#31 Chão

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ch達o REVISTA NU > #31 > JUL 07

pvp euro 3.0 ISSN 1645-3891


[editorial]

Groundscapes: A redescoberta do solo na arquitectura contemporânea A Zona

[conversa] Gonçalo Byrne Motion, émotions Notas sobre a marcha e a arquitectura do solo

Inês Lourenço

03

Ilka Ruby + Andreas Ruby

04

Pedro Vieira

10

Inês Lourenço + Jan-Vincent Bersier + 14 Carlos Guimarães Jacques Gubler

22

Tiago Borges + Rui Baltazar + Pedro Resende

28

Luís Loureiro

38

[enviado NU] E a Aldeia disse: -Vou-me embora!

Joana Alves + Maria Barreiros

42

[prova final] A Arquitectura como Arte do Lugar

António Mota

44

José Brites

46

Nuno Portas

48

[entrevista] Foreign Office Architects

Cemitérios

[contaminações] Não há guerra até que um irmão mate o seu irmão [quiz]

A NU é a publicação planeada e produzida pelos estudantes do Departamento de Arquitectura da Universidade de Coimbra (dARQ). Essencial, imparcial e descomprometida, a NU é uma ferramenta de aprendizagem que tem como objectivo a reflexão e debate em diversos temas relacionados com a arquitectura, enriquecida pela colaboração de diversos arquitectos e académicos de todo o mundo.


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editorial

desenho do chão a tinta-da-china Inês Lourenço* O chão é inevitavelmente o nosso suporte. A gravidade exige que nele aterremos e que dele façamos o nosso colo. No entanto, quando a gravidade desaparece, este conceito de chão enquanto suporte físico dissolve-se. Mas não se manterá enquanto estrutura de referência para a nossa orientação no espaço? EM PLANTA Nele se apoia o nosso corpo e os limites do nosso espaço. Nele se desenha a sombra. Nele se projectam as ideias espaciais do arquitecto quando esboça a planta. A planimetria torna-se assim num método de extrema utilidade para quem cria espaço. O edifício e a cidade nascem da projecção ortogonal de pontos sobre a superfície: a partir do desenho do chão faz-se a distinção entre espaço aberto e fechado, de circulação e de paragem, entre o público e o privado. Define-se e delimita-se o espaço. Consequentemente, ao chão é associado um sentimento de posse. Apesar de as fronteiras se encontrarem diluídas pela globalização, o chão enquanto terreno continua a ser associado ao seu dono, quer seja um país, uma casa ou, mesmo numa situação mais efémera, o nosso m2 de praia durante a tarde. A maioria das guerras, aliás, deve-se a divisões territoriais. Mas é esse dono quem lhe confere uma identidade, o distingue dos demais e o sobrecarrega de memórias. Circulação, M.C.Escher

EM CORTE Por outro lado, assiste-se cada vez mais a uma manipulação geográfica que implica também criar chão. Numa tentativa de rentabilizar a superfície do solo, os edifícios crescem em altura, as plataformas vencem o reino do mar e o subsolo é invadido. A cidade cresce e o nosso chão multiplica-se numa infinidade de layers. O chão já está fora do chão: acima do chão e debaixo do chão. Embora a arquitectura disponha de elementos que, também graças às novas possibilidades tecnológicas, nos permitem caracterizar um espaço das mais diversas formas, o corte revela a inevitável distinção entre o espaço elevado e o espaço enterrado. Se ao primeiro associamos o sol, a claridade e um controlo visual sobre o verdadeiro chão, o segundo tem um carácter mais obscuro, de luz artificial e sem referências - é um mundo subterrâneo que se desliga da superfície da Terra. De um lado, as Pirâmides e as igrejas que conquistam o céu, os arranha-céus que dominam a paisagem. Do outro, as caves, as catacumbas das prisões, as redes de metro, os bunkers. De um lado o Paraíso. Do outro o Inferno. *aluna do 3º ano do dARQ, editora da NU#31 Chão. [julho 2007] 02.03


Ilka & Andreas Ruby*

a redescoberta do solo na arquitectura contempor창nea Ilka & Andreas Ruby*

Biblioteca Jussieu, OMA

groundscapes


A ideia do solo como uma ecologia da arquitectura, no sentido dado por Reyner Banham, parece-nos hoje tão familiar que nos custa imaginar que nem sempre foi assim. Mas, de facto, esta noção apenas tem um século. Em 1926, nos seus “Cinco Pontos para uma Nova Arquitectura”, Le Corbusier proclamou a libération du sol. A casa sobre pilotis, levada a cabo por Le Corbusier primeiro na Maison Citrohan (1922-1927) e mais tarde convertida na tipologia dominante do modernismo na sua Unité d’Habitation (Marselha 1947-1952), representa o ícone desta emancipação do solo. Como não tem nenhum contacto directo com o solo, a casa emancipa-se da sua envolvente física. O solo deixa de definir a arquitectura, já que o edifício, mediante a plataforma apoiada sobre pilotis, cria praticamente o seu próprio solo. Esta duplicação do solo cria um novo nível zero, elevado, que deixa na sombra o solo físico do local. Do ponto de vista programático, ao solo físico associam-se somente funções de serviço (circulação, estacionamento, armazenamento, etc.), enquanto que a habitação ocorre exclusivamente no novo bel étage da villa modernista. A maison en l’air de Le Corbusier já só precisa do solo como uma contradição forçosa para estabelecer a dialéctica da sua presença: quanto mais débil é o solo, mais forte será a figura com que a arquitectura se distingue dele. É impossível imaginar a Villa Savoye num lugar com uma topografia acidentada. A aura festiva da sua geometria idealizada necessita da superfície vazia do solo virgem que rodeia o edifício nas fotografias datadas da sua construção e que o faz parecer uma ilha no meio do mar. Através deste esvaziamento físico, programático e semântico do terreno, o contexto transforma-se numa massa sem atributos que, na fórmula de tabula rasa, se viria a converter na prima materia do urbanismo modernista. Na arquitectura do modernismo, a neutralização conceptual do solo é mais claramente levada a cabo por Mies van der Rohe, mas de uma forma bastante mais poética e sem a didáctica propagandística de Le Corbusier. Seguindo a sua tendência clássica, Mies coloca normalmente o edifício sobre um embasamento comparável ao estilóbato do templo grego. De certa forma, desenvolve o terreno sobre o qual assenta o edifício como uma parte simbolicamente enfatizada deste. No Pavilhão de Barcelona, este solo artificial é criado na forma de um plinto massivo que cria o micro-contexto ideal para a composição livre de paredes sob a laje de cobertura. Na Farnsworth House (Plano, Illinois, 1945-

1950) Mies intensifica este efeito desterritorializante através de uma plataforma flutuante entre o nível do terreno e o nível de entrada, um recurso usado mais tarde no IIT (Chicago, 1950-1956). A leveza da arquitectura sugerida por este gesto elimina toda a noção de peso tradicionalmente associada ao solo. No Lake Shore Drive Apartments (Chicago, 1948-1951) Mies conseguiu esta desmaterialização do solo mediante uma espécie de tapete mágico que cobre a área aberta do piso térreo. Este tapete é feito de finas lajetas de travertino que, em vez de estarem alinhadas com o terreno, sobressaem deste em toda a sua espessura e parecem flutuar uns milímetros acima do solo. Desta forma, o solo parece coberto com um acabamento fenomenológico feito de travertino em detrimento do asfalto usual. A pedra de cor clara retira-lhe a qualidade “terrena” e transforma-o numa superfície que reflecte a luz solar e a redirecciona para o tecto do vestíbulo, criando uma almofada de luz que em dias de sol parece suster o edifício. Na década de 60, esta interpretação do solo como terra incognita começou lentamente a mudar. Enquanto que anteriormente o espaço do solo só se definia de forma negativa (como um volume negativo vazio entre edifício e nível do solo), agora cada vez mais surge como condição habitável. Curiosamente, o pioneiro desta evolução foi, mais uma vez, Le Corbusier. Nas suas obras mais tardias, como o convento de La Tourette (Eveux-sur-Arbresle, 1957-1967) e o Carpenter Center for the Visual Arts (Cambridge, Mass., 1961-1964), esta nova valorização do solo está já presente, mas talvez se manifeste mais radicalmente no projecto não construído para o Centre de Calculs Électroniques Olivetti (Rho, Milão, 1963). Debaixo dos painéis flutuantes do departamento de investigação, Le Corbusier organiza um impressionante groundscape em vários níveis: as salas de montagem do piso térreo são acessíveis por cima, através de três plataformas intermédias em forma de leque que estão elevadas em relação à rua. Este edifício-plataforma tornase um interface espacial que permite o desenvolvimento de um terceiro espaço entre os edifícios no solo e os edifícios elevados. Foi precisamente este terceiro espaço que se converteu no centro da investigação arquitectónica quando Paul Virilio e Claude Parent fundaram o grupo Architecture Principe em 1963, o ano no qual Le Corbusier concebeu o projecto Olivetti. O seu ponto de partida é uma crítica das monoculturas representadas pela horizontalidade da Broadacre City (1935) de Frank Lloyd [julho 2007] 04.05


Lake Shore Drive Apartments, Mies van der Rohe

Wright e pela verticalidade absolutista do arranha-céus americano, mas a sua abordagem é também direccionada contra as utopias metabolistas do seu tempo produzidas por Constant, Yona Friedman, Domenig/Huth, entre outros. Enquanto que estas cidades espaciais, flutuando sobre o tecido urbano existente, só exacerbavam a alienação modernista do solo, com a fonction oblique Virilio e Parent descobrem um novo módulo conceptual para a produção de continuidade urbana. Em vez de simplesmente situar uma nova cidade sobre a antiga, eles alteram a disposição do solo existente fazendo a nova cidade emergir obliquamente da anterior. Ainda mais intensamente que na sua igreja de Sainte-Bernadette

(Nevers, 1964-1966), esta intenção é materializada no seu Centro Cultural (Charleville, 1966), nunca construído. Um gigantesco volume ligeiramente inclinado situa-se parcialmente no leito do rio Meuse. Ao nível da água, o volume abre-se para que os barcos possam entrar directamente no edifício e atracar nos cais que estão ligados aos espaços públicos da parte superior por rampas em espiral. De acordo com a noção de circulação habitável de Virilio, todas as superfícies têm vários programas. A cobertura converte-se numa praça urbana para reuniões informais ou num palco para eventos ao ar livre que o público pode seguir das tribunas posicionadas na parte mais inclinada da cobertura. Para Parent e Virilio, a vantagem decisiva dos planos inclinados reside nesta capacidade de estabelecer um fluxo ininterrupto entre interior e exterior. Na arquitectura francesa, a sua abordagem permaneceu sem seguidores, mas proporcionou impulsos decisivos ao debate internacional, cujas consequências construídas foram, paradoxalmente, vistas pela primeira vez em França. Em 1967, Oscar Niemeyer recebeu a encomenda do Partido Comunista Francês para construir uma nova sede para o seu comité central. O seu projecto parece um desenvolvimento continuado das ideias de Parent e Virilio, cuja associação terminaria um ano depois devido a divergências sobre a revolta estudantil do Maio de 1968. Numa mise-en-scène dotada do suspense de um filme de Alfred Hitchcock, Niemeyer confere ao solo (normalmente um contínuo indefinido) uma forma, escala e lugar distintos. Aparentemente tudo parece girar em volta do painel curvo do edifício principal, visível de longe. Mas o seu efeito só é tão forte porque grande parte do sítio está por construir - acima do chão, isto é. A partir da praça Coloniel Fabien, um caminho conduz os visitantes a uma cúpula branca através de uma praça elevada. Somos levados pela direita da cúpula até que chegamos onde imaginavamos que estaria a entrada do edifício. No entanto, não existe uma entrada; em vez disso, uma abertura no plano de betão da praça atrai os visitantes para as profundezas do solo. Uma vez no interior, encontramo-nos num autêntico mundo subterrâneo, uma arquitectura invisível, sem um horizonte. De facto, não há nenhuma janela nem comunicação com o exterior, excepto a sala de conferências que se revela agora como o interior da cúpula branca do jardim. Ligeiramente desorientados, seguimos a nossa percepção motora e descobrimos, para nossa admiração, que estamos a andar sobre um solo quase topológico. [julho 2007] 06.07


Na realidade, o pavimento do hall de entrada não é uma superfície plana, mas sim animada por algumas ondulações tão subtis que são primeiro perceptíveis apenas com os pés, e só depois com os olhos. Antecipando em parte as superfícies líquidas do pavilhão da água dos Nox, Niemeyer transforma aqui o solo de uma superfície num espaço esculturalmente modelado. Esta é uma obra pioneira (sem nunca ter recebido um reconhecimento adequado) da arquitectura das décadas de 80 e 90, nas quais o solo se converteu num tema primordial da investigação arquitectónica. Uma continuação directa da arquitectura do solo de Niemeyer pode ser vista nos projectos do arquitecto argentino Emilio Ambasz. Mas enquanto que com Niemeyer a figura do edifício prevalece e só palpa o terreno debaixo da superfície visível, Ambasz eleva o solo ao estatuto de figura visível de arquitectura e converte o edifício num agente infiltrado na paisagem. Para tornar a arquitectura invisível, utiliza essencialmente duas técnicas. Por um lado, ele cobre o edifício com uma camada de vegetação, o qual deixa de parecer um objecto para passar a ser uma sinuosidade topográfica na paisagem. Por outro, ele funde o volume do edifício na topografia do sítio. A sua Casa de Retiro Espiritual é um monumento ao desaparecimento: duas monumentais paredes brancas marcam a entrada da casa, cujos espaços habitáveis se encontram completamente enterrados. O projecto nunca realizado para os laboratórios de investigação Schlumberger vai mais longe ao colocar a totalidade do edifício debaixo de terra. O edifício não parece um móvel colocado sobre uma superfície mas sim uma série de incrustações feitas num material. Em algumas partes, a massa de terra desaparece e expõe uma série de fachadas de vidro que fornecem luz natural ao interior dos laboratórios. Não obstante, a arquitectura de Ambasz permanece como arquitectura da figura e não do solo; o solo é, no fundo, um instrumento usado para camuflar o objecto arquitectónico. Mas o solo ainda não é entendido enquanto figura. Esta emancipação do solo do estatuto de fundação da arquitectura para uma arquitectura de direito próprio adquire forma talvez pela primeira vez com as “Cities of Artificial Excavation” de Peter Eisenman. Enquanto que com Virilo, Parent, Ambasz e Niemeyer, o solo se define a partir da figura, Eisenman tenta desenvolver a figura da arquitectura a partir do solo. Com este trabalho, Eisenman empreendeu uma crítica das suas primeiras casas, largamente inscritas na tradição atópica da villa modernista enquanto objecto autónomo em solo

neutro. Com as “Cities of Artificial Excavation” Eisenman baseia-se na Collage City, de Colin Rowe, segundo o qual o solo da cidade não é uma superfície neutra mas apenas o estrato mais elevado de uma densa sobreposição de estratos dos mais variados vestígios históricos. Ao revelar estes vestígios e ao usá-los como material gerador do seu próprio projecto, Eisenman usa o palimpsesto como analogia metódica. Na Antiguidade e Idade Média, o palimpsesto era uma página ou rolo de manuscrito que, dado o custo do material, era escrito várias vezes. Para isto, a inscrição anterior era raspada ou lavada e a folha era simplesmente rescrita. Vestígios do texto original sobreviviam frequentemente, e nos dias de hoje, graças a processos técnicos como a fotografia fluorescente, podem ser tornados visíveis, de forma a que o texto antigo seja legível mais uma vez. Nas suas “Cities of Artificial Excavation”, Eisenman trata a própria cidade como um palimpsesto e utiliza a arquitectura como processo de tornar visíveis as suas múltiplas inscrições. Ele aplica mais claramente esta técnica no seu projecto de habitação social para o IBA em Berlim (1982-1987) na Kochstrasse, justamente ao lado do muro de Berlim. Em vez de se limitar a preencher os vazios do perímetro de um quarteirão de Berlim resultantes da destruição da Segunda Guerra Mundial, i.e. reconstruindo o estado anterior à guerra, Eisenman procurou os vestígios históricos do lugar, em parte abstractos e artificiais, em parte concretos. Consequentemente, revestiu o terreno com um murogrelha que corresponde aos graus de latitude e longitude do globo, remetendo para a importância de Berlim como cidade de fronteira durante a Guerra-Fria. Debaixo desta grelha artificial, Eisenman põe a descoberto uma parte da malha barroca da cidade. Desta maneira, o projecto surge da extrusão vertical das informações espaciais do sítio numa estrutura tridimensional, que faz com que os restos existentes do quarteirão pareçam deslocados e confusamente contextualizados. Este entrelaçamento sistemático entre o histórico e o contemporâneo levou nos seus projectos posteriores, como Romeo and Juliet (Verona, 1985) e o Wexner Center of Arts (Columbus, Ohio, 1982-1989), ao desaparecimento gradual da figura arquitectónica do edifício enquanto objecto autónomo, enquanto o solo, como arquivo arqueológico, se converte em figura. Na década de 90, Eisenman analisou esta transformação nos seus escritos teóricos, onde estabelece conceitos como figured gound e grounded figure como materializações arquitectónicas do solo fora da dialéctica clássica entre figura e solo.


