atenção dada aos materiais rege toda a sua relação com o projecto, desde o momento em que este começa a ganhar forma até à sua fase final de concretização. Como resultado deste método, o exemplo da Mediateca de Vénissieux; um volume de vidro, simples, onde a fachada é constituída por elementos de metal perfurados que criam uma ambiguidade visual interior/exterior. Do exterior, a Mediateca
surge sólida e fechada; do interior, banhada de luz e aberta sobre a cidade. Este efeito, conseguido através da introdução de panos de alumínio entre o vidro, foi fruto de um trabalho do atelier de Perrault em colaboração directa com produtores industriais. Perrault procura na nova realidade industrial soluções construtivas inovadoras que permitam lutar contra o carácter pesado, imóvel e conservador da arquitectura. Para diminuir essa rigidez da disciplina, em vez de edifícios duradouros e monumentais, propõe construções mais flexíveis e ligeiras, capazes de servirem melhor as várias necessidades das pessoas. Acusa a arquitectura de ser uma arte autoritária e conservadora; esta ideia não lhe interessa e por isso valoriza os factores que a podem aligeirar. Defende a flexibilidade dos limites, as construções dinâmicas, as barreiras móveis, ..., arquitecturas que possam variar do mesmo modo que uma pessoa pode mudar de gostos e/ou opiniões. Apropriar-se de um lugar é vivê-lo de um modo distinto em cada momento. O tempo histórico não é para Perrault mais do que um referencial e o tempo real ganha valor. A noção de contexto só é determinante quando associada ao factor tempo. Contextualismo activo. Arquitectura em processo. Arquitectura feita pelo que nela encarna num dado momento, permanente actualização da qualidade fugaz do espaço e do tempo. A arquitectura deveria reagir como a natureza: mudar com as estações, transfigurar-se com as situações.
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Perrault denuncia esse princípio de autoridade que está intrínseco à arquitectura. Construir é um acto autoritário. A essa ideologia simulada da presença do objecto arquitectónico, o arquitecto opõe com um trabalho sobre o desaparecimento. Um trabalho que caminha no limiar da presença e ausência da arquitectura. Um trabalho sobre a autoridade que entra também no campo da geografia. Ao barulho das formas que recortam o céu, Perrault opõe com o silêncio. Em vez dos grandes objectos, autoritários e egoístas, Perrault oferece o vazio. Where the hell has Dominique Perrault hidden his architecture? Richard Copans, realizador e produtor, a propósito do Centro de Conferências de SaintGermain-en-Laye. O Centro faz parte de uma extensão que incorpora uma antiga casa burguesa, o Château d Uscinor; semelhante, a casa barroca de Psycho, de Hitchcock. E o realizador continua. Um crime foi cometido; aqui, a arquitectura foi afogada debaixo de um lago tranquilo. Não existe água, mas a ideia dela. Uma superfície espelho, o jogo de reflexos. Debaixo, escondida (?), morta (?), ..., a arquitectura. Também construídos de cima para baixo, o Velódromo e a Piscina de Berlim. Não são edifícios. É paisagem. A intervenção é invisível. Radical. Os edifícios desaparecem no terreno e deixa-se lugar a uma diversidade de espaços colectivos. A paisagem torna-se importante. A sua casa na Normandia é a verdadeira redescoberta da cave troglodita. Enterrada. A casa é envolvida pela terra
dessa paisagem vazia que ganha (mais uma vez) renovada importância. A arquitectura quer-se ausente, mas não passa despercebida. Pode falar-se do possível antihumanismo dos projectos da Biblioteca e do Velódromo. Não deixa de ser paradoxal que os arquivos se encontrem nas torres, onde há mais luz, e as salas de leitura debaixo de terra; em Berlim, os espaços onde há vida, competição, alegria e desilusão encontram-se enterrados no solo. Paradoxal (?), Perrault gosta da ambiguidade, da provocação de visões dinâmicas, abertas a novas interpretações. Arquitectura silêncio, arquitectura ausente, desaparecida, ou violenta? Arquitectura indefinição que surge nas mãos do arquitecto francês com atelier em Paris, onde (por acaso, ou não) o melhor presente que é possivel dar à cidade consiste, hoje, em oferecer soluções à claustrofobia da capital. Espaço. O vazio. Paris, 13ème arrondissement. Um quarteirão em reestruturação; o plano de ordenamento urbano para a margem esquerda do Sena propõe grandes espaços vazios em diálogo com a força da Biblioteca Nacional de França. É lá, onde as oito vias da périphérique muralham Paris, que se ergue a caixa de vidro onde Perrault e o seu atelier contemplam de cima esse perpétuo e hipnotizante movimento urbano. Desse sétimo piso vislumbra-se Paris, um olhar distante de quem olha de fora. E mesmo ali ao lado, ironia do destino, a Biblioteca que lançou Perrault recorta o céu...
