[editorial] orientalidades Bruno Gil
[edit] a hora em que não sabíamos nada uns Carina Silva dos outros
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a bomba(im) do desOriente Walter Rossa
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hikikomoris: quando h fecha o mundo lá fora Inês Moreira
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[conversa] manuel vicente A. Joana Couceiro + Marta Pedro os olhos de manuel vicente um bilião de consumidores _ hiperdensidade Daniel Beirão + Rui Aristides
amor e ruína Gonçalo Furtado
diário de bordo de uma viagem... Nuno Cruz
Tiago Fiadeiro
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[entrevista] toyo ito António Correia + Carina Silva moshi moshi
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o mandarim Pedro Machado Costa
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Índia – excerto dos cadernos de uma viagem Vasco Pinto que não chegou a terminar
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mix + small = ‘big in japan’ Marta Pedro
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[1º acto] jardim de infância de buarcos Rui Silva
[contaminações] manga e anime Carolina Santos
[cheese-ham files] travel for travel sake Vasco Pinto
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[editorial]
Orientalidades
Bruno Gil*
coreia do norte
coreia do sul china japão
índia
tailãndia
Depois do check-in, a NU desloca-se lentamente1. Enquanto viaja, observa e sente o cheiro do local. Ouve relatos que adquirem a densidade da experiência; de comum expressam uma forte cumplicidade entre cultura local, ambiente, pessoas, arquitectura. A orientalidade alastra-se num estado imaterial como um odor persistente, vivo, na teimosia de uma definição, quase palpável. Aparentemente, ela não se define: quais os limites do Oriente, quais os ingredientes que lhe dão um paladar comum. Há algo de global neste aroma. O aroma revê-se na vivência dos espaços. São impregnados de uso, densos, cheios, plenos. Desde o superfuncionalismo japonês ao superhabitado indiano e chinês, como se constróem espaços, ambientes e arquitecturas nestes contextos? De Bombaim, sobressai a forte filtragem das linguagens ocidentais, numa apropriação claramente indiana, daquilo que lhe é externo. A sedutora assimilação indiana confunde-se com as imagens de uma Macau híbrida, numa transição original, onde o toque de Manuel Vicente é inseminador. Os testemunhos por terras de Índia e China coincidem na subversão da individualidade. A densidade demográfica é tal que a fronteira do privado e do público se dilui, roçando a inexistência, adquire outros significados. A sociedade nipónica assiste igualmente a esta diluição, contudo faz dela motivo de organização. Perante a arquitectura os programas reinventam-se, resultam no contacto híbrido de funções. A sociedade reage à exigência do sistema, isolando-se perante a pressão que os níveis de competitividade gera, num fenómeno de fuga ao público. E continua a viagem. Atenta, escuta histórias do Oriente, organiza-as no seu pensamento, e prontamente as relata. * aluno do 6º ano do Departamento de Arquitectura da Universidade de Coimbra
1
No último número, NU #15, o tema foi viagens; mobilidade, globalização, foram motivo de análise.
[No claustro do Departamento de Arquitectura da Universidade de Coimbra ouvem-se as palavras do professor Vítor Figueiredo,
Há quem tenha uma vida de projecto e há quem tenha um projecto de vida. Partilhamos e reflectimos.]
[dezembro 2003] 02.03
[edit]
A Hora Em Que Não Sabíamos Nada Uns Dos Outros1 Carina Silva*
1
Este é o título de uma peça do dramaturgo Peter Handke (cenografia do arquitecto João Mendes Ribeiro) que, numa atitude radical de desafio a si próprio, ‘abre mão’ das palavras, o seu domínio, para testar a sua capacidade de teatralidade. Numa praça três centenas de personagens desfilam nas mais variadas atitudes. Nada se sabe sobre eles; ao espectador apenas é dada a chance de conhecer o instante em que cada um atravessa a praça – protagonista única do espectáculo - à medida que as épocas e as estações do ano variam. Gente de carne e osso, fantasmas, mitos e criaturas fabulosas, numa dança incessante de quadros cénicos atravessamna, e é nesse centro instável e em contínua metamorfose que Abraão e Isaac aparecem e desaparecem, que Eneias transporta o seu pai moribundo, que irrompem Chaplin e Papageno, que se precipitam patinadores, jovens executivos e mulheres histéricas, o gato das botas, o filho pródigo, um cowboy, turistas, casais de namorados, uma dona de casa. Tudo converge e diverge nesse solo do quotidiano, perdendo o seu destino ou reencontrando-o.
[ janeiro 2004 ] 04.05
Walter Rossa*
Escrevo-te no primeiro dia em que o Fórum Social Mundial se reúne em Bombaim. Por outro lado, recebi de manhã uma notícia que, entre outras consequências, me levará a uma nova estadia naquela cidade. Acredites ou não, foi também hoje que o carteiro me deixou ficar o cartão de Boas Festas que o Rahul Mehrotra — um colega de Bombaim — todos os anos me envia [o qual é sempre uma excelente fotografia a preto e branco dos filhos, a cujo crescimento assim vão assistindo os amigos]. Sendo tudo isto em, sobre e de Bombaim, não pode ser coincidência. Assim se me impõe aquela metrópole ao escrever-te como resposta ao pedido d a r e d a c ç ã o d a N U p a ra o n ú m e r o d o O r i e n t e . Ta l ve z m e d e s o r i e n t e … Já lá não vou há quatro anos, o que no caso é uma eternidade. Desde a ressaca da minha primeira visita em 1994 — com a cidade transformada em acampamento de todos quantos fugiam do interior e com eles traziam uma epidemia de bubónica —, nunca consegui racionalizar os porquês dessa permanente e nostálgica obsessão pela Índia, nomeadamente por sítios como Bombaim, Delhi, Calcutá ou Madrasa, os mais duros em tudo quanto de negativo associamos ao Terceiro Mundo, ou seja, ao mundo dos outros. De todos esses locais foi Bombaim quem sempre mais me apanhou. Talvez seja pela constante provocação que lança à minha condição de ocidental cuja memória, idade, origem social e geográfica ainda me permitem lembrar ao vivo, mas de raspão, o Portugal profundamente atrasado que a democracia e o dinheiro europeu desenvolve vai para 30 anos. Talvez seja alguma má consciência por usufruir desta gaiola dourada que é a Europa, partilhando, com parcimoniosa resistência, parte dos receios colectivos pelos exageros de que acusamos os países em vias de desenvolvimento (como é politicamente correcto dizer para casos como o da Índia). Talvez seja pela estimulante sensação de risco — claramente infundado e preconceituoso — que a forte agressão daquele quotidiano aos sentidos me provoca. Pode ser que também seja por, no confronto com aquela grande bomba(im) metropolitana, ter consolidado a minha consciência da relatividade de conceitos como desenho, projecto, arquitectura e urbano. Pode ser ainda por ali ter finalmente interiorizado a vastidão e diversidade do mundo em que vivemos, o qual um consenso ocidental hipócrita e maquiavélico (pré)vê como aldeia global. É em memórias como as que tenho de Bombaim que, com alguma relutância e desviandolhe o sentido, acabo por concordar com essa ideia de ruralidade ou de provincianismo mundial que as tecnologias de informação também nos têm permitido percepcionar e construir. Para ser cidade, o Mundo necessitaria globalmente de mais densidades e integrações, mas não sei se há alguém genuinamente interessado nos sacrifícios e consequências pessoais correspondentes. A par com irrefutáveis avanços, essas tecnologias têm viabilizado respostas que vão no sentido de uma maior dispersão e segregação, ocorrendo em rede e não tanto em extensão. Cada vez mais, como nas sociedades estruturadas por castas, temos uma real tendência para não ver o que está ao lado, mas apenas o que connosco se encontra inserido em determinadas redes. No fundo, cada um de nós constrói a sua realidade do mundo que quer, recebendo em troca a visão e o quotidiano daquele que por isso mesmo merece. Em suma, estamos a construir e a viver, não em uma, mas em múltiplas aldeias globais implantadas num planeta que assim se vai ampliando por territórios abstractos com a extensão e a consistência do éter. Tudo isso entendo e experimento melhor quando estou ou me imagino em Bombaim. Com o meu olhar de arquitecto ocidental olho e vejo coisas que ninguém de lá vê, e é com os preconceitos e presunção que nos caracterizam que não vislumbro outras que só eles conseguem ver. Múltiplos são os momentos em que tenho vontade de investigar à Linch como é que os cidadãos locais percepcionam e organizam mentalmente o espaço urbano e arquitectónico
< Torre Kanchenjunga, Charles Correa, 1970
[ janeiro 2004 ] 06.07
onde se movimentam. A julgar pela forma como circulam a pé ou motorizados, como solidariamente se apinham, como ocupam o espaço e como dão indicações de rua — nas referências usadas, nas distâncias referidas, etc., — as diferenças entre eles e nós nesses processos são por certo abissais. Tudo isso tratando-se de uma metrópole onde até a estrutura do próprio território foi profundamente moldada sob a direcção de europeus durante séculos. Temos por ali a disciplina dos planos ingleses que, de meados de Seiscentos, mas com especial relevância até à Independência em meados de Novecentos, determinaram o rumo territorial e urbanístico daquele centro vital do antigo Império Britânico. Depois foi o desenvolvimento simultaneamente orgânico, liberal e autónomo proporcionado pela União, cujos quadros e elites têm, por regra, uma formação anglo-saxónica que jamais deixa de estar associada ao peso de uma sociedade fortemente tradicionalista, hierarquizada e segregadora. Mas é também uma sociedade multi-tudo (racial, étnica, religiosa, etc.). Aliás, aquela que é para mim uma das especificidades mais determinantes da sociedade e cultura locais é a da extraordinariamente difícil fusão das partes. Desde sempre povos e culturas foram chegando e acomodaram-se lado a lado com graus mínimos de cruzamento. A aparente agressividade da segregação compõe-se com uma relativa tolerância face ao diferente. Não há nem nunca houve, como no Ocidente com o Cristianismo, um grupo que lograsse ou sequer pretendesse ser hegemónico e agregador. Ali os Europeus, por exemplo, nunca lograram colonizar, mas tão só instalar-se como administrantes e comerciantes com um estatuto bem especial. Isso faz com que sinta em Bombaim um estranho — ou será o autêntico — ambiente de cosmopolitismo, onde cada um age numa vasta e múltiplice comunidade, afirmando e acentuando as suas diferenças em relação aos outros. Por vezes é agressivo. De tudo isso nos dão conta inúmeros relatos e c r ó n i c a s d e v i s i t a n t e s o u a g e n t e s o c i d e n t a i s d a s m a i s d i ve r s a s é p o c a s . Antes dos Ingleses foram os Portugueses quem por mais de um século administraram aquele território, então composto por diversas ilhas e uma tira de continente, dando-lhe, aliás, uma unidade e coerência que ainda hoje é uma componente tão forte quanto menos conhecida do carácter da metrópole. Haviam-se deparado com um território cuja estruturação era débil, ou não fosse a Índia de então uma realidade essencialmente continental, o que explica porque foi possível às potências europeias de então instalarem-se administrativamente no litoral. Tudo isso e muito mais se encontra presente no presente. A intensidade urbana e cosmopolita brota de layers e layers de cultura e civilização, dos quais a assoladora desordem quotidiana e a impressionante miséria não são mais que resíduos que ninguém sabe ou se preocupa em reciclar. Como sempre, são a arquitectura e o urbanismo as expressões mais palpáveis dessa complexa realidade. No fundo são a Bombaim que se vê, sente, cheira e ouve, não tanto a que se saboreia. Para o ocidental comum há uma Bombaim charmosa, uma Bombaim assustadora e outra incompreensível. A primeira é a que mais directamente resultou da administração europeia, a segunda é a da degradação material e social, da falta de infra-estruturas, do trânsito caótico, da sujidade e da miséria, a última só se sente sem se lograr descrever ou explicar. Mas tudo isso também resulta da tal justaposição ou alinhamento paralelo de formas, programas, estéticas, modelos para os quais a cronologia não é relevante. Tudo se conjuga num confuso nexo de unidade que me parece conferido, quer pela extraordinária exuberância das vivências e da diversidade formal, quer pela patine quase instantânea produzida pelo rigor húmido de uma monção ou, ainda, pelo vigor da vegetação que selvaticamente se impõe e ingloriamente tende a uniformizar toda a metrópole. Assisto assim a uma maravilhosa e contínua lição sobre a curta distância entre planeado e orgânico, percepção e concepção,
[ janeiro 2004 ] 08.09
programa e uso, preservação e adaptação, desenvolvimento e progresso, etc. É estranho como os programas arquitectónicos e os edifícios da cidade, por mais ocidentalizados/globais que sejam, cedem a compostura, a intenção e a correcção das origens a uma ambiência local composta de gente, cheiros, cores, ruídos e texturas. E tudo isso é parte integrante da arquitectura? Há detalhes de gosto, mas também e essencialmente pormenores mal resolvidos, executados e mantidos, o que contrasta com os dos edifícios cujos programas são ancestrais. Chega a ser bizarra a ausência de senso de múltiplas opções relativas ao contexto e ao espaço público. Para não ir mais longe basta ver-me no meu poiso favorito, o decadente West End Hotel na área do Forth, na vivência do qual me fui apercebendo como aquilo que nos habituámos a considerar arquitectura colonial britânica mais não é que a apropriação forçada dos modelos vitorianos por uma espacialidade e lógica funcional indianas. Não tenho pejo em afirmar o mesmo sobre o grande hospital público implantado do outro lado da rua, ainda que este seja já uma obra racionalista/utilitária da União. Ao longo da rua instalam-se como podem os familiares de muitos dos internados, assim acompanhando de perto a evolução de um processo que deles não depende. Imediatamente abaixo, uma moderna mesquita/oratório de bairro (azulejo de casa de banho, mármores de snack bar, alumínios de pato-bravo, altifalante cónico para o muezzin, etc.) abre-se como uma loja comum sobre o alcatrão da rua, sobre o qual se dispõem, sem tapetes, os crentes nos cinco tempos diários de oração. Não preciso de descrever mais (animais, carros, motas, auto-rickshaws, vendedores ambulantes, esgotos a céu aberto, latas com lixo a arder, árvores, etc.). Já dá para imaginar como, pese embora a ocidentalidade das formas, materiais e sistemas construtivos, em menos de 100 metros assisto quotidianamente à subversão dos meus valores de qualidade e urbanidade. Mas estarão eles subvertidos para quem vive num universo interior onde, por exemplo, a pureza é um objectivo a perseguir? Verão eles desordem e degradação onde eu a vejo? Numa das estadias logrei entrar dentro de um dos elegantes apartamentos da torre Kanchenjunga (nome do terceiro pico mais alto do mundo, situado nos Himalaias e ainda virgem para os alpinistas), projectada em 1970 pelo arquitecto Charles Correa. O edifício, no qual são inquestionáveis as citações corbusianas, é um marco da arquitectura contemporânea de Bombaim. É também um marco de luxo, modernidade e ocidentalidade. A composição das quatro faces do edifício tem um desenho algo bizarro para os cânones locais, o mesmo sucedendo no que diz respeito à paleta cromática (ocre, terracota, branco), a qual destoa profundamente do branco sujo de monção que impera em Bombaim. O interior é composto segundo amplos duplex com varandas/terraços em pé direito duplo; os materiais e os pormenores têm soluções que por cá adoptaríamos com naturalidade. Enfim, tudo se conjuga para uma vivência da tal globalidade. Mas não foi isso que senti desde que entrei e que passei a ver cada vez que olho para ele depois de sair. Pese embora a modernidade, a vivência e o espaço são claramente indianos, de Bombaim. Percebo assim como jamais haverá uma Arquitectura global, indiferente aos contextos, imposta por um desígnio imperial, ideológico ou cultural superior. Isso faz-me sorrir na presença de algumas propostas, para mim já nostálgicas, da vanguarda vigente e que quase sempre teimam em confundir projecto com arquitectura. Haverá sempre um oriente que as desoriente… felizmente? * arquitecto, docente no Departamento de Arquitectura da Universidade de Coimbra
Hikikomoris: q u a n d o
H
f e c h a
o
M u n d o
l á
f o r a
Inês Moreira*
“The mistery of the missing million” é um inquietante documentário da BBC sobre um misterioso fenómeno no Japão. Este documentário divulgou à sociedade ocidental um fenómeno escondido no interior de um milhão de casas japonesas que tem dimensões consideradas epidémicas. O número: 1.200.000. Refere-se estimadamente aos adolescentes (1 em cada 10), na sua maioria rapazes filhos únicos ou filhos primogénitos, que se isolam da sociedade, num violento retiro autoimposto. Estes eremitas urbanos são denominados Hikikomoris1. Os Hikikomoris (H) fecham-se num cubículo, deixando de fora toda uma sociedade em que não se sentem integrados e a cujas pressões e expectativas não resistem. O violento isolamento autoimposto por estes actos é a resposta em fuga à violência psicológica da alta competição no sistema educativo e económico que organiza o Japão, sociedade que se tornou hipercompetitiva e que trabalhou durante décadas para a reconstrução do orgulho ferido pela II Grande Guerra. As escolas têm regimes para-militares para suprimir o falhanço, e os jovens crescem com a obrigação de cumprir. Até à quebra. E ante a impotência face ao sistema, e dada a ansiedade que esta organização gera, H sela-se um dia numa divisão da casa em que vive, usualmente o seu próprio quarto, e dele não sai durante longos períodos que duram, por vezes, anos ou mesmo décadas. Toda esta “geração escondida” descende de uma geração de yupis ausentes, de famílias em que falhou a comunicação e o diálogo, e que depositam grandes expectativas nos seus filhos, cujo medo do falhanço académico e amoroso é indutor de grande ansiedade e de medo de punições, e mesmo de exclusão por serem tidos como inferiores. Paralelamente, ou simultaneamente, não é de todo menosprezável o facto de esta geração ter crescido submersa em tecnologias que estruturam o seu quotidiano e que organizam as suas rotinas, em regimes autistas em que foi falhando a comunicação humana, que se substitui pela comunicação homem-máquina.