Centro Cultural Charleville, Paul Virilio e Claude Parent

A investigação arquitectónica deste novo potencial do solo tornou-se num dos pontos essenciais na arquitectura de Zaha Hadid. A fase de incubação da sua investigação ocorre, paradoxalmente, ao mesmo tempo que a sua arquitectura planetária, que parece negar a própria noção de solo. Efectivamente, os volumes das suas imagens flutuam como naves espaciais num espaço infinito e sem gravidade. Não há topo nem fundo, não há frente nem verso, mas apenas diferentes espaços de movimentos que se interligam dinamicamente. No entanto, isto não significa que para Zaha Hadid o solo não exista simplesmente o concebe a partir de cima. Como as suas naves espaciais estão, no fundo, planeadas para a terra, a questão do solo levanta-se inevitavelmente quando elas aterram. Contudo, o solo na arquitectura de Zaha Hadid não é simplesmente o pedaço de terra onde aterram as suas naves, mas sim um espaço de solo produzido por esta aterragem. Este espaço combina a leveza da arquitectura planetária com a tracção gravitacional da terra e assemelha-se àquele denso flutuar dos antigos filmes de ficção científica quando a nave espacial aterra lentamente. Pouco antes de tocar no solo, a nave espacial detém-se por um momento e permanece imóvel, flutuando por cima do solo. E neste último momento o espaço entre a terra e a nave espacial parece tremer, quase imperceptivelmente, como se o contacto iminente o estivesse a carregar de energia.A carga deste espaço intermédio que flutua por cima do solo é um dos temas centrais da arquitectura de Zaha Hadid. O cenário é sempre o mesmo: uma massa desce lentamente até ao terreno sem chegar a pousar. Pilares afiados perfuram o solo e a terra por baixo começa a mover-se até que a superfície se abra e debaixo dela surjam espaços inadvertidos. Esta emergência espacial reminiscente da deriva das placas tectónicas, descoberta por Alfred Wegener, tem em conta um espaço que até então era invisível na arquitectura: a fundação. Uma espécie de fundação exposta aparece

no lugar do piso térreo livre do modernismo. É aqui que Hadid situa a parte mais atractiva do programa, transformando o anterior espaço infraestrutural num espaço de experiência arquitectónica culturalmente representativo. Daqui ao infraestruturalismo dos OMA da década de 90 – onde os edifícios pertencem em princípio mais ao domínio da infraestrutura do que ao da arquitectura – vai só um passo. Koolhaas viu na infraestrutura uma oportunidade para emancipar a arquitectura e o planeamento urbano ao ligá-los operativamente. Entendida como parte da infraestrutura urbana, a arquitectura podia reclamar uma nova forma de performatividade urbana. No Kunsthal (Roterdão, 1992), esta concepção dá lugar a uma dupla programação da arquitectura: como museu e como interface urbano entre o parque do museu e a auto-estrada. Uma rampa pedonal que atravessa o edifício como uma passagem pública proporciona a comunicação e, ao mesmo tempo, estabelece o modelo de circulação interior. Nesse sentido, o Kunsthal não é apenas uma polémica adaptação da caixa-museu miesiana, nem uma nova edição da promenade architecturale de Le Corbusier. A sua contínua sequência espacial, que interpreta o espaço de circulação como espaço funcional e vice-versa, é também uma apropriação directa da fonction oblique de Claude Parent e Paul Virilio. Com este mesmo método, Koolhaas projecta uma paisagem infraestrutural no Urban Design Forum (Yokohama, 1992). Este projecto urbano combina uma grande quantidade de programas num plano deformado e coreografa-os ao convertê-los num ciclo vivencial de 24 horas. Em ambos os casos o objectivo é quebrar a monofuncionalidade de uma tipologia e carregá-la incorporando os eventos envolventes. Por último, nas bibliotecas de Jussieu (Paris, 1992), Koolhaas leva esta ambição ao extremo, transprogramando o edifício para se tornar num incubador arquitectónico de espaço público. O espaço do boulevard é continuado no interior como uma paisagem contínua de superfícies dobradas, resultando num boulevard intérieur com 1,5 km de comprimento. Apesar do projecto se ter tornado famoso como o primeiro uso de geometria topológica para organizar espacialmente um interior, o uso que Koolhaas faz da nova forma é essencialmente uma estratégia: dar ao espaço público, que está sujeito à pressão crescente da privatização, um novo lugar. O conceito de solo infraestrutural é desenvolvido [julho 2007] 08.09


Sede do PCF, Oscar Niemeyer

numa série de projectos de sucessores de Koolhaas, em particular MVRDV e FOA. Estes últimos trabalham na redefinição morfológica do solo enquanto edifício. Cruzam geneticamente a geometria topológica de Jussieu com a lógica infraestrutural do projecto de Yokohama, dos OMA, transformando tipologicamente o edifício numa paisagem infraestrutural urbana. Através desta hibridização conceptual, os FOA reconciliam as contradições tipológicas que ainda caracterizam os dois projectos de Koolhaas. Na concepção dos FOA, os edifícios que no projecto dos OMA para Yokohama ainda estão concebidos como entidades separadas, fundem-se definitivamente com o seu plano deformado, do mesmo modo que a paisagem de rampas dobradas em Jussieu se escapa, digamos assim, da sua caixa de vidro. A superfície dobrada, que em Koolhaas era ainda um dispositivo estratégico entre vários, com os FOA converte-se numa infraestrutura inclusiva na qual todos os elementos individuais são dissolvidos - o morphing finalmente substitui a collage como técnica. Com o seu Osanbashi Pier (Yokohama, concurso: 1995; realização: 2000-2002) eles criam a estrutura de um solo que se diferencia e multiplica permanentemente mas que, na realidade, é uma superfície única – as hierarquias convencionais de chão, parede e tecto desaparecem.

Em contraste com os FOA, os MVRDV abandonam o princípio topológico de Jussieu e desenvolvem os paradigmas da multiplicação do solo na sua vertente programática. Para este fim, eles cruzam a teoria dos arranha-céus de Koolhaas, presente em Delirious New York, com a continuidade idealizada de Monumento Contínuo dos Superstudio. De certa forma, os MVRDV aplicam a falta de escala horizontal deste último na vertical com o objectivo de desenvolver em forma de plataformas sobrepostas o princípio dos arranha-céus: criar uma multiplicidade urbana empilhando os programas mais diversos. Por outro lado, a hiperdensificação da sociedade urbana liberta a paisagem, cada vez mais devorada pela sociedade, e declara-a um tapete verde contínuo entre as mega-cidades. Com edifícios-ponto no meio de espaço verde fluido, o cenário da cidade a três dimensões amplia a ville radieuse de Le Corbusier a dimensões até aí desconhecidas (o projecto alberga um milhão de residentes numa única estrutura). Dado o aumento constante da população mundial, a quantidade limitada de superfície da terra apropriada para o desenvolvimento levanta-se enquanto problema quantitativo. A mutação do solo sugerida pelos MVRDV, que passa de uma singularidade natural a uma multiplicidade artificial – na realidade, uma natureza única criada pelo Homem – pode parecer exagerada. Mas o cenário que os climatólogos prevêem para o nosso planeta no século XXI não é menos surrealista: o degelo nos pólos, a subida de nível do mar, as cotas de neve mais baixas nos Alpes, a migração das zonas de vegetação e outras mudanças eminentes. Tudo isto torna claro que o solo está a deixar de ser uma base estável para a nossa existência e, ao invés disso, está a evoluir para uma topografia dinâmica, a cujas mudanças e oscilações devemos adaptar a nossa vida. [texto introdutório do livro Groundscapes : The Rediscovery of the Ground in Contemporary Architecture, Barcelona : Gustavo Gili, 2006]

*arquitecta e crítico de arquitectura respectivamente. Têm escritório próprio desde 2001, Textbild, e dedicam-se a uma “engenharia cultural do discurso arquitectónico contemporâneo.” Foram professores em várias universidades europeias, sendo actualmente professores convidados na Cornell University. Para mais informações: www.textbild.com


a zona

Eugène Atget

Pedro Vieira*


A arquitectura, sempre que se encontra numa crise metodológica, vai procurar a justificação teórica da sua prática ao campo das ciências sociais. A arquitectura é moderna quando assim é, pois a modernidade é um sinónimo da tradição idealista ocidental que dá precedência ao conceito em detrimento de uma prática empírica. O chão é um vector como outros que a arquitectura encontra para se aproximar dos motivos mais profundos que a levam a operar consoante um programa ideológico, que na contemporaneidade luta por se aproximar das motivações mais profundas de construir e que nos remetem para uma imagética de tecnologia povera de repúdio das formas mais artificiosas de construir o invólucro para o homem. No entanto penso que, mesmo nos meios onde a nossa acção é mais coadjuvada pela tecnologia, existe sempre qualquer coisa de humano e profundamente pessoal, para tal só é necessário que exista uma identificação do indivíduo com as motivações que levaram aquele espaço a ser criado. Pensando nas realizações de colectivos como os Archigram, Archizoom ou Superstudio, estas são radicais e provocadoras, por paradoxais, ao jogarem em campos extremos: reconduzir a sociedade à idade da pedra graças à tecnologia. À idade da pedra porque o indivíduo é isolado em celas ou então agrupado em tribos, e todo isto graças a dispositivos que o alimentam, lhe dão de respirar e o educam. Em tudo isto é significativo o facto de o chão ser volatilizado, evitado nas representações como tendo características próprias e que lhe confiram heterogeneidade. Este é sempre tapete contínuo, matéria homogénea ou miragem, já que se afigura como cidade em ruínas depois de um holocausto nuclear. A arquitectura é capsular, suspendida por estruturas metálicas estáticas ou articuladas à maneira das tripods de Orson Welles. O chão é visto como paisagem, um layer que deve permanecer inerte porque nele a intervenção humana é pontual e muitas vezes apenas passageira. A sociedade é anulada, substituída por ligações virtuais sem topografia estável, deixando de existir chão da forma que estamos habituados: propriedade, demarcação abstracta entre

domínios, polaridades, funções. O chão, podendo ser reserva burocrática, é também reserva moral, domínio metafísico de um indivíduo ou comunidade. O chão, a terra, o cadinho, é substituído pela estrutura e a casa um plug-in que se lhe acrescenta. A infra-estrutura é o interface entre homem e natureza, ganhando com isto uma poética que antes era própria do chão. Repito: o chão é infra-estrutura. Em imagens, o chão é descrito pela cultura urbana como infra-estrutura, espaço deixado para trás, desvalorizado pelo capitalismo mercantil que aí não exerce o seu domínio. Por isto, a infra-estrutura é o espaço mais livre que temos, pois julgado como servidor não acolhe quaisquer programas em que a nossa acção seja descrita e mediada pela economia monetária. É o abrigo e asilo dos fenómenos que aparentam ser mais esquizóides, bizarros e difíceis de definir. A dicotomia entre chão-infraestrutura e parasitismo foi nos últimos anos codificado como uma transgressão, um avantgardisme ou apenas como indigência. Subjacente a isto existe uma qualidade de autonomia face às autoridades, e de não ingerência destas nos assuntos relativos à comunidade; isto é, a infra-estrutura caracteriza-se por não ser propriedade de ninguém e, deste ponto de vista, um edifício que é ocupado é infra-estrutura porque escapou às malhas dos interesses fundiários que o abandonaram por momentos. A infraestrutura é uma sobra, um fantasma dos esforços passados que interessa abandonar, não deve ser mostrado. Ilustrando esta ideia podemos pensar nas ocupações da zona militar non-aedificandi de Paris, as barriéres, e mais tarde na cintura fortificada de Thiers construída entre 1841-1845, não só como miseráveis, mas também como anarquizantes, com fundo político muito intenso. A começar pela lógica de dispositivo militar que envolve a cidade como um colete-de-forças que urge ser rompido. A própria lógica militar que muda com Haussmann a perceber, nos eventos da Comuna de Paris, que a guerra na cidade é de guerrilha e feita no seu interior, não na periferia. As barrières são, desde o início da sua construção, uma ferida na cidade. “Le mur murant [julho 2007] 10.11


Paris rend Paris murmurant”- Ledoux e as barrières são sinónimo da ostentação e rapina do ancient-regime. A infra-estrutura em questão compunha-se de um muro/ cerca com boulevard de resguardo, furado por portas fortificadas (55, 53 de projecto original), aduanas, postos fronteiriços, o que por si mostra o afastamento de Paris em relação ao resto da França. O projecto foi desmontado pedra por pedra com minúcia revolucionária durante a Revolução burguesa de 1789-1800, mas a cidade guardará sempre a ferida da infra-estrutura militar/económica que só será completamente desmantelada em 1919. Na primeira metade do século XIX vieram demolições e violações das barrières, dos muros e boulevards. A infraestrutura é parasitada, demolida, reforçada em alguns pontos, mas Haussmann, e a política que daria origem à região Parisiense pela anexação de departamentos extramuros, condena definitivamente à obsolescência a cintura defensiva de Paris. A infra-estrutura é abandonada por diversos motivos, dos quais a reorganização orgânica e política do território é o mais forte, gerando-se um vazio legal sobre as barrières. Doravante elas serão a Zona, o território dos Apaches, nome dado aos que aí viviam à margem da lei. A Zona será a vergonha de Haussmann, impedido de aí entrar. A acção enérgica e duradoura que este empreende no coração da cidade leva a uma migração forçada das populações mais pobres até à Zona. Em linhas muito genéricas, a Haussmanização de Paris resulta da acção coordenada da intervenção pública sobre o mercado imobiliário em troca de contrapartidas normativas impostas aos novos assentamentos. Haussmann dispõe então do arsenal jurídico que consubstancia a sua acção – o direito de expropriação por utilidade pública é alargado. Os novos rasgos duplicam a rede viária, ao terem de passar pelos interiores de parcelas urbanas, onde as expropriações são menos onerosas. O higienismo veio depois, com a maior parte dos inquilinos desalojados da Paris medieval a terem de procurar casa na periferia, nos faubourgs e na Zona. E aqui, finalmente, chegamos à ideia central do artigo: ao novo solo, aquela gente espoliada chamou casa e decidiu que não seria desalojada segunda vez sem luta rija. O tom pode parecer épico mas não foi branda a mudança; foi apaixonada, e a literatura é testemunha; de Balzac, Flaubert, Zola, até Baudelaire ou Verlaine, todos a testemunharam. O que é notável é que esta política de força despertou uma mitologia moderna, os PUNK, os Situacionistas. Tudo o que, em suma, recusa a linearidade

narrativa da cidade, plasma o espírito da Zona. A Zona foi um momento seminal da cidade moderna. Havia gente a viver nas entrelinhas, usando astuciosamente o vazio ideológico em torno de pontos obscuros na estrutura da cidade, e com isto explorando as suas falhas. Neste ponto é interessante lembrar um proto-PUNK que, com humor, ridicularizou o mercado de arrendamento, mobilizando politicamente o operariado para greves de pagamento de rendas que alastraram a toda a cidade, bem como da ocupação de imóveis; ele era George Cochon. Sindicalista, leitão1, chegou a chefiar pelo seu brilhantismo a União Sindical, de onde é expulso em 1913, estou em crer pela falta de respeitabilidade que cultivava. É de referir muito sucintamente que o mercado de arrendamento era extremamente desfavorável ao operariado altamente precarizado, sendo dominado por arrendamentos semanais que permitiam rentabilidade máxima ao proprietário, já que este podia despejar semanalmente as famílias que, momentaneamente, ficavam sem fonte de rendimento. No sector também não havia, na generalidade, regulação pública, ficando no caso francês entregue a associações filantrópicas ou de industriais o grosso da experimentação em torno da habitação operária e suas formas de arrendamento. Na Zona, vivendo de expedientes, estes piratas da cidade reconheciam-se entre eles e tinham dialectos, músicas, vestuários e economia paralela. Existe um retorno ao estado selvagem assinalado por este como rebelião sussurrada que encontra representação numa infantilização sarcástica do discurso político. A selvatização, a início imposta pela segregação para os fossos das barrières, ganha uma segunda face como oportunidade para escapar às várias formas de vigilância do estado – cristaliza-se em zanga de criança contra os pais. As crianças são o melhor do mundo. Serão mesmo? * aluno do 6º ano do dARQ

1 Leitão: tradução directa de Cochon –se observarmos material da época, o trocadilho está sempre presente. Cochon e as suas formas de luta tiveram grande receptividade e adesão, o que é comprovado com todo o folclore urbano que a sua personagem de “Robin dos Bosques” alimentou.