Mediateca de Vénissieux | Velódromo de Berlim | atelier | Biblioteca Nacional de França nu [outubro 2002]
[entrevista] Abriu um gabinete próprio muito cedo e desde logo começou a participar em concursos. Pensa que este é um exemplo a seguir pelos jovens arquitectos? Dominique Perrault _ É preciso ter fôlego... mas não sei se é um exemplo. O que é enriquecedor para um arquitecto é ir de projecto em projecto até construir grandes obras. Porque, apesar do small is beautiful, quando construímos um grande projecto é muito gratificante. No início trabalhei com outros arquitectos. Comecei a estudar arquitectura e paralelamente trabalhava em atelier... e assim pagava os meus estudos. Quando me diplomei já tinha seis anos de trabalho. Não está mal para começar... Quando construí o meu primeiro edifício já trabalhava à sete anos! Depois fiz outros estudos... Num poema escreveu: Nada, senão a liberdade de pensamento / Nada, senão a emoção da arquitectura / Senão, nada. Para si, a arquitectura é trabalho ou forma de vida? DP _ É evidentemente uma maneira de viver. É sobretudo uma atitude em relação à vida, ao visível. A arquitectura não me interessa muito enquanto estilo, enquanto objecto arquitectónico. O que me interessa realmente é a relação da arquitectura com o meio envolvente, as relações arquitectura/contexto, arquitectura/paisagem, arquitectura/matéria. E tudo isto é um pouco o
que diz o pequeno poema. A arquitectura pela arquitectura não é nada. A não ser que exista emoção, que se permita liberdade, que se torne utópica, sensual, séria, triste, invisível... Não sei... Mas é preciso que haja emoção e, então, nesse momento a arquitectura torna-se importante. Quais são as linhas fundamentais no seu processo projectual? Tem um método ou cada projecto conquista o seu próprio método, completamente original e singular? DP _ Cada projecto assume-se, acima de tudo, como um trabalho conceptual, um trabalho de atitude relativamente a um lugar, a um programa, a uma situação. Com uma ideia muito pragmática, tudo constitui material de projecto: o tempo, o momento, a época, o programa, o orçamento, a luz, a organização, a circulação... Tudo isto é material e é com estes materiais que fabricamos um projecto. E este projecto, muito conceptual ao início, à medida que avança, vai-se tornando mais concreto, físico. Todo este processo é muito interessante. A partir de uma ideia muito abstracta como, por exemplo, o desaparecimento do edifício na paisagem, como vamos então construir fisicamente a ausência desse edifício? Na verdade, a sua casa na Normandia revela uma arquitectura do silêncio, uma intervenção invisível, imperceptível. Esta temática surge ainda nos seus projectos do Centro Cultural de Uscinor e no Velódromo e Piscina de Berlim.
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Os últimos trabalhos de Jean Nouvel revelam também, de certa maneira, este tema. Será que podemos falar de uma tendência que surge em reacção ao objecto como objecto?
num lugar, o controlo da sua ausência, as possibilidades de fazer aparecer ou desaparecer um edifício...
DP _ O que me parece é que existem duas abordagens diferentes em relação à questão da ausência, do desaparecimento do objecto. Jean Nouvel tem uma abordagem muito estética em relação a essa ausência. Eu faço uma abordagem mais ideológica. Nouvel está muito mais no âmbito do design do desaparecimento. Eu encontro-me muito mais no acto, um pouco violento, do desaparecimento. Ao fazer desaparecer grandes volumes, como o Velódromo e Piscina de Berlim, significa que não estamos a falar de design nem de estética, estamos antes no 100% físico, no 100% ideológico, no desaparecimento da autoridade da arquitectura. Um edifício constitui um acto de autoridade! Autoridade porque ele vai criar um outro ambiente, uma separação entre esta e aquela rua. Há uma transformação física e autoritária de um lugar. Construir é então um acto de autoridade, um acto fascista, um acto insuportável... Penso que os arquitectos devem reivindicar esta consciência eles criam actos que são actos de autoridade. Isso modifica muito a relação que temos com a arquitectura. Porque não somos fascistas vamos procurar que esta autoridade seja aceitável, urbana, económica, habitável... que seja bela... Porque não? Mas o meu trabalho e o de Nouvel são diferentes. O meu não é, de todo, um trabalho estético, é sobretudo um trabalho conceptual, ideológico, sobre a presença ou ausência, o controlo da presença da arquitectura
Considera então que a sua arquitectura é de uma neutralidade violenta? DP _ Sim. O Frederic Migayrou, efectivamente, falou da violência do neutro na minha arquitectura. Esta ausência pode, de facto, ser uma forma de violência. A arquitectura não desaparece, mas o facto de ser aparentemente invisível, por vezes quase invisível, cria uma energia... uma força que acaba por ter sempre uma presença violenta. A neutralização remete, de certa maneira, para a gramática do minimalismo. Considerase um minimalista? DP _ Sim, muitas pessoas consideram-me minimalista... Bem, não sei se é verdade, também não sei se é mentira, mas... É muito mais um trabalho conceptual do que minimalista. De facto, o trabalho da transfiguração utilizando elementos reduzidos, mínimos, etc., pode ser considerado minimalista, mas creio não ser esta a melhor definição. Frederic Migayrou disse também que o minimalismo no seu trabalho é sobretudo um materialismo determinado que procura a complexidade do mundo industrial como um
Biblioteca Nacional de França | Centro Cultural de Uscinor (maquete) | Casa na Normandia nu [outubro 2002]