A coabitação das famílias com os seus Hikikomoris é dolorosa e implica uma total reorganização dos quotidianos, das rotinas e, por vezes, dos próprios espaços da casa. (Nalguns casos, em que H se isola na cozinha, é inclusive necessário redesenhar ou improvisar uma nova cozinha). O caso H é perturbantemente semelhante ao do Kafkiano insecto Gregor: à medida que este vai demonstrando um comportamento desviante patológico de uma doença psicológica, vai-se isolando e, simultaneamente, sendo isolado. A família sente-o, e depois sabe-o, mas não o compreende, não o assume, nem o pode ajudar, para não romper com os modelos construídos na fechada e ritualista sociedade japonesa. Deste modo, a casa vai-se fechando, até se tornar totalmente estanque, de modo a não transparecer ao resto da comunidade o desvio do raro habitante. Neste contexto, dissimuladamente e em segredo, os familiares sustentam, alimentam e transportam altas tecnologias, equipamentos e informação para o interior do cubículo em que H se encontra, entregando-os pela porta entreaberta. H joga playstation, surfa na net, joga em real time com outros jogadores, vê animes e lê manga. Esta é a única relação que ele estabelece com o mundo exterior. A tecnologia expande o espaço físico e estende o seu corpo, numa perversa materialização do que McLuhan, Virílio e Mitchell anteviram. É muito insólita a coincidência desta patologia psíquica com a materialização da dissertação teórica do ser utópico que, isolado e estático, pode estar conectado com a rede mundial, movendo-se sem sair do seu espaço doméstico. A aparente serenidade que a família cria para o exterior é muitas vezes acompanhada de uma enorme violência física no interior doméstico. O Hikikomori encerrado agride e ameaça os coabitantes das outras divisões da casa, agindo numa óbvia denúncia do seu desespero ante a incapacidade de comunicação. (A indiferença ante os assuntos “domésticos” relativos aos H foi quebrada quando
[ janeiro 2004 ] 10.11
houve um conjunto de crimes ocorridos em espaço público (desvio de um avião, rapto de uma adolescente) perpetrados por Hikikomoris que foram muito publicitados, tendo-se criado uma imagem muito negativa destes eremitas que deixaram de ser vistos pela opinião pública como doentes psicológicos). Para compreender o fenómeno e para ilustrar esta questão espacial, pomos em confronto valores sociais diferentes (Ocidente/Oriente), através de dois filmes: “Bully”, o recente filme de Larry Clark, retrata o já nosso conhecido tema da violência e delinquência juvenil e o modo como os jovens ocidentais exteriorizam frequentemente em espaços públicos um comportamento anti-social agressivo e se revoltam contra a i n c o m p r e e n s ã o / e xc l u s ã o d e q u e s ã o v í t i m a s . “The mistery of the missing million”, retrata o tema da revolta juvenil Japonesa, que se expressa pela incapacidade de exteriorização, tornando-se a-social e refugiando-se no espaço privado, apenas contactando digitalmente com a sociedade que não consegue compreender. A expressão desta ansiedade espacializa-se de dois modos inteiramente distintos: o espaço público como lugar de expressão e revolta, e o espaço doméstico reduzido a uma única divisão, como local de refúgio, ou seja, expondo a revolta ao Mundo, ou fechando o Mundo lá fora.
* arquitecta (FAUP, 2001). Coordena o Laboratório de Arte Experimental do Instituto das Artes (Ministério da Cultura).
1 Ryu Murakami estabelece um paralelo entre a “descoberta” da histeria no séc. XIX e a descoberta do Hikikomori há uma década, uma “doença” que pode ser entendida pela análise do contexto social alargado, a primeira, nomeadamente, entendendo as necessidades da mulher de emancipação e integração na sociedade, a segunda, poderia passar por compreender as pressões dos adolescentes.
Os olhos de Manuel Vicente A. Joana Couceiro + Marta Pedro*
Manuel Vicente nasce em Lisboa no ano de 1934. Licencia-se em arquitectura na escola superior de Belas Artes de Lisboa, em 1962. Frequenta a Master Class de Louis Khan na universidade da Pennsylvania obtendo o título de Master in Architecture, em 1969. Desde 1960 reparte a sua actividade entre Portugal, Goa e Macau. Em paralelo, exerce a actividade de docente nas Faculdades de arquitectura de Lisboa e Hong Kong. Autor de numerosos projectos e obras, é galardoado com o Prémio Nacional da Arquitectura da A.I.C.A., em 1987.
Tudo está nos nossos olhos e os nossos olhos são mais ricos quando escolhem.1 Os olhos de Manuel Vicente escolhem. Escolhem sítios para pintar, escrever, significar. ESTAR. Escolheram a força do sol da Índia. Escolheram o chão de Macau. Quente. Húmido. E desenharam nele a quadrícula, e repetiram-na. Escolheram as cidades de papel, aquelas que se podem passar a limpo, retocar, recortar, colar. Manuseá-las. Baralhá-las. Significando fragmentos soltos, construindo lugares, construindo. E construíram. A Emissora de Radiodifusão de Macau E.R.M., habitação privada (Casa do Pai, Casa das Ondas, Viúva, Chunambeiro), habitação social (Fai Chi Key , Bloco habitacional em Chelas), as Torres da Barra, o Arquivo Histórico, os Bombeiros, o Orfanato, a recuperação da Casa dos Bicos. E, de novo, a Emissora de Radiodifusão de Macau E.R.M. Fala-nos deste edifício com a mesma emoção com que o construiu. E com a mesma emoção, vinte anos depois, voltou para o ampliar. Com a vontade de lembrar o que já tinha sido dito. Sussurrado, talvez. E volta a dizer o mesmo mas levantando a voz. Já estava tudo presente em 1964 e praticamente como obrigação. Na década de 80 não recusa, faz a síntese. As coisas estavam lá, feitas por mim, e começo a explorar o que elas ainda poderiam ser para além daquilo que já tinha feito. Os olhos de Manuel Vicente escolhem. Escolhem as sombras, a luz, a cor, os cheios, os vazios, o silêncio, a música, o quente, o frio, o cheiro, as pessoas, as histórias, a alegria, o amor e o amor constrói. A casa. Esse lugar onde o corpo e a mente simplesmente conseguem estar. E a sua arquitectura é esta casa. Onde as horas e os dias se vão instalando, onde acontece o encontro, e há lugar para o imprevisto, e se espera o inesperado. A casa de um homem rico. De memórias. De pessoas. De lugares.
1 Manuel Graça Dias, Colagem de suspeições in Architécti nº4 (Abril 1990)
[conversa]
Manuel Vicente
Uma tarde longa. Um relato extenso de emoções. Intenso de sabedoria. Sem cortes.
O Oriente... não tenho nada a ver com o Oriente. Estava sossegado em casa e, um belo dia, um amigo fala-me de Goa. Ia para lá, mas só se levasse alguém. Não dormi a noite toda, não sabia de onde me vinha aquela escondida nostalgia do Império, da lonjura e, no dia seguinte de manhã, disse: — Está bem. A história de Goa tem imensa graça porque não vou como arquitecto, nem como estagiário, ainda nem tinha feito a tese. Aquela parte de mim que se tinha a maravilhar teve o seu clímax na história de Goa. A minha passagem por Goa foi uma experiência muito profunda. Pensando agora, a esta distância, talvez tenha sido a minha última aventura, a minha última experiência de adolescência, ou juventude - sempre embirrei com esta palavra – aquele período entre os 15 e os 21 anos, fase em que se fazem umas coisas muito extravagantes e muito extraordinárias. A minha relação com aquele sítio, para vocês é difícil de perceber, porque é muito antes de tudo o que possam imaginar; é muito antes dos Beatles, muito antes da moda dos trapos indianos e dos hippies. Quando chegámos a Lisboa, com uma série de coisas indianas, as pessoas olhavam para nós como se viéssemos sei lá de onde, do Minho por exemplo, e tivéssemos trazido bonecos da Rosa Ramalho! Na altura até eram mais prestigiados do que propriamente aquelas coisas indianas que, daí a 10 anos, viriam a ser uma moda furiosa, como os panos bordados com espelhinhos. Nessa aventura havia sempre uma grande frescura, muito pouco de pré-conceito, a cada coisa que se encontrava ficava-se boquiaberto. Os cheiros, as cores dos arranjos dos mercados, e não íamos à procura de coisa alguma, íamos para lá simplesmente. Lembro-me que a primeira vez que contactei com o Oriente, íamos para a Índia, parámos em Karachi e ficámos lá à espera do avião. — Que engraçado, parece Badajoz! Talvez porque a Espanha daquele tempo era um sítio desarrumado, partido, muito esburacado, muito vivo, muito alegre, com muita cor na rua. Já Lisboa era muito
[ janeiro 2004 ] 12.13
limpinha, muito arrumadinha, os passeios tinham desenhos, as ruas estavam todas alcatroadas. Goa era o mundo do Bordel. Era o pó, a poeira, a terra, o amarelo, os passeios partidos... era um sítio muito remoto, muito interior, muito continental. Lembro-me de chegar a Karachi e pensar: parece Badajoz! E como eu gostava de ir a Badajoz, a essa lonjura perto; era uma visita à alegria, ainda muito terceiro mundista. Na Cidade do México, em 69, também vim a encontrar pedaços de Badajoz, um terceiro mundismo muito desenrascado, improvisado, onde as pessoas não desistem do que querem só porque, aparentemente, não têm um livro de instruções ou um catálogo a dizer como é que se faz... vão fazendo! A Índia, para mim, foi o fechar de um ciclo. Depois, por outras razões, fui para Macau e gostei muito de lá estar, mas nunca mais me senti tão maravilhado. Aquela parte de mim que se tinha a maravilhar teve o seu clímax na história de Goa. Lá, metíamo-nos no carro e, para andar 30 km, demorávamos um dia inteiro; saíamos do carro para atravessar os rios... As pessoas lá eram muito medrosas, andava tudo a fazer exercícios de tiro ao alvo. Ninguém saía de Goa sem levar uma pistola no carro e uma metralhadora. Decidimos que isso não era para nós, eu não quero estar num sítio onde se leva tiros, não me dá prazer nenhum. Não me interessa viver dessa maneira! Mas as recordações que tenho são muito doces, também porque muito distantes daquele quartel enorme que era Goa. Por vias dos laços familiares do meu colega, íamos de vez em quando a um palácio onde se cantavam umas músicas nacionalistas. Nós ficávamos muito calados, éramos contra tudo aquilo. — Vocês não cantam? — Sabe que no canto coral do colégio davam-me dispensa porque desafinava sempre... E riam-se. Lá havia muita coisa para fazer. Goa era um sítio onde se recebia muito. Era tudo tão extraordinário e fascinante, que estávamos sempre a receber. Em Macau não era tanto assim, tínhamos que dar tudo, que puxar muito pelo que cá tínhamos dentro. Encontrar [ janeiro 2004 ] 14.15
aquilo que nós queríamos encontrar. Significar as coisas de modo a que elas nos suportassem, representassem a imaginação, o dia-a-dia. Goa não. Estávamos sempre a receber. Não nos era pedido rigorosamente nada, tentávamos apenas digerir todo aquele esplendor, que não tem nada a ver com hinduísmo, nem com budismo, não era isso que interessava. Eu tinha a minha interpretação das coisas, tinha uma cultura católica, uma visão católica do mundo, do bem, do mal, do esplendor, do amor, da justiça. Penso muito sobre isso, mas não é necessariamente um pensamento místico, da área da teologia, é muito mais da antropologia. Nunca tive uma curiosidade especial sobre outras coisas marginais que, uns anos depois, viriam a ser tão importantes para toda a gente, o fascínio pelas coisas paralelas e alternativas. Essas espiritualidades orientais nunca me fascinaram muito. Talvez tenha nascido tarde demais para isso. Sou muito sensível às questões do infinito e do eterno, no sentido em que o infinito para mim não é o que nunca acaba, mas sim, o que está por acabar. Mas acaba e, culturalmente, sempre ouvimos falar do fim do tempo! No fim do tempo é onde começa o eterno, onde o tempo desaparece. Em certos aspectos eu odeio o pitoresco, o exótico, nunca achei graça a ninguém por ser exótico. Acho graça a uma pessoa quando me reconheço nela. Os Cantoneses são muito extrovertidos, sinto-me bem com eles. Imaginem uma família de Cantoneses sentados a uma mesa de um restaurante. Daí a pouco, e sem saber uma palavra de Cantonês, já se sabe quem é o filho, quem é a mãe... porque são muito expressivos e não escondem os sentimentos, a fúria, a zanga, o despeito, o olhar enviesado... O que deixei de mim em Macau foi definitivamente inseminador. Em Macau, nunca andei preocupado em fazer telhados torcidos, fiz a arquitectura que sabia fazer com os meios que lá existiam. E as deformações, são as deformações da produção, da manufactura. Qualquer casa barata tinha carpintarias de um prédio de luxo em Lisboa; já os rebocos, os azulejos, ficavam um bocado tortos.
É como a história do Criador quando queria fazer o Homem; arranja um bocado de pó, cospe-lhe, molda-o, e depois sopra-lhe, sopra-lhe o espírito. Portanto, acho que com qualquer coisa se pode fazer uma coisa extraordinária... tem é que se dar um sopro em metáfora, o que se investe de nós, o que damos de nós próprios. Há uma mulher, a Denise Scott-Brown, casada com o Venturi, que para mim é uma espécie de alma gémea. Não me ensinou nada, mas encontrei nela tudo aquilo que já sabia, que me preocupava. Dizia que não há nada mais criativo do que transformar uma coisa de que não gostamos em algo que gostamos. O caos é uma coisa não descodificada, tudo é caos e nada é caos. Tudo é desordem. Na desordem encontra-se a ordem: o que é que as coisas podem ser? O que é que se pode organizar a partir de uma observação amorosa daquilo que nos rodeia? Uma grande vontade de tornar significante. Constrói-se à procura de significados. Pode parecer presunçoso da minha parte, ou monomaníaco, ou violento: acho que o que deixei de mim em Macau foi definitivamente inseminador. Macau ficou prenhe da minha passagem por lá. E depois, num plano aparentemente menos misterioso ou metafísico, o facto é que, por eu lá estar, tornei credível que outras pessoas para lá fossem. E tornei mais exigentes os objectivos que essas pessoas tinham que alcançar. O Manuel Graça Dias, por exemplo, fartou-se de fazer coisas em Chaves; e durante um certo período de tempo, Chaves foi uma cidade de província muito composta, que os arquitectos e colegas fariam de qualquer maneira se não tivessem aquela espécie de referencial. Portanto, a qualidade média da arquitectura em Chaves, durante uns anos, era melhor que em muitos outros sítios. Reparem que a arquitectura corrente do Porto teve uma influência, que eu não sei se está devidamente celebrada: a Casa da Marquesa, uma casa do Távora, da qual nos ríamos todos muito. Era um esquerdo/direito de 3 ou 4 andares onde ele resolveu usar toda a linguagem de materiais correntes. Isso para mim foi bastante inspirador. Durante 10 anos, no Porto, a Casa da Marquesa deu filhos, enteados, netos... Não foi através dos museus nem da arquitectura de
excepção que a arquitectura urbana se qualificou. Não chega o palácio ou o museu para estruturarem ou organizarem a imagem da cidade. Como dizia o Kahn, as ruas são quartos e as paredes são as fachadas dos prédios, o tecto é o céu e o pavimento a calçada. Conseguir essa unidade resulta de uma vontade muito grande de investir na caracterização do espaço. U m e s p a ç o i nve s t i d o d e vo n t a d e e d e s e j o s . O esplendor da arquitectura é podermo-nos instalar lá e fazer daquilo seu. Vou muitas vezes a Nova Iorque porque a minha filha vive lá. Sempre que lá estou visito o Guggenheim, um sítio que eu adoro. Nem quero saber a exposição que lá está! Vou lá para fazer aquele passeio, um dos passeios mais estimulantes... Entramos naquela rotunda, queremos ir lá acima. Sobe-se o elevador, desce-se a rampa, ou sobe-se a rampa e desce-se o elevador, ou sobe-se a rampa e desce-se outra vez, sobe-se de novo, desce-se, fica-se muito tempo num sítio onde se conseguem ver muitas coisas ao mesmo tempo... Depois dizem, “por isso é que o edifício não é bom como museu. As pessoas não vão lá para ver as exposições”. E eu pergunto: — E depois? Faz-se outro museu ali ao lado. Se eu fosse dizer ao Frank Loyd Wright porque é que gosto tanto do Guggenheim ele ficava a olhar para mim e ria-se; mas isso é indiferente! Porque é que é preciso questionar, encontrar explicações para tudo? As pessoas gostam por razões completamente diferentes. E não é preciso fazer muitas perguntas para se ficar contente. Como aquelas pessoas que enquanto estão a fazer amor fazem muitas perguntas. É bom ou não é? É! Então pronto. O que eu digo aos meus alunos é que a arquitectura não tem livro de instruções. O esplendor da arquitectura é podermo-nos instalar lá e fazer daquilo seu. O homem deve ter um fascínio tão grande pelas coisas ao ponto de querer reconhecer-se nelas. Eu cheguei aqui a este atelier, que é o que é, e sabem qual foi a minha grande preocupação? Ali havia uma viga mais baixa, ali outra mais alta, acolá um pilar... Eu chamei
um homem para recuperar aqui uma horizontal qualquer que fizesse sentido e, quando ficou pronto, pensei: —Já posso viver aqui... Estamos constantemente a construir a nossa casa, em sentido muito lato. A casa onde uma pessoa se senta e está. É a arquitectura que me pontua a paisagem e faz a terra significar. Não me importa nada a vista. Quero lá saber da vista! Quando eu quero ver a vista, vou. Os românticos tinham aqueles minaretes nas casas; subiam lá acima mas, depois, queriam era voltar para ao pé da lareira: — Está um temporal lá fora... Eu não tenho necessidade nenhuma do temporal. Uma parede toda de vidro. Mas porque é que tenho de estar sempre a ver a vista? Desvaloriza. É uma vista magnífica, mas para ver quando apetece, ou para se ser surpreendido por ela. Impossível viver surpreendido a vida toda, constantemente. As coisas valem por serem uma escolha e não por nos serem impostas. Já agora vou contar, mais um vez, esta história que conto sempre. Aqui há muitos anos fui ver uma coisa do Siza, o centro paroquial de Matosinhos, que é uma obra muito bonita, feita com muita delicadeza, e com muito cuidado, e com poucos tiques. Na altura interessou-me muito. Havia uma sala com um ritmo qualquer na caixilharia, ao fundo havia também uma porta. Aquilo era num sítio bastante alto e fiquei entusiasmadíssimo quando percebi que podia ir lá fora. Abri a porta e saí. Mas voltei logo cá para dentro porque lá fora não tinha graça nenhuma, era banalíssimo. Aquilo era extraordinário, mas emoldurado daquela forma, ou de uma outra qualquer, mas era preciso estar emoldurado. Olhando através dessas molduras pensa-se, deve ser lindíssimo, e não é nada. Portanto, essa questão das vistas já tem os seus dias um pouco contados. Já ninguém vende nada por ali. Agora a ideia, que já chega um pouco tardiamente, são as coisas todas debaixo de terra. Os meus alunos este ano estão quase todos enterrados! Mas, quando eu passo no Alentejo, só viro a cabeça para
olhar um castelo em cima de um monte. O resto é paisagem: — Está tão verdinho, tão amarelinho... Olha, lá está o castelo não sei quê! É a arquitectura que me pontua a paisagem e faz a terra significar. A cultura agrícola, tal como a cultura urbana, cria os seus entornos, os seus ambientes, mas são tão artificiais uns como os outros. A natureza natural, deixada assim mesmo, é a selva do Amazonas, é o deserto do Saara. Tudo o resto é domesticado, humanizado, é feito à nossa escala, e necessidade, e desejo.