[julho 2007] 12.13


Superstudio


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conversa

Byrne

gonçalo

Carlos Guimarães, Inês Lourenço e Jan-Vincent Bersier*

S. Francisco após o Grande Terramoto e Incêndio de 1906


O entendimento do desenho do chão como o ponto de partida para a definição da cidade nas suas múltiplas dimensões espaciais e cognitivas, fio estruturante da sua conceptualização, leva-nos a entrevistar o Arq. Gonçalo Byrne. “A arquitectura é um serviço, um meio feito para dar forma ao território, à cidade e à paisagem.”1 Gonçalo Byrne (1941) diplomou-se em Arquitectura na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa em 1968. Professor convidado em Itália, Áustria, Espanha, Suíça e Estados Unidos é, desde 1992, Professor Catedrático convidado no Departamento de Arquitectura da Universidade de Coimbra. Tem trabalhos teóricos editados em publicações nacionais e estrangeiras e uma vastíssima obra, várias vezes premiada em Portugal e no estrangeiro. Para além de se ter dedicado a projectos de habitação e de equipamentos urbanos, são muitas as intervenções na área do planeamento urbano, escalas maiores que lidam com o território da vivência da cidade. E a partir deste desenho da cidade, deste desenho do chão, desenhámos palavras durante quase três horas.

1 Jornal de Notícias, 24 de Novembro 2006

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O que é o chão? Será simplesmente uma linha que divide o que está em cima do que está em baixo? Conceitos como chão, solo e subsolo são coisas muito diferentes mas que, apesar de tudo, têm algo em comum ao definir o plano a partir do qual há uma mudança de estatuto radical: o que está para baixo e o que está para cima. Esta mudança de estatuto é, na minha opinião, decisiva na discussão da arquitectura, mas também da cidade e da paisagem. É um veículo de transição em que se pode perceber a relação estrutural e profunda que existe entre a arquitectura, como objecto edificado, e a cidade e a própria paisagem, sendo este provavelmente o plano onde as condições se misturam e se fundem. A cidade tem esta condição, que eu acho muito curiosa, que é a necessidade de se falar em três estratos: o do subsolo, o do chão e o do céu. Estes três estratos de que agora falei, em termos de arqueologia ou da sobreposição arqueológica, são representados por nós, na arquitectura, não pela planificação mas pelo corte. Se fizermos um corte por uma rua que atravessa um quarteirão identificamos imediatamente esses três estratos. O estrato mais complexo é o do meio porque é um abstracto da tal condição de chão e que tem espessura. É onde a vida se desempenha, se quisermos uma metáfora teatral. E essa condição de plasmar a vida é, normalmente, aquela que introduz a dinâmica da transformação da cidade. [subsolo] Por partes: porque é que a vida não existe sem o estrato subterrâneo ou sem as camadas do subsolo? Porque não existe cidade se não existirem infra-estruturas. Se a principal das infra-estruturas ainda se pode jogar ao nível do chão, que é a infra-estrutura da mobilidade (as estradas, as ruas, os caminhos de ferro), as infraestruturas que são essenciais para trabalhar o conceito

de densidade -e a cidade trabalha normalmente com o conceito de densidade - estão por baixo do solo. É o caso do esgoto, do abastecimento de água, etc., chegando até à sofisticação dos cabos dos transportes hidropneumáticos mas também, e cada vez mais, à mobilidade. Esta, que era gerada fundamentalmente ao nível do chão, começa a invadir também o terreno numa cidade mais sofisticada. A cidade vai ganhando complexidades que normalmente se julgavam ao nível do solo, havendo, assim, uma espécie de urbanização do subsolo. No entanto, mesmo uma casa no campo, não pode viver totalmente sem o subsolo porque há uma outra condição de subsolo sem a qual não há arquitectura, nem há casa seja onde for, que é a de apoio, de suporte. Por muito que nos queiramos libertar dos determinismos, ainda não nos conseguimos libertar da gravidade. Um avião obviamente contradiz esta teoria, temporariamente, mas a condição básica da arquitectura e do edifício é uma condição de fundação. E fundação é um termo que tem vários sentidos: um é o termo de apoio e o outro é o termo de raiz. Podemos até fazer uma metáfora entre a cidade e a natureza, apesar de terem conceitos de vida e natureza completamente distinta: quanto mais complexo é o edifício, maior é o edifício, mais ele tem que invadir o subsolo; ou seja, quanto maior é a árvore, mais profunda é a raiz. E esta condição introduz na arquitectura uma outra muito interessante: como diz Jacques Gubler, “as infra-estruturas podem ter uma leitura de arqueologia, de camadas”, ou seja, o subsolo tem uma dimensão tectónica e uma dimensão arqueológica, obrigatórias numa cidade. Há como que uma estratificação, uma sobreposição de layers a partir do subsolo, e que traduz toda esta complexidade da cidade. André Corboz chama a cidade de hipertexto, porque estes layers têm graus de permanência, pelo


simples facto de, como Rossi chamou a atenção, ao serem contentores de vida, terem também um elevado grau de transformação, de reminiscência, de períodos de perca e períodos de restituição, de crescimento, de reciclagem, etc. Se nós pensarmos que a cidade ao longo do tempo e da história também se gera através de estratos, que a arqueologia depois estuda, qualquer edifício que se constrói, constrói-se sobre o construído. A arquitectura, no fundo, recicla coisas. Mesmo ao gerar edifícios novos, normalmente fá-lo em condições onde já existiu acção humana, sobretudo hoje em dia, pois não há praticamente natureza virgem. No entanto, as cidades de fundação, as cidades que supostamente intervêm numa natureza virgem, como as colonizações romanas, os acampamentos militares, as cidades coloniais espanholas e portuguesas, Brasília, etc. têm uma natureza muito particular e muito diferente da condição de chão e sobretudo da condição de céu. [chão] Esta condição de chão identifica-se classicamente com aquilo a que nós chamamos as plantas dos rés-do-chãos. Por exemplo, o movimento dos anos 60, em Itália, com Aldo Rossi, chama a atenção para a importância da cidade e introduz o discurso da permanência na cidade histórica através do estudo das tipologias e das morfologias urbanas. De facto, estas são estruturas formais de grande duração, esqueletos que quase não mudam, não evoluem com o tempo. Desencadeou-se, então, em Itália, uma geração enorme de projectos, que ainda hoje se vê, que consistem na cidade cortada pelos rés-do-chãos. Nós estamos habituados a ver as representações da cidade nos mapas dos guias turísticos, extremamente dicotómicos, na medida em que mostram o que é privado e o que é público; quando muito sobrepõem as linhas subterrâneas

ou de superfície das mobilidades públicas. As plantas dos guias turísticos são normalmente projecções de cima para baixo: a cidade é achatada, não há volumetria e no plano do solo é espalmado aquilo que é rua, aquilo que é praça e aquilo que é edifício e quarteirão. É uma dicotomia muito básica. Estas plantas dos anos 60 são muito interessantes porque essa hierarquia é muito mais enriquecida: se eu cortar uma cidade pelo rés-do-chão, o espaço interior das casas, as passagens e os corredores, tornam-se muito mais parecidos com o espaço das ruas. Portanto, aparentemente, aquela hierarquia que era muito clara na representação da planta turística, na planta das tipologias e das morfologias do Rossi é estranhamente mais homogénea e tudo parece mais igual. É muito curioso porque se mostra o primeiro plano fundamental da cidade como suporte de vida, que se passa tanto dentro do chamado espaço privado como fora, no espaço público. Embora saibamos que o espaço público é o espaço onde as pessoas se encontram, que as pessoas compartilham, e o espaço privado é um espaço semi-reservado, onde funciona o indivíduo, onde funciona a família, onde funciona o grupo, etc., essa hierarquia é, de certa forma, anulada nessa representação. Isto quer dizer, fundamentalmente, que o rés-do-chão é o grau zero da vida na cidade. Mas na cidade moderna e na cidade a partir das referências das cidades utópicas, o nível solo estratifica-se tendencialmente e vai gradualmente conquistando o nível céu. [céu] Este é outro nível que está, também como o do subsolo, a ser gradualmente urbanizado e domesticado, pelo menos em termos de comunicações. No entanto, tem uma natureza completamente diferente. Um dos pontos que distingue este nível dos outros é o da temporalidade. De facto, este é o nível da luz, é o nível do sol, é o nível aéreo, é [julho 2007] 16.17


o nível que introduz a variação, variação essa, por exemplo, do ponto de vista atmosférico (a dicotomia entre o dia e a noite, as várias estações, etc.). Esta terceira condição parece-me interessante porque é uma condição à qual os arquitectos não ligam nenhuma. Porque é que os arquitectos e a humanidade, até agora, sempre representaram a condição da cidade, a condição da paisagem e a condição da topografia vista do céu para o chão e nunca vi ninguém representar do chão para o céu? É que, se nós as quisermos representar de baixo para cima, entramos num exercício muito complicado, para não dizer quase impossível. Numa cidade tradicional, de quarteirão, percorrer as ruas olhando, não em frente nem para os pés, como diz Jacques Gubler, mas olhando para o céu, é uma experiência muito engraçada. Uma pessoa quase que pode identificar a história da arquitectura só pela maneira como, ao caminhar, desfilam as estratégias que a arquitectura usou ao longo da história para estabelecer a relação entre o plano fachada e o plano céu. Entre a cornija, o beirado e o muro corta-fogo, observamos uma variação que nos dá uma caracterização extremamente interessante da cidade. Estamos a falar da moldura, do elemento de transição entre a condição de edifício, enquanto objecto, e as condições luz, tempo, etc. Esse exercício é muito interessante, por exemplo, na cidade tradicional (a que nos está mais próxima é talvez a cidade burguesa do séc. XIX) porque andamos continuamente numa posição de canal, em que a água é o céu; quando muito percebemos que este canal alarga e faz uma praça. Mas esta praça, normalmente, ainda é ortogonal. Se formos a uma cidade medieval percebemos que esses canais não são rectos, mas curvos, e que muitas vezes são radiocêntricos e que a certa altura estamos no meio de um grande campo que é a piazza del campo, ou o sítio onde está a catedral na cidade medieval.

A partir desta percepção de um vazio conseguimos identificar os estratos históricos, as temporalidades históricas. Esta experiência de olhar de baixo para cima é extremamente rica para determinar aquilo que eu costumo chamar de tipologia do vazio. É um exercício que tem mais que ver com o corte do que com a planta. Manuel de Sola-Morales fala, precisamente, do que é perceber a temporalidade da cidade a partir do corte. Se fizermos um corte ao longo da rua, desde a praça central medieval até à condição periférica da cidade difusa contemporânea, e se caminharmos tentando identificar os sistemas de vazio, percebemos como há uma variedade e uma convulsão, o passar de um valor ao seu oposto. Se, inicialmente, os vazios estão profundamente regrados e domesticados por estas formas urbis muito geometrizadas, de repente a cidade entra na modernidade, ou na contemporaneidade, e o padrão de cidade já não é tão identificável. O padrão que tínhamos na cabeça, o da cidade quarteirão, começa a desaparecer. Portanto, não se sabe onde está o limite do que é rural (ou era rural) e do que é urbano, porque o sistema de vazios se reverte completamente. Jacques Gubler fala do arquitecto que reconhece o sítio caminhando, através dos pés, através deste exercício da textura, da rugosidade mas também da quantidade (era o Távora que dizia que o arquitecto caminha e mede, reconhece olhando e caminhando). Esta condição que no fundo é muito básica só existe porque a experiência do chão não é uma experiência rigorosamente bidimensional e planimétrica. O caminhar e o olhar, ou o caminhar e o medir, embora suponha esse contacto com uma condição diferente do chão, supõe também uma interpretação na vertical, introduzindo também a espessura do corte.

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S. Francisco

De facto, nas cidades mais desenvolvidas, o chão começa a ter uma espessura enorme, tão grande que já se perde a noção dela. Já não se sabe onde acaba. A ficção científica, aliás, mostra muito isto. Em La Défense, em Paris, temos aquela praça à superfície e por baixo um labirinto que nunca mais acaba. Isso é muito interessante e tem que ver com duas coisas. Uma é o aumento de espessura, que normalmente se associa a esta ideia do desdobramento de estratos, uma espécie de massa folhada. A ficção científica tem explorado muito isso. A outra tem que ver com a própria evolução das civilizações, do conhecimento e da cultura, nomeadamente, por exemplo, com a deriva da cidade no sentido do modelo da comunicação. A cidade décimo-nónica é feita primeiro com os carros de cavalos, depois os automóveis, depois os comboios, etc. E se nós continuarmos neste sentido percebemos que a comunicação não matérica destrói completamente esta noção de barreiras porque introduz uma variação infinita. Além disso, destrói o sentido dos limites. Toda a visão tradicional e clássica da arquitectura se baseia na noção da soleira: a porta tem uma pedra no chão que diz que de um lado você está fora e do outro você está dentro. Mas hoje em dia há uma erosão muito forte desta noção. E não é só na arquitectura, é em toda a filosofia e em todo o conhecimento. Os limites estão profundamente erodidos. Antigamente era muito fácil identificar, na tal planta turística, o que era público e privado. Hoje não é assim, porque eu sei que dentro do quarteirão está centro comercial, que continua a ser público. A passagem, a galeria do século XIX, já era a intromissão do espaço público dentro do quarteirão. Mas, por exemplo, hoje o grande espaço público é um shopping mall, ou um aeroporto. O tal conceito do não lugar do Marc Augé, no fundo, é o conceito que melhor demonstra a quebra do

sentido do limite. Já não se sabe, nesta espécie de devaste da vida privada dos meios de comunicação (o big brother, por exemplo), onde está o privado íntimo e onde está o público. Está nos ecrãs de televisão? E essa leitura na vertical, que aparece nas cidades ficcionáveis, também se pode fazer na horizontal, a planimetria. E não é nesta atitude planimétrica de desenho do chão que se define a cidade? Esta questão é muito interessante quando se fala no tema das malhas urbanas, na maneira histórica de fazer cidade, e sobretudo nas cidades de fundação, cidade ex-novo, porque as cidades, enfim, continuam a fazer-se e a refazerse. A malhação, ou malha, é um dos instrumentos mais eficazes de fazer cidade e tem leituras de complexidade muito diferentes. Vou dar-vos um exemplo que considero muito interessante. Hoje, na América Latina não há praticamente nenhuma cidade que não viva rodeada de uma enorme coroa de bairros de barracas clandestinas. A dicotomia violentíssima das economias da América Latina gera estas cidades, que têm um núcleo mais ou menos compacto e coroas a perder de vista de ocupações de populações gigantescas, que constroem a sua casa numa condição precária. Se virmos esta coroa numa cidade de fundação hispânica ou se virmos esta coroa numa cidade de fundação portuguesa, por exemplo, há uma percentagem muito grande de diferenças substanciais. Nós conhecemos a imagem do Rio de Janeiro, mas pode falar-se de S. Paulo, de Belo Horizonte ou de outras cidades do Brasil. E, nestes casos, falamos de favelas. Quanto às cidades de fundação hispânica, podemos falar de Buenos Aires, de Lima, no Peru, de Quito, na Bolívia, onde o termo utilizado é barriadas. Uma diferença muito grande entre uma e outra