campo aberto. É assim que vê a sua relação com o projecto Casa de Barcelona? DP _ Sim... com o eco-frigorífico! (risos) Com o eco-frigorífico as coisas tornam-se mais aliciantes. É um projecto verdadeiramente ligado à indústria, um projecto material, muito material, perfeitamente determinado, claro, onde não há interrogações. Utiliza-se um frigorífico produzido industrialmente e com ele vamos criar um novo objecto, acrescentando-lhe um volume de vidro onde se podem cultivar plantas na própria cozinha. É tipicamente um trabalho arquitectónico e conceptual. E poético também, uma vez que a ideia consiste em fazer entrar a natureza em casa. As pessoas que têm um jardim não vão comprar um frigorífico como este, mas para os que habitam ali... além... (olhando à sua volta), no 12º andar, torna-se simpático cultivar na sua cozinha salsa e outras ervas para fazer os seus cozinhados... pizza... sopa... sei lá! Há uma erupção da natureza no interior da casa. Uma natureza ao mesmo tempo muito artificial, muito industrial, uma vez que está ligada a este frigorífico. E estas coisas que são quase indefiníveis agradam-me bastante. É muito difícil dizer se se trata de um jardim ou de um móvel de cozinha... Pensa que esta experiência pode ser uma possível solução para o futuro da habitação, seja colectiva ou unifamiliar? DP _ Sim, penso que pode ser um caminho, uma vez que permite pensar de uma maneira totalmente
diferente a questão da habitação. Antes de fazer isto, jamais tinha pensado em ter um jardim na cozinha. E isso modifica completamente a relação que eu posso ter com os outros espaços da casa. Se eu tenho plantas na cozinha, esta cozinha não é mais a mesma... e quem sabe se não poderei fazer dela um escritório? E ao fazer um escritório na cozinha, onde até já tenho um jardim no frigorífico, nesse momento se calhar posso também pensar de maneira diferente a casa de banho. (risos) Isto até pode parecer estranho, mas é verdadeiramente este tipo de projectos que considero muito importantes. Eles não são importantes como projectos em si mesmos, mas são importantes em relação a todo o processo que desencadeiam. Mostra também um grande interesse em relação às questões urbanas. Isso é visível neste edifício [Hotel Industrial] onde foi confrontado com a cidade real, dura, aquela que afirmamos não querer. Qual deve ser o papel do arquitecto perante esta cidade? DP _ Penso que há duas atitudes: a de rejeição, a de rejeitar esta cidade, que tem a sua lógica mas que não permite imaginar outras coisas; e há uma outra atitude, a de considerar esta cidade como um material como o vidro, o metal, o betão, com o qual se trabalha. É preciso esculpi-lo, queimálo, arrefecê-lo, esticá-lo... considerar que o que nos envolve é uma substância que se pode manipular. Isso modifica bastante as coisas, permite ter uma relação diferente com o que nos envolve:
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o barulho, a poluição, os espaços abertos, uma espécie de desestruturação, etc... Interessante é utilizar esta violência como energia positiva, um pouco como o judoca que derruba o seu adversário utilizando a força deste. O Hotel Industrial é um edifício bastante neutro, uma caixa de vidro, sem nenhuma qualidade particular. No entanto, a posição, a relação, as aberturas, as orientações, quase em contacto com a périphérique... Enfim, imprimem-lhe algo de totalmente novo e diferente. É um edifício muito contraditório, complexo e, ao mesmo tempo, de uma simplicidade total. Mas a neutralidade, a violência do neutro que se pode sentir neste edifício, parece-me justa, correcta, razoável. E quanto aos centros históricos?... DP _ Aí há outras coisas... o peso da história... Não faço uma análise de valores, não é mais fácil, nem mais difícil intervir, é diferente, é uma outra coisa. Penso que se considerarmos que cada lugar tem a sua especificidade, quer seja histórica, moderna, contemporânea... intervir não constitui um problema. Por exemplo, hoje trabalhamos num projecto em Winesbruck, na Áustria, e neste caso é verdadeiramente uma intervenção num centro histórico. Um edifício a preto e branco, de metal. Câmara municipal, comércio, espaços públicos... Vai ser acabado em Setembro. Trata-se de uma espécie de disposição de elementos, elementos muito claros, e a maneira como se organizam cria uma complexidade que remete para a complexidade da cidade que está à volta. Que, no entanto, não
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é a mesma... é uma outra complexidade. Um diálogo? DP _ Podemos dizer que há uma espécie de densidade, não forçosamente a densidade de construção, mas uma espécie de complexidade que faz com que haja uma relação que não considero necessariamente um diálogo, no sentido eu-falo-e-tu-respondes... Há forçosamente trocas, mas que não são claras como numa conversa. Trata-se mais de um trabalho de ressonâncias. Eu diria mais: coreográfico. A cidade é desta maneira, eu sou desta maneira, enfim, uma coisa mais corporal do que do domínio do discurso... E tem medo de intervir nos centros históricos? DP _ Não, de maneira alguma.
Paris, Maio de 2002
* Alunos do 5º Ano do Departamento de Arquitectura da Universidade de Coimbra
[ 1º acto ] Casa em Casas Novas Ana Fróis & Eduardo Mota
Casa em Casas Novas, Coimbra Arquitectura _ Ana Fróis, Eduardo Mota Cliente _ Conceição Bento, Joaquim Leitão Localização _ Casa Novas, Coimbra Projecto _ 2000 Construção _ 2001- ? Estrutura _ António José Correia
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1. escadas 2. distribuição 9
3
5
6
3. quarto principal 4. casa de banho 5. casa de banho 6. quarto visitas 7. quarto crianças 8. casa de banho crianças
a
8
2
7
9. terraço
4 1
7
b
Primeiro Piso
1. entrada 11
2. hall
13 10
3. escadas 12
9
2
4. sala de estar
1
5. sala de jantar 7
6
6. cozinha
3
7. apoio à cozinha 8. escritório/biblioteca
a
5
9. lavandaria
4
10. arrumo 11. acesso de serviço/coberto 12. casa de banho de serviço
8
13. acesso à cave
b
Piso Térreo
Cave