Olhar para o mundo como um sítio que se vai transformando. Como vocês entenderão, eu estimo bastante a arquitectura. O facto de existir uma actividade que seja pôr pedra sobre pedra, procurando fazer uma síntese, não digo de valor acrescentado: é útil e bom, porque não poderia ser útil se não fosse esplendoroso! Não há arquitectura sem construção, mas há muita construção sem arquitectura. Não me estou a referir a coisas mal feitas, falo do ponto de partida. Um armazém não tem que ter arquitectura. O armazém é um sítio para guardar coisas, não para guardar pessoas. Pode ter uma fachada que dê uma imagem de prestígio para publicitar a marca, mas é algo que não faz apelo à arquitectura, quando muito faz apelo ao design. E isso é uma das coisas que me faz mais impressão, essa promiscuidade que vem da Bauhaus entre o desenho e a arquitectura. Eu acho que não há mundos mais afastados. O design desenha objectos, objectos que suportam as nossas práticas, que podem ser vistos. A arquitectura não é para ter esse valor objectual, é para ser habitada. O resto é escultura. A escultura pode até ser interessante, poderá ter, até, uma vontade espacial mas que remete para a vontade volumétrica e, ambas, formam um discurso artístico autónomo que não tem a ver com o discurso da arquitectura. Uma escultura, mesmo praticável, não é arquitectura. A arquitectura é onde se está, onde se habita, onde se faz não apenas uma coisa, mas todas as coisas. [ janeiro 2004 ] 16.17
Há um homem que eu gosto pouco, o Gregotti, coitadinho, mas que dizia que a arquitectura é investir de significado espaços praticáveis, e eu acho isto bem dito. Se eu for a uma escultura praticável, vou lá para vê-la. E se for sem-abrigo, e se me deixarem, em último caso, talvez consiga lá um cantinho para me acocorar... O arquitecto tem uma formação que lhe permite seguir carreiras na vida pública, não exclusivamente de projectista de arquitectura. Porque é o homem que é formado - e não gosto nada da palavra treinado - para fazer sínteses impossíveis e improváveis que mais ninguém consegue fazer. Ele caminha com o engenheiro, com o homem do ar condicionado, com o electricista, com o canalizador... O objectivo final do engenheiro é fazer o máximo com o mínimo, um objectivo que eu acho super exaltante. O que eu peço aos engenheiros é que o máximo seja aquilo que o arquitecto define, que eu defino. Acho que o arquitecto tem talentos na área da política, do planeamento, da gestão, ..., é alguém que tem sempre um objectivo que não é resultante das situações e que tem essa imensa capacidade de ir viajando, sabendo que esse objectivo não se vai configurar exactamente como pensou. Organizador da investigação e da recherche, orienta toda uma démarche multidisciplinar. E não há tantas profissões assim. Com esta alegria de olhar para o mundo como um sítio que se vai transformando. A alegria do agricultor que ganha um pedaço de terra e pensa “que grande campo de trigo eu vou aqui semear!”, para se conseguir ir agarrando à difícil tarefa de viver. O desejo é, de facto, o motor da história. A permanente procura da ferramenta especializada anula a capacidade de inventar. Irritante tanta especialização dos instrumentos. Pode-se perfeitamente pregar um prego com o alicate. Até com um sapato se prega um prego! Em Macau, quando iam instalar o ar condicionado, levavam uma chave de parafusos, a única ferramenta que tinham, e com ela faziam tudo. Não se pode ficar tão impossibilitado de descobrir novos usos para as coisas. A permanente procura da ferramenta especializada anula
a capacidade de inventar. Uma pessoa precisa de mudar o pneu. E agora, como é que faz? Inventa. Às vezes parece que tudo está contra nós; o esquadro parte, a caneta deixa de escrever. Depois percebemos que se molharmos um alfinete em tinta conseguimos fazer um risco e começamos aos saltos! É como se tivéssemos contas a ajustar. Não podemos ficar impotentes com situações relativamente simples e tão gratificantes. Porquê mandar fazer tudo a um especialista? Um dos encantos do terceiro mundo é viver-se numa situação de permanente improviso. Não se pode ir assim, vai-se assado, o importante é querer ir. É quase mais importante querer ir do que chegar. Desistir é a coisa pior que pode haver, e não desistir, a mais exaltante. No outro dia estava no Algarve. Eu tenho lá um terreno onde nunca há-de acontecer nada, mas tudo bem, tenho o terreno e gosto de lá ir. Da última vez, o carro ficou preso numa rocha. Era um dia de Verão, era tarde, mas ainda de dia. Eu, ainda por cima, tinha um braço partido, pensei: — E agora como é que eu vou resolver isto? Será que eu cheguei ao limite das minhas possibilidades? Peguei no telemóvel e telefonei para o Automóvel Club de Portugal. Chegou um homem. Tanto andámos, tanto andámos, que o carro saiu. Ficámos tão contentes e orgulhosos a olhar um para o outro, que eu queria dar-lhe uma gorjeta e ele não aceitou. — Não quero gorjeta nenhuma, há tempos que não me divertia tanto! Na volta vinha a guiar com um sorriso de orelha a orelha... As pessoas estão muito desencorajadas, muito desvalorizadas, já não têm confiança em si mesmas e acreditam que a vida é tão complexa quanto querem crer que é. Vou falar-vos de um jovem colega meu. Gosto muito dele, trabalhou comigo em Macau e o pai dele também é arquitecto, mais novo do que eu. Depois de trabalhar comigo uns tempos, a certa altura contou que, ainda como estudante, mostrava as coisas ao pai e que ele lhe dizia: — Tu és parvo! Pensas que isso se faz assim? Ainda tens
muito que aprender... E eu, realmente, passo a vida a dizer a toda a gente o contrário, que a arquitectura é uma coisa que não tem mistério nenhum. Mais betão, menos betão, mais persiana, menos persiana, mais caixa de ar, menos caixa de ar, não há nada que aprender. O que interessa é o sítio, a focalização cada vez mais apertada, a criação de um olhar, de um modo de ver as coisas, de ver o mundo, a reflexão. Hoje, se eu fosse pormenorizar uma janela de madeira, que sabia dos meus tempos de escola, isso custar-me-ia mais do que se fosse tudo em ouro. Hoje há colas especiais, na altura as dimensões standard da madeira eram umas, hoje são outras... e o que eu sei de pormenorização de madeira já não interessa nem ao menino Jesus. Portanto, vivendo-se numa história acelerada, numa tecnologia em constante alteração, o que temos que saber é o que queremos e não o como. Um tipo tira um Master em, sei lá, arquitectura ecológica, arquitectura inteligente, e depois fica prejudicado porque passa o resto da vida a ser conhecido como especialista em arquitectura não sei o quê. O que é uma grande sacanice que se faz às pessoas. Conheço um tipo que resolveu ir à frente de toda a gente nos computadores e, hoje, é conhecido como o gajo dos computadores. E chora-se à brava. Tem pena, mas podia não ter: — Então quando é que me chama para fazer arquitectura? Não acho nada que um tipo que faz 3D seja menos útil do que o da ideia. Se não houver um tipo que trate de certas coisas, não se vai lá só com o génio, com a inspiração. Acho que as coisas deviam ser estruturadas de tal maneira que as pessoas se sentissem confortáveis e gratificadas por aquilo que fazem, pela sua participação no projecto de arquitectura. Ninguém vai perguntar ao tipo do trombone se é mais feliz do que o do violino. É a música que os torna mais felizes. Eu não penso que haja isso numa unidade de produção de arquitectura. Há sempre aqueles que se sentem inferiorizados porque não são os autores do boneco e do gesto largo. O arquitecto vive muito das relações complexas entre a
água, e o fogo, e a terra. É mais alquímico. Os jogos de luz e de sombras, o dentro e o fora, os planos, as superfícies, as peles. Se mete água ou se não mete água... quando eu compro uns sapatos acredito que eles não se vão rebentar no dia seguinte, que não metem água. Não podemos andar a vida toda aflitos, a saber se o peixe é fresco, ou se a carne tem toxinas. Não há vida para isso! É quase um parque temático da cidade. Eu hoje em dia teria fantasias de acabar o resto da minha vida em Macau porque acho Macau um sítio super estimulante. Vira-se uma esquina e está-se noutro mundo, passa-se do centro para o subúrbio. Na marginal, uma linha de costa com umas moradias, um campo de ténis, um palácio de um governador; depois, vira-se uma esquina que tem uma fortaleza, e entra-se numa zona de cidade dura; vai-se pela cidade dura fora e, a certa altura, sem se dar por isso, já se está no mundo de passagens superiores, e de passerelles, e de vias duplas, e de túneis; já se está no mundo de auto-estradas e de saída de cidade. E isto tudo demora menos tempo do que o que eu preciso para contar. É quase um parque temático da cidade. Estão lá todas as situações. Numa das viragens, eu achava importante ter um equipamento porta de cidade. Quando digo isto, falo daquelas arquitecturas anos 50 francesas, umas estruturas grandes e arriscadas. Eu achava divertidíssimo esta coisa que era quase uma invocação e que enfatizava a sensação de se estar a passar da cidade para o subúrbio. Era um pouco literário, mas colocava-nos imediatamente nesse frame of mind. É muito, ainda, essa ideia do parque temático. Lembro-me de, a certa altura, estar a esboçar coisas que, geometricamente, tinham um assento qualquer em memória: — Aqui podia ter havido uma fortaleza. Não há. Mas vou fazer a fortaleza que aqui podia ter havido e que não há. Era assim uma vontade de ir dando plausibilidade a uma história. Como aquele filme do Orson Welles, em que um tipo resolve tornar verdadeira a história dos marinheiros encontrarem uma mulher misteriosa e rica num porto. E
ele faz tudo para que isso realmente aconteça a um marinheiro. Tudo aquilo que nós suspeitávamos que era uma história que nunca tinha acontecido, ele fá-la acontecer. — Vamos, então, inventar também um passado sobre o qual estruturar o futuro, que torne toda esta viagem urbana mais inquietante. Não vai enganar ninguém. Claramente não é uma fortaleza, claramente nunca lá houve uma fortaleza. mas, de repente, começa-se a ter a imaginação a ancorar-se em hipóteses que dão coragem à fantasia. Macau tinha esse aspecto de uma cidade que sempre viveu à beira do impossível. Macau era feita de fora. Importava tudo, até a água que vinha da China. Era um sítio onde tudo se transformava e era vendido depois de transformado. A mais-valia era a do trabalho, a da mão-de-obra, a da etiqueta, a da trafulhice. Vinham calças da China e, nas ruas de Macau, mulheres sentadas nuns banquinhos punham etiquetas nas calças para dizer que eram feitas lá. Depois, ia tudo para a América. Macau tinha esse aspecto de uma cidade que sempre viveu à beira do impossível, encostada a um gigante, entre a astúcia e a aldrabice, entre a coragem de ter medo e o medo de não ter coragem. Era uma espécie de cidade báltica que se governava a si própria. Ficou uma sociedade muito extravagante. Não havia uma vontade enorme de ser integrada na China porque, na altura, na China vivia-se muito pior do que em Macau. Depois, a praxis social da população chinesa é também sempre muito virada para si própria, bastante auto-suficiente. Na Chinatown vê-se isso. As pessoas têm uma cultura e uma prática civilizacional tão rica, tão cheia de rituais, tão calendarizada, com tantas festas, que os outros não lhes fazem falta para mais nada senão para lhes vender coisas ou comprar coisas. Eles estão muito entre si mesmos, divertem-se muito e intensamente. O jogo, para eles, é uma prática muito profunda. Não tem nada a ver com divertimento, é sempre uma espécie de encenação da morte, de representação do imprevisível, do plausível, do provável. Uma espécie de manipulação, de capacidade de invertermos os nossos próprios estigmas, de fascínio por encontrarmos uma inteligibilidade qualquer
para o aleatório. Em Macau, costumava dizer que o meu alimento eram as horas que eu passava em frente à televisão. A minha alimentação era a alimentação da minha fantasia. A televisão era recebida por mim como o mundo dos não objectivos. Ou melhor, era uma coisa com objectivos constituída por pequenos fragmentos de não objectividade. E não se ficava nada bloqueado porque está-se sempre a inventar, começa-se logo a ver a máquina do desejo a brilhar. Eu ficava até altas horas da noite a ver filmes chineses antigos, a preto e branco, sem legendas. E aquilo era como se eu estivesse a fazer uma cura qualquer. Um tipo começa a ver filmes manhosos daqueles tempos e está a ver, simultaneamente, os filmes portugueses, e os espanhóis, e os chineses. Aqueles filmes de país pobre, sempre com uns tipos que fazem muito barulho quando representam, nuns ambientes de casa sempre muito pindéricos, o mesmo tipo de trocadilhos... Portanto, mesmo com a barreira da linguagem, e sem saber o que eles diziam, pensava: — Olha, cá está o Costa do Castelo! Era extraordinário ser arquitecto em Macau. Era estar-se constantemente a verificar o que é que era a sua pequena teimosia. Por trás de um grande projecto há sempre um cliente muito chato, porque cada vez que se faz, faz-se melhor. E fica-se satisfeito à brava! Depois, há aquela coisa que os arquitectos dizem que sentem quando voltam às obras uns anos mais tarde: — Eu hoje já não faria nada assim! Eu tenho a alegria de, não só dizer que voltaria a fazer tudo, como volto muitas vezes às minhas obras revelando-lhes uma outra face que estava igualmente escondida para mim. Importante tornarmo-nos, nós próprios, património de nós mesmos. Lisboa, atelier de Manuel Vicente, 26 de Janeiro 2004.
*alunas do 6º ano do Departamento de Arquitectura da Universidade de Coimbra [ janeiro 2004 ] 18.19
Um bilião de consumidores
Hiper-densidade
Daniel Beirão + Rui Aristides *
Em 1976, o governo chinês lançou um programa de desenvolvimento económico focando a agricultura, indústria, defesa nacional, ciência e tecnologia. Este plano precipitou o desenvolvimento do papel do capital privado na criação de empresas e atraiu o investimento e conhecimentos tecnológicos do Ocidente baseado na descentralização do planeamento económico e numa crescente confiança das forças de mercado na determinação dos preços dos bens de consumo. O investimento de capital estrangeiro tornou-se o principal factor de crescimento. Uma das actividades que mais cresceu com a introdução das reformas económicas foi a construção. Novos edifícios, estradas, fábricas e outros projectos infraestruturais são construídos a um ritmo avassalador. “Em 1979, 19% da população chinesa vivia em cidades. Em 1984, eram já 32%; 8 anos mais tarde 43%. Dado que o total da população da China é de cerca de um bilião, podemos imaginar o que cada uma destas fases representa em termos de velocidade à qual a condição urbana foi gerada.”¹
rapidez de crescimento, a oposição capitalismo/comunismo, tácticas concessionárias e confrontos entre arquitectura e paisagem. A concentração tão elevada de habitantes implica a satisfação das suas necessidades e faz das megalopolis autênticas oportunidades de negócio. Os seus habitantes precisam de se alimentar, vestir, habitar e precisam também de comunicar, trabalhar, enriquecer, consumir... Para a satisfação de todos os ímpetos humanos, o meio urbano tornou-se a ferramenta, é a solução na qual os elementos se conjugam e se potenciam. As cidades são o resultado das situações que as pessoas geram, das suas necessidades e convicções. Cria-se um património de concentração humana e abstracta com habitantes que procuram a modernização das suas vidas. O poder e o dinheiro tornam-se materiais com o contributo do arquitecto (que deles será sempre escravo).