é que, normalmente, as coroas periféricas das cidades hispânicas têm uma matriz ortogonal e não têm infraestruturas, não têm nada, enquanto as outras têm uma matriz muito mais árabe, muito mais orgânica, espontânea, onde nem sequer a regra da malha existe. Mas há uma explicação que normalmente é dada: é que, normalmente, a tendência destas favelas é ocupar zonas de grandes declives e, portanto, a malha funciona mal por vários motivos. Mas também é verdade que vemos barriadas latinas em zonas de declive e normalmente há qualquer coisa próxima da ortogonalidade. Na minha opinião, a malha é muitíssimo mais eficaz do ponto de vista da vida da cidade. Desde logo, é um sistema muito mais aberto, que em teoria pode crescer sem fim e que comunica e estabelece um sistema de acessibilidade de uma enormíssima eficácia. O sistema espontâneo do casbah é muito mais complicado, gera becos sem saída. A verdade é que o sistema da malha ortogonal, do ponto de vista da evolução das cidades de fundação, historicamente é muito mais eficaz. Ainda hoje é um instrumento do qual se fala e faz sentido mesmo na cidade difusa contemporânea. É claro que falar de malha urbana em termos territoriais, em termos da cidade metropolitana, não é a mesma coisa do que falar em malha de ruas e quarteirões; estamos a falar de grandes distâncias, policentrismos, estamos a falar de velocidades diferentes. Pode falar-se por exemplo de malhação ao nível das auto-estradas. Nós temos assistido em Portugal, graças ao dinheiro financiado pela Europa nos últimos anos, a uma malhação do território feita de vias-rápidas, de auto-estradas. Se olharmos para o mapa, este conceito de ortogonalidade, embora muitas vezes adaptado, está lá para velocidades que não têm nada que ver com a cidade tradicional. Mas o que é muito engraçado é que estas malhas ganham, conforme a complexidade e evolução da cidade, também elas, densidades completamente diferentes. Por exemplo, na cidade americana, a malha começa por ser simplesmente a malha que existe na barriada periférica da cidade latina. A periferia de Buenos Aires é muito engraçada quando se chega de avião porque, ao aterrar, vê-se aquelas extensões a perder de vista, tapetes construídos com as barracas extremamente precárias. No entanto, vê-se um sistema no chão, que normalmente é feito com a passagem de um bulldozer. Não é mais do que um risco no chão, mas tem que haver qualquer coisa de fundador que estabeleça, como dizem os espanhóis, o tablero, o tabuleiro de jogo de xadrez. As ruas não são mais do que raspar o terreno: ainda não têm esgoto nem água, mas sabe-se que, se

esta cidade tivesse condições para se ir melhorando, era facílimo pôr primeiro o esgoto, depois a água, depois a electricidade e, quem sabe, mais tarde o metropolitano. Nas cidades dos Estados Unidos e hiper cidades do capitalismo e liberalismo americano, como são quase todas de fundação hispânica, a malha urbana mantém a mesma condição da malha inicial da periferia da cidade hispânica, ou seja, trata-se de malhas fundamentalmente bidimensionais. Todo o jogo da ocupação, da densificação da cidade e da estratificação, faz-se independentemente de uma valoração tridimensional. Já as malhas da baixa pombalina não são malhas bidimensionais mas tridimensionais. Elas existem representadas pela planta, mas essa planta tem exactamente o mesmo valor que a definição dos cortes tipo e do estudo das fachadas tipo. E nas secções da cidade pombalina, está representado o esgoto, o escoamento das águas, indo também ao nível do subsolo. Portanto, há desde a fundação um conceito claramente tridimensional, enquanto nas outras o conceito é rigorosamente bidimensional e a complexidade tridimensional vai sendo feita com o tempo e com regras muito autónomas, que estão para além da própria malha. Não é por acaso que o traçado de Manhattan, do ponto de vista planimétrico, é o mesmo. A malha da 5ª Avenida com moradias e grandes jardins à volta mantém-se, embora o aspecto actual seja o de grandes arranha-céus. No entanto, mesmo nas cidades hispânicas de fundação, a malha bidimensional já tem implícita uma hierarquia de implantação volumétrica. Normalmente têm uma praça, que era o fórum das cidades romanas, onde estava a catedral, o palácio do governador, os principais edifícios; e depois têm as ruas que originam bairros residenciais, a estratificação do comércio, etc., no tal plano de ataque ao chão. E assim se densifica a cidade, pois é ao nível do chão que se dá o encontro da vida e dos cidadãos, o espaço público por excelência, o chamado espaço da cidadania na cidade tradicional, onde as pessoas se encontram, se reúnem, fazem revoluções, deitam abaixo, destroem e constroem. Algo que se faz muito hoje em dia é usar o subsolo para esconder o que incomoda. Por exemplo, uma praça em frente a uma igreja era um sítio que tinha um significado para a sua época. Em décadas recentes, estas praças foram sendo usadas para estacionamento. Hoje, a tendência é de manter a imagem destas praças, mas escondendo os carros debaixo do chão, para simplesmente os manter fora de vista. E isto é algo que

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muitas vezes acontece com as nossas infra-estruturas, que não precisam minimamente de ser enterradas. A linha de electricidade, que atravessa a rua aos 7metros de altura, é uma moléstia por vários motivos. Temos uma situação que até é um bocado caricata em S. Francisco, nos Estados Unidos: um arranha-céus tem um poste com um transformador do outro lado da rua e cabos que o ligam ao arranha-céus, isto no meio da cidade… Esse é um fenómeno muito engraçado na cidade americana. S. Francisco é um bom exemplo, é das cidades mais paisagísticas que eu conheço. De facto, é incrível, com aquela topografia, eles terem insistido numa malha urbana numa situação em que há muitas ruas com 22%, 23%, 24% de declive. Nem uma cadeira de rodas passa. Pela regulamentação era impossível haver uma cidade assim. Por isso é que têm aqueles eléctricos com os cabos fabulosos e os próprios autocarros têm sistemas de mudanças complicados. O que também é muito engraçado é que, quando poisa a malha, há uma domesticação que é feita e, quando há um cruzamento, esse cruzamento é sempre plano. Portanto, o corte das ruas não é um corte contínuo mas sim um corte tipo escadarias do Bom Jesus de Braga. De facto, na cidade americana a infraestrutura eléctrica é toda aérea; não só os cabos, são os transformadores pendurados lá em cima dos postes. O Chinatown de S. Francisco ainda tem tudo assim, apesar de estar no centro urbano. Esta infra-estrutura eléctrica continua toda aérea e penso que por uma simples razão: é muito mais barato, um argumento económico. Outro argumento é o da moléstia, como dizia. Enterrase porque incomoda. Em Alcobaça há uma abadia cisterciense que nasceu entre dois rios. A dada altura houve um desenvolvimento urbano fora da abadia e que era traçado pelo rio Baça. O rio Baça nos anos 40 de tão poluído cheirava muito mal. Era uma coisa que toda a

S. Francisco

gente criticava e então o governo e a câmara municipal decidem cobrir o rio com um trabalho impressionante de abóbada de pedra ao longo do rio. Essa foi a maneira de resolver o problema da poluição. Não resolveu nada: apesar de tapado, ele está lá. Eu não tenho nem consigo ter nenhum juízo de valor sobre se é bem ou mal enterrar neste tipo de situações porque acho que podemos aplicar raciocínios e introduzir esquemas de valor. O problema da poluição e o problema da ecologia, têm que ver quanto a mim com o estabelecimento de patamares de equilíbrio. Mas estes só fazem sentido numa perspectiva dinâmica. A poluição, quanto a mim, existe a partir de um momento em que se estabelecem desequilíbrios e isso pressupõe uma leitura dinâmica da realidade. O que eu acho por vezes enganoso é pensar que essa realidade se pode ler numa perspectiva estática e muitas vezes de retrocesso. Em relação ao campo da igreja que recupera visualmente o adro da igreja, este era um espaço fundamental, era um espaço de respeito do ponto de vista romano e que tinha uma polivalência de uso: era usado para a procissão, era usado para o casamento, mas também era usado para o mercado. Quando nós hoje tiramos os carros e repomos um lajedo de pedra estamos a introduzir uma hierarquia fortíssima que resulta de um incómodo associado a uma leitura estética, eu diria mais estética do que histórica, muitas vezes. Cada vez mais na nossa cultura se dá a substituição das tradicionais ideologias pela estética, que cada vez mais se transforma numa ideologia. Nós vivemos culturalmente numa idade da estetização, de discursos paralelos, de estruturas que se cruzam. Daí a enorme complexidade e a enorme dificuldade em unir isto.

* alunos do 6º, 3º e 4º ano do dARQ, respectivamente.


motion, émotions

notas sobre a marcha e a arquitectura do solo

Jacques Gubler*

Este texto passeia-se por outros para recordar um fenómeno bem conhecido: a incidência da locomoção pedestre sobre a percepção da arquitectura. No entanto, interrogo-me sobre qualquer garantia metodológica. Farei apelo, para justificar a ressonância fenomenológica da minha tentativa, a Gaston Berger e ao seu comentário sobre Husserl? Berger estabelece uma distinção entre fenomenologia, doutrina transcendental, e fenomenologia, método pragmático. Desta última, ele afirma que ela é “um esforço para compreender, através dos acontecimentos e factos empíricos, as essências, i.e. as significações ideais.” Estas são apreendidas directamente pela intuição (Wesenschau para Husserl). Gaston Berger admira-se que seja possível utilizar este método e ignorar o seu reverso metafísico. A mesma admiração me acompanha. Procurarei isolar dois sistemas complementares: a máquina sensorial e a arquitectura.

esquiço da acrópole de Atenas, Le Corbusier


A marcha Para Kant, a marcha, a dietética, o sono povoado de sonhos, a respiração pelo nariz, a abstenção de leitura no momento da refeição, favorecem a organização animal do corpo. Estas regras de higiene desenvolvem a força muscular e as faculdades intelectuais. Dois mundos coexistem à distância: por um lado, o exercício físico, die Motion, por outro o da razão prática. Mas que encontra Kant im Promenieren?: “Os homens que estudam, quando se passeiam solitários, têm dificuldade em se abster de pensar e de falar consigo próprios. Contudo, posso testemunhar por mim, e outros confirmaram-mo, que a tensão do espírito se atenua rapidamente quando se anda. Em contrapartida, se nos abandonamos ao livre jogo da imaginação, o exercício restaura-nos. O passeio ao ar livre tem precisamente por objectivo, na variedade e no encontro com os objectos, purgar a nossa atenção de qualquer detalhe.”1 Existirá contraste mais marcante entre a promenade de Kant e a de Rousseau? Revelado em Emile ou de l’éducation, o programa pedagógico de Rousseau enuncia-se assim: “Transformemos as nossas sensações em ideias.”2 As virtudes animais e selvagens da máquina humana significam a primeira aprendizagem do mundo: “os nossos primeiros mestres de filosofia são os nossos pés, as nossas mãos, os nossos olhos.”3 Esta citação abre múltiplos percursos. De acordo com as nossas leituras, aí descobrimos a antecipação de manifestos ulteriores, Rimbaud a Piaget, Engels a Muybridge, Bachelard a Tucholsky, Corbusier a Picasso. É a este último que reconhecemos o aforismo: “Eu reflicto com os pés.” Para Rousseau, o percurso pedestre gera a consciência geográfica ou, se preferirmos, o problema filosófico do conhecimento. A criança é, antes de tudo, jardineira e medidora: “É apenas ao andar, palpar, numerar, e medir as dimensões que se aprende a estimá-los. (...) Temos medidas naturais que são, mais ou menos, as mesmas por

toda parte: os passos de um homem, a extensão dos seus braços, a sua estatura. Quando a criança considera a altura de um andar, a sua governanta pode-lhe servir de medida: se considera a altura de um campanário, mede-o de acordo com as casas: se quer saber as milhas de caminho, conta as horas de andamento.”4 Rousseau opõe a verdade do passeio campestre ao artifício prejudicial da cidade: “os passeios públicos das cidades são perniciosos às crianças de um e outro sexo.” E condena a existência mesma dos jardins urbanos, o Luxembourg, as Tuilleries. Não é esta intolerância suíça romande contra a grande cidade que nos interessa, mas o facto de Jean-Jacques se colocar na pele de uma criança que descobre o mundo e fala por ele: “Ele quebra as janelas do seu quarto; deixem o vento soprar sobre ele noite e dia sem se preocuparem com os frios; porque mais vale que ele esteja constipado que louco.” Esta educação espartana contém o postulado do valor cognitivo dos sentidos e traz-nos assim para a fenomenologia da descoberta arquitectónica. O veículo do corpo Para prosseguir sem nos perdermos, é necessário separar o tema da viagem e a questão da marcha, ainda que as duas operações mantenham relações evidentes. Porquê deixar de lado a viagem, tanto género literário como prática social aristocrática do Grand Tour, ou ainda, para os arquitectos, expedição e autópsia arqueológicas? Porque me procuro lembrar de testemunhos que insistam na percepção física, muscular, sensorial e psicomotora que emana do veículo pedestre. Como diz Sterne, “o homem constitui (...) o mais curioso dos veículos.”5 Por outro lado, evitarei aventurar-me nas numerosas autópsias arquitecturais da Dalmácia, da Turquia, da Grécia, da Síria, do Egipto e do Magreb, quando “o passado se torna num país estrangeiro,”6 e em que centenas de arquitectos medem e publicam as construções da bacia mediterrânica. Que permanece então? Sobretudo o testemunho dos poetas e romancistas que põem a questão [julho 2007] 24.25


da presença receptiva do corpo agitado pela geografia, tal como Goethe na sua Voyage Italie, quando visita a Villa des Nains em Bagheria, na Sicília. O gosto e a estética barrocos são fustigados em nome da nova harmonia clássica e aristocrática. Mas a disputa estética envolve a questão do gosto. Certamente, Atlas segura um tonel de vinho em vez do globo celeste. Mas estamos nós em pleno kitsch, para utilizar a fórmula aristocrática dos anos bismarckianos? A promenade architecturale Recordamo-nos que a promenade architecturale constitui um dos temas essenciais da obra corbusiana e da sua exegese. O arquitecto tece esta consideração a propósito da Villa Savoye: “Mas continuamos a promenade. Desde o jardim ao andar, subimos pela rampa para o tecto da casa onde é solário. A arquitectura árabe dá-nos um ensinamento precioso. Ela aprecia-se ao andar, com os pés: é andando, deslocando-nos que vemos desenvolver-se a ordem da arquitectura.“7 A memória coleccionadora de Le Corbusier Para Le Corbusier a marcha comanda a memorização dos lugares construídos. Gresleri expôs esta técnica de aprendizagem onde concorre o uso do caderno de esboços, a prancha aguarelada, a captação e o enquadramento fotográficos, sem esquecer as leituras que precedem ou seguem este trabalho de autópsia. A publicação dos Carnets de Voyage d’Orient de 1911, mostra quanto o pedestal, a inclinação, a escada, o pavimento, a plantação das árvores e as espécies florais fazem parte da observação rápida e atenta de Jeanneret. “Tomam-nos por toda a parte por tipos que fazem a volta do mundo a pé”, reporta alegremente Jeanneret. A sua cultura pictórica presta-se a transcrever cenas de tipo, tal como em Istambul: “Ao longo das velhas muralhas concentraram-se as barracas ciganas. Mulheres esplêndidas enfim, todas as belezas são discretas, poses à Giotto e cores de Matisse, e o estilo de Puvis.”8 Estas notações são úteis à acta jornalística da viagem. Mas quando ele autopsia a arquitectura, Jeanneret sai do terreno do pitoresco. Os Carnets transcrevem a escrita bruta e pensativa de levantamentos e perspectivas rápidas. Os detalhes são enquadrados em função de uma percepção física que reúne o solo, o mobiliário, as paredes interiores e a volumetria exterior. Daí a importância do pavimento, do pedestal e do degrau enquanto tomada de posse do plano. Contrariamente ao género literário do diário íntimo, estes Carnets não são destinados à publicação. De modo que a