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Alรงado Principal
Corte a
Corte b
p 24.25
Fractais Joana Alves *
Como é que a matemática que é, antes de tudo, um produto do pensamento humano, independente da experiência, pode adaptarse tão admiravelmente aos objectos da realidade? 1 Há muitas coisas que sabemos intuitivamente e das quais não nos apercebemos logo. É necessário que exista um estudo, que se faça uma análise com dados, números e gráficos, para que nos apercebamos de algo, que já sabíamos intuitivamente mas, de que ainda não tínhamos plena consciência. Por vezes até pensamos Como é que eu não pensei nisto antes? tão obvio que parece o resultado, embora nunca o tivéssemos alcançado ou não fosse aquele olhar semelhante ao de Colombo perante o ovo. Desprezar o conhecimento científico, mesmo no processo criativo, significa muitas vezes a renuncia a mecanismos que nos permitem ver as coisas de modo diferente, percebê-las, entender a sua lógica ou o seu sentido. Existe mesmo quem pense que esse conhecimento, mais racional, pode ser um elemento estrangulador da liberdade criativa tal é o pânico aos dogmas matemáticos. Mas, a contrariar esta lógica, o caso da geometria fractal é paradigmático, uma ferramenta matemática já com inúmeras aplicações no campo das artes e da arquitectura, uma área cujas potencialidades ainda não estão totalmente descobertas. Na arquitectura, a procura da forma é um problema antigo. A forma surge muitas vezes de elementos naturais: o relevo do terreno, as proporções do corpo humano, o desenho de uma planta... mas trabalhamos sempre com pontos, rectas, triângulos, quadrados, cubos, esferas e outros elementos básicos. Elementos da geometria euclidiana, a mais antiga, aquela em que fomos educados e à qual nos restringimos. Uma geometria demasiado rígida e difícil de adaptar às formas naturais das nuvens, das árvores ou das montanhas. Porque é que a geometria é muitas vezes descrita como fria e seca ? Uma das razões está na sua
1. Albert Einstein (1879-1955) 2. Benoit Mandelbrot 3. Henry Miller
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incapacidade para descrever a forma de uma nuvem, uma montanha, uma linha de costa, ou uma árvore. As nuvens não são esferas, as montanhas não são cones, as linhas de costa não são círculos [...]. Muitos padrões da natureza são tão irregulares e fragmentados que, quando comparados com a geometria standard, a Natureza exibe não só um grau mais elevado como em conjunto um elevado grau de complexidade. O número de escalas distintas e a vastidão de padrões naturais é por todas as vias infinito.2
Nos anos setenta, Benoit Mandelbrot, matemático francês, descobriu um método através do estudo da forma composta a partir de uma estrutura repetitiva, e encontrou meios que lhe permitiam descrever a estrutura natural e descobrir o seu principio regulador, uma geometria nova que ficaria conhecida por geometria fractal. Mandelbrot, define deste modo um fractal: figura geométrica ou objecto natural com uma parte da sua forma ou estrutura que se repete a escala diferente, com forma extremamente irregular interrupta e fechada a qualquer escala e com elementos distintos de muitas dimensões diferentes. Dito desta forma pode até parecer algo de muito complexo mas a receita do fractal é simples.
Para compor um fractal Prepare um elemento geométrico e um instrumento que permita alterá-lo como por exemplo uma adição, uma multiplicação, uma rotação, ou outras mais complexas que podem inclusivamente jogar com factores aleatórios. O fractal parte de um elemento que é sujeito a uma alteração (iteração) e ao resultado aplica-se a mesma alteração, e ao resultado aplica-se a mesma alteração, e ao resultado aplica-se a mesma alteração... até que obtemos uma forma muito complexa simultaneamente caótica e ordenada, contudo, se aumentarmos a escala, vemos que há sempre o mesmo elemento original sujeito à mesma alteração.
À medida que olhamos mais de perto para um fractal, o mesmo é dizer que aumentamos a escala, a complexidade aumenta. Esta é a propriedade que distingue um fractal de outra curva qualquer que possamos desenhar. Uma curva comum, à medida que é ampliada, torna-se cada vez mais suave até que no limite não a distinguimos de uma linha recta. Com um fractal acontece o contrário, quanto mais ampliamos mais pormenores obtemos, mais rebuscada fica a forma. Um fractal clássico na matemática é o floco de neve de Koch, é uma forma geométrica do matemático sueco Helge von Koch do início dos anos 90. A sua construção é feita do seguinte modo: começa-se com um triângulo equilátero qualquer e no terço central de cada lado constroise um novo triângulo com o terço do tamanho, apaga-se a base deste último e repete-se o processo indefinidamente. É uma curva fechada que cresce infinitamente mas sempre dentro de uma área limitada sem nunca se intersectar a si própria. Isto permite-nos compreender por exemplo o que acontece com o sistema vascular sanguíneo: embora o comprimento de todos os vasos e artérias chegue aos 50000Km o espaço que ocupa está limitado ao corpo humano. E quem fala de circulação sanguínea poderia falar de sistemas de conexão... Para Mandelbrot as formas simples são desumanas, não têm nada a ver com o modo como a natureza se organiza nem como a percepção humana vê o mundo. Pelo contrário, as formas fractais encontram-se não só na natureza, na ciência mas também nas artes e na arquitectura, aliás o fractal pode mesmo ser um válido instrumento de projecto. Fractais
na
arquitectura
e
na
arte
Nas últimas décadas matemáticos e arquitectos debateram o que poderia ser ou não arquitectura fractal. Para os arquitectos modernos, a arquitectura fractal pode estabelecer relações mais significativas do que a geometria só por si. Assim, valorizam a geometria fractal pelas relações que se podem estabelecer com a natureza e, a outro nível, com