O delta do rio Xi Jiang é uma das zonas de maior crescimento urbano em todo o mundo. A zona compreende pólos urbanos consolidados como Hong Kong e Macau e novas áreas de desenvolvimento como Shenzhen, Zhuhai e Dongguan. Tem hoje uma população estimada em 12 milhões de habitantes que se prevê que ascenderá aos 36 milhões de habitantes em 2020. A região “sempre foi utilizada pelo regime comunista como meio de observação das forças exteriores, sem a preocupação da contaminação do país como um todo”, um laboratório onde o capitalismo foi livre de se desenvolver, gerando uma “condição urbana completamente nova”, combinando uma extraordinária
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[ janeiro 2004 ] 20.21
O crescimento económico e demográfico nas cidades de países como a China não só forçaram a construção imediata de estruturas para albergar os novos investimentos, como também, no processo, definiram novos recordes na construção e crescimento em altura. A diferença entre o aparecimento da necessidade e a criação de uma solução é o mais curto possível, um método de produção. Daqui advém a criação de oportunidades económicas no ramo imobiliário nunca antes vistas no mundo ocidental, ou no mundo. “O Edifício Diwang (Shenzhen) estabeleceu a mais rápida execução de construção em altura no mundo. O edifício
para os arquitectos chineses. A agilidade de trabalho dos arquitectos mais novos é motivo de elogio em conversas de café. O tempo de produção do projecto é um dos factores mais preponderantes para a definição de arquitectura no oriente e responde à pressão exercida pelos órgãos económicos do sector da criação de cidade. As flutuações do mercado obrigam os arquitectos a lidar com a variabilidade dos programas que, por vezes, têm de ser alterados a meio da construção e responder posteriormente a dezenas de outras funções que não foram programadas. Existe uma urgência de espaço, dimensão para habitar, o que atribui a todos os espaços a característica de não espaços ou espaços residuais, porque o que realmente interessa é, de uma forma incrivelmente purista, a área útil criada pelo edifício. Existe ornamento e superfície, como é claro, mas sendo a velocidade o principal motor da arquitectura, o desenho e a linguagem transformam-se em elementos recicláveis. Grande parte do que é construído e projectado no oriente é o resultado da aplicação de catálogos de arquitectura, preparados por e para arquitectos, que consistem em colecções de desenhos de composição, linguagens, estilos, formas e detalhes standard. Estas publicações funcionam como “recipientes” de arquitectura, através das quais um cliente pode apontar o desenho do edifício pretendido.
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de escritórios com sessenta e sete andares e 384 metros de betão em altura, demorou 3 anos a ser construído. Kumagai, o consórcio japonês que desenvolveu o projecto, concebeu um novo aditivo para acelerar o processo de secagem do betão, conseguindo assim rentabilizar o processo de construção. Esta nova tecnologia permitiu a velocidade recorde de 2,5 dias na construção de um piso”² (a construção do edifício enquadrou-se num plano de desenvolvimento de um novo centro financeiro capaz de demonstrar a maturidade e estabilidade da indústria financeira da região). A execução de um projecto em 8 a 10 dias é quase ritual
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No centro disto o arquitecto é aquele que aplica e executa, sem divergências processuais, pois a existência do resultado é o mais importante. O que acontece em cidades como Shenzhen, por exemplo, é a reciclagem da arquitectura e das suas fórmulas, um sistema ultra-produtivo de projecto. “Nem na Ásia nem na Europa os arquitectos encontraram um lugar concreto na economia. Os sistemas políticos de hoje estão muito menos preocupados com os valores colectivos; a economia de mercado nas suas diversas formas tem vindo a ditar cada vez mais certas decisões, cada vez mais de forma estrita e inevitável.”¹ A arquitectura transformou-se num canalizador de investimento. A construção de edifícios tornou-se numa ferramenta de rendimento tão eficaz que as funções primárias de um edifício já não passam por servir as necessidades humanas. Os conceitos tradicionalmente associados à arquitectura como a visão estética, conforto, tecnologias de edificação e ocupação humana têm partilhado, cada vez mais, o seu lugar no projecto com um sistema de conhecimento de características unicamente quantitativas como volume de construção, investimento capital, tempo de construção, custo e lucro. Neste estado, a arquitectura já não se apresenta à sociedade somente
na sua forma física: arquitectura é tudo, é tópico de conversa de café e em simultâneo uma abstracção de números. Os novos edifícios, construções, e negócios imobiliários fazem cabeçalhos e primeiras páginas dos jornais locais quase todos os dias. Numa mutação da arquitectura tradicional, a arquitectura tem vindo a tornarse a actividade mais latente da cidade. O feng shui é uma prática ancestral enraizada na cultura oriental e consiste num conjunto de regras para a adequada orientação e organização do edificado. É uma prática que partilha as raízes da medicina oriental, baseada nos canais pelos quais flúi a energia, e que combina saberes empíricos, intuitivos e espirituais numa mistura entre ciência e superstição. O objectivo da integração destes saberes na organização espacial é genericamente a concentração de boas energias e a prevenção de catástrofes. Na sua nova interpretação, o feng shui é uma justificação dos avanços geográficos para gerar sucesso comercial. Aparece integrado em campanhas publicitárias de novos condomínios e edifícios financeiros num mercado altamente dinâmico e competitivo. O feng shui e a sua utilização no mercado da construção são a desculpa para a ausência de arquitectura, um adorno que estimula a manutenção de uma cultura ancestral que, acima de tudo, tem saída no mercado.
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Todo este processo que abala a definição ideológica do arquitecto, existe por um único e exclusivo motivo - o crescimento e rendimento económico. Perante uma prospecção latente de futuros habitantes e consumidores, o investimento imobiliário é levado ao extremo, ao maior rendimento possível no menor espaço de tempo possível. Existe uma clara noção do funcionamento do investimento na habitação. Para quem vê de fora esta situação, ela não passa de um grande descontrolo de massa, tanto humana como material. No entanto, os processos pelos quais se procura de forma frenética expandir a cidade e os seus resultados deixam claro que é um sistema de produção, venda e consumo muito controlado. Não se
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insere em padrões urbanísticos por nós, europeus, considerados vantajosos para o ser humano, mas inserese num sistema de funcionamento económico partilhado por quase todo o palmo de terra deste mundo, o sistema ¥€$3 (yen, euro e dólar). A arquitectura da hiper-densidade é, por isto, uma arquitectura de catálogo e de cena. Os objectos que se constróem para serem habitados são empreendimentos para fazer render a área que se disponibiliza; o desenho não é tão importante como o dinheiro que se faz do sítio. E nem o sítio é muito importante, pois é através de
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determinados artifícios como a apropriação do feng shui que se atribui o valor, tanto “espiritual” como social e económico ao espaço. A discussão entre a cidade arcaica e a nova não existe mais, porque apenas existe a nova cidade, que se constrói em 20 anos. O património é um valor de pouca relevância para a qualidade de vida dos futuros habitantes. A nova cidade é, por si só, um grande subúrbio, característica que não se tenta ocultar porque não afecta a sua actividade corrente de pólo de habitação, produção, cultura e consumo. O que interessa é o novo espaço construído em si, a área ganha para a cidade, o detalhe e desenho funcionam como aperitivos que se dispõem conforme o gosto da clientela.
*alunos do 3º ano do Departamento de Arquitectura da Universidade de Coimbra
¹ KOOLHAAS, Rem, Mutations ² LIN, Nancy, Project on the City 1, Harvard Design School A nomenclatura ¥€$ surge da junção do yen, euro e dólar, para designar o regime de “economia de mercado” ou “liberalismo”. É da autoria do OMA (office for metropolitan architecture).
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[ janeiro 2004 ] 22.23
a) “Nada viste em Hiroshima. Nada. (...) existe esta ilusão (...) de poder esquecer (...) Tentei lutar com todas as forças contra o esquecimento. Como tu, eu esqueci (...). O horror de não compreender 200 mil mortos (...) em 9 segundos. (...) Como me posso ter esquecido, que esta cidade era feita à escala do amor. Lembrar-me-ei de ti (...) como o horror do esquecimento.”2 Com esta voz off inicia-se o filme “Hiroshima, mon amour” (1959) de Resnais, cineasta que já antes abordara “Guernica”, os campos de concentração e o horror atómico. Os diálogos de Duras continuarão a estruturar a coexistência numa única superfície, de uma pequena história sentimental e do tema maior da Guerra. Em travellings que vão do espaço da cidade aos lugares do inconsciente3; sobrepondo dor e doçura, amor e morte, confidência íntima e esperança ontológica, memória individual e memória colectiva.4 Nas primeiras imagens, dois corpos em cinzas amam-se, o de uma actriz francesa que filma sobre a paz e o de um arquitecto5, traumatizados pelo horror de Hiroshima e o drama de recomeçar esquecendo. É irónico que a textura de 200 000 cadáveres e 4,5 milhas de destroços urbanos tenha resultado de uma bomba chamada “Little boy”. Uma “pequena criança” figura também em estátua no centro de Hiroshima, recordando o drama dessa ter sucumbido no hospital tentando dobrar 1000 pássaros de papel que, segundo a lenda “Sembadaru”6, lhe permitiria sobreviver. Hoje, os habitantes de Hiroshima continuam a depositar nessa estátua pássaros de papel acreditando poder protelar a Paz no mundo.
a n í u R e Amor [ janeiro 2004 ] 24.25
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Este texto transcreve a gravação de palestra proferida no Ciclo “Visões e Utopias” comissariada por Nuno Grande e Jorge Figueira. Com vista a uma melhor leitura foram adicionadas algumas notas de rodapé. 2 Excerto do argumento de Marguerite Duras. 3 Comentário jornalístico ao filme por José Navarro Andrade. 4 Comentário ao filme no livro “Os filmes chave do cinema” de Claude Beylie (Pergaminho, 1997 (1987)). 5 Interpretação de Emmanuele Riva e Eiji Okada, respectivamente. 6 A lenda “Sembadaru” foi-me contada pela bela Reiko. 7 Esta instalação foi reconstruída em Serralves em 2003. 8 Referência no folheto de Serralves fornecida pelo monitor Nuno Silva. 9 Tal é exposto por Collins no seu livro de 1965. 10 O desenho “Re-ruined” de Isozaki pertence à colecção do MOMA. 11 Catálogo da exposição realizada no MOMAQNS de Outubro de 2002 a Janeiro de 2003 sob o título “The Changing of the avantguard”. 12 O MOMA realizou ao longo do século XX uma sequência de exposições que mediatizaram os imaginários de vanguarda. “The changing of the avantguard” era maioritariamente constituída pelo espólio que Howard Gillman (um mecenas “interessado em coleccionar ideias”) reuniu ao longo de 4 anos.
b) Também a instalação “Electric Labyrinth”7 de Isozaki, que incide sob a possibilidade da cidade futura implicar um conceito permanente de Ruína 8 , se referencia no bombardeamento de Hiroshima e Nagazaki, e no escalar da violência (Vietnam, etc.) que se verifica logo em 1968. (Recorde-se de resto que foi a “Ruína” que, fascinando os Românticos, abriu portas para a génese dos novos espaços Modernos.)9 Isozaki, no mesmo ano desenha também “Re-ruined”, sob uma fotografia de Hiroshima10, que possui dois pontos de fuga, um nas ruínas de um prédio e outro nas de uma Igreja (leia-se na casa do homem e na casa de Deus, respectivamente), ambas protegidas por (mega)estruturas do autor, igualmente em estado de ruína, que metaforizam uma “Arquitectura morta (…) aberta à (...) imaginação”11, sob uma linha de horizonte que reforça subtilmente a branco. Este desenho foi apresentado na última exposição do MOMA, intitulada “The changing of the avantguard”12, maioritariamente composta por desenhos visionários dos anos 60/70 que percorrem a crítica do Modernismo e a emergência do Pós-Modernismo.
c) A História da Arquitectura do século XX, que pode ser vista como um debate sobre o papel da Arquitectura na sociedade, vê os seus documentos questionados (como aconselha Foucault) nesta exposição. Dá-se o desmantelar da falsa historiografia institucionalizada 1 4 , que redutoramente vê o período Moderno de 1943-68 como crise, banalização e substituição pelo Pós-Modernismo. Em verdade, não houve crise nenhuma no Moderno, existia era uma pluralidade interna de facções associadas em prole do combate a uma cultura hostil, que no Pós-Guerra evoluíram de forma heterogénea.15 Uma dessa facções, a dos “Críticos Negativos” (honrada em “The changing of the avantguard”), ao contrário de outras facções mais “consensualistas”que perverteram a agenda cultural Moderna, continuaram a acompanhar o zeitgest (agora centrado na liberdade individual no contexto de uma sociedade de consumo homogeneizada, e já não no conflito de classes).
E por isso, a prática do desenho visionário (que afronta a realidade mesmo que condenando ao museu) é hoje importante numa Europa em transformação politico-cultural.
Assim, o que chamamos “salto Pós-Moderno” pode ter sido mais que um contra-projecto, um projecto aberto pelas brechas da própria Modernidade.16 Obviamente que a apelidada “agenda Pós-Moderna”, em particular o seu desenvolvimento Pós-Estruturalista17 recente, traz benefícios. Nomeadamente porque a própria História enquanto construção social (e o mito de tábua rasa Moderna) é questionada (passando de construção linear a sobreposição de interpretações particulares), tal como os fins institucionais da produção arquitectónica e a ideia ingénua de vanguarda (quando mais convenções não podiam estar a falar do que no caso do arquitecto). A conceptualização de ”outras histórias“ permite reinscrever perspectivas marginalizadas por uma instituição disciplinar que sempre albergou o poder e que construiu a sua
O 1º Núcleo da exposição relacionava-se com a corrente Megaestrutural dos anos 50/60, onde persiste o desejo de transformação pela grande escala da tábua-rasa, mas já a superação da exausta estética Modernista através de um êxtase tecno-político. (Esse êxtase, curiosamente, será criticado pelos próprios promotores das Megaestruturas, como por exemplo Sotssas, que em “Planet as a Festival” faz figurar Megaestruturas arruinadas, devido à constatação da inviabilidade que a utopia (a engenharia social e o optimismo tecnológico) tinha no contexto da sociedade homogeneizada de consumo então em desenvolvimento). O 2º Núcleo da exposição relacionava-se com o emergente Pós-Modernismo, expressando uma hesitação mediante o privilégio da individualidade (em relação à engenharia social), da história (em relação à tábua rasa), e do arquétipo (em relação à estrutura global). Era conferido grande protagonismo nesta transição a Rossi (figurando o projecto de Setúbal) que atende à memória e cultura da cidade para fundar uma autonomia crítica (contra o isolamento característico da vanguarda). O 3º Núcleo da exposição centrava-se no projecto “Generator” (1978-80) de Cedric Price, que era um edifício flexível para “geração de ideias”, e que privilegia muitas características construtivas contemporâneas (como o dinamismo em prejuízo da permanência) e é controlado por TI (que conjuntamente com as tecnologias biológicas que interessaram aos Metabolistas constituem os principais
vectores de desenvolvimento actual). Cedric Price provavelmente foi o único a perceber que a única Megaestrutura que seria construída seria a WEB. 13 Tal é abordado na minha conversa com o Terence publicada na W-art. 14 O carácter instrumental da historiografia Moderna é exposto no livro de Tournikiotis. 15 Uma análise deste período, não estilística mas baseada numa matriz social, cultural e política, capaz de explicar a complexidade inicial, a evolução heterogénea do pós-guerra e a existência de facções marginais, é fornecida no livro de Goldhagem. 16 Este aspecto é desenvolvido no meu texto “O nosso transitório Pós-Moderno” publicado no JA. Surge como ridícula qualquer tentativa de fugir da história (Fukuyama), sendo necessária cautela quanto às falsas negociações que estabelecemos, tanto quanto à performance social Moderna, como à Pós-modernidade inicial que (independentemente desta ter refinado a nossa sensibilidade a alguma diferença e incomensurabilidade) reduz tudo a uma única categoria indiferenciada que usa, mescla e deita fora filiações. Parecemos não querer ver que o “agora” é o único momento em que podemos eticamente intervir. A “esquizofrenia” contemporânea (a fragmentação da noção de espaço e
Representa também a problemática da “autonomia” disciplinar, e o carácter interventivo-crítico que poderia ter a produção arquitectónica. Como refere Riley, o fim do papel do arquitecto como engenheiro da revolução social com a morte das Megas deixa-o livre para criticar as verdadeiras estruturas de poder que criam a cidade.13
que sempre albergou o poder e que construiu a sua autonomia por mecanismo de exclusão; podendo servir a montante projectos (visionários ou não) capazes de questionar o mundo da construção em que operam e o poder pré-inscrito na autoridade da encomenda. 18 d) Dentro destas histórias marginalizadas está o Metabolismo, que representa crise da Modernidade Tardia no contexto Japonês. O Japão envolveu-se com o Movimento Moderno da década de 30, ingressou no VIIIº CIAM (em que é apresentado o “Centro de Paz de Hiroshima” de Tange), e Maki participa no Team X. Como na Europa, também o Pós-Guerra deixou as cidades Japonesas destruídas, e os anos 60 trouxeram uma homogeneização da sociedade, uma massificação arquitectónica e um descontrolo do crescimento urbano. O Metabolismo é a resposta Megaestrutural de um grupo de arquitectos 19 em redor de Tange por altura da “Conferência de Tóquio” de 1960. Um bom exemplo das suas propostas pode ser o “City in the air” de Isozaki; ou o “Join Core System”20 (1960) de Kurokawa, que enriquecia o esquema de Tange (com quem então trabalhava) para a Baía de Tóquio (apresentada no último CIAM). Era uma Megaestrutura multifuncional suspensa sobre a cidade existente, com colunas que permitiam a circulação e crescimento em todas as direcções. Mais do que uma utopia a flutuar no espaço fazendo tábua rasa com o existente, esta consciencializa a falta de solo e a necessidade de uma flexibilidade (pela cibernética e não pela standardização) capaz de absorver a mutação social e a representação do individual (ou melhor do
tempo, num pastiche que expressa a dificuldade de nos situarmos historicamente segundo Jameson, numa cultura simulacral de consumo mediatizada segundo Baudrilhard, e numa imagética sobrestetizada de vazio sócio-político segundo Leach) apenas expressa a inexistência de um projecto político, em que o simbólico-imagético e a técnica de vanguarda foram confinados a um papel meramente instrumental no espectáculo público. Como fez o Pós-Modernismo inicial, que domesticou todos os códigos radicais, num frenesim ecléctico da história que tudo absorve em desresponsabilização social (Habermans). 17 O Pós-Estruturalismo é sinteticamente a consciencialização de que a comunicabilidade é produzível na interpretação. 18 Este aspecto é desenvolvido no meu texto “Na ponta de trás do lápis – a construção do projecto crítico” a publicar em breve. 19 Tange, Isozaki, Kurokawa, Kikutake, Kawazoe, etc. 20 O desenho “Join Core System” de Kurokawa pertence à colecção do MOMA, embora não tenha estado exposto em Portugal ou no MOMAQNS. 21 O desenho “Floating city” de Kurokawa pertence à colecção do MOMA, embora não tenha estado exposto em Portugal. 22 Kurokawa lançou, por altura da conferência de Tóquio, o livro “Metabolism 1960 – a proposal for a new urbanism” (com Kikutake, Otaka e Awasu onde
“trans-individual” especificamente Japonês que transcende o espaço nos rituais do chá). Como outros “Urbanismos Unitários”, a inspiração é tecnicista. (De facto o Oriente dá-nos uma lição no que respeita ao relacionamento da Tradição-Modernização, a tecnologia como extensão da natureza, ao contrário do Ocidente onde Modernização sempre foi o conflito entre Humanidade-Tecnologia). Mas a inspiração provém também da “regeneração” Biológica, (ideia omnipresente na filosofia budista da reencarnação, na ideia de Arquitectura como extensão da natureza, e nos templos em madeira que vão sendo reconstruídos cada 20 anos). Kurokawa é também autor de “Floating city”21 de 1961, desenhado sobre uma carta cartográfica onde figuram estruturas em estrela numa Baía, permanecendo vazias algumas construções geométricas a lápis na expectância de serem preenchidas. Aqui, como na “Cidade hélice” (que faz analogia à helicoidal do ADN), apropria-se da Biologia não só ao nível do vocabulário, mas da forma e do funcionamento. Kurokawa foi dos mais importantes difusores teóricos22 do Metabolismo desde 1960, procurando nos 70 conciliar internacionalismo com tradição japonesa, e nos 80 expandir a ideia de “Simbiose”. É interessante que foi na Trienal de Milão de 1968 (onde Isozaki ficou internacionalmente conhecido com a já referida instalação) que Kurokawa conheceu os outros Megaestruturalistas (Archigram, Hollein,etc) que convidará para a Exposição Universal de Osaka 197023, onde precisamente definhará a ideia de Megaestrutura (perante o esgotamento de visões tecnológicas, a crise do petróleo, a ecologia, etc.).