atenção reservada por Jeanneret à temática da arquitectura do solo se traduz apenas em esboços. A consideração verbal que ilustraria o pensamento do pé ligado à mão do lápis é subentendida. Algumas anotações, dados do apoio ao esboço em jeito de legenda e de memória cromática, introduzem esta fenomenologia podométrica. Já em Atenas, Jeanneret prepara-se para enfrentar o choque do Parthenon. Um poema de Renan mergulha-o de antemão no intercolúnio matriarcal do templo ateniense. Por sua vez a Histoire de Choisy conforta-o na necessidade de compreender a sábia harmonia de um jogo composto. Contudo, os Carnets registam uma descoberta menos esperada: a ascensão pedestre até a Acrópole e a construção de escadas, pedestais e contrafortes que precedem o recinto. Certamente, esta experiência parece elementar a todo aquele que escala a colina. Mas é a sua valorização que predomina aqui, tal como acontece com a autópsia dos monumentos. Se a determinação do percurso de acesso, em resposta à geografia do sítio, capta a sua atenção, é porque Jeanneret sempre prestou especial atenção ao uso da inclinação na cidade. Ele chega a localizar em Praga e Istambul situações urbanas que pareceriam transponíveis a Chaux-de-Fonds, como se os seus sapatos fossem um instrumento da memória: l’oeil du marcheur.9 Pouco importa que se tenha sentado por vezes a observar e transcrever o fenómeno, fazendo uma mesa dos seus joelhos. Os seus esboços formam uma sequência. O tema do percurso pedestre da arquitectura passa por uma fenomenologia empírica que tende à pesquisa operacional. A arquitectura do solo A questão da arquitectura do solo enquadra três tipos de situações: O solo na sua relação com o subsolo. O solo e a sua implementação O solo enquanto ponto de partida do projecto. No primeiro caso, na cidade moderna, a questão do subsolo designa, antes de mais, a infra-estrutura industrial e as suas redes (trilogia água, gases, electricidade em relação com a rede viária), ou seja, uma relação dinâmica em que, ora se escondem, ora emergem com o construído. O boulevard haussmanniano ou o projecto hidráulico genebrês de Turrettini incluem tanto a captação como a evacuação das águas, de acordo com um sistema gravitacional exprimível em corte. A presença histórica desta infra-estrutura representa um acervo técnico cuja

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“Ce qu’il y a sous le pavé de Londres”, Louis Figier


1 KANT, Immanuel, Der Streit der philosophischen Fakultàt mít der medizinischen, Werke in 8 Büchern, ausgewahlt von Hugo Renner, Bd II, Berlin, Weichert, 1904: 84-85

2 ROUSSEAU, Jean-Jacques, Émile ou de l’éducation (1762), Paris, GF-Flammarion, 1966: 215

3 ibid.: 157 4 ibid.: 182 5 STERNE, Laurence, Vie et opinions de Tristram Shandy, gentilhomme (1760), tradução Charles Mauron, Paris, GF-Flammarion, 1982: 260

6 LOWENTHAL, David, The Past is a Foreign Country, Cambridge, CUP, 1985.

7 CORBUSIER, JEANNERET, Pierre, Œuvre complète de 1929-1934, ed. Willy Boesiger (1934) reed. Zurich, Artemis, 1964: 24

8 GRESLERI, Giuliano, Le Corbusier: Viaggio in Oriente, Gli ineditidi Charles Édouard Jeanneret fotografo e scrittore, Venise, Marsilio, 1984: 87

9 GIORDANI, Jean-Pierre, “Visioni geografiche,” Casabella, vol.11 (1987), n° 531532: 19-20

10 STRAUVEN, Francis, Aldo van Eyck, Relativiteit en verbeelding, Amsterdam, Meulenhoff, 1994 11 “The time has come to orchestrate all the motions that make a city a city. (...) A city has a very compound rhythm based on many kinds of movement, human, mechanical, natu­ral. (...) To cater for the pedestrians means to cater for the child,” VAN EYCK, Aldo, Team 10 Primer (1965): 401 12 JEHLE, Ulrike, Luigi Snozzi: 1957-1984, Milan, Electa, 1984: 60 13 ibid.: 78 14 SIZA, Álvaro, “Impressioni di un viaggio in Ticino, visitando le case di Luigi Snozzi”, in DISCH, op. cit.: 20

lógica pode entrar em conflito com o desenvolvimento de operações especulativas sobre a escavação de parques de estacionamento. Ainda que, a partir de Viollet-le-Duc, a teoria arquitectónica insista na investigação necessária do subsolo e na lógica construtiva que deve unir as fundações e a cobertura, não é raro que o ataque mecânico ao terreno ponha a descoberto surpresas geológicas e imponha constrangimentos técnicos, cuja contabilização agrava os orçamentos sob designação de imprevistos. Num segundo caso, a arquitectura do solo refere-se de maneira mais imediata à construção “daquilo sobre que se anda” na cidade. Desde já, as perguntas multiplicamse dado que dizem respeito tanto ao tratamento do espaço público, ao encontro mais ou menos conflituoso do território público e das parcelas privadas, como à expressão na superfície dos sistemas subterrâneos. A cidade sob a cidade designa certamente a longa duração histórica da cidade reconstruída sobre a cidade, mas também toda a arqueologia das redes industriais modernas, este cadastro subterrâneo cujos esgotos propõem dos temas literários e cinematográficos mais comoventes. Esta percepção do solo da cidade combina-se à metáfora animal. Deslizemos sobre a experiência canina do espaço público. A visão contra-picada deste último representa um prosaísmo sábio ou filisteu de acordo com os pontos de vista: neste caso, a antítese do voo de pássaro, percepção precisa e sintética. Encontrar a identidade de uma cidade não olhando mais que os próprios pés reserva surpresas. Ora a implementação do solo torna-se a questão teórica primeiramente desenvolvida por Aldo Van Eyck.10 O ponto de partida situa-se na aprendizagem da percepção sensorial da criança. Este tema autobiográfico repercute-se sobre o compromisso social do arquitecto. A palavra de ordem avant-gardiste da sauvagerie e a revolta aquando da sua participação no movimento COBRA, as suas viagens nos oásis argelinos e sudaneses, a sua descoberta dos directórios primitivos e simbólicos da construção africana, tudo isto alimentará a pesquisa de signos elementares construídos no solo. O jogo seria, em primeiro lugar, terreno antes de ascender para a descoberta do obstáculo e da passagem, o vazio sob a escada, o cheio do degrau e a escada. Van Eyck é sensível à hipótese poética de Giedion sobre o espaço-tempo [julho 2007] 28.29


que postula que a física da relatividade, contemporânea do cubismo, apela a uma arquitectura de configuração dinâmica. A forma deixaria de ser unitária. O percurso espacial articularia os momentos sensoriais numa cadeia de reacções. Para Van Eyck, a museografia do grupo COBRA, disseminação pelo solo de obras mostradas horizontalmente, e as praças de jogos de Amesterdão fazem parte de um esforço único de montagem espacial pelo inferior. Caixa de areia, muro, cesta, árvore, jogos tubulares de suspensão e pavimento oferecem variadas figuras espaciais de modelação do espaço urbano. Esta abordagem pelo solo demonstra a negação da grelha modular projectada sobre o terreno. Os lugares onde jogam as crianças são o motor da arquitectura e o mobiliário da cidade.11 Finalmente, num terceiro caso, e bem distante da obra pedagógica Van de Eyck, vê-se que o ponto de partida do projecto se situa na auscultação do solo. Tornase necessário analisar os arquitectos para quem a interpretação do lugar passa por uma espécie de intuição pedestre. Penso primeiro no automobilista e peão Luigi Snozzi cujos vários aforismos insistem na descoberta física da cidade: “A arquitectura mede-se ao olho e ao passo, ela deixa o metro ao geómetra.”12 Quando Snozzi declara: “Um verdadeiro prado chega até ao centro da terra”13 não é devido ao magnetismo terrestre, mas para dizer que tudo começa pelas fundações e pelo encontro com o terreno. O projecto não é invenção mas transformação, apoia-se sobre uma morfologia já traçada pela agricultura, rede viária e indústria. Se a palavra de ordem gregottiana de legibilidade geográfica do território é aplicável à escala do grande projecto, parece que Snozzi opera a partir de uma leitura íntima do solo. Como observa Álvaro Siza, a prática de Snozzi passa por escalas sucessivas da casa à cidade.14 Citar Siza a propósito de Snozzi retoma afinidades electivas. Ambos são arquitectos medidores. Ambos raciocinam com os pés e com a ponta do lápis. Ainda que a sua arquitectura divirja pela plasticidade dos volumes, pela técnica e pela gama dos materiais, os seus projectos sobre terrenos inclinados exprimem um encontro escultural com a geologia. A forte presença final da escavação é acompanhada pela construção de plataformas e pelo contraste entre volumes inclinados e emergentes. Pelo seu lado, Siza pratica o esboço em respiração

sem título, Carlos Garcia

contínua. Os seus alunos surpreendem-se: “ele desenha o tempo todo”. Veloz, virtuosa, esta actividade não tem nada de febril, ela recolhe a escrita do lugar numa sequência de notas memorizáveis. Mesmo acompanhado, Siza é capaz de desenhar enquanto anda. Se ele se senta, as suas mãos, a ponta bic e o papel figuram em primeiro plano. Chegado a um quarto em Berlim, pousa a sua mala sem a desfazer, descalça-se, estende-se na cama, desenha as suas mãos e os seus pés em frente da janela. O olho passa pela mão que passa pelo pé para ir à cidade. Esta aquisição de princípios inicial exprime a convicção que a arquitectura se constrói sobre o já construído. Por intuição, os primeiros traços do projecto aparecem aquando da descoberta do terreno. Siza quer que a longa elaboração do projecto não apague inteiramente a sua primeira e espontânea intuição. Dificilmente imitáveis, não ensinarão os arquitectos medidores a teoria da carne em detrimento da razão pedestre? [texto extraído do artigo “Motion, Émotions : notes sur la marche à pied et l’architecture du sol” in GUBLER, Jacques (ed.), Motion, émotion: Thèmes d’histoire et d’Architecture, Infolio Editions, 2003]

* historiador da Arquitectura Moderna e professor jubilado da Accademia di Architettura de Mendrisio.


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entrevista

foa

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Fundado em 1992 por Alejandro Zaera-Polo e Farshid Moussavi, o atelier Foreign Office Architects assumese como pertencente a uma geração de arquitectos que procura uma nova linguagem formal para reflectir a velocidade, ambiguidade e incerteza da vida contemporânea. Segundo os FOA, em resultado da globalização e da carência de identidade, ser estrangeiro é uma condição da contemporaneidade e que pode ser explorada “in a creative way”.

a tríade chão, parede e tecto é substituída por uma superfície “activa, complexa e mutante”, de onde a arquitectura emerge como “figura improvável e flutuante”. Outros projectos como o cais de Tenerife, a proposta para o South Bank Complex em Londres, o parque Downsview em Toronto ou o Parque e Auditório de Barcelona evidenciam o chão como génesis, submetido a um trabalho de geometria e activação da superfície.

No artigo “La Transformación del Suelo”1, publicado na CIRCO em 1998, os FOA fazem uma abordagem ao chão, mostrando a sua estreita relação com esta condição nómada da cultura e da vida urbana contemporânea. Nesse manifesto propuseram uma revisão da relação clássica entre edifício e chão. Estável e horizontal eram termos que pertenciam à leitura convencional do chão. Para Alejandro Zaera Polo e Farshid Moussavi, este devia tornar-se numa “espécie de sistema operativo topográfico”. Durante os primeiros projectos, este conceito de solo alia-se ao seu trabalho prático, ao fazer da manipulação deste uma constante na metodologia do seu trabalho.

Em 2004 os FOA publicam Phylogenesis, um levantamento à posteriori que analisa metodologicamente o seu trabalho. Esse mapa, inventário da produção do atelier nos primeiros 10 anos, revelou um extensivo campo de pesquisa composto por várias espécies de arquitectura que derivam de duas linhagens: Envelope e Ground.

Foi com o projecto de Yokohama que os FOA começaram a brilhar no círculo mediático dos starchitects. No terminal marítimo de Yokohama,

Terminal Marítimo de Yokohama, FOA

No trabalho dos FOA, o chão é um campo primordial e uma plataforma consistente onde a produção teórica e prática estão muito próximas, dando origem a momentos onde a relação figura/fundo é mais evidente, como no projecto BBC em Londres, ou ambígua como no projecto da Ponte Parodi em Génova. Durante esta entrevista, a NU procurou o lugar do chão no trabalho do FOA: bottom-up? Ou top-down?


[julho 2007] 30.31


Conhecendo o vosso trabalho, podemos afirmar que se baseiam mais na resposta a necessidades do que no desenvolvimento de uma identidade formal? Creio que sim, mas a identidade deve basear-se na eficácia, em necessidades. Tentamos sempre conciliar eficiência e expressão, procurando evitar ser arquitectos cujos desejos arquitectónicos se sobrepõem a qualquer outra forma de racionalidade, inteligência ou eficiência. Acredito que a arquitectura sempre foi assim. A arquitectura implica uma função. É uma actividade que alberga funções e é isso que a difere da escultura, pintura ou música. A expressão arquitectónica emerge directamente de servir esta função. Claro que servir a função não é a única coisa que a boa arquitectura faz, mas acredito que seja o requisito mínimo que tem de atingir. Mas existem momentos no vosso trabalho em que, em vez de trabalhar em função de um programa ou fluxos, começam a perseguir uma ideia formal? Isso apenas acontece quando começamos a formalizar a organização do programa com o objectivo de produzir o espaço que vai ser palco de uma certa actividade. Começamos obviamente a identificar certas emergências que depois se consolidam em arquitectura. Não posso dizer que não temos intenções formais que se desenvolvem a certa altura do projecto. Contudo, nunca é no começo do processo. Este começo centra-se em organizar preocupações muito factuais, funcionais e efectivas. Só depois a expressão arquitectónica emerge e é desenvolvida. Com o livro Phylogenesis vimos no vosso trabalho uma intenção de diversificação de respostas. Qual é para vocês a importância de usar soluções tipológicas? Bem, as soluções tipológicas estão sempre intrinsecamente ligadas ao programa, à função. Basicamente, as tipologias são organizações físicas que respondem às exigências de um programa. E é aqui que assenta o nosso interesse em tipologias. As tipologias são organizações físicas que ao longo do tempo albergaram determinadas funções e que por isso contêm as qualidades materiais e de organização espacial que certas funções requerem. Por exemplo, penso que o Phylogenesis não é necessariamente um manual tipológico. Estamos interessados em tipologias, mas o Phylogenesis está

muito mais preocupado com organizações formais ou organizações físicas que por vezes não cabem em tipologias convencionais, definições tipológicas ou tipos convencionais. Qual é, na sua opinião, o melhor espaço público: o aberto, mero chão, ou o espaço gerado dentro de edifícios, espaço público que é arquitectura? Penso que não podemos dizer qual é o melhor, são ambos igualmente interessantes e poderosos. Não se pode fazer essa distinção... Pensemos, por exemplo, no espaço público presente no Terminal Marítimo de Yokohama e no Parque Costeiro e Auditórios em Barcelona. A maior parte dos vossos projectos modifica a superfície ao nível do chão de uma forma quase natural. Embora artificial, parece algo muito natural e fluído. Qual é a vossa posição em relação à manipulação do território urbano numa escala maior? Obviamente temos estado muito interessados nessa actividade em projectos anteriores, mas não consigo dizer qual é mais importante, se fazer edifícios ou o espaço entre eles. Penso que uma das coisas que a nossa geração descobriu é que os edifícios não são objectos num terreno plano. Pelo contrário, cada vez que se coloca um edifício num território urbano ou rural, existem muitas forças latentes, fluxos, limitações. Estes podem afectar, penso que para o melhor, a configuração do edifício ou da superfície que desenhamos para esses locais. Acredito que a relação entre campo e objecto é provavelmente uma das coisas que nós, assim como muitos dos nossos colegas, entendemos como uma das linhas principais de investigação na arquitectura contemporânea. No começo da vossa carreira abordaram o tema do chão, apresentando-o como uma das linhas-mestras do vosso trabalho. Mantêm esta posição? É uma das linhas-mestras mas existem também muitas outras linhas de pesquisa. Por exemplo, agora estamos muito interessados em edifícios altos e em superfícies livres. Temos uma variedade de temas que exploramos dependendo das diferentes oportunidades que surgem em cada projecto. A paisagem e o chão, e a sua relação com a arquitectura, são apenas uma das facetas do nosso trabalho.