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o cosmos. Mas, que edifícios se podem considerar de arquitectura fractal? Podemos considerar uma igreja barroca ou alguns edifícios de Frank Loyd Wright como tal? Existem muitos exemplos de desenhos criados intuitivamente segundo princípios fractais mas onde não foi utilizada a geometria fractal conscientemente. São estruturas repetitivas em que diferentes escalas se combinam. Por exemplo, há quem reconheça elementos fractais nas pontes romanas como a do vale do Gordon perto de Nîmes em França. Também na igreja gótica descobriramse princípios de construção repetitiva em vários níveis, onde arcos estruturais geométricos suportam outros arcos maiores, que por sua vez suportam arcos maiores ainda. As estruturas fractais adequam-se perfeitamente à distribuição de pesos na estrutura portante, reconhecível no exemplo da Torre Eiffel e nalgumas obras do arquitecto e engenheiro Santiago Calatrava. Apesar de haver quem reconheça a arquitectura fractal muito tempo antes de aparecer a teoria fractal, muitos outros preferem assumir que, se havia anteriormente formas semelhantes , a arquitectura fractal é aquela que aparece como resposta às teorias de Mandelbrot. Pouco tempo depois da publicação em inglês da obra de Mandelbrot Fractals: Form, Chance and Dimension, Peter Eisenman exibiu a Casa 11a pela primeira vez. Este projecto é uma composição de Ls com diferentes escalas. Cada L é construído a partir de um quadrado dividido em quatro partes em que uma das partes sofreu uma rotação. Mas, a cada um dos quatro quadrados que formam o L pode ser aplicada a mesma transformação gerando outros Ls com escalas diferentes. Ele viu na forma resultante uma certa instabilidade ou ambiguidade, uma figura que não é nem um rectângulo nem um quadrado e da qual poderiam nascer outras formas iguais mas a diferente escala. É um esquema flexível, dinâmico, onde existem jogos entre cheios e vazios, onde se geram replicas do modelo dentro do próprio modelo. A Casa 11a é reduzida e introduzida dentro dela própria segundo uma lógica
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que faz dela o primeiro exemplo de arquitectura fractal. Após esta primeira tentativa, Eisenman desenvolveu este conceito designado por fractal scaling em mais alguns projectos e o seu exemplo foi seguido por arquitectos entre os quais Peter Kulka, Christoph Langhof, Daniel Liebermann, Jean Nouvel e muitos outros, que ao longo dos últimos vinte anos, desenvolveram projectos que de alguma forma se relacionam com as Ciências da Complexidade. As ciências de Complexidade estudam fenómenos complexos da natureza como é o caso da meteorologia. Existe uma frase que ficou célebre que resume muito bem uma das teorias mais emblemáticas, a Teoria do Caos: uma borboleta bate as asas em Pequim e faz-se uma tempestade em Nova York. É a demonstração de como pequenas ocorrências à partida provocam alterações que podem degenerar em acontecimentos praticamente imprevisíveis. Como na concepção de um projecto, ao tomarmos determinadas opções à partida desconhecemos a influência que elas poderão ter no produto final. Na realidade não existem fractais. A realidade depende de factores aleatórios, do acaso, de pequenas transformações como o bater de asas da tal borboleta. Chaos is the score where reality is written
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Também à escala de cidades já se tentaram aplicar estes novos conhecimentos em estudos de expansão das cidades e modelos de desenvovimento. Por exemplo, as plantas de certos centros históricos surgem muitas vezes de uma lógica muito mais natural do que as cidades concebidas segundo um sistema cartesiano. Normalmente existe uma rua principal com ruas transversais, que por sua vez têm outras ramificações, onde existem edifícios com corredores, onde existem novos corredores de distribuição para as diferentes divisões. Se forem sobrepostos alguns destes ramos mais complexo fica o tecido urbano. Aqui a geometria fractal pode introduzir
uma ordem ainda que aparentemente desordenada, basta que as sucessivas ramificações sigam sempre a mesma lógica. O caos é tradicionalmente definido por ausência de ordem. Contudo, complexidade só é sinónimo de caos enquanto não for descoberta a lei que regula esse caos. Com estes novos princípios das ciências de complexidade são deixadas em aberto uma infinidade de possibilidades. Pode parecer que estes princípios podem limitar a liberdade artística por definir a priori um conjunto rigoroso de leis. Quando confrontado com esta questão, o Professor Nikos Salingaros, do Departamento de Matemáticas d a U n i v e r s i d a d e d o Te x a s , r e s p o n d e categoricamente: De qualquer forma, a ideia de criatividade arquitectónica na arquitectura moderna é um mito. Não há liberdade, todo o desenho e construção são julgados pela proximidade com que seguem certos protótipos rígidos estabelecidos nos anos vinte. Se não for assim, são atacados pela classe dos arquitectos e ridicularizados pelos jornais e publicações. Os críticos do restrito modernismo, dos cubos óbvios ainda não ofereceram nada melhor; o que vemos agora é o salto para o modo oposto – de cubos aborrecidos para formas desequilibradas e psicologicamente alarmantes. Como este professor, muitos entusiastas acreditam que a solução para o futuro da arquitectura está na geometria fractal que oferece a possibilidade de criar uma infinidade de espaços e novas harmonias em sistemas muito mais dinâmicos e flexíveis. É uma geometria que tem servido de base e poderá continuar a servir para que os arquitectos expressem melhor os movimentos, a sensação de caos, a sociedade, as preocupações ecológicas e outros aspectos que caracterizam o nosso tempo.