diz que as suas propostas procuram “sim favorecer o desenvolvimento metabólico activo da nossa sociedade”), em 1977 “Metabolism in architecture” (onde procura uma Arquitectura que controle humanamente a tecnologia, que concilie a tradição Japonesa e internacionalismo, e que afronte uma cidade mutante e acelerada), e em 1986 o documentário “From Metabolism to symbiosis”. 23 Veja-se o livro “Teoria da Arquitectura – do Renascimento aos nossos dias”, Taschen, 2003, p.776-781. Kurokawa, que participara em várias exposições desde 1962, conhece na trienal de Milão de 1968 os seus contemporâneos. Se em 1960 haviam convidado a geração mais velha (Smithsons, Kahn, Prouvé) com o intuíto de se inserirem no debate teórico internacional, em 1970 convidam os seus contemporâneos com o intuito de esses presenciarem os seus desenvolvimentos práticos. Refira-se que as ideias Megaestruturais ( “Marine city” de Kikutake em 1960, a “Tokio-sur-le-mer” de Tange em 1960, a “Helix structure” de Kurokawa em 1961) serão materializadas em “Nagasaki Capsule Tower” de 1970-72 ou na “Takana Beautilion Pavilion” na exposição de 1970.
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e) A nova vaga, difundida por Isozaki, evoluirá para um Pós-metabolismo. Deixam-se as estruturas organizativas hierárquicas arbóreas24 em prole de estruturas rizomáticas; e a ideia de crescimento-tempo linear em prole de um crescimento-tempo assente na ideia de “eterna ruína” (próxima do neo-vitalismo Deleuziano). Em “Beyond the biomorphia – from the emerging complexities symposium”25 Asada compara a “Baía de Tóquio” de Tange com os projectos de Isozaki, identificando a passagem de um Metabolismo para um Pós-Metabolismo (com a transformação do tipo de organização e ideia de tempo-crescimento descrita). Outro exemplo encontra-se no Happening que fez com uma planta (também de Tóquio) transformada pela audiência num rizoma a-hierárquico de redes, que expressa pela primeira vez uma “real complexidade" liberta das noções de totalidade orgânica e tempo linear de uma força criativa arquitectónica única. A meio da década de 60 passam também de um tipo de complexidade biológica para uma cibernética (já explícita na alusão electrónica do “Metabonate” ou na “Torre Nagakin” de Kurokawa em que as cápsulas contactam com o exterior informaticamente). Esta passagem é explícita no recente projecto para uma Ilha Chinesa, onde apropria as TC para obter um Pós-Metabolismo como sistema morfogenético autopoético26 (e uma teoria da complexidade em que “actual” e “virtual” coexistam em oscilação perpétua, e o virtual transgrida as condições do real desenvolvendo novas concepções espaciais).
f) Em suma, esta História marginalizada dos Metabolistas cartografa a crise cultural global que herdámos, e o desejo de negociar novas relações entre indivíduo-colectivo, homem-tecnologia, habitar-sobreviver. Representa de certa forma um último sonho colectivo, que se dissolverá numa inconsistência esquizofrénica.27 E é por isso que hoje nos desiludimos com a Arquitectura corporativa que Kurokawa produz, sugerindo-lhe (como lhe escreveu Toyo Ito28) que se reforme. O que fascina na Modernidade Tardia é o facto de expressar um misto de medo (no totalitarismo universal, no genocídio, na bomba atómica) mas também de esperança. Curiosamente, a minha visita a “The changing of the avantguard” (sobre que escrevi há 1 ano29) foi sugerida por Mark Wigley quando cruzávamos o Ground Zero. O “Terrain Vague”30 da cidade global contemporânea, que simbolicamente expecta a multi-discursividade identitária humana. (É irónico que tenha resultado de um avião; essa tecnologia que tanto fascinava a Corbusier e que bombardeara as cidades às quais se aplicaria totalitariamente a Carta de Atenas, pouco antes de também possibilitar diluir as fronteiras nacionais quando ainda não se falava de “cidade global”). E é essa necessidade de uma história e ética multidiscursiva, presente no filme “Hiroshima mon amour” e na exposição “The changing of the avant-guard”, que os Pós-metabolistas procuram trazer para o debate cultural da Arquitectura. * arquitecto, docente da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, autor de “Notas Sobre o Espaço da Técnica Digital” e co-comissário do evento Arquitectura- Prótese do Corpo (Porto, 2002) e de eventos na Experimenta Design.
Imagens: 1.karate 2.“Hiroshima mon amour” de Resnais 3.“Electric Labyrinth” de Isozaki 4.“Planet as a festival” de Sotssas 5.“Floating city” de Kurokawa 6.“City on the air” de Isozaki 7.Torre Nagakin de Kurokawa 8.Ground Zero 24
A crítica de Alexander de 1965 foi traduzida para japonês em 1967. As estratégias de flexibilidade-mobilidade correspondem às preocupações com a individualidade. Refira-se a contemplação da participação projectual de Alexander ou Habraken; e, noutro sentido, o Estruturalismo de Lynch, Rossi e Venturi que buscam uma arquitectura significante (acreditando na existência de estruturas e relações forma-significado), ou o fascínio pela mobilidade de Banham e pelos Archigram que progridem ao limite da protailidade com o Cushile de 1966. 25 Este paper de Asada está acessível na Net. 26 Este sistema Deleuziano ambiciona a coexistência de várias forças produzindo uma complexidade auto-organizativa. Para Asada esta necessidade dinâmica surge como problemática de traduzir na Arquitectura. 27 Uma lúcida exposição deste aspecto é dada na Prova Final de Sandra Silva que tenho orientado no último ano. Depois dos últimos sonhos viáveis de experiências universais, surge a dispersão de estratégias individuais. O
colectivo hoje só existe no acontecimento-evento. No hiperindividualismo actual, somos vulneráveis à insatisfação do desejo, esquizofrenia e simulacro, e à anestetização estética, pastiche e dissolução social. A única capacidade de afrontar esta situação é com relacionamentos de inconsciência (uma “aparente normalidade”) ou resistência. No caso do segundo, assumimos uma “Condição Nómada” como “máquina de guerra” contra a uniformidade colectiva, num espaço liso. (Deleuze) 28 Esta referência surge no vídeo “From Metabolism to symbiosis” realizado por Frampton. 29 Veja-se “O imaginário utópico do pós-guerra e a sua herança Pós-Moderna” publicado na Arq./a. 30 A expressão “Terrain vague” é de Ignasi Solà-Morales e é explicada no meu texto “Cartografar a Metrópole contemporânea – apontamento sobre Ignasi Solà-Morales” publicado na V-ludo.
Após uma semana a viajar de comboio entre Beijing e Langzhong, fazendo escala em Pingyao e Xi’an, não apenas os meus olhos mas também a minha mente foram transformados pela atmosfera envolvente. Voei para a China com um novo bloco de notas e com a mente aberta, mas rapidamente me apercebi de que era completamente impossível não sentir uma mudança de prioridades dentro de mim. Cidades como Beijing, a grande capital onde os conceitos mais ocidentais convivem com a verdadeira cultura chinesa, onde o mais abastado vive lado a lado com o mais miserável, contrastam violentamente com cidades como Pingyao. Uma cidade histórica parada no tempo com um património arquitectónico incrível e inestimável. Estas cidades fizeram-me sentir o quão diferentes podem ser distantes culturas. Os contrastes simultaneamente me fascinaram e surpreenderam. Fiz um enorme esforço de adaptação, mas a realidade cultural aliada à emoção de viajar num pais longínquo fizeram-me absorver cada centímetro de realidade... fizeram-me comparar coisas em que normalmente não penso, fizeram-me criticar, consciente e inconscientemente, atitudes, premissas e modos de vida. Não é apenas uma questão de idiomas diferentes ou de diferentes sabores. Eu senti-me incapaz de descrever por palavras todos os cheiros, sensações, comportamentos e atmosferas em meu redor. Foi um sentimento de frustração que me invadiu ao tirar fotografias incapazes de capturar a verdadeira imagem. Senti um verdadeiro respeito pela antiga Civilização Chinesa e uma profunda compaixão pelas condições de vida miseráveis que testemunhei em cidades como Pingyao. O primeiro contacto com Langzhong,uma das quatro maiores e mais bem preservadas cidades antigas da China, foi uma verdadeira surpresa. A cidade é, aparentemente, bastante moderna, organizada e limpa (segundo os padrões chineses). As pessoas atravessam as ruas nas passadeiras, e barreiras de vegetação separam as vias de tráfego ladeadas por largos passeios. Esta imagem foi uma clara oposição aos lugares visitados anteriormente. Até mesmo o céu azul desafia o enevoado e cinzento horizonte de Beijing, Pingyao e Xi’an. No entanto, a cidade histórica é bem diferente. É, tal como o Professor Harald a descreveu, a black organism. Locais comuns tais como cruzamentos, mercados, ruas principais e a praça central perto da cidade antiga são os pontos de encontro mais visíveis, onde as pessoas se sentam, conversam e convivem. Casas antigas compostas por telhados negros e escuras estruturas de madeira, com painéis em vez de paredes, formam este estranho e orgânico black organism. Uma complexa rede de ruas estreitas com pavimento escuro, cheias de pessoas em movimento, a conversar, a jogar, a viver na rua, compõe
o sistema de veias de um coração cheio de vitalidade na cidade de Langzhong. Todas as actividades se desenrolam nas ruas principais da cidade antiga ou ao longo da frente ribeirinha. Após algum tempo, apercebi-me que também as casas de chá têm um papel fundamental neste processo de vivência da rua, são pontos de encontro vitais que passam despercebidos aos olhos de um estranho como eu. Nos primeiros dias agimos como perfeitos turistas, tirando fotografias e surpreendendo-nos com todo e qualquer novo ou estranho comportamento. Um estrangeiro é algo tão incomum para aquele povo que por vezes me senti um animal de zoo. Na verdade, a sua curiosidade amigável chegou a atingir extremos nunca por mim antes experienciados. A sensação de não passar despercebido, mesmo quando caminhava sozinho, era simultaneamente desconcertante e incrível. Entender como o espaço público é utilizado… era a frase na minha mente quando o grupo começou a desenvolver o trabalho de campo, caminhando em áreas específicas e em diferentes alturas do dia, tirando notas e esquissando. A ideia de ser um observador participante era o objectivo principal, mas eu rapidamente senti que iria ser uma tarefa árdua ou mesmo impossível. A metodologia do observador participante requer que o investigador se envolva na vida diária das pessoas. Assumir o papel de participante permite-lhe o acesso a uma perspectiva interna do dia-a-dia da comunidade. Este processo não estava a resultar como previsto. Em vez de observador, eu estava-me a sentir o objecto de estudo, o alvo de todos os olhares. A minha primeira abordagem foi a de caminhar e de tirar algumas notas e fotografias. Esta foi, de longe, a pior opção, uma vez que as pessoas passaram a reunir-se à minha volta enquanto eu escrevia ou desenhava. Embora toda aquela curiosidade fosse amigável e ingénua, senti desesperadamente a necessidade de mudar de atitude. Comecei a usar todos os meus sentidos para observar e gravar informação.
[ janeiro 2004 ] 28.29
Passei a movimentar-me à mesma velocidade e a parar nos mesmos locais. Passei a sentir-me parte do cenário. Embora nunca passasse completamente despercebido, senti que os olhares já não se fixavam na minha direcção, continuavam a sua rotina diária. Eu comecei a sentir-me como um observador participante quando eles deixaram de notar a minha presença como um estranho. Pelas ruas principais, a imagem comum de pessoas a caminhar, sentadas em pequenos bancos de bambu ao longo do passeio, a jogar às cartas, varrendo o passeio e bebendo chá, é incrivelmente viva e cheia de energia. E, uma vez que a maioria das lojas está aberta desde as sete horas da manhã até às onze horas da noite, esta imagem dinâmica está presente durante quase todo o dia. Em diferentes momentos, é surpreendente como multidões de crianças a correr ou de bicicleta, vindo das escolas ou indo para as escolas, podem de facto alterar toda a percepção de espaço e a rotina das ruas. Com o entardecer, e enquanto o sol desce no horizonte, um enigmático silêncio domina o ambiente. Uma fantástica cor vermelha transborda dos candeeiros de rua e invade o cenário. Surpreendentemente ocorre uma inversão do espaço público e privado. Durante o dia são as casas a absorver a energia da rua, mas durante a noite, e uma vez que quase todas as portas se mantêm abertas, é a luz das suas casas, é a sua própria vida privada que invade o espaço público, transformando-o e alimentando-o com energia. Caminhar ao longo das ruas principais é como ir ao cinema ver um filme, é como ver uma telenovela. Estas impressões funcionaram apenas como um prólogo, um background para um primeiro conjunto de entrevistas que teriam como objectivo aprender um pouco mais sobre as suas vidas reais, as suas rotinas e hábitos. A ideia era a de estabelecer uma conversa informal, descobrir coisas simples e abrir a porta para um segundo conjunto de entrevistas.
[ janeiro 2004 ] 30.31
Embora o objectivo principal, que era explorar a relação espaço privado/público, não tivesse realmente sido alcançado nestas primeiras entrevistas, surgiram conceitos muito interessantes sobre a forma de agir e pensar. Mr. Ma, um simpático velhote que entrevistámos, afirmou que quando quer ficar sozinho abandona a privacidade do seu pátio e faz compras no mercado da cidade nova, ou apenas lê um livro na praça principal. Este tipo de conceitos fizeram-me pensar e reflectir sobre a minha própria vida, sobre a minha visão ocidental. De facto, descobri que o conceito de privacidade é algo completamente estranho na cultura chinesa. Paralelamente a esta postura, as gerações mais novas afirmaram que não gostam, ou que não querem, viver segundo as tradições culturais chinesas. Elas querem edifícios modernos e altos, cidades gigantes, cidades verticais, o conceito ocidental de privacidade. Um segundo conjunto de entrevistas, na continuação das primeiras, foi mais direccionado para o tema espaço privado/público. Ao entrevistarmos as mesmas pessoas, tentámos descobrir o seu verdadeiro sentimento relativamente ao hábito de manter as portas abertas e ao uso da rua como parte integrante da sua propriedade. Tentámos descodificar estas atitudes, e descobrir se eram apenas tradições ou posturas conscientes. Contrariamente ao que tinha acontecido no primeiro contacto, os entrevistados começaram a partilhar aquilo que realmente mais gostavam na cidade histórica, no sistema tradicional de pátio chinês, mas também tudo aquilo de que não gostavam. Descobrimos que, em alguns dos casos, este tipo de exposição da vida privada, este partilhar da rotina familiar com a rua, não é confortável, não é uma opção, apenas uma atitude que se tornou tradicional, que se tornou parte da cultura social chinesa. Naturalmente existem diferenças na forma de agir, de pensar, mas todos nós comemos, dormimos, trabalhamos ou estudamos. Todos nós temos os nossos desejos e planos. Todos gostamos de estar com amigos, de conversar e de nos divertirmos. Todos temos vizinhos dos quais gostamos ou não gostamos. Todos temos as nossas brigas, alegrias e desilusões. Todos nós temos os nossos sonhos. Comparar a vida na cidade antiga de Langzhong com a nossa própria perspectiva ocidental pode parecer, à primeira vista, uma tarefa impossível. Mas será Langzhong tão diferente? E mesmo que assim pareça, serão os conceitos de vida assim tão distantes? Será o uso do espaço tão diferente? E mesmo que o seja, serão as razões para esse uso assim tão estranhas? Depois de viver três semanas na cidade histórica de Langzhong na província de Sichuan da Républica Popular da China, eu comparei, consciente e inconscientemente, estes conceitos com a minha perspectiva ocidental, europeia, portuguesa.