Mas numa entrevista para a Log Magazine afirmaram “Trabalhamos de baixo para cima”2 . Qual é a importância da topografia no vosso método de trabalho? Não me consigo recordar de quando fizemos essa afirmação… Nós trabalhamos de baixo para cima, mas também trabalhamos de cima para baixo. E, por vezes, sugerimos certos tipos de protótipos que sintetizámos para um outro local ou um outro projecto e que pensamos serem adequados para reutilizar numa nova situação. Quando trabalhamos de baixo para cima, na organização do chão, analisamos caminhos de circulação, cotas e actividades que vão ser albergadas pelo projecto. Analisamos um diferente número de factores que podem afectar a performance do chão enquanto superfície no projecto. E desenvolvemos o projecto a partir da combinação de diferentes limitações e preocupações que o envolvem. Mas, como estava a dizer, também trabalhamos de cima para baixo. Por vezes, podemos manipular o chão dividindo-o, por exemplo, em bandas paralelas que têm uma espessura estruturalmente visível através de uma determinada tecnologia de construção. Noutras situações, podemos utilizar protótipos que ondulam em duas direcções baseadas em padrões geométricos. Portanto, existe um número de protótipos estruturalmente fixos, protótipos organizativos que desenvolvemos e carregamos connosco e que, a certa altura, podemos reutilizar. Esta reutilização pode não se dar necessariamente de baixo para cima, mas relançando esses protótipos de cima para baixo, ajustando-os a posteriori.

Terminal Marítimo de Yokohama, FOA

O chão deixa de ser suficiente? No momento em que se recebe um projecto que não tem nada que ver com o chão, levanta-se uma série de questões. Ou seja, não conduzimos a nossa prática baseando-nos num campo de pesquisa em particular. A verdadeira pesquisa na prática é explorar as oportunidades que aparecem. Algumas delas têm que ver com o chão mas, se por exemplo, recebermos uma comissão para fazer um restaurante, provavelmente não fará qualquer sentido jogar com o chão. Nos nossos primeiros anos de trabalho, quando todos estavam interessados em nós por trabalharmos com superfícies e chão, davam-nos comissões para fazer um restaurante seguindo esses protótipos formais. Nós, mesmo percebendo que essa

Virtual House, FOA

Ponte Parodi, FOA

[julho 2007] 32.33


não era necessariamente a melhor resposta, aceitávamos o exercício. Penso que o problema é identificar a própria prática com certo tipo de pesquisa quando, na realidade, se está muito mais interessado em explorar as potencialidades de situações específicas. Nesse sentido, o Phylogenesis ajuda a explorar esses vários caminhos e talvez até sugira que a vossa arquitectura é mais investigação que produção. Procuram encontrar todas os protótipos possíveis de arquitectura ou só aqueles que possam achar mais interessantes ou com mais potencial para uma determinada situação? Primeiro que tudo, penso que com o Phylogenesis não queremos dizer que o nosso trabalho é investigação. O nosso trabalho é fundamentalmente produção. Phylogenesis é uma análise a posteriori, não é algo que tínhamos antes de começar os projectos. Desenvolvemos alguns projectos e, após estarem construídos, voltámonos para eles e tentámos analisá-los. Portanto, não é uma proposta de hipóteses mas sim uma análise depois do facto, análise essa que se espera que traga alguma luz sobre a maneira como abordamos o nosso trabalho. Somos arquitectos praticantes. Temos clientes, comissários, que nos pedem que produzamos ou que providenciemos determinado serviço. No entanto, ao mesmo tempo que providenciamos esses serviços, exploramos relações entre certos elementos da arquitectura, relações entre organização e programa, e por aí adiante… Têm produzido uma arquitectura que é mais figura que fundo, ou seja, uma arquitectura enquanto objecto, que se afirma por si própria? Em alguns casos, sim. Percebemos que objectivo da comissão é, por exemplo, afirmar poder e procuramos jogar com essa oportunidade específica, desenvolvendo os mecanismos que permitem que o edifício tenha o desempenho que nos foi pedido. Tentamos eventualmente encontrar uma forma forte e identificável que emirja dessas preocupações e que tenha que ver com os significados e valores da arquitectura que pretendemos representar. Quando fazemos esse tipo de projectos criamos uma convergência entre exigências técnicas e funcionais e performance iconográfica. Hoje em dia vivemos numa sociedade de ícones e todos esperam que a arquitectura os produza. Haverá espaço para soluções alternativas? Ou a tendência icónica da

arquitectura condiciona o vosso trabalho? Ao termos de responder a essa sociedade, obviamente que condiciona o nosso trabalho. E mesmo que algumas vezes desejássemos fazer uma arquitectura mais primitiva e inocente, que simplesmente emergisse da resolução de certos assuntos técnicos, estruturais ou funcionais, acabaríamos por nos envolver em temas de iconografia, o que não deixa de ser interessante. Pode considerar-se ambígua a relação entre a Hokusai Wave3 e a vossa teoria que assenta na função como directriz do projecto? Não, não creio que seja ambígua. Basicamente, a manifestação iconográfica, agora, é também função, especialmente em certas ocasiões e em certas oportunidades. Por isso tem que ser considerada como outro tipo de função. A vertente icónica da arquitectura pode perder a sua força quando a sociedade deixar de a exigir. De uma maneira ou de outra, o arquitecto precisa de representar ou aceitar mensagens que vão para além da mera implementação de exigências funcionais e técnicas no projecto. Uma das coisas que a arquitectura faz é tornar as pessoas mais conscientes das actividades que praticam nos locais onde têm vivido. Uma das suas principais funções é mostrar a evolução das coisas. De outro modo, a arquitectura não teria significado, tornar-se-ia uma mera presença. Pode diminuir-se a intensidade da cultura de ícones mas não se pode eliminá-la totalmente. A iconografia é uma forma de apresentação. Obviamente que há outras formas, mas não acho que se consiga eliminar todas. * alunos do 3º e 6º ano do dARQ, respectivamente.

1 Foreign Office Architects, “La Transformación del Suelo”, Circo 1998.050, Circo MRT Coop, Madrid. 2 “Consistency: A conversation with Alejandro Zaera-Polo,” Peter Macapia, Log 3, New York: Anyone Corporation (2004) 3 “The Hokusai Wave” é o artigo escrito por Alejandro Zaera-Polo para a revista Volume de Setembro de 2005. Alejandro Zaera-Polo propõe a utilização de imagens da nossa cultura visual para a concepção do projecto. Considera que, desta forma, se pode vender o projecto mais facilmente ao grande público. Numa conferência no Berlage Institute em Fevereiro de 2006, este tema foi alvo de polémica entre o autor e Rem Koolhaas, que apelidou esta posição de linguagem-isco. [julho 2007] 34.35


The Bundle Tower (WTC I), FOA


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in sight

o fundo como forma António Olaio*

As coincidências formais entre o projecto para o Museu da Evolução Humana para Burgos, em Espanha, de Jean Nouvel, e o seu projecto para o Guggenheim de Tóquio, não se deverão certamente a uma mera afirmação estilística, mas certamente à manifestação de motivações conceptuais comuns e/ou complementares. Sendo um o Museu da Evolução Humana e o outro um espaço para a apresentação da arte contemporânea, pode parecer bizarro, a programas tão distintos, fazer corresponder a mesma solução tipológica. Tanto o projecto do Museu da Evolução Humana de Burgos quanto o projecto para o Guggenheim de Tóquio criam edifícios camuflados, como se fossem montes, artifícios que se mascaram de paisagem, invertendo a expectativa de que a urbe se inscreva na paisagem. Aqui, é a paisagem que se enquadra, assim objectualizada, num monte como coisa, no espaço urbano. A paisagem é, então, uma ilha na cidade e não a cidade que é uma ilha na paisagem. Inverte-se aqui a relação entre natureza e artifício. Entre edifício e paisagem. Entre forma e fundo. A paisagem já não é o fundo, agora é a forma. A paisagem já não é o cenário, é o objecto. A cidade é a manifestação material do artifício. Mas quando o artifício domina o território, é o artifício que toma o lugar da paisagem. E estes edifícios-monte surgem como uma espécie de representação do que outrora seria a natureza, como relíquia, como objectualização de uma memória da natureza. Na ausência da paisagem natural, representa-se, objectualiza-se, uma parte como representação iconográfica de um todo. Simulação paradoxal ao tornar coisa um monte, detalhe da paisagem.

Museu da Evolução Humana, Jean Nouvel


A paisagem que, por ser paisagem, seria indivisível. Faz todo o sentido ser assim o projecto para o Museu da Evolução Humana. Nada melhor para referenciar a evolução humana do que a imagem da sua ausência, representação objectual da natureza antes do artifício, ou seja, da natureza antes do Homem, ou melhor, da natureza antes do Homem se manifestar como tal, porque é o artifício que funda a humanidade. O Homem começa aí, começa antes de o ser. E esta imagem artificial da natureza, este monte como representação iconográfica da natureza, é a paisagem, o fundo onde o Homem se afirmará como forma. Mas, afirmando-se como Homem, será um vírus genial, depois do qual a paisagem nunca mais será a mesma, até porque, pelo artifício, terá arrogância de considerar que a paisagem não passará da extensão do seu corpo. A partir daí o Homem será a paisagem, e só admitirá a persistência da paisagem natural em divagação romântica, o que não passará de um capricho do próprio artifício. Um museu de arte contemporânea, como o Guggenheim de Tóquio, ter também a forma de um monte faz, nesta representação objectual da natureza, todo o sentido, pelas mesmas razões que faz sentido enquanto Museu da Evolução Humana. Sendo lugar para a arte, celebra o artifício puro, o artifício para além da necessidade utilitária, o artifício pelo artifício na arte, enquanto manifestação da relação estética com as coisas. E este museu, que se mascara de natureza, afirma-se como contentor para o artifício no esplendor das suas manifestações lúdicas. Nestes dois projectos a natureza não é representada como um cenário de fundo. Dentro destes edifícios, estando dentro do monte, estamos dentro desta representação da natureza, ou nesta alusão a esta reminiscência da ideia de natural. Mas, estando dentro do monte, não o vemos, mas sabemos que estamos dentro dele. E a melhor perspectiva deste monte, a mais verdadeira, será a que temos lá dentro, quando não o vemos. Quando não o vemos é quando o vemos melhor, quando acedemos à imagem mais rigorosa da sua verdade, que é quando sabemos que ele está lá, que é graças a ele que estamos lá dentro.

Guggenheim de Tóquio, Jean Nouvel

Museu da Evolução Humana, Jean Nouvel

* artista plástico, docente no dARQ

Museu da Evolução Humana, Jean Nouvel

[julho 2007] 36.37


cemitérios Luís Loureiro*

O arquitecto não deve construir castelos na areia. O arquitecto sabe que a Terra regula e as suas leis são mandamentos para cada obra e mais que uma imposição, serão ferramenta única na criação do objecto, na sua relação em conformidade com o habitante e na harmonia que deve gerar com o meio. A luz, a matéria, a gravidade, o tempo, prevalecerão para lá dos discursos críticos dominantes antes, agora e depois das vanguardas, da escola, das instituições. A arquitectura não se faz de vanguardas, da escola, das instituições, mas sim de luz, matéria, gravidade e tempo. Agora que me permito a mais um devaneio cíclico, introduzo o tema: Apetecia-me mais um devaneio cíclico... A propósito deste número do chão lembrava-me que para lá de tudo o que nos ocorre quando falamos do chão (porque o arquitecto constrói a partir do chão, para cima ou para baixo): Porque não pensar na arquitectura para o chão? Porque o arquitecto constrói a pensar na obra em vida e na obra depois da vida, referindo a outras vidas da arquitectura frequentemente, mas Porque não da arquitectura para o que está morto? E porque me permito frequentemente a devaneios cíclicos talvez me apetecesse simplesmente escrever sobre assuntos acíclicos, longe dos discursos críticos dominantes, das escolas, das instituições. “Entre a noite e o escuro vislumbro Não obstante a hesitação Que o tempo é cego e que é mudo Que cada momento cheio de excitação é oco, É só mais uma questão Que remete para antes de tudo E por isso se esquece até da morte Não há futuro.” António Roma “A morte comanda a vida.” Campos Falcão “Verdes são os campos, da cor do limão, Assim são os olhos do meu coração.” Luís Vaz de Camões


Introdução Durante muito tempo o cemitério permaneceu no meu imaginário como me lembrava dele em criança. Um pedaço de terra de ninguém, sujo e mal tratado, com portões três vezes maiores que eu à entrada de ferro bruto e uma grande caveira negra que as encimava a sorrir. Era um rectângulo monótono entre muros brancos e pinheiros, antecedido por um patiozinho de cimento chapiscado em forma triangular. Nos dias mais tempestuosos, íamos desafiados visitá-lo e fugíamos ao som das campas a abrir cada vez que se ouvia um trovão. Às vezes contemplava as campas dos meus antepassados. Um dia lembro-me de ter dito aos meus pais que aquilo era ridículo e que se morresse deveria ser cremado. Que não era uma utilização própria de espaço e porque sobretudo não era digno, não gostava de imaginar pessoas mortas em caixões de vermelho rubro a descer a terra e a família toda a chorar. Não conseguia entender como se pode prestar culto a uma gaveta, ou como se pode aceitar que os restos mortais de uma pessoa sejam retirados para que se deposite outra no mesmo lugar. Não me parecia lógico. Agora acho fundamentalmente o mesmo... O texto que a seguir se apresenta é incontornavelmente subjectivo e incompleto, e radicará em questões como qual o porquê do cemitério e qual a relação do ser humano com a morte. Deverá o cemitério ser classificado como um exercício de arquitectura? Abordaremos o tema de forma intensamente hermenêutica, recorrendo a exemplos mais ou menos conhecidos, para reflectir mais sobre o porquê dos cemitérios, do que sobre as qualidades estéticas específicas deste ou daquele exemplo. Imaginário Os túmulos reflectem a concepção que o Homem tem da morte, no confronto com a própria vida. Panofsky e Ariés interpretaram a arquitectura e estatuária funerária à luz das grandes religiões politeístas e monoteístas de que provêem. Na introdução ao livro La Última Casa1 de Mónica Gili, Pedro Azara descreve sumariamente alguns dos pontos essenciais das suas reflexões, de onde irei buscar algumas guias para as seguintes linhas. Os túmulos, ou tumbas, são por definição construções extremamente antigas. O abandono em que recaem ajuda-nos a perceber a arquitectura do seu tempo, já que são construídos como utopicamente invioláveis. O túmulo existe num lugar tenso, que media duas atmosferas distintas. É composto por um buraco no solo onde o falecido é feito desaparecer.