* aluna do 3º ano do Departamento de Arquitectura da Universidade de Coimbra
Santiago Calatrava, Estação de Lyon Peter Eisenman, Casa 11a p 28.29
Grau Zero: os Limites dos Modelos Ana Fróis *
Os cinco edifícios de que trata este capítulo têm como pressuposto três premissas que datam do final do século XIX e início do século XX: o aço, a electricidade e os elevadores. Elevador O elevador começou a desenvolver-se na Europa ainda no século XIX. Em 1833, no Colosseum de Regent Park, em Londres, existia um compartimento movido por mecânicos, que transportava entre seis a oito pessoas para uma plataforma, de onde se apreciava a vista. Estes elevadores eram movidos a vapor. Designavam-se por lifts. Em 1845 começam-se a desenvolver elevadores hidráulicos, provavelmente por Sir William Thompson. Pouco tempo mais tarde, Elisha Otis desenha um elevador - uma plataforma que sobe - para uso da sua fábrica. Para este elevador Otis inventa um mecanismo que impede o elevador de cair quando o cabo se parte. Ele apresenta-o no New York Crystal Palace Exhibition em 1853. Durante a apresentação, quando a plataforma chega ao ponto mais elevado, um assistente dá a Otis uma faca e este corta o cabo do elevador. Nada acontece. Thus Otis introduces an invention in urban theatricality: the anticlimax as a denouement, the non-event as triumph. O termo elevator é desse ano. Tipical Plan O aço, a electricidade e o elevador permitem o surgimento nos EUA de um esquema de funcionamento, o tipical plan. O tipical plan evolui a partir do loft. Vai desenvolver-se a partir do fim do século XIX até ao início dos anos 70. Este tipo aplica-se aos edifícios de escritórios e, consequentemente, às torres. A sua forma geométrica é o rectângulo. E é o rectângulo que o torna típico: a malha da cidade americana é em geral rectangular; é mais fácil desenhar um edifício de grande escala num rectângulo. Um quadrado não gera tipical plan por conferir à planta um carácter excepcional. As suas principais características são a racionalidade do desenho e o seu pragmatismo. Tem uma modulação regular que não é rígida mas pode ser quebrada quando necessário. É uma abstracção, não um tipo.
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Tipo Uma soma indeterminada de tipical plan que estabelece relações entre si através de elevadores é uma torre. Aparece então outra invenção, que as torna viáveis: o ar condicionado. Nascem, assim, ambientes artificiais. O Chrysler Building representa o tipo. Este edifício, concluído em 1930, foi, durante apenas um ano, o edifício mais alto de Manhattan. Em 1931 estava pronto o Empire State Building. É a altura que distingue este tipo de edifício dos outros. Ela vai tornar-se o seu maior problema. O edifício funciona num ambiente artificial, logo precisa de uma quantidade enorme de infraestruturas. Limpeza, serviços administrativos, sistemas de correio, reguladores de temperatura, transporte vertical, protecção contra incêndios, aquecimento, iluminação, refrigeração, ventilação, fornecimento de energia eléctrica. Por fim, o edifício precisa de se manter a si próprio. Desde a fase do projecto são designados espaços para esse fim. Dez anos antes, na Alemanha, Mies van der Rohe desenha a sua primeira torre, a Friedrichstrasse. Esta torre é um edifício atípico: abandono do rectângulo, ausência de malha ortogonal, de preocupações com as infraestruturas, de protecção contra incêndios, etc. Mas os arquitectos americanos da mesma época consideravam estes aspectos fundamentais e incluíam-nos, logo de início, no projecto. Há uma contradição entre a utilização de materiais que caracterizam a época e que o poderiam conduzir à racionalização da construção que, no entanto, está ausente no desenho do edifício. Os materiais e o seu desenho servem uma intenção que nos pretende iludir quanto à massa do edifício. Apesar de atípico, o desenho da Friedriechtrasse tem regras de composição geométricas rigorosas na sua aparente irregularidade. Mas não são as regras do tipical plan. A Friedrichstrasse não é um verdadeiro skyscrapper. É sobretudo um exercício que nos mostra o interesse dos europeus por este tipo de edifícios. Por outro lado, a cultura Europeia de Mies faz com que a sua abordagem do tipo, tenha carácter experimental, fugindo às expectativas. Para Koolhaas há uma contradição e um equívoco no entendimento da obra de Mies: o Mies interessante e experimental opõe-se ao Mies que anos mais tarde construirá o Seagram Building -