A relação e uso do espaço privado/público estão intimamente relacionados com o conceito de privacidade. Após uma rápida análise, é fácil concluir que o entendimento destes conceitos é exactamente oposto, porque assim parece. Mas esta relação não é linear. De facto são distintas realidades, mas o profundo entendimento do espaço é surpreendentemente similar. Em ambas nós sabemos respeitar o espaço individual, não apenas o físico mas também o mental. Apenas o modo como se aplicam estas motivações é completamente distinto. Na China, a fronteira entre privado e público não implica necessariamente uma parede ou um vidro, pode apenas ser um plano imaginário separando domínios, separando identidades. Nós temos a necessidade que essa fronteira seja um objecto físico, não necessariamente opaco, mas preferencialmente. No nosso background cultural, privado significa longe das vistas, uma janela sem cortina pode ser uma potencial perda de privacidade. Ambos lutamos e desejamos melhores condições de vida, de formas diferentes e por diferentes padrões, mas ambos esperamos um futuro melhor. Em ambas as realidades afirmamos o orgulho que temos pelas nossas cidades. No entanto, e enquanto Langzhong deseja modernidade, o caos das grandes
cidades, o trânsito, os arranha-céus, os turistas, o modo ocidental de vida, nós procuramos remover os símbolos da industrialização, menos capitalismo e mais áreas verdes. Nós procuramos reencontrar a escala humana das nossas cidades. Enquanto Langzhong está pronta para absorver a moderna cultura ocidental, nós fugimos dela, nós lutamos pelo espaço e escala perdidos. Esta não é, de todo, uma profunda investigação antropológica sobre uma comunidade na antiga cidade de Langzhong. Esta é uma tentativa de reflexão e de discussão sobre diferentes formas de entendimento e interpretação do espaço, e o possível desequilíbrio destes conceitos entre distintas culturas e realidades sociais. Esta é apenas a imagem possível de sensações, emoções, cheiros e experiências vividas, na maioria das vezes impossíveis de descrever por palavras. Este é o diário de bordo de uma viagem como tantas outras... * aluno do 6º ano do Departamento de Arquitectura da Universidade de Coimbra
[ janeiro 2004 ] 32.33
Tiago Fiadeiro, aluno do 6ยบ ano do Departamento de Arquitectura da Universidade de Coimbra
[entrevista]
Moshi moshi... 1
[está!?...
Sr.
Ito]
António Correia + Carina Silva*
Toyo Ito, arquitecto, japonês. Personagem do imaginário arquitectónico contemporâneo que dispensa apresentações, dada a sua constante presença em diversas publicações. Entrevistas, artigos de opinião, pequenos ensaios, outros maiores, aparentemente tudo foi já dissecado. Global, glocal, intencional, metafórico... Ito é um arquitecto do star system e, por isso, foi convidado a fazer uma obra na improvável cidade de Coimbra, numa altura em que a Casa da Música de Koolhaas se conclui e que Gehry “salva” o Parque Mayer. O tema da revista, o Oriente, foi só mais uma (boa) desculpa, dado o estímulo que constituíram as palavras de Isosaki, umas semanas antes, no Museu de Serralves. Foi assim, ao telefone, com Toyo Ito no “outro” lado do mundo, que iniciámos a entrevista.
Arata Isozaki, numa conferência em que participou recentemente no nosso país, afirmou: “Para mim não existe Ocidente nem Oriente, para mim o Oriente é uma invenção do Ocidente.” Tendo em conta a especificidade cultural japonesa, como é que se vê inserido numa realidade caracterizada pela constante deslocalização espacial e temporal como é aquela que habitamos, e de que maneira sente que a sua obra reflecte a cultura japonesa nesse mundo global? Há quarenta anos atrás, era eu estudante, tentava-se criar algo que fosse aceite em qualquer sítio do mundo, na lógica do modernismo, em que a arquitectura podia ser reproduzível. Mas agora, como estou a trabalhar na Europa e em Tóquio, tenho mudado o meu pensamento. Quando faço uma obra, projecto-a para um sítio, e só para esse sítio. Quando vou a Coimbra, a Paris , a Barcelona, vou comunicar com as pessoas nestes locais, sentindo a natureza e o ambiente peculiar destas cidades. Nos projecto de arquitectura sentem-se as diferenças de cada uma delas, dos ambientes, das características locais. E depois, o facto de ter nascido e crescido no Japão. Tenho a cultura japonesa dentro de mim próprio. É das relações entre todas estas coisas que acaba por nascer uma obra original e peculiar. E isto é que é muito estimulante. Da “revolução electrónica” à informação em “real-time”. Como se foi situando ao longo desta evolução? Interessam-me os jovens de hoje que estão a crescer neste mundo de revolução
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electrónica e pergunto: Como é que estes jovens vão pensar e comportar-se, como é que vão crescer e comunicar neste mundo tão diferente do passado? Mas em todo o caso acho que neste momento, em real time, o importante é comunicar fisicamente, estar perto, corpo a corpo, olho a olho, e assim as pessoas vão voltar a ser como nós éramos. Por exemplo, estou a trabalhar na Europa mas posso falar facilmente com alguém no Japão através do telemóvel. No entanto, quanto mais fáceis forem as comunicações, maior é a necessidade da comunicação real, corpo a corpo. O recente filme “Lost in Translation” de Sofia Coppola ilustra as dificuldades de comunicação que nós próprios experienciamos nesta entrevista, mas também nos dá a conhecer um pouco do fascínio de uma cidade como Tóquio... Como é que descreve Tóquio enquanto habitante e em que medida transporta essa experiência para a arquitectura que produz? Tóquio é uma cidade de relatividade em tudo, totalizada, fluída, que está sempre a correr, a mudar, em movimento. Este facto influencia muito as minhas obras. Quando se constrói uma obra num local ela vive com o passar dos anos. A arquitectura muda acompanhando as mudanças do tempo, do ambiente, da era. A metáfora “microchip”, materializada na Mediateca de Sendai, constitui uma referência fundamental na sua obra. É ainda isso que o estimula? O processo da Mediateca de Sendai, desde o concurso até à sua abertura, demorou seis anos. Durante este período o meu pensamento mudou muito; numa primeira fase, a ideia era um tubo de luz que não nos deixava sentir a gravidade. Mas, ao longo de todo o percurso, fui pensando cada vez mais o contrário; queria, afinal, que esse tubo fosse mais forte e nos fizesse sentir a gravidade. Agora, com a revolução electrónica, penso que o edifício precisa de um espaço mais real, de um corpo mais real e isto é que, cada vez mais, tem que ser reconsiderado. A metáfora “microchip” remete para a ideia de fluidez. Por exemplo, é possível comunicar 24h por telemóvel com alguém que se encontra longe porque há uma rede. Não podemos ver a corrente eléctrica, mas está-se ligado por esta rede. Antes, as pessoas estavam ligadas pela água, podiam deslocar-se através dela. Hoje, a fluidez da água e a fluidez electrónica sobrepõem-se. A génese da minha arquitectura é a sobreposição desses dois espaços, o da electricidade e o da natureza. Este sistema não muda e incentiva-me muito.
Na exposição na Basílica Palladiana em Vicenza, a Mediateca aparecia de uma forma muito mediatizada. A arquitectura torna-se instalação e comunicação. Como vê a relação entre a arquitectura e os mass media? Esta exposição queria mostrar duas faces. Uma era a imagem visual da Mediateca, a outra era a imagem da reportagem palpitante do processo local de Sendai, daquele trabalho muito duro espelhado nas peças da obra: ferro, vidro... Na exposição realizada no Japão essas peças estavam expostas mas, na Basílica Palladiana, em Vicenza, isso não foi possível. A minha intenção era que a matéria e a arquitectura se sobrepusessem através da imagem e da informação. Havia uma imagem que remetia para o físico, outra que remetia para a consciência. As duas imagens faziam uniam-se e criavam uma imagem nos olhos dos visitantes da exposição fazendo-os imaginar uma arquitectura. Como é que vê a relação arquitectura/propaganda? Não tenho consciência disso porque também não penso muito no assunto. É claro que a obra que faço transmite uma mensagem às pessoas, por vezes com algum sentido político. Mas são as pessoas que a vão ler, perceber e julgar. Não tenho grande interesse em fazer publicidade, em transmitir o eu, em propagar aquilo que penso durante a criação das minhas obras; elas não servem para isso. Faço-o apenas no que digo e no que escrevo. E escrevo quando acabo de criar uma obra, para que os meus pensamentos se tornem mais claros e surja o próximo objectivo. É também graças a esta mediatização da arquitectura que está actualmente a desenvolver um projecto para a cidade de Coimbra, mais concretamente para o Jardim da Sereia. Qual está a ser a sua estratégia e como pretende resolver os problemas espaciais e sociais deste jardim público? É para mim uma honra poder estar neste projecto. Este jardim de Coimbra, além da sua grande importância histórica, contém elementos de grande beleza. Contudo, penso que estes elementos não vivem nem brilham o suficiente. Não quero renovar o jardim todo, mas pegar em alguns elementos importantes, dar-lhes ordem, desenho e torná-los mais vivos. Por exemplo, a fonte que está no centro do jardim pode ser, desde logo, um bom começo. Pode tornar-se atraente, um local de lazer. Outro dos elementos importantes, apesar da sua situação não ser muito clara, é o campo de St.ª Cruz. Aí gostaria de fazer um pavilhão que funcionasse enquanto pólo de atracção de impacto mais forte. É um espaço que hoje está ao abandono e que renovado,
Mediateca de Sendai; Exposição na Basílica Paladiana, Vicenza
guardando as suas memórias mais importantes, criaria mais oportunidades de penetração no jardim. O arquitecto Álvaro Siza é, sempre que falamos de Portugal, uma referência incontornável da arquitectura deste país. A sua abordagem baseia-se numa percepção muito forte do sítio. No seu caso, como inicia e desenvolve o seu processo criativo? Eu penso que a chave de todo o processo é a comunicação. Comunicar com as p e s s o a s , p e r c e b e r c o m o s ã o, d e s c o b r i r o l o c a l o n d e e s t a m o s . Por exemplo, quando fui a Coimbra, não conhecia a cidade, mas ao comunicar com as pessoas, ao comer os pratos típicos, vendo as árvores e as flores da cidade, sentindo o seu clima, absorvendo aquilo que ainda não tinha experimentado, vou mudando o meu pensamento e aquilo que sou. E essa mudança é que é muito importante. Parto com uma ideia que se vai alterando e amadurecendo com as experiências que recolho, com a interacção que tenho com as pessoas e o local. É um pouco como ver crescer um filho... É muito importante e enriquecedor. "Hiroshima mon amour" de Alain Resnais, fala-nos do peso doloroso da memória. Como é que um arquitecto japonês reconstrói um país com a memória dessa guerra? Não vi o filme, não tenho muito o hábito de ver filmes. O que posso dizer é que na sequência do 11 de Setembro houve um concurso para aquele espaço do WTC e não quis concorrer. Não concorri porque não quero pensar no local onde houve aquele desastre. Quero que, dentro da minha obra, as pessoas sintam a paz, sintam o silêncio, sintam a liberdade... O meu papel é criar esta arquitectura, onde as pessoas se possam exprimir inteiramente.
Esta entrevista foi realizada por telefone, com tradução em simultâneo português/ japonês, durando cerca de uma hora. As questões foram elaboradas aprioristicamente, dadas as circunstâncias e constrangimentos de comunicação, não havendo por isso grande possibilidade de interacção. Agradecemos à Professora Ayano pelo empenho e tempo disponibilizado na tradução desta entrevista, sem os quais teria sido absolutamente impossível realizá-la. * alunos do 6º ano do Departamento de Arquitectura da Universidade de Coimbra 1
expressão japonesa utilizada normalmente em conversa ao telefone e que significa “está sim?!”
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O Mandarim
Pedro Machado Costa*
Em segundo lugar, porque apesar de tudo sofria ainda desse misto de ingenuidade e arrogância que me fazia procurar não entender aquilo que perante nós se exibia. Em terceiro e último lugar, porque o tempo não tinha de facto ajudado a considerá-la, a ela, enquanto tal. Esse tempo lânguido, apegadiço, que nos fazia gotejar à medida que caminhávamos sob o céu eternamente amarelado, por d’entre ruas e becos com nomes já difíceis de encontrar em qualquer outra cidade: Pátio da Claridade (Kuóng Fôk Vâi), o da Eterna Felicidade (Vêng Fôk Vâi) ou o da Ilusão (Vân Kok Vâi), a Calçada da Surpresa (Ngõk C’hé Hóng), a Travessa do Sancho Pança (Lou T’ou Hong) ali bem perto do Pátio do Bem Estar (Mán Ón Tói), ou a Escada das Árvores (Sü Môk Hóng). E também esse outro tempo, infinito, passado entre um atelier sem janelas e as outras noites, as que nos restavam, bem mais profícuas daquela facilidade que faz dela vício inebriante. No começo aparentava ser uma cidade com as entranhas de fora. Um pouco como o que se passava naquela espécie de prostíbulos self-service, em que uma babel de mulheres desnudadas, numeradas e arrumadas por detrás de um espelho aguardavam alguém que as reclamasse, toda a cidade parecia revelar o seu íntimo; o que na verdade constituía uma formidável armadilha, a primeira na qual todos nós éramos ludibriados antes mesmo de percebermos que a água da chuva nos dava já pela altura dos joelhos, lá para os lados do Porto Interior por alturas das monções do fim de Agosto. Os odores também confundiam os primeiros dias; toda essa panóplia de perfumes, diversos de esquina para esquina, mas uniformemente nauseantes para os recém-chegados. O cheiro da comida acabada de fazer, dos animais dormentes, do incenso queimado e da pólvora dos panchões e sobretudo o cheiro dos corpos; o suor das gentes que nos cruzavam numa azáfama repentina, esses corpos que achavam nas ruas aconchego suficiente para as terem como casa. As gentes daqui, tal como vieramos depois a descobrir, seguiam os hábitos do resto do continente: a rua era, é ainda, o seu lugar privilegiado. Ali trabalham, ali comem, riem e discutem, ali jogam, dormem e ali esperam, fazendo-nos duvidar dessa nossa noção de privacidade; ao mesmo tempo que procurávamos entender por donde se teriam desvanecido todos os restantes 25,4 habitantes cujas estatísticas demográficas mais recentes asseguravam ocupar o mesmo metro quadrado de
Macau
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solo onde nos encontrávamos a cada momento. Quem sabe, talvez essa multidão escapasse pelos múltiplos andares que desenham esse singular e maciço skyline; explicando porventura o regime de cama-quente no qual duas insondáveis famílias partilhavam o pequeno apartamento que me era vizinho. Sendo o interior das casas coisa inexpugnável ao olhar alheio, os sinais particulares, ostensivos, viravam-se no entanto, também, para as ruas; concorrendo com a trepidação dos néons luminosos que todas as noites me invadiam o quarto. Nos prédios, qualquer abertura para o exterior, fosse janela ou porta, encontrava-se encerrada por meio de grades de forma e desenho heterodoxo. Invariavelmente prostradas no lado de fora das fachadas, cada uma de diferente cor, trama e forma, acidentalmente dispersas por todos os prédios, somente fruto do arbítrio individual, permitiam a cada habitante exibir a suposta existência de algo invejável no interior de cada casa; como se fosse uma fortuna de segredo propositadamente mal guardado. Era pelo menos o sonho de algum dia a alcançar. Se a esta justaposição de grades de feitio e cor desproporcionadamente atraentes, somarmos uma outra feita de emaranhados de canos de água e de esgoto, de fios eléctricos, aparelhos de ar condicionado e cabos telefónicos – coisas que por aqui, habitualmente, se ficavam pelo exterior das fachadas; como que uma caricata paródia do Beaubourg de Paris -, podemos ter uma (vaga) ideia da verdadeira expressão arquitectónica dos edifícios; aquela que por momentos esconde a confrangedora banalidade do seu desenho original. O problema, no entanto, começava precisamente aí: o de distinguir, entre esse amontoado de trivialidade ordinária, aquelas pequenas coisas que fariam o verdadeiro acontecer da cidade. Por momentos, admitamos, no decurso dos primeiros meses, julgámos até que a sua singularidade se devia exclusivamente ao artifício da luz; aquele brilho que nos autorizava a desprezar a diferença entre noite e dia, permitindo-nos encontrar a qualquer hora uma multidão de coisas a acontecer. Mas depois, lentamente, desconfiávamos que essa facilidade de lhe tocar era tão ilusória quanto as horas de prazer compradas em qualquer hotel ou sala de jogo. Se a cidade prometia condescendência a quem a olhasse ao longe, o seu íntimo revelar-se-ia bem mais cioso dos seus segredos. A melhor demonstração desse paradoxo, a mais terrível também, era-nos dada a partir da vizinha Zhuhai: por detrás de um muro alto e inexpugnável a quem não tivesse passaporte, e durante a noite sobretudo, a sua glória exibia-se mais provocante que nunca, leviana de cores e luzes, alguns sons também. Para muitos, no entanto, para aqueles que consumiam horas com o olhar cravado na distância do seu horizonte acidentado, essa facilidade permaneceria para todo o sempre o mistério mais difícil de alcançar; o que, mesmo assim, ajudava a não renunciar ao desejo de algum dia a possuir. Para nós, no entanto, mesmo fazendo parte daqueles poucos capazes de atravessar a fronteira mantendo o ar imprevidente que é comum aos estrangeiros de pouca ou nenhuma obrigação, a euforia de lá chegar esbarrava, mais cedo ou mais tarde, no enleio dado pelo invulgar ecletismo
Macau
que lhe desenhava um perfil tanto ou quanto amorfo. Não que isso significasse qualquer impossibilidade de distinguir por dentre essa amálgama construída uma certa ideia de organização próxima até, se quisermos, daquela ideia de cidade que nos é explicada nos manuais escolares. As suas camadas eram, e ainda o são, perfeitamente reconhecíveis: a cidade linear, quinhentista, ligando naturalmente todos aqueles lugares mais ou menos evidentes que despontaram entre as duas baías (a Baía da Praia Grande, ocidentalizada, virada para o mar barrento e para as suas duas ilhas; e a do Porto Interior, mais próxima do burburinho das gentes locais, também de águas turvas, que daí deixava entrever as colinas do sul da China quando apanhávamos o barco da noite para Cantão); depois, todo aquele reticulado de avenidas largas e (só) aparentemente paralelas entre si que, para fugir aos declives, faziam enganar o mais promissor sentido de orientação (pretexto, enfim, para mais uma vez nos extraviarmos pelas suas noites húmidas e velozes, imitando os Anjos de Wong Kar Way); e, por fim, todo aquele engenho que inventava aqui e acolá pedaços de terra onde, até então, nada (a não ser o mar barrento) existia, e que fazia dos seus limites coisas sempre discutíveis, ao mesmo tempo que permitia práticas urbanas de duvidosa mestria. Só que, se essas camadas eram de algum modo singularmente perceptíveis, o seu todo tornava-se difícil de contar; o que porventura explica que as suas representações mais famosas sejam ainda as de Chinnery, feitas num séc. XIX estável e ainda cauteloso. Tudo afinal se tinha transformado; e continuava a mudar constantemente. Ouvir descrevê-la por alguém que tivesse partido há já uma década tornava-se por isso, sobretudo, numa distracção mordaz: nada já lhe era comparável; a cidade tinha-se capacitado desse poder de se contradizer ela própria, como que num exercício autófago. Paradigma disso era o Farol da Guia. Outrora marco luminoso para as embarcações que se acercavam vindas do Japão e da Europa - as de baixo calado, entenda-se, porque os barcos maiores, impedidos de progredir nas águas rasas e lamacentas do seu porto iriam, a partir das guerras do ópio, transformar a baía de Hong-Kong no centro nevrálgico de todo o Delta, retirando-lhe a ela qualquer autoridade que não a anuída pelo jogo e pelo sexo -; ao farol restava-lhe apenas iluminar, uma vez por ano, a corrida de carros que atravessa ruidosamente um bairro agora central da cidade. E, tal como esse farol, vários edifícios pensados como primeira linha de costa viam-se agora ser erigidos a uma centena de metros da água, esventrados de qualquer possibilidade de congruência com o fim a que tinham sido destinados. Esta volubilidade, espantosa para qualquer um habituado à permanência, era, no entanto, apenas uma amostra daquelas cidades instantâneas que se experimentavam do outro lado da fronteira: onde há apenas um punhado de anos existiam montes escarpados, visitávamos agora uma extensa planície plantada de largas avenidas, expectante apenas de profícuos arranha-céus e dos seus milhares de habitantes. Devo dizer que, tendo sabido previamente das lições de Las Vegas, esperava um pouco mais de astúcia da minha parte. Estaria, claro, a contar descortinar esse exercício requintado que me
Casas de Pescadores no Porto Interior de Macau, litografia
Macau
garantem ser, ainda hoje, a sua arquitectura; até porque (a explicação tem a sua lógica) não haverá lá outra expressão autónoma, outra criação poética que não ela própria; enquanto estrutura física, enquanto cidade. No entanto parecia-nos, antes de tudo, uma enorme amálgama; de tal forma que nos era particularmente custoso distinguir a sua própria origem, mesmo quando estávamos perante aquelas arcadas dos palacetes de frente, cuja fisionomia neoclássica sempre me pôs ao desconfio. Somente em momentos singulares (os melhores e os piores, entenda-se) pudemos constatar a clara existência desse arbítrio arquitectónico que nos toca, a nós, em particular; se bem que tal facto não fosse sinónimo de pureza alguma: mesmo que se tratasse da mais simbólica presença ocidental do território (dizia-se ex-libris patrimonial), por detrás da composição típica das igrejas genovesas da segunda metade do séc. XVI, depressa apurávamos um imbricado de cenas e figuras chinesas, algumas japonesas também. Depois porque a sua própria matéria, aquilo do qual a melhor arquitectura era feita, revelava-se inexpugnável à nossa curiosidade. Mas o erro era apenas um: o da nossa incapacidade de interpretar. Porque, mais uma vez por arrogância, não a queria ter em conta, a ela, como argumento possível de pôr em prática a arquitectura; feia, por vezes deformada, ostensivamente decorada por múltiplas apropriações, parecia-nos cosida com a mais banal linha do mundo, e também muito pouco preocupada com tudo aquilo que julgava acreditar. No entanto, por breves momentos, enquanto as glórias por mim decoradas num cada vez mais longínquo Porto iam subindo todos os patamares, tornando-se as suas finas linhas pasto para certa mediocridade universitária exibir uma inteligência que nunca teve, essa discreta mas violenta aura que se revelava por dentre aquilo que julgava ser apenas banal fazia-me agora duvidar de tudo o que supus um dia saber inventar. Por momentos, tal facto sugeriu-nos um outro nome bem mais reconhecível àquele mandarim que Eça descreveu um dia: No fundo da China existe um mandarim mais rico que todos os reis de que a fábula ou a história contam. Dele nada conheces, nem o nome, nem o semblante, nem a seda de que se veste. Para que tu herdes os seus cabedais infindáveis, basta que toques essa campainha (...) e tu verás a teus pés mais ouro do que pode sonhar a ambição de um avaro. Tu, que me lês e és um homem mortal, tocarás tu a campainha? E então, de súbito, compreendemos esse facto maravilhoso: o da impossibilidade de explicarmos a arquitectura de Macau. Primeiro, por ela ser impenetrável a qualquer olhar que não partilhasse da astúcia desse Mandarim. * arquitecto, fundador do atelier a.s* em conjunto com Célia Gomes.