Contudo, a sua presença é marcada por um elemento superior, por uma construção de qualquer tipo, como se se quisesse compensar a perda da pessoa, como se se quisesse mantê-la na atmosfera dos vivos. Tumbas ou túmulos são palavras que provêem do grego e que sugerem a ideia de swell. Um túmulo é uma espécie de protuberância natural ou artificial na terra, diferente de uma ondulação gentil no solo. Swelling refere uma desordem repentina no solo causada por um agente externo. Para os Gregos, a alma é feita de ar e a morte, a derradeira exalação. O sepulcro enquanto se crava no chão ascende gradualmente como uma espécie de rampa que aponta para as suas irmãs, as estrelas. Algumas das mais notáveis tumbas da antiguidade, como as tumbas do faraó Zoser em Saqqara, de Agamemnon em Mycenas ou os mausoléus do Rei de Trace em Halicarnassus, de Augustus e Adriano de Roma foram coroadas com uma cúpula cónica ou uma pirâmide em degraus, no topo dos quais aparecia um carro puxado a cavalos, simbolizando a vitória da alma sobre a morte. A morte é perene O cemitério foi sendo tema de arquitectura ao longo da história, das sociedades primitivas aos arquitectos que marcaram a arquitectura moderna, o cemitério foi objecto de reflexão para o arquitecto, quer por encomenda directa, quer por afinidade a uma ou mais pessoas falecidas. A arquitectura arcaica que chegou ao nosso tempo consiste, segundo Azara, unicamente em tumbas. Por um lado, apenas pedras eram utilizadas na construção das tumbas. As casas, por outro lado, eram construídas em adobe. Mesmo os templos e palácios mais sólidos foram consumidos pelos desertos durante milénios. As pirâmides do Egipto, grandes tumbas para reis e seus familiares e heróis, e ao mesmo tempo escadas que encaminhavam a alma para o céu, são testemunhos notáveis da cultura e da concepção de arquitectura no antigo Egipto. Saqqara, a cidade dos anciãos, é a única cidade da antiguidade que permaneceu intacta até a nosso tempo, construída sobre socalcos nas margens do rio Nilo, descrevendo um rectângulo perfeito, com entradas monumentais, ruas pavimentadas, armazéns e casas feitas de blocos de pedra. Contudo, Saqqara não era uma cidade habitada por vivos mas por almas, ou uma alma única. Era nas palavras de Azara, uma “necropolis reluzente” projectada pelo arquitecto e físico Imhopeh para o faraó Zoser há cerca de 6000 anos, à imagem de Memphis, ela própria desaparecida há milénios. Da mesma forma a cidade de Petra, cujos edifícios de composição clássica permanecem intactos e são exemplo notável da história de Roma, é [julho 2007] 38.39


uma cidade de mortos. E Eusápia, uma cidade mortuária construída à imagem da Eusápia visível, composta por edifícios e ruas em construção de forma e estrutura variável. Calvino, analisando ambas as cidades conclui: “tinham sido os mortos quem na verdade construiu a Eusápia visível”, “nas duas cidades não existe forma de saber quem são os vivos e quem são os mortos”. A Eusápia subterrânea acusava pois uma estranha vitalidade, como se procurasse eternizar a vida dos mortos, conservar a Eusápia para sempre ou, pelo menos, a sua memória. Memória Platão usou o adjectivo ephemeroi para se referir ao ser humano. Ou seja, como a efémera, “aqueles que não duram mais que um dia.” A morte é condição do ser humano, e o que o distingue dos deuses é que é mortal. O trabalho do arquitecto, continua Pedro Azara, é oposto à morte. A sua tarefa é a de fazer brilhar a luz da vida o mais possível, de tal forma que, como veremos mais adiante, lhe coube desenhar espaços onde a morte se confunde com a vida e onde os falecidos se deveriam sentir “como se estivessem vivos”. Espaços que procuram poupar o Homem do desaparecimento para sempre, que buscam a vida eterna, ou a eternização da memória. Para os cristãos, a vida é uma ponte para qualquer coisa maior, haverá um dia do juízo final, em que se decidirá quem passará para o céu, quem passará para o inferno, o corpo é um meio para uma outra dimensão, e a passagem pela terra uma espécie de caminhada rumo ao Holy Graal. Desde o princípio do tempo que o Homem procura justificar aquilo que não controla. A morte, como ponto incontornável na sua existência, pede essas justificações. As sociedades, monoteístas, politeístas, primitivas ou contemporâneas, foram encontrando formas de responder a essa necessidade. Alguns povos medievais da Europa do Norte queimavam os seus mortos numa cerimónia assistida por parentes e amigos. Motivados por crenças de ordem cultural ou simplesmente por terem encontrado neste meio uma prova inequívoca de que aquela pessoa partiu e de o aceitarem. Alguns povos indígenas enviavamnos numa barca rio a baixo, um rito muito semelhante ao anteriormente referido. No fundo, interessa ao Homem preservar a memória da pessoa morta, fazê-la partir com dignidade e relacionar-se facilmente com a sua própria morte e a de outrem. Na maioria das sociedades civilizadas contemporâneas, o Homem científico e pragmático constrói cemitérios para os seus mortos. Enterra-os, a meu ver, e não os

queima, nem os deita rio abaixo, porque por um lado precisa igualmente de uma prova que a pessoa morreu, mas por outro precisa de um sítio onde voltar, quer para se reconfortar perante a morte, quer para prestar culto mais directo ao morto. As mais belas tumbas foram comissionadas por amantes como uma homenagem eterna à pessoa amada: do cenotaph que a rainha helénica dedicou a Mausolaus, rei de Caria, ao Taj Mahal, a tumba delicada, a uma pequena urna funerária em forma de edifício que Le Corbusier desenhou quando a sua mulher faleceu e que deveria receber ambos. Uma pequena construção onde, segundo Azara, a casa deixa de ser uma máquina para passar a ser um lar, o derradeiro lar. Nas suas palavras: “em pó se deverão tornar, mas em pó de amor.” Herodotus: a casa em que o Homem repousa é temporária, uma vez que a casa real, a cuja construção dedica toda a sua vida, é o seu derradeiro local de repouso. Na Grécia antiga, a mesma palavra que designava a casa designava a tumba. E dizia Loos, apenas monumentos (leia-se casas para os mortos) são arquitectura. Todos os outros edifícios seriam entendidos como construções simples, produtos da técnica ou do artesanato, não trabalhos apelando à tecne. Poderá ser fruto da sorte esta constatação de Azara de que os monumentos que chegam até nós, que os objectos de arquitectura e da arte antiga que permanecem são monumentos funerários. Em todo o caso, quando uma tumba era construída, era para sempre. O túmulo é construído como um elemento individual e inviolável. Quando selamos um túmulo, não fazemos tenção de o abrir, e assim a morte ganhou na arquitectura, como na própria vida, uma notável longevidade. A morte e a modernidade Alguns dos arquitectos que marcaram a modernidade tiveram, por encomenda ou proximidade com a pessoa falecida, um papel muito activo na arquitectura funerária do séc. XX. De entre uma cuidada selecção de Mónica Gili, apresento de seguida alguns exemplos. Durante a sua vida, Alvar Aalto criou uma série de túmulos, alguns dos mais notáveis desenhados para os seus amigos. Tal como outros arquitectos do seu tempo, que adoptaram os critérios do movimento moderno, Aalto empregou uma linguagem e simbolismo absolutamente clássicos para a maioria dos seus monumentos funerários. No túmulo do seu professor, Usko Nystrom, uma pedra mármore é [julho 2007] 40.41


decorada com uma folha de acanto, por exemplo. A esposa aplicaria a mesma simbologia à sua morte no seu túmulo. Ao lado de uma pedra mármore branca, um motivo jónico repousa sobre um bloco de pedra absolutamente abstracta ao lado de uma pedra mármore preta com uma inscrição em negativo. Le Corbusier desenhou também o seu próprio túmulo para o cemitério de Roquebrune em 1957, ano em que a sua esposa Yvonne faleceu. Localizado na base de um alto cipreste, o túmulo consiste numa lápide horizontal simples de onde se projectam dois volumes horizontais. Um cilindro usado como receptáculo para as flores e volume trapezoidal onde ambos os epitáfios seriam inscritos. Na base, também em betão, uma cruz e um relevo de duas conchas. As formas geométricas estabelecem, segundo Gili, um diálogo com a natureza e a paisagem circundante. Por entre outros exemplos por Gili descritos, Gunnar Asplund, Tony Garnier, Carlos Scarpa, Otto Wagner, etc, descubro como particularmente interessante um pequeno túmulo desenhado por Sigurd Lewerentz para um enterro privado na pequena ilha de Uttero no arquipélago de Stockholm. Em Uttero, Lewerentz propõe colocar 3 elementos básicos: caminho, túmulo e cruz, numa paisagem natural, numa ilha deserta. Como se se quisesse esbater o túmulo no ambiente, como se se quisesse conservar aquela pessoa num ambiente uma vez mais inviolável, alheio a qualquer tipo de interferências exteriores.

se estendem ao longo da encosta, essa individualidade da pessoa, ou da família morta, perde-se na abstratização de cada tumba, sempre igual e partilhando o mesmo bloco com outras pessoas e outras famílias. No limite um familiar que guardasse alguns anos sem lá voltar teria que fazer algum esforço para se lembrar onde se encontra o túmulo da pessoa falecida. Mesmo no caso dos jardins americanos de campas rasas, cada campa é uma campa. Talvez daí viesse a minha consternação perante o cemitério. Se era uma ossada que ali estava, naquele cemitério da minha aldeia, a pessoa ainda ali estava, por muito que fosse só uma ossada. Talvez porque achava que aquela campa deveria ser inviolável, aquilo não fazia sentido. Porque sentia que a individualidade de uma pessoa e da sua memória, da sua alma or whatsoever deveria ser conservada ad libitum. Agora acho fundamentalmente o mesmo. * aluno do 4º ano do dARQ.

1 GILI, Mónica, La Última Casa, The Last House, Barcelona: Editorial Gustavo Gili (1999)

Individualidade O cemitério como o conhecemos só fará portanto sentido se a memória, a memória individual, a individualidade de quem foi sepultado, se fizer sentir ad libitum. A característica essencial do cemitério como o conhecemos reside na necessidade de conservar a integridade individual do ser humano, antes e depois da vida. A campa, o jazigo ou qualquer outra forma de sepultura deverá pois ser sempre um elemento individual inscrito numa atmosfera qualificada para o culto aos mortos. Sabendo à partida que este lugar se inscreve numa atmosfera muito sensível ao ser humano. Mesmo nas sociedades pagãs, a morte é um ponto incontornável na vida de qualquer pessoa, mas a memória individual do ser humano é conservada no seu legado, na história e na própria tumba. Os portugueses mais notáveis, por exemplo, continuam a ser sepultados no Panteão Nacional, como se os quiséssemos manter vivos para sempre. O que falha, por exemplo no cemitério de Finisterra, de César Portela é que, ao conceber um conjunto de volumes que cemitério de Finisterra, César Portela


Parece um fenómeno raro mas não é. Por razões diversas, sobretudo pela construção de barragens, é necessário deslocar povoações inteiras de um sítio para o outro. Recentemente, na China, assistimos à evacuação de 1,2 milhões de pessoas após a construção da Barragem das Três Gargantas. Também no Brasil, dado o número de pessoas afectadas pela construção de centrais hidroeléctricas, organizou-se o MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens). Trata-se da “mobilidade da terra”, expressão que encontrámos num documento algures na web e que define isso mesmo: a capacidade de um lugar mudar de sítio. Neste artigo, reflecte-se sobre o caso português numa tentativa de compreender o que acontece quando o chão muda de lugar. Na Aldeia da Luz, perante as alternativas, a decisão da população foi a construção mimética de uma nova aldeia. A partir do momento em que se definiu a actual cota a que chegariam as águas do Alqueva soube-se que a Aldeia da Luz tinha de ser deslocada. A prioridade foi tentar encontrar uma posição que mantivesse as relações de proximidade geográfica com as aldeias vizinhas e com os centros urbanos - Évora e Beja. Assim, a deslocação da aldeia é mínima e, do novo local, o Monte da Juliôa, é possível avistar, a partir do novo Museu da Luz, o lugar da antiga aldeia (agora lago). Se na antiga aldeia a construção se foi acomodando à topografia e às pré-existências, na nova foi feita tabula rasa, limpou-se o sítio para a nova construção. No terreno virgem desenhar-se-iam as vias de uma nova aldeia. Mais uma vez, tentou preservar-se a posição relativa dos objectos dentro do todo. A distribuição dos edifícios públicos é semelhante. A lógica de circulação é mais ou menos a mesma. Por exemplo, a rua que liga a fonte à igreja, continua a ser a rua que liga a fonte à igreja. Alterase, no entanto, o desenvolvimento do percurso: houve um endireitamento, as curvas passaram a rectas, a orgânica perdeu-se. As ruas existentes foram sujeitas a responder a

uma malha que não é nem ortogonal nem orgânica; de um desenvolvimento radial passou-se para uma estrutura de base ortogonal distorcida em certos pontos. Consequência óbvia deste ajustamento é a alteração na orientação solar de certas parcelas. O parcelamento da nova aldeia não foi directamente transposto, sendo dada a possibilidade às pessoas de reorganizarem as suas propriedades. A flexibilidade do sistema permitiu que um proprietário de três casas pequenas fizesse duas maiores com área total equivalente, ou que um proprietário de uma casa grande a subdividisse para poder partilhá-la com os filhos, planeando uma herança. Assim, neste processo de combinatória, alteraram-se as relações de vizinhança, a forma dos quarteirões, o cadastro. A liberdade de escolha permitiu ainda que se optasse por um sistema construtivo recente ou tradicional. Houve quem preferisse uma reprodução integral da antiga casa de pedra a uma casa de parede dupla com isolamento. Também no interior das casas houve alterações: criaram-se instalações sanitárias que antes não existiam e optimizou-se o espaço, compartimentando-o de outra forma. Mas, mais importante do que o espaço interior de cada habitação, foi a preocupação com o espaço público. Como nos disse uma moradora: “É como mudar de casa, quando é contra vontade… passado um tempo adaptamo-nos à casa, mas quando saímos à rua a aldeia não nos diz nada”. A praça, local de encontro, foi tomada pelo automóvel. Se antes existia um pequeno desnível a delimitar a praça, como um passeio, agora a calçada da praça encontra-se ao mesmo nível da estrada, não havendo uma delimitação física, evidente, da mesma. A praça foi substituída por um vazio reconhecível no uso que dela se faz como estacionamento. E, quando se estaciona um automóvel numa praça, é sinal que não se reconhece o espaço como espaço nobre. A juntar a isto, verificou-se uma despropositada alteração de escala, o que a desproveu de um carácter acolhedor. Mesmo a introdução de um banco corrido no edifício da Junta de Freguesia não contribuiu para uma melhor apropriação da praça.

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A mudança de escala estende-se às ruas com a desproporção entre a sua largura e a altura das casas. Não há densidade, ou melhor, há uma sensação de espaço em excesso. A cércea da construção manteve-se mas a largura da rua passou de um para três automoveis. Também a praça da antiga fonte (dizem que as suas águas eram milagrosas, sempre gostavamos de saber se o que faz o milagre é a fonte ou a água) aparece desgarrada no início da aldeia. Estranho é entrar numa aldeia em que todas as casas foram construídas ao mesmo tempo. As diferenças de cor, de textura, características das casas envelhecidas não se fazem notar. Pelo contrário, existe uma homogeneização de elementos arquitectónicos com alçados semelhantes e a risca de cor em jeito de rodapé, sempre com a mesma altura. Adaptações pessoais foram autorizadas mas não deixam de parecer uma pincelada folclórica num projecto monótono. É o caso das chaminés, feitas à imagem da arquitectura tradicional, mas que não deixam de animar o perfil da aldeia. Os elementos de excepção, que associamos aos dezasseis novos edifícios públicos, apresentam todos a mesma

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enviado NU

e a Aldeia disse:

- Vou-me embora!