o Mies boredom. Para Koolhaas todos os edifícios da Cidade Genérica descendem da Friedrichstrasse. A Cidade Genérica mostrou que ele julgou mal. A dificuldade diante da qual ele baixou os braços Friedrichstrasse- criou os edifícios mais interessantes. A homenagem ao Mies interessante é irónica, porque ele abandonou-a em favor do aborrecimento. Esta interpretação de Koolhaas, que valoriza o experimental, não considera o aspecto mais explorado da obra de Mies – a racionalização, de que o Seagram Building é o exemplo acabado. Teoria Kenneth Frampton, na História Crítica da Arquitectura Moderna, inclui este edifício no capítulo da monumentalização da técnica. Esta monumentalização da técnica tem como consequência formal a total regularidade da planta e, sobretudo, a simetria onde as excepções não entram. A estrutura mista, por exigências do regulamento, é formada por um núcleo central em betão armado e uma estrutura metálica revestida a betão. A planta é rectangular. A regularidade do edifício resulta da ideia que Mies tem da estrutura: 1) a simetria do núcleo central; 2) a colocação do núcleo central no centro de gravidade do edifício. Estas regras são condições indispensáveis para que a torre resista ao vento e ao efeito de torção que ele provoca. Ainda segundo Frampton, o abandono de Mies da assimetria informal (projecto da Casa de Campo em betão, Pavilhão de Barcelona, Casa Tugendhat) a favor da monumentalidade simétrica, é o resultado da adopção do método construtivo da indústria americana dos anos 50. O Seagram, embora não parta das premissas da construção das torres nos EUA, não as exclui. A América da altura dá-lhe condições que lhe vão permitir desenvolver sua obra. E Mies, por seu lado, com o Seagram, vai fornecer um modelo de carácter exemplar, copiado à exaustão. O carácter exemplar do Seagram resulta da superação d’o espírito do tempo e da noção de pele e de esqueleto que ele herdou de Berlage, conceitos ainda da sua fase europeia. Quando consegue separar o esqueleto da pele já não pode ir mais longe no campo material. Então aparece a ideia d’a arquitectura como decisão intelectual. Com isto,
o edifício passa ao cânone. Limites do modelo Por volta de 1970, a torre, que tem por base o tipical plan, chega ao fim. As virtualidades deste modelo, assente numa economia de princípios, a começar no desenho, emprego de materiais e método construtivo utilizado, tinham feito dele um modelo cheio de potencialidades o que conduziu à sua repetição até à exaustão. Paralelamente há um trabalho de clarificação do modelo por parte de europeus em fuga ao nazismo. Estes pegam num modelo cultural que não é o seu. Neste trabalho é percebida uma ambiguidade que deixa em suspenso a questão das influências. Este é um fenómeno interessante, que não se restringe ao domínio da arquitectura, onde não é claro se o modelo americano se impõe ou sofre as influências culturais dos seus utilizadores. Estão assim criadas as condições para a sua apropriação. O êxito do modelo faz com que, naturalmente, se desvirtue. Nas torres do Lake Shore Drive, todas da autoria de Mies mas com execuções diferentes, duas torres exemplificam o modelo inicial, enquanto as outras duas representam a sua desvirtuação. A diferença, que é mínima, está ao nível do tratamento dos caixilhos. Ela torna-se significativa na imagem total do edifício e é fundamental para o resultado final. A adulteração do modelo passa-se quase sempre a este nível: continuam a aplicar-se as regras do tipical plan mas adulteram-se os princípios de economia referidos. Assim, as reproduções ficam sempre aquém do modelo. Quando um tipo chega a este ponto de clarificação, com leitura imediata, favorecese a sua reprodução, o que implica cópia. As cópias não ganham autonomia suficiente em relação ao modelo para serem elas próprias objecto de cópia. Por estas razões, esta torre, se não morre, perde o interesse. A partir dos anos 70 a atenção parece começar a dirigir-se noutras direcções. Ao modelo são adicionadas características de outros: o modelo de torre torna-se híbrido. O último exemplo de uma torre dentro das características do tipical plan são as Twin Towers. * arquitecta licenciada pelo Departamento de Arquitectura da Universidade de Coimbra
p 30.31
[ contaminações ]
Al Berto
uma existência de papel
Mário Carvalhal *
ardem cidades, ardem palavras. inocentes chamas que nomeiam amigos, lugares, objectos, arqueologias1
Al Berto apareceu na década de 70 como uma das vozes mais sonantes e inquietantes de uma nova geração da poesia portuguesa. A sua maneira única de escrever transforma-se, ao longo de toda a sua obra, num discurso errante pelos territórios sombrios da memória, que surge como lugar de redenção com o passado. A sua biografia pode vislumbrar-se espalhada ao longo dos muitos textos que escreveu. Histórias de deambulações por cidades sem nome, encontros inesperados, noites de insónia e loucura, de engates, e da embriaguez aterradora do álcool, das drogas, e das paixões2. A estas podemos acrescentar um elemento que emerge nas suas obras, a partir de certa altura, do caos e da vertigem do mundo exterior: uma solidão crescente e que o leva a escrever, cerca de um ano antes da sua morte, tudo vem ao chamamento [...] a redenção dos maus momentos – enquanto te barbeias/ vês no espelho o homem/ cuja solidão atravessou quase cinco décadas e/ está ali a olhar-te – queixandose da tosse3. Al Berto introduz-nos a um mundo transbordante de entusiasmo juvenil e rápida violência, mas onde vão ganhando cada vez mais espaço as dúvidas e as mágoas do tempo. O resultado é uma poesia sobrepovoada por imagens, com recortes cinematográficos, que exalta a errância e o excesso de quem viveu uma vida no limite, sem se conter, consumindo-se a cada momento. Os seus próprios mitos são, aliás, exemplos marcantes dessa maneira de viver ao sabor dos impulsos, tornando facilmente reconhecíveis as influências que Al Berto transporta para a sua obra. De Velvet Underground & Nico a Iggy Pop, de David
1. 2. 3. 4. 5. 6.