Nota: Para aqueles mais curiosos, importa referir que a cidade e a sua arquitectura se encontram um pouco dispersas por publicações mesmo assim fáceis de consultar. Algumas das mais significativas: Vicente, M., Graça Dias, M., Rezende, H., Macau Glória, Inst. Cultural de Macau, 1991; a magistral obra do séc. XVIII que lhe serviu de manancial histórico/literário Ou-Mun Kei-Leok (Monografia de Macau, de Tcheong-ü-Lâm e Ian-Kuong-Iâm, cuja edição mais recente julgamos ser a de 1979, editada pela Quinzena de Macau); Wojtowicz, J. e Haigh, D., Cartilha de Coloane, Inst. Cultural de Macau, 1990; os textos no Suplemento Via Latina (Maio de 1991) dedicado a Macau e à sua arquitectura; os vários números da Revista de Cultura editados pelo Inst. Cultural de Macau; e umas quantas teses académicas também.
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Fotograma de Chongqing Sen Lin (Chungking Express), de Wong Kar Way, 1994
Índia
excerto dos cadernos de uma viagem que não chegou a terminar
Vasco Pinto
Fui à Índia 3 meses no princípio de 98. Não interessam agora os motivos práticos e teóricos que me levaram lá, refiro apenas o momento de liminaridade que tornou a oportunidade dessa viagem irrecusável. Fui, com bilhete de retorno para cerca de um mês depois, regresso que não cheguei a cumprir, como quase nenhum dos motivos urgentes e ocidentais dessa viagem, desconfiado que estou de ainda estar a viver sob a influência desse país no momento em que escrevo. Parece-me hoje que a linearidade episódica das deslocações geográficas, tanto como as suas obsessões de tempo e espaço (história e cartografia), são mais outras das infantilidades do Ocidente, e que o avião é precisamente por isso um meio de não regresso, como inteiramente despropositada e inútil é a ideia de viajar com objectivos e hora marcada. Não se vai à Índia, ela é uma droga que se toma e cujos efeitos perduram muito mais longamente do que podemos supor. Estive na Índia 3 meses no ano em que fiz 25 anos. Qualquer viagem à Índia será sempre uma prova insuficiente se não tiver a duração mínima de um ano. Dever-se-ia chegar entre Setembro e Outubro, com pouca bagagem e espírito ligeiro, a tempo de apanhar o colorido viçoso do fim da monção, e ir percorrendo obsessivamente a vastidão do território indiano enquanto essa humidade espúria colapsa e a temperatura e o pó crescem a ponto de tudo se tornar um cansaço vertiginoso e irrespirável, provocando a náusea que só a explosão catártica e diluviana da monção saberá purificar. Regressaremos quando os níveis de energia e serenidade se recompuserem e uma impaciência crescente tornar insustentável a permanência por mais tempo no quarto calafetado que escolhemos para passar a monção, refazendo de forma decisiva as ideias de partida e recomeço. Terá sido esta a cadência cíclica da Índia nos últimos milhares de anos: opressiva e redentora, bela e sufocante, sensual até à atrocidade, estagnada e pululante ao insuportável, contraditória, densa e multiforme até ao limite último da demência. Foi esse o tempo e o lugar que inventou a reencarnação, as rodas do kadhi1 e do samsara2, o buda e o nirvana, os avatares de Vixnu e de Mahavira3, a não-violência e a raiva incontrolável de shiva, o yoga, o kamasutra e a sacralidade das vacas. Não admira que toda esta simultaneidade de dimensões e opostos estilhasse o frágil equilíbrio e o bom senso de qualquer consciência ocidental mais ou menos bem educada e provoque um conjunto de reacções violentas, improváveis e transformativas. Posso dizer que perdi a minha inocência logo à chegada, quando fui acossado e roubado por condutores de taxi no aeroporto interno de Bombaim; ganhei subitamente uma consciência mais conservadora e defensiva na única vez que viajei em segunda classe ordinária4 nos Indian Railways, que me fez pensar que haveria coisas às quais só os naturais deveriam sujeitar-se (foi talvez por isso que nunca experimentei mascar betel). Perdi literal e definitivamente as estribeiras quando uma multidão me tentou roubar o lugar no autocarro entre Bijapur e Bombaim, e isso terá servido de alívio por muitas outras em que fui literalmente cuspido e enganado... Fui capaz, por vezes, de gestos profundamente reaccionários, como naquela vez em que recusei apertar as mãos negras de Mike, rapaz indiano que fazia muito sucesso entre os rapazes e raparigas turistas do Artie’s, isso foi antes de me perder no labirinto de Diu (embora não haja maneira de saber se estes episódios insólitos foram de facto reais ou simples fruto da minha imaginação). Tornei-me [ janeiro 2004 ] 42.43
definitivamente empedernido quando passei a fazer questão de usar rickshaws a pedais, puxados por velhotes que tinham 3 vezes a minha idade, e custavam um terço da mesma viagem num veículo a motor. Tentei explicar as razões deste meu endurecimento a uma israelita careca que conheci em Agra, mas suponho que não fui muito bem compreendido. Pelo meio fiz uns bons milhares de quilómetros, de camioneta, comboio, táxi, boleia, a pé e de bicicleta, enchi uma garrafa de Director’s Special5 com água do Ganges, fiz a barba uma única vez, mas vesti, embora a custo de estendais constantes nos sítios onde fiquei, uma camisa lavada todos os dias da minha viagem6, achei o Taj Mahal maçador (uma espécie de contador gigante), mas venerei devidamente as obras de Corbusier7 e Louis Khan na Índia. Estive doente em Damão e depois em Varanasi (Benares, a cidade dos mil nomes), ganhei uma séria aversão pela comida indiana, a ponto de ensinar cozinheiros locais a fazerem-me canja de galinha e arroz-doce. Quando regressei a Goa, no final da minha viagem, onde recolhi em desespero de causa por não aguentar outros cinco dias na camarata do Red Shield Salvation Army Hostel de Bombaim, mais do que para ver o complexo religioso de Moirá (o último da minha série), tinha menos 10 kg, um bigode ridículo e uma cor anémica e acinzentada, apesar das doses maciças de suplementos vitamínicos e sais minerais que tomei. É engraçado que em nenhum momento da minha estadia “física”, direi eu, distraído pela demencial carga sensorial que a Índia transmite, tenha suspeitado das qualidades propriamente “mágicas” da Índia, que só entrevi muito mais tarde e pela sensibilidade aguda e africana de José Eduardo Agualusa8. É curioso que a maior parte das narrativas que o Ocidente reportou da Índia tenham a ver com uma carga sobretudo “mística”, erro que me parece transbordar da dualidade atávica entre corpo e alma da herança judaica-platónica-cristã-cartesiana. A Índia é uma substância arcaica e desconcertante que dilui, integra e desintegra tudo o que sejam as categorias intelectuais do Ocidente, e desconhece qualquer tipo de compatibilidades, história e mitologia, ciência e sabedoria, sexualidade e santidade, realidade e transcendência, caos e ordem, eficácia e indolência, acção e inacção, puro e impuro, modernidade e amordernidade. Inútil portanto ensaiar qualquer linha explicativa, para além de uns quantos quadros e narrativas parciais que permitam vislumbrar uma identidade e carácter para algo que continuamente nos escapa e fascina. Vou de seguida, debruçar-me sobre alguns aspectos gerais que permitam ler um fundo de identidade para a realidade indiana. Em primeiro devemos fugir de uma exotização excessiva dessa realidade. A linha de contacto entre as civilizações indiana e europeia têm para além de um fundo linguístico, étnico e cultural comum, milhares de anos de contactos que são bem anteriores à viagem de Vasco da Gama. Se é verdade que Alexandre da Macedónia não passou além da barreira do Indo, o comércio e a cultura helenística penetraram intensamente no continente indiano. A Índia foi de resto, desde sempre, um fremente caldeirão de culturas trazidas de fora, por invasões sucessivas de povos euro-asiáticos: arianos, persas, gregos, árabes, mongóis, turcos, afegãos, portugueses, franceses, holandeses e ingleses. Babilónia tanto étnica como religiosa, às religiões dos invasores há que associar as dos refugiados de todos os séculos, que explicam a coexistência em solo indiano de budistas, jainistas, parses, muçulmanos, judeus, cristãos sírios, católicos romanos, calvinistas e
anglicanos em coexistência mais ou menos pacífica com a religião maioritária Hindu, com todas as suas associações-livres com outras religiões (jainistas, sikhs, sufis). É curiosa a maneira como a Índia transforma e reintegra todo o tipo de linguagens e estilos estrangeiros que se lhe queiram impor, e suscita as fusões mais extravagantes. (É este o tema central da minha prova e perdoarão se não for muito mais longe.) O assunto dá pano para mangas e coexiste em todos os aspectos da vida indiana. Não espanta portanto, nem a rigidez da sociedade de castas (que tinha que pôr alguma ordem nesta balbúrdia), nem a superioridade do Grão-Mogol Akbar com as suas três mulheres, muçulmana, hindu e cristã. (Se forem a Fatephur Sikri, Agra, Delhi, Diu ou Pondá vão perceber tudo isto na pedra.) A essência mais evidente da Índia é a densidade. Densidade incontável de cheiros, sabores, ruído, lixo e tudo o mais, mas sobretudo de gente. Há países que fabricam bens de consumo, outros fabricam micro-chips, outros ainda, produzem bens culturais, a Índia produz tudo isso mas, mais do que tudo, seres humanos. Não se pense que isto é apenas uma verdade estatística, porque não é: é uma realidade física e altamente sensível, porque se sente mesmo. Ao pé do amontoado humano de uma cidade indiana, qualquer capital europeia é uma cidade-fantasma do oeste americano. Na Índia pode estar-se desacompanhado, mas é uma impossibilidade prática estar-se só. E isso contribui para que o valor da vida humana, a que estamos habituados de longa data, não tenha literalmente valor nenhum: vive-se e morre-se and that’s it. A humanidade é aqui um capital inflaccionado e por consequência desvalorizado, que faz, por exemplo, com que a maior parte dos bens de consumo continuem a ser produzidos à mão e à força de braço, e a maior parte dos transportes a fazer-se às costas ou à cabeça. Pior que ser-se homem, na Índia, é ser-se mulher, e as mulheres contribuem maciçamente para o esforço indiano. É necessário acrescentar aqui a ausência cruel de mobilidade na sociedade indiana, induzida pelo sistema de castas, que faz com que todos os aspectos da vida humana, tais como a profissão, o casamento, a dieta alimentar ou o vestuário, continuem a decorrer quase estritamente dentro da casta onde se nasce, não obstante alguns esforços de permeabilização após a independência. Outro ponto central e irredutível da realidade indiana é a sua incrustrada ruralidade. A índia é um país de aldeias onde as cidades são aldeias um pouco maiores e metrópoles de muitos milhões de habitantes nunca abandonam definitivamente modos de ser tipicamente do campo. A diferença entre os quilómetros de slams em torno de Bombaim, os bairros populares de Amhedabad no Guzerate, as pequenas cidades de Karnataka ou do Uttar Pradesh por onde passei e o caminho que percorri intensamente desde a minha aldeia de Curca até à Igreja perdida de Santana só pode ser descrita em termos de densidade de ocupação. A matriz de ocupação, seja hindu, muçulmana ou cristã, assemelha-se: a mesma trama emaranhada de caminhos, as mesmas casas térreas, mais ou menos precárias, que despejam habitantes e detritos directamente para o espaço em frente, choupanas feitas de folhas de palmeira entrançadas, cartão ou chapa zincada, camas e famílias escancaradas nas bermas e nos passeios, de tantos em tantos metros a mesma casa pintada com as cores da coca-cola, os mesmos out-doors de qualidade fotográfica mas pintados à mão, o mesmo templo ou tulsi, mesquita ou igreja. Por todo o lado o mesmo frémito de habitar a rua, urina-se, escarra-se, vende-se, joga-se, acende-se fogo e abanca-se em qualquer lado, o
indiano acocorado é o mínimo múltiplo comum que faz a Índia toda. Não há uma placa ou um sinal de trânsito, a iluminação pública e as infra-estruturas são deficientes, quase nada funciona, a Índia não é uma máquina, é uma realidade orgânica, seja lá isso o que quer que seja. Não queria deixar de referir aqui um aspecto muito importante da minha viagem: a ideia de que a Índia me propiciou de certa maneira um dom de visibilidade. Em certo sentido, todos os contactos com realidades estranhas favorecem um auto-conhecimento, mas a generosa brutalidade com que a Índia se revela, associada à consciência de que ela não é, já o disse, uma coisa completamente outra (como será talvez a China ou o Japão), fez com que pudesse ver as coisas mesmas que se passam em casa, com uma agudeza impressionante. No fundo, a maioria dos aspectos que fui apontando também se passam entre nós, embora com outros matizes, cambiantes e atenuantes. A exploração dos homens, das mulheres, das crianças e da natureza pelo Homem, é uma constante das sociedades humanas que interage com a forma como se usam e definem espaço e território, e à medida que ia conhecendo e identificando esses processos na Índia contemporânea, era forçado a reflectir sobre o modo como o mesmo se passava dentro da sociedade e cultura que eu integro. Uma coisa levava à outra: o conhecimento do outro conduz ao conhecimento e identificação do mesmo e os dois processos são simultâneos e complementares. A experiência da Índia ajudou-me a dissolver com naturalidade alguns preconceitos que eu julgava sólidos e a apaziguar-me com outros que julgava problemáticos9. Por outro lado, foi-se tornando muito claro que a minha viagem no espaço coincidia com uma outra viagem no tempo, porque por todo o lado encontrava fragmentos de culturas e sociedades, que eu julgava extintas, e que a Índia guardava ainda sob forma latente.