Joana Alves e Maria Barreiros*

linguagem depurada, de linhas rectas e neutra. Só no núcleo final encontramos vestígios de uma outra atitude, na Igreja Matriz transladada, no cemitério e no Museu da Luz. Este é um núcleo nostálgico, a relíquia da aldeia que, localizada no final do novo traçado é, no entanto, o ponto mais próximo da aldeia antiga. De partida, estranha chaminé plantada no verde, surge o depósito de água. Consta que esta chaminé, cansada de Le Corbusier, deixou o terraço em Marselha e veio para a planície alentejana onde vive contente, rodeada de cabras. Deslocamento que noutro lugar pareceria estranho, aqui é banal. Todo o projecto da nova Aldeia da Luz foi realizado por Pedro Pacheco e Marie Clément, à excepção do depósito de água realizado por Pedro Bandeira. * alunas do 6º e 3º ano do dARQ, respectivamente.


» a como

prova final

arquitectura arte do lugar António Mota*

Quem toma regularmente o Metro familiariza-se com o nome das estações que evocam ruas ou monumentos da superfície. Participa na evocação do passado colectivo da mesma maneira que o peão ou o automobilista à superfície. No solo, estes lugares são referências espaciais e, no subsolo, memórias históricas. No entanto a localização, o sítio, esse é o mesmo. Entendemos por lugar tudo aquilo que pertence à paisagem, à edificação ou ao habitat humano, sendo que todas as realizações humanas jogam o mesmo papel, independentemente da sua ordem de grandeza. Se arte é a imagem da realidade, ou a transformação crítica dela, numa analogia e semelhança que pertence ao mundo, então também o construído é a transformação da Terra em sítios habitados à imagem do homem, tal como a arte plástica é a transformação da matéria. Assim, temos de definir as noções que ratificam e justificam a presença do homem no mundo e o papel que incumbe à arquitectura nessa presença antropomórfica, para a interpretação do lugar na concepção arquitectónica. Há princípios que regem os tipos e métodos fenomenológicos dos lugares e aspectos estruturais que os permitem usar. A necessidade de os compreender e a respectiva sabedoria para a identificação do lugar que usamos são da máxima importância para garantir a felicidade e qualidade de vida. Fazer essa compreensão em arquitectura corresponde a ordenar o território. Então, a arte do lugar é uma arte particular. É o entendimento da essência completa de todos os parâmetros das causas e efeitos, que se conjugam para tentar resolver os diversos problemas colocados pela urbanização e edificação humana. Tem uma hierarquia, dada a sua estrutura de totalidade e partes. É colectiva na sua realização e histórica no seu conteúdo. A história, essa, é essencial na transformação dos lugares, dando-lhe continuidade ou alteração, de acordo com a arte vigente na época em que as realizações arquitectónicas se viram nascer. Podemos evidentemente negar a história, como o fez a Bauhaus, mas nunca poderemos negar o conhecimento histórico. O seu fim é

criar a imagem do mundo que possa interagir com a nossa maneira de ser e de estar, numa reacção que se manifesta na significação das coisas que nos envolvem. O fazer do lugar é interagir localmente com as significações gerais da memória humana e da sua volátil cultura em constante mutação. A arte de fazer lugar vai gerar uma imagem do mundo que é concreta, existente, material, palpável, e não uma posição intelectual religiosa, filosófica ou científica, mesmo que a arquitectura se baseie em todas estas matérias. É um papel de charneira entre a natureza e a vida que lhe deu lugar e a sua ligação à sociedade humana. Então, é uma arte que se distingue de todas as outras por propor a imagem da realidade com a própria realidade. Representa o começo da manifestação cultural, que é particularmente visível na ligação ao lugar como todo. Estabelece, como cerne da questão, o conseguir ajustar dados pontuais que somados estabeleçam um todo indivisível. Para isso, serve-se de uma linguagem própria que redige o modo de ser de si mesma, que caracteriza a identidade do lugar, fazendo a tal representação e formalizando uma essência local própria, dotada de particularidades que, embora sejam extraídas de cada sítio onde estão implantadas, traduzem uma interpretação do conhecimento adquirido pelo todo. A linguística é o seu sítio, a arquitectura a sua linguagem, o desenho o seu texto escrito, o habitar a sua expressão oral, a construção, a sua fonética. O papel do lugar é desempenhar, admitir e encarnar a vida do homem e a arquitectura. É o instrumento que permite o desempenho destas três vertentes. Pelo uso, estabelece-se a arte da organização espacial rítmica, e a topologia desta organização estabelece-se pela relação exterior/interior. Assim, o habitat urbano exprime-se em agrupamentos que se configuram pela centralidade, regularidade, continuidade ou agrupamento labiríntico. Os seus princípios gestálticos e culturais definem o uso e condicionam a organização espacial dos lugares colectivos e individuais. [julho 2007] 44.45


A ordem, desde os princípios da humanidade, é sempre estabelecida com características cósmicas, com parâmetros geométricos. A união entre as preexistências e a morfologia da edificação humana coincidem com as circunstâncias locais que acolhem a boa forma da vida. Esta relação espacial é bem evidente em diversos exemplos da história da arte e da arquitectura. A atmosfera que o lugar cria, através da imagem que transmite, é outro dos factores caracterizadores do lugar. A sua qualidade interage com o preestabelecido dentro de cada observador. A sua significação, para cada um de nós e para o todo colectivo, está directamente relacionada com a essência da linguagem que a arquitectura estabelece através da forma e do tempo, criando diversos ambientes para diversas interpretações culturais. Esta atmosfera do lugar é então o acordo entre essência e a compreensão. Quando dizemos que o lugar é desprovido de carácter, queremos dizer que nele não reconhecemos nenhuma atmosfera, nenhuma alma ou interior significativo. A adjectivação desta atmosfera é interpretada desde os Romanos através do seu Genius Loci, esse espírito, génio fantástico, que todos os locais de grande tensão dramática possuem. Aparece sempre nas formas naturais, na sua morfologia ou fenomenologia, bem como deve aparecer na interacção com a linguagem arquitectónica. Compreender que a arquitectura é uma arte do lugar implica ainda equacionar se as realizações técnicas se sobrepõem, ou não, a factores psicológicos das significações que o lugar encerra em si mesmo. Este espaço fenomenológico surge, assim, em oposição ao matemático ou geométrico abstracto, enfim à tecnologia. O espaço assim entendido, muitas vezes sobrepõe-se como factor determinante ao funcionalismo; no entanto, baseiase num conceito existencial do homem como elemento que pretende e tende a descobrir a natureza e a relação com os outros homens. Os seus aspectos estabelecem-se pela memória, identificação e orientação, que se traduzem na imagem, na forma e no espaço; estas últimas decididamente pertencentes à disciplina da arquitectura.

As circunstâncias do Locus, quando bem interpretadas, aparecem claramente visíveis no desenho de arquitectura, como uma revelação das suas características. Todos os lugares, para serem definidos como tais, estabelecem condições naturais e artificiais. Essas condições, que Schulz nos mostra tão bem, são geradoras de estados de alma que, na presença da natureza, nos dão sensações de carácter sempre animista e, no caso das artificiais, de carácter mais objectivo e cultural. O discurso do Locus e da influência que este traduz na vida de cada indivíduo também é muito importante. Pode fazer-se de uma maneira fenomenológica, filosófica ou poética. Aliás, como todos sabemos, o lugar e a sua observação está sempre presente na prosa, justificativa e crítica, e na semântica do desenho de todos os projectos de arquitectura. Então, estes conceitos para a valorização do espaço construído estão sempre presentes no estudo de arquitectura, bem como no estudo da situação e do impacte que os edifícios e a urbanização têm no meio ambiente, tendo presente a influência que este passa a exercer sobre a sociedade e a envolvente imediata de cada um de nós. Dito isto, temos de contribuir para a afirmação da arquitectura como disciplina de grande racionalidade, com vertente teórica, que baseia a sua justificação formal e técnica em estudos da ciência da arte. O gosto e o sentido estético são inteligíveis e transmissíveis em aprendizagem. A arquitectura é parte integrante do mundo da vida e só se pode compreender através desse mesmo mundo. É o modus faciendi, o instrumento ao serviço do quotidiano do homem. O lugar é justificação determinante da vida, a interpretação concreta do mundo urbano e da natureza e a arquitectura a sua arte. Talvez a Terra, ela mesma, num futuro e galáxia distante, seja considerada um bom lugar para toda a humanidade.

* arquitecto licenciado pelo dARQ


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contaminações

não há guerra até que um irmão

mate o seu irmão

José Brites * Assim termina o épico Underground, realizado em 1996 por Emir Kusturica. Para puxar do superlativo (que desta vez até se justifica), poucas obras que a tal se tenham proposto terão conseguido com tal firmeza traçar um retrato de um país, sujeito a todos os dislates totalitários, belicistas, nacionalistas e corruptos que constam no cardápio de crónicas obrigatórias do século vinte. Onde o jornalismo sério, a história com ‘h’ grande e a análise política sossobrarão sempre, o absurdo obsessivo compulsivo de Kusturica triunfa. Porque absurda é também a guerra. E a Vida, já agora.

Imaginemos: na Belgrado (ainda Jugoslávia) que em 1941 é vitimada pela medonha máquina de guerra alemã, um homem alberga na cave de sua casa uma pequena comunidade de civis e foragidos políticos. Meio século depois eles lá perduram, pelo simples facto de um pequeno pormenor lhes ter sido omitido: a guerra acabou. Sem que isto seja por acaso, o diligente senhorio da cave explora os seus hóspedes, encorajando-os a fabricar incessantemente material bélico para que a mãe pátria possa esmagar o jugo alemão. Mal imaginam aqueles pobres diabos que, no intervalo de tempo em que permaneceram naquele buraco, já uma guerra teve tempo de acabar e outra de começar e, entre isto, todo o regime comunista de Tito ter conhecido o seu auge e a sua queda. É só quando Sino - o macaco - abre a tiros de canhão um buraco na fuselagem da máquina do tempo subterrânea, que os seus habitantes se confrontam com um esmagador cenário de guerra, que já não é travada contra um sanguinário inimigo vindo de longe, mas contra – surpresa das surpresas – os seus aliados de outrora, os seus compatriotas, os seus irmãos. Descobrem também (uns sim, outros nem tanto) que não haviam fabricado uma única arma para esmagar alemães, mas para que fosse derramado vezes sem conta o sangue desses seus irmãos, irmãos que já não o são. Guerra por guerra, é igual.

Não há melhor forma para dar uma grande queda que subir até bem alto e mergulhar de cabeça para baixo. Após quase três horas de absurdo em torno da Vida e da Morte, Kusturica projecta-nos sem compaixão contra um final demolidor que será porventura (análise do autor) o único momento em que a intensidade do absurdo é superada pela da realidade: quando irmão mata irmão, arquejante de ódio, quando camarada mata camarada e, destroçado, se martiriza de frente para a imagem de um Cristo caído, rodeado de escombros em chamas – afinal, já nem país nem coisa nenhuma. “Que desgraça, homem, que desgraça.” É já um espectador incondicionalmente rendido que se deixa levar flutuante na última pirueta de Underground sobre si mesmo até ir aterrar num surreal final feliz. E é tudo tão bonito que dá vontade de chorar.

Esta não é, na verdade, uma estória sobre chão enquanto coisa física, material, palpável, mas sobre chão enquanto bem e propriedade colectivas, enquanto denominador comum de um conjunto de indivíduos, denominador ao qual habitualmente se chama país. O chão está lá, nas duas alternativas possíveis. E desempenha um papel fulcral na crónica que nos é contada, mesmo sem nunca ser mencionado. Kusturica, conta-se, não consegue ao certo apontar a sua nacionalidade. Diz que prefere continuar a ser jugoslavo. Como se, infectado pela sua própria obra-prima, tenha ganho consciência do incomensurável absurdo que foi a guerra que lhe consumiu o país durante anos e ainda hoje cicatriza feridas, algumas mais facilmente cicatrizáveis que outras. Quase como se tivesse ele mesmo dado entrada no seu próprio Underground. *aluno do 6º ano do dARQ [julho 2007] 46.47



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quiz

Nuno Portas Nuno Portas nasceu em Vila Viçosa em 1934. Tendo frequentado o curso de Arquitectura da Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa, diplomou-se pela Escola Superior de Belas-Artes do Porto (1958-1960). Tem-se destacado como professor, crítico e teórico, conciliando estas actividades com a sua prática projectual nos campos da arquitectura e do planeamento da cidade, tendo marcado a arquitectura e urbanismo português a partir do início dos anos 60. Foi professor agregado na ESBAL entre 1965 e 1971, passando a leccionar no Porto, a partir de 1983, onde foi Professor Catedrático e ensinou Projecto Urbano e Teoria e História do Urbanismo Contemporâneo. Foi Secretário de Estado da Habitação e Urbanismo nos três primeiros governos provisórios (1974-1975), criou o programa SAAL (Serviço Ambulatório de Apoio Local) e iniciou o processo de revisão de legislação urbanística portuguesa. Entre outros prémios, foi agraciado em 2005 com o Prémio Sir Patrick Abercrombie de Urbanismo, um dos cinco galardões atribuídos pela União Internacional de Arquitectos.

Refira e relacione-se com: uma cidade… se cidade, Ferrara; se vila…Viçosa

uma influência… Nuno Teotónio Pereira, na arquitectura e na vida

um projecto de arquitectura… o da Boa Nova, prima-obra (da minha “geração”)

um objecto do dia-a-dia… o cachimbo, mesmo apagado

um artista… O Frank Lloyd Wright no espaço; o Charlie Parker no som

um vício… pôr música enquanto trabalho

um livro… o do desassossego…

uma palavra… espaçamento (ou espaço “entre”)

um filme… lá, Johnny Guitar; cá, os Verdes Anos

um futuro… o que seja mais possível – para melhorar o espaço de todos

uma experiência… entrar na mesquita de Córdova aos 15 anos ou no Terreiro do Paço 25 anos depois

[março2007] [julho 2007]48.49 48.49


Âť

a nu

Eduardo Nascimento

at the high point of our intimacy, we were just 0.01cm from each other Chungking Express, Wong Kar Wai


Rádio Universidade de Coimbra

Ficha Técnica DIRECTOR Mário Carvalhal SUB-DIRECTORA Maria Barreiros DIRECÇÃO TRANSACTA director Carlos Guimarães sub-director Luís Loureiro EDIÇÃO Inês Lourenço REDACÇÃO André Almeida, Carlos Guimarães, Guida Marques, Inês Lourenço, Ivo Lapa, Jan-Vincent Bersier, Joana Alves, João Crisóstomo, João Jesus, João Nunes, Luís Loureiro, Luísa Marques, Pedro Resende, Pedro Vieira, Rui Baltazar, Tiago Borges COLABORADORES Andreas Ruby, António da Mota, António Olaio, Ilka Ruby, Jacques Gubler, José Brites TRADUÇÃO Joana Alves, Mário Carvalhal, Pedro Resende, Rui Baltazar REVISÃO Inês Dias, Inês Lourenço, Joana Alves, Maria Barreiros, Mário Carvalhal EDITOR GRÁFICO Eduardo Nascimento GRAFISMO Diogo Lopes, Eduardo Nascimento, Filipe Madeira, Ivo Lapa, Mário Carvalhal, Pedro Resende, Rui Baltazar CAPA Eduardo Nascimento IMPRESSÃO SerSilito, Empresa Gráfica, Lda. TIRAGEM 500 exemplares DEPÓSITO LEGAL 178647/02 ISSN 1645-3891

PROPRIEDADE NUDA/AAC – Núcleo de Estudantes de Arquitectura CONTACTOS Revista NU, Departamento de Arquitectura, Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade de Coimbra, Colégio das Artes – Largo D. Dinis, 3000 Coimbra Tel [ dARQ ] (+351) 239 851 350 Fax [ dARQ ] (+351) 239 829 220 E-mail revista.nu@gmail.com Website www.revistanu.uc.pt

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