Atrium in À Procura do Vento num Jardim d’Agosto, 1977 Lunário, Assírio e Alvim, 1996 Clamor in Horto de Incêndio, Assírio e Alvim, 1997 citação de Jim Morrison O Medo (2) in O Medo, Assírio e Alvim, 1998 Sida in Horto de Incêndio, Assírio e Alvim, 1997
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Bowie a Ian Curtis (Joy Division) ou mesmo a Jim Morrison, todos marcam presença nos seus textos. Por vezes, chega a ser perturbador o paralelismo entre o universo de Al Berto e o de alguns dos seus mitos: artérias vivas, noite viva. Cobaias doentes em pensões baratas, quartos reles, bares, casas-de-penhor, cabarés e bordéis; arcadas moribundas que nunca morrem. Ruas e ruas de cinemas em sessão contínua. [...] vacuidade e vertigem. A pele incha, elimina as diferentes partes do corpo. Zunem vozes ameaçadoras de escárnio, repetitivas. É o medo, o abismo da velocidade4. Mas a constelação de influências culturais não se limitava à música. Estudou Pintura em Belas-Artes, apesar de a escrita ter acabado por se revelar a sua grande paixão. Acabou, no entanto, por escrever vários textos sobre artes plásticas, que vão desde a pintura e escultura (A Secreta Vida das Imagens) a o c i n e m a e , s o b r e t u d o, à f o t o g ra f i a , assumidamente uma das suas paixões, que o acompanhou sempre como uma maneira de exorcizar os seus fantasmas, assim como os de quem o olhava do outro lado da câmara fotográfica. As imagens que temos de Al Berto, em grande parte tiradas por Paulo Nozolino, fundem-se com as imagens presentes nos seus poemas. E é neste conjunto de vários fragmentos que se recompõe a existência de Al Berto, muito para além do existente no papel. provavelmente, só se morre nas imagens. o que me atormenta é que estes retratos podem sobreviver muito tempo depois de mim. e qual deles terá sido o meu verdadeiro retrato? de todos eles qual será aquele onde nunca estive? 5
* aluno do 2º ano do Departamento de Arquitectura da Universidade de Coimbra
acendemos então uma labareda nos dedos acordamos trémulos confusos – a mão queimada junto ao coração e mais nada se move na centrifugação dos segundos - tudo nos falta nem a vida nem o que dela resta nos consola a ausência fulgura na aurora das manhãs e com o rosto ainda sujo de sono ouvimos o rumor do corpo a encher-se de mágoa6
p 32.33
[ Cheese-Ham Files ]
#4 Vasco Pinto As capitais do nada Em tempo de capitais poderá convir fazer-se neste espaço uma reflexão sobre fenómenos artísticos de natureza efémera que assinalam indelevelmente a marcha do tempo na transformação de territórios e cidades. Diga-se, muito friamente, que as capitais são normalmente o parente pobre das expos: enquanto as últimas significam um pretexto para infra-estruturar e construir, pesadamente, espaços do futuro, as primeiras ficam-se pela mais simples concentração de acontecimentos de animação pública e cultural e decorrentes encómios celebrativos. Seja como for, e por muito gratuito ou megalómano que isto possa parecer aos mais irredutíveis, provocar uma suspensão na existência quotidiana de um lugar significa quase sempre uma grata, duradoura e necessária inflexão no processo de crescimento e favorece decisivamente a constituição de uma identidade colectiva: que seria do inviezado presente nacional se não tivéssemos tido a Expo 98 e o Porto 2001, e não estivéssemos já a construir o Euro 2004?
públicos, exposições, eventos performáticos e coisas tão díspares como um cordão humano de quatro mil pessoas (que deram as mãos por nada unindo o casco velho da freguesia ao bairro de Chelas), um festival aéreo que não chegou a levantar vôo, escritas diversificadas, sumarentas confererências do nada, momentos participados de reflexão e acção patrimonial e urbanística, e debates públicos radiodifundidos desde o cafésnack-bar a bomba. (Em tempo de polémica sobre o papel dos canais públicos de televisão é revelador ter sido uma rádio local, o órgão escolhido para acompanhar o evento.) Dos projectos realizados, cuja única condição foi o respeito pelo orçamento assumido, e entre largas dezenas de intervenientes, trabalhos como o de José Maçãs de Carvalho, porque é que existe o ser em vez do nada?, onde se humaniza o espaço publicitário com a gente real do bairro, a contribuição de José Adrião e Pedro Pacheco em
Menos espalhafato mediático terá suscitado uma intervenção que durou todo o mês de Outubro de 2001 na freguesia de Marvila, zona oriental de Lisboa. A marcação de um território com características suburbanas e híbridas, social e economicamente problemático, mesmo nas barbas
do sítio onde decorreu a Expo, foi o objectivo de Lisboa Capital do Nada, tal como ficou registado no projecto editorial da associação Extra]muros[, produtora do evento: empregando recursos modestos e uma atitude discreta, o projecto LCDN pretendeu criar um facto de dimensão sobretudo local que através da dinamização cultural com carácter pluridisciplinar e transversal reivindicasse um momento de intensidade e auto-promoção para os habitantes da freguesia. A publicação, de quase 500 páginas (e preço de capa módico de 20 €) documenta todos os momentos da operação: conceitos, território, processo, registo e observatório. Em registo aparece uma extensiva referência a todos os pontos do programa: projectos estruturantes, intervenções de arte em espaços nu [outubro 2002]
torno da preservação das azinhagas de Marvila e o gesto emblemático de Francisco Tropa, que envia ao presidente da junta uma peça em ouro no valor da verba atribuída ao seu projecto, são prova da vitalidade artística nada bacoca que o nada conseguiu suscitar. A versão abreviada do projecto: Como Sinalizar o Nada?, editada pelo Centro Português de Design contém o extra de um ensaio eloquente de Pedro Brandão sobre espaço público e custa a ainda mais insignificante quantia de 7,5 €. ...não me levem a mal — e já sabemos que antes capital por um dia que plebeia a vida inteira... (mas quando um novo estádio municipal custa vinte vezes o orçamento de uma capital da cultura) calhou pensar que o nada pudesse ser uma metodologia eficaz para a coisa. (obrigadinho e façam como entenderem...)
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RCR Aranda Pigem Vilalta Sendo já um valor seguro da arquitectura espanhola, o jovem trio catalão RCR Aranda Pigem Vilalta apresenta uma arquitectura despojada e de forte integração na paisagem. Com um trabalho realizado em diferentes escalas, as suas obras têm frequentemente uma marcada horizontalidade e um carácter quase escultórico, como no Pavilhão de Banho de Tussols em Olot (a cidade onde estão implantados). Entre as suas obras destacam-se ainda a Faculdade de Direito da Universidade de Girona, o Centro Cultural e Recreativo de Riudaura e a Casa de Mirador.
Escolha e relacione-se com:
uma cidade... Homer uma obra de arquitectura... Casa na Ilha de Pantelleria, Clotet/Tusquets um artista... Donald Judd um livro... O Elogio da Sombra, Junichiro Tanizaki um filme... A Vida é Bela, Roberto Benigni uma experiência... Pernoitar num templo budista no Japão uma influência... Jardins ZEN um vício... Observar livros uma palavra... Equilíbrio um futuro... Manhã
p 34.35
ISSN 1645-3891
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