1 Fabricação artesanal de tecidos para uso pessoal, que Gandhi usou como uma das estratégias principais da sublevação não violenta da Índia contra o Império Britânico, restringindo o consumo dos têxteis fabricados pela indústria inglesa, e que pelo seu significado figura hoje na bandeira da república independente da Índia. 2
As ilusões do mundo sensível, razão de todos os enganos, que devem ser rejeitadas por quem queira atingir a liberdade e a sabedoria.
3
Equivalente ao Buda na religião Jainista.
4
Designação da última classe nos combóios indianos. A companhia Indiana de caminhos de ferro, que é em número de funcionários a maior empresa pública do mundo, tem para além das duas classes fundamentais, um número considerável de sub-classes que perfaz um total de sete ou oito, de acordo com as comodidades e as benesses que lhe estão associadas (AC, non/AC, sleepers, non/sleepers, lugares marcados, etc...). Esta proficiência de classes espelha a estratificação da sociedade indiana de castas e quotas, e necessita de um aparatoso, corrupto, improcedente, altamente cínico e indelicado aparelho burocrático. Direi apenas que a sobrelotação é uma constante dos combóios da Índia e que uma viagem de médio curso necessita sempre de cerca de 3 dias de espera, com um tempo formidável despendido em filas de informação, reserva e aquisição de bilhetes. 5
Sucedâneo do Whisky de destilação indiana.
6
As minhas camisas lavadas queriam significar uma distância ideológica da turba pedrada de europeus (sobretudo ingleses, holandeses, alemães, raríssimos portugueses mesmo em Goa, americanos, israelitas, australianos, japoneses e coreanos em férias, que pulula pela Índia, férias que são por vezes vitalícias e muitas vezes à custa de subsídios de países do primeiro mundo. Na verdade, embora fizesse um esforço para me aproximar do modo de vida local - comia com as mãos, por preços verdadeiramente inacreditáveis e ficava em xungarias do pior – eu seria sempre mais um, mas os meus alter-egos eram uma espécie de fantasmas incómodos e omnipresentes que me davam a conhecer a minha figura pateta e privilegiada, e atraiçoavam e desvirtuavam a seriedade dos meus propósitos.
7
Sobretudo Chandigarh, de cujo urbanismo moderno não encontrei ninguém contrariado, até bem pelo contrário, embora isso se deva pelo menos em igual parte ao espírito organizado, circunspecto e particular dos habitantes de predominância sikh.
8
Um estranho em Goa, Livros Cotovia
9
Vou dar um exemplo que me parece significativo: a constatação dos processos da colonização inglesa e holandesa na Índia, descaradamente capitalistas e modernos, obrigavam-me a compará-las com a portuguesa e a retirar daí preceitos fundamentais para caracterizar valores e debilidades atávicas da ideossincrasia nacional.
[ janeiro 2004 ] 44.45
armazém
mix + small = ‘big in Japan’ Marta Pedro *
edifício parede
unidade residencial sobre estábulo
coffee shop
comércio sob via-rápida
estrutura comercial com montanha russa no topo
motorcycle shop
[ janeiro 2004 ] 46.47
Largamente conhecida, a fixação nipónica pela máxima ocupação do espaço assume igualmente contornos de uma fobia pelos espaços (mínimos) vazios. ‘Small is beautiful’, e para os japoneses é algo que lhes é intrínseco. Vem como condição genética ou não tivessem sido eles os inventores do conceito hotel cápsula, em que os quartos são uma espécie de casulos humanos onde os indivíduos se ‘arrumam’, criando autênticas torres de cocoons e onde não está prevista qualquer tipo de metamorfose. Esta obsessão está ainda na génese da propagação de um outro fenómeno caracterizado por um exotismo perturbante: ‘da-me architecture’. Situa-se nos antípodas do que muitos consideram high architecture, mas tem a capacidade de revelar a verdade no seu mais puro estado. Tóquio surge como montra de todos estes fenómenos.
It’s (not) a Sony!! Fervorosos adeptos da miniaturização, os japoneses tendem a pensar os edifícios da mesma forma que pensam os produtos electrónicos, ou qualquer tipo de bem consumível. Trata-se de uma cultura que exige uma permanente mutação ao nível da pequena escala, que se verifica na indústria da moda ou em produtos electrónicos, mas que no contexto urbano é permeável a todo o tipo de soluções, destituídas de qualquer critério ou imposição formal. All-in-one, Tokyo. Ao contrário do que se passa na Europa, a cidade de Tóquio é maioritariamente constituída por edifícios com menos de 50 anos. Devido a inúmeras circunstâncias - culturais, históricas, económicas, naturais - Tóquio viu-se obrigada a entrar num ciclo de permanente construção-destruição. Este fenómeno, aliado a uma manifesta falta de espaço físico edificável, originou soluções muito pouco ortodoxas - resultaram uma multiplicidade de composições espaciais e as mais estranhas combinações funcionais, impensáveis na cidade tradicional europeia. Redes viárias e ferroviárias instalam-se, delicadamente, sobre edifícios, montanhas russas habitam edifícios residenciais, templos ocupam espaços muito pouco sagrados. Tudo numa coexistência desavergonhadamente harmoniosa, mas que pode ser interpretada como resposta a uma determinada conjuntura urbana, dominada pela exigência do ‘aqui e agora’.
‘Da-me’. Yoshiharu Tsukamoto e Momoyo Kaijima (atelier Bow-Wow) com Junzo Kuroda, constituíram um grupo de trabalho que se dedicou ao estudo deste fenómeno de mix programático, a que deram o nome de ‘da-me architecture’ (no-good architecture). A grande maioria são obras anónimas que, apesar do seu pouco valor arquitectónico, constituem agentes sinceros do verdadeiro carácter da cidade. Dotados de uma estética parasitária, precisam de uma estrutura pré-existente para se desenvolverem. São edifícios altamente económicos, eficientes pela marginalidade de soluções, instalando-se em paredes, topos de edifícios, entre loteamentos, ocupando espaços ínfimos. Este trabalho de pesquisa, intitulado Made in Tokyo constituiu-se como uma espécie de guia para o entendimento da cidade real, exaltando as suas virtudes. Pet. Também a questão da proliferação de pequenas construções (versão tamanho-de-bolso) pela cidade de Tóquio, foi objecto de um estudo da autoria do atelier Bow-Wow. Um trabalho de investigação e inventariado de lojas, restaurantes, bares, escritórios, armazéns, encaixados em pequenos espaços sobrantes, publicado em 2001, com o título Pet Architecture Guide Book.
Todas estas estruturas, impressionantes pela sua reduzida dimensão, ou, formal e programaticamente grotescas pela combinação de funções, contêm em si um potencial único para a reflexão sobre novas formas de vivência urbana. É necessário o entendimento do paradigma de desenvolvimento local que, aparentemente caótico, ao permitir liberdade total na produção de novos edifícios, cria uma certa fluidez e um grau de informalidade que abre caminho a uma nova maneira de pensar o espaço. Uma possibilidade, a acumulação de funções numa só unidade (espaços públicos multifuncionais - tipicamente japonês), para passar a integrar outras estruturas criando novas relações com a paisagem construída. Exigem-se diferentes abordagens para um tema riquíssimo.
* aluna do 6º ano do Departamento de Arquitectura da Universidade de Coimbra
[1º acto]
Jardim de Infância de Buarcos
Rui Silva*
AUTOR: RUI AFONSO SILVA (CMFF) DATA: 1999 – 2002 OBRA SELECIONADA NO PRÉMIO DE ARQUITECTURA EM TIJOLO DE FACE À VISTA CERÂMICA VALE DA GÂNDARA O terreno disponível para a construção do Jardim de Infância resulta de uma cedência para o efeito de um loteamento. O terreno situa-se entre dois arruamentos (Rua Dr. Traqueia e arruamento do loteamento), com uma pendente de 7 metros entre arruamentos e orientada a sul. O projecto foi desenvolvido essencialmente em corte, de modo a compatibilizar as cotas altimétricas das ruas, do pátio e interior do Jardim de Infância. Foi proposto um edifício em U que responde às exigências do programa do Jardim de Infância, organizando-se em torno de um pátio de nível (recreio em betão poroso) que é rematado por um segundo edifício destinado ao prolongamento de horário e por um recreio coberto. A ala norte do edifício em U tem a cobertura acessível em deck de madeira de ipê, relacionandose directamente de nível com o arruamento superior e criando deste modo, um segundo recreio com outra perspectiva sobre a envolvente. O edifício é executado em tijolo face à vista na perspectiva da redução da necessidade de manutenção futura. * arquitecto licenciado pelo Departamento de Arquitectura da Universidade de Coimbra
LEGENDA: 1>ENTRADA 2>SECRETARIA 3>INSTALAÇÕES SANITÁRIAS DE CRIANÇAS 4>INSTALAÇÕES SANITÁRIAS DE ADULTOS/DEF. 5>REFEITÓRIO 6>COZINHA 7>CASA DA CALDEIRA 8>DESPENSA 9>VESTIÁRIO DO PESSOAL 10>INSTALAÇÕES SANITÁRIAS DO PESSOAL 11>SALA POLIVALENTE 12>RECREIO INTERIOR 13>GABINETE DO DIRECTOR 14>ARQUIVO 15>ARRUMO DE MATERIAL DIDÁTICO 16>INSTALAÇÕES SANITÁRIAS DE ADULTOS FEMININOS 17>INSTALAÇÕES SANITÁRIAS DE ADULTOS MASCULINAS 18>ARRECADAÇÃO DO MATERIAL DE LIMPEZA 19>INSTALAÇÕES SANITÁRIAS DE CRIANÇAS 20>SALA DE ACTIVIDADES 21>VESTIÁRIO DAS CRIANÇAS 22>PÁTIO INTERIOR 23>PÁTIO EXTERIOR (RECREIO) 24>CAIXA DE AREIA 25>ARRECADAÇÃO GERAL 26>RECREIO COBERTO 27>SALA DE PROLONGAMENTO DE HORÁRIO 28>INSTALAÇÕES SANITÁRIAS DE CRIANÇAS 29>INSTALAÇÕES SANITÁRIAS DE ADULTOS 30>ARRUMO 31>GABINETE DE EDUCADORES 32>RECREIO NA COBERTURA EM DECK DE MADEIRA DE IPÊ
[ janeiro 2004 ] 48.49
[ janeiro 2004 ] 50.51
[contaminações]
Manga e Anime Carolina Santos*
Para muitos, traduzem-se em séries como Street Fighter, Dragon Ball, ou Pokémon (verdadeiros êxitos televisivos), Samurai X, Akira ou Néon Geon Evangelion... Personagens de cabelo enorme e olhos grandes e amendoados, de expressões engraçadas e cativantes. Muita ficção, lutas no espaço e mulheres curvilíneas de peito bem servido. Mas há mais. Muito mais. Para começar, somos levados a crer que Manga é um estilo de banda desenhada, e Anime, a sua versão animada. Errado. Anime, no Japão, é o termo técnico para qualquer filme animado, e Manga, por sua vez, é qualquer desenho impresso. (No entanto, no resto do mundo, ambos traduzem filmes animados ou B.D. do Japão). Ao contrário do que se pensa, este tipo de animação não tem as crianças como público exclusivo. Existem os mais variados tipos de Anime, para todo o tipo de pessoas, desde crianças e jovens, até adultos, tarados sexuais (Hentai será um bom exemplo...); existe, inclusive, uma categoria para jovens mães ex-delinquentes! Mesmo as séries dedicadas aos mais novos tendem a não ser tão simples como as ocidentais. Incluem cenas de estudantes na escola ou a fazerem os trabalhos de casa, a levarem sermões dos pais ou a discutirem com amigos, aliadas a um mundo de fantasia, que torna a vida das personagens diferente e especial, seja por dotes sobrenaturais, extraterrestres, robots do futuro ou animais mutantes. Algumas delas presenteiam-nos mesmo com “a” morte, - a realidade do mundo, a espiritualidade, e o facto de que as coisas acabam. Mostram, por vezes, inimigos que vão para além d’ “O Mal”, tão frequente noutros desenhos animados, inimigos que também têm sonhos e esperança, e razões para fazerem o que fazem. Não são apenas loucos que planeiam
o mal. São reais. As acções têm consequências e, se o protagonista comete um erro, vai ter de lidar com os resultados. As personagens mudam e crescem, desenvolvem novas aptidões de episódio para episódio, até a série acabar. (Os finais, em Anime e Manga, acabam por ser quase tão importantes como o desenrolar de toda a série. São cuidadosamente preparados para nos fazerem chorar, ou para nos colarem ao ecrã até ao último segundo.) Apesar do estilo inconfundível da Manga e Anime japoneses, cada artista possui técnicas distintas, sem grandes limitações. Existem inúmeras variantes, desde L.Matsumoto, com os seus protagonistas “feios” e atarracados, até às figuras subtis de Miyazaki. Ultimamente, a imagem do Anime tem piorado. O estereótipo passa de “olhos e cabelo enormes” para “mulheres de peito enorme, tecnologia futurista, sangue e sexo”. Curiosidade: As séries Japonesas compradas por países do Ocidente são, na sua maioria, recheadas de grandes lutas, nudez ocasional e quantidades massivas de tecnologia futurista. Segunda curiosidade: A viagem de Chihiro, Anime infantil de Miyasaki Hayao recebeu 5 prémios de melhor animação (Oscar 2002; NY Film critics Awards; Critics' Choice Awards; National Board of Review; O Urso de Ouro Festival de Berlim). Talvez o estereótipo seja um produto do mercado ocidental... Sim, é verdade que muitos Anime o possuem, e eles tanto podem ser motivo de entretenimento e diversão como ser considerados um exagero irritante. Mas olhar, falar e promover apenas estes aspectos é deixar escapar todo um enquadramento. Anime é, no fundo, um mecanismo de contar histórias...
Chihiro
O desenho à mão e uma boa dose de ficção são o que o separam da realidade. Os desenhos das personagens e dos seus mundos permitem cenas fantásticas sendo, no entanto, suficientemente simples para o espectador se projectar nelas. É um todo que proporciona uma fuga à realidade, um olhar para dentro, bem lá no fundo de nós, onde o mundo exterior não consegue tocar. Porque o real se torna momentaneamente uma imagem de um estudante a lutar contra o mal...ou de um samurai a meditar...ou... Talvez por isto, o Anime seja tão popular no Japão, e indissociável (para nós ocidentais) do mundo oriental. Torna-se difícil não haver identificação duma sociedade com o seu reflexo numa caixinha a cores. “ (...) Dentro do coração de um assalariado, de uma secretária, de uma dona de casa, ou de um estudante a enlouquecer com os exames, o grito da alma por algo profundo e belo surge resplandecente. Claro que, como qualquer pessoa neste planeta, os Japoneses esquecem por vezes estes pedidos secretos, e as consequências deste esquecimento aceleram o aparecimento dos estereótipos. É difícil manter algo aparentemente divino neste mundo, é demasiado fácil esquecer. Anime serves to remind.”1 Evangelion 1 in The Romantic, Passionate Japanese in Anime: a look at the hidden Japanese Soul, de Eri Izawa
* aluna do 2º ano do Departamento de Arquitectura da Universidade de Coimbra
[ janeiro 2004 ] 52.53
com o patrocĂnio da
Reitoria da Universidade de Coimbra
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DIRECTOR Bruno Gil EDITOR Carina Silva REDACÇÃO A. Joana Couceiro, Ana Fonseca, António Correia, Carina Silva, Carolina Santos, Daniel Beirão, Inês Dantas, Joana Alves, João Crisóstomo, Mário Carvalhal, Pedro Baía, Rui Aristides, Vera Pinto COLABORADORES Gonçalo Furtado, Inês Moreira, Marta Pedro, Nuno Cruz, Pedro Machado Costa, Rui Silva, Tiago Fiadeiro, Vasco Pinto, Walter Rossa TRADUÇÃO Ayano Shinzato Dias Pereira REVISÃO Joana Alves, Mário Carvalhal, Vera Pinto GRAFISMO Bruno Gil, Carina Silva, Eduardo Nascimento EDIÇÃO GRÁFICA António Correia, Eduardo Nascimento DISTRIBUIÇÃO XM IMPRESSÃO Imprensa de Coimbra, Limitada TIRAGEM 500 exemplares DEPÓSITO LEGAL 178647/02 ISSN 1645-3891 PROPRIEDADE NUDA/AAC – Núcleo de Estudantes de Arquitectura CONTACTOS NU . Departamento de Arquitectura . Faculdade de Ciências e Tecnologia . Universidade de Coimbra . Colégio das Artes – Largo D. Dinis . 3000 Coimbra . tel [ darq ]: 239 851 350 . fax [ darq ]: 239 829 220 . e-mail: revista_nu@hotmail.com
imagens:
capa/contracapa eduardo nascimento . p 3_5 carina silva . p 6 “the cities within”, india book house, bombay, 1995 . p 13,14,19 a. joana couceiro + marta pedro . p 20_23 worldcityphotos.com + monnikhof.org . p 28_31 nuno cruz . p 34 Ayano Pereira p 38 revista via latina suplemento macau, maio 1991 p 39 pedro m. costa p 40 revista cultural #2, 1992, Inst. Cultural de Macau + monografia de macau, quinzena de macau, macau, 1979 . p 42_45 vasco pinto p 48 rui silva . p 53 revistaparadoxo.com + manga.co.uk . p 55 antónio correia
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