#36 Sul

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Sul revista nu #36 março 2011

{editorial}

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Go South! Diogo Vasconcelos e Frederico Martinho

{artigo gráfico}

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Sul é aonde? Nástio Mosquito

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Na casa do Sul Inês Ribeiro

{à conversa com}

08

Jacinto Rodrigues Diogo Vasconcelos, Frederico Martinho e Mário Carvalhal

20

Quatro projectos no Sul Atelier do Corvo

28

Articulando a Cidade Dividida Jorge Mario Jáuregui

34

Nos trópicos sem Le Corbusier Ana Vaz Milheiro

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Bolívia, 2010 Frederico Martinho

{entrevista}

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Pezo Von Ellrichshausen Diogo Lopes, Filipe Madeira e Inês Morão Dias

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Comentários sobre o trabalho de Solano Benitez Ângelo Bucci

{a nu}

edição

62

Pólo Sul

Diogo Vasconcelos e Frederico Martinho, alunos do 5º ano do dARQ


{editorial}

Go South!

Diogo Vasconcelos e Frederico Martinho, alunos do 5º ano do dARQ

Mais do que um lugar geográfico ou ponto cardeal, encaramos o Sul como uma direcção imaginada que não se limita à razão de uma bússola mas sim a um desejo comum de encontrar alternativas à conjuntura ocidental actual. Perante tamanho desencanto com um mundo cada vez mais preenchido e saturado resolvemos partir à procura de alternativas. O Sul começa por representar a esperança de nos reencontrarmos com uma naturalidade e espontaneidade do ser humano. Interessa-nos a capacidade inata de inventar e a relação directa, quase instintiva com as coisas. Buscamos uma arquitectura que não tenha ainda perdido a sua amabilidade, o seu sentido de pertença e a sua relação simbiótica com o meio em que se insere. No fundo, deixamo-nos seduzir pela sua alegria contagiante e embrenhamo-nos num território dominado pela intuição, onde a cultura é vista enquanto uma construção colectiva e a casa o produto de uma identidade. Por outro lado, interessa-nos entender a actuação da arquitectura nos diversos panoramas territoriais do Sul. Seja ele virgem, rural ou urbano, o lugar recria-se ao receber o objecto arquitectónico, contrariando a implantação comum num território consolidado. Desta forma, é importante perceber de que maneira o objecto arquitectónico traduz determinadas preocupações técnicas ou culturais e de que forma a arquitectura se molda às condições climáticas, permitindo a habitabilidade em condições extremas, bem como o modo em que estas mesmas condições influenciam o modelo construído. Para lá das questões físicas, e não menos importante, falamos de uma cultura onde impera o cooperativismo e um sentido colectivo que, aliado a uma criatividade inata, fazem do Sul uma reflexão apetecível.

Imagem de Nástio Mosquito artista plástico, músico, performer

No meio desta procura, normal será sentirmo-nos na pele de um viajante tal é a cadência de novos contactos com diferentes realidades. Nesse percurso para Sul, que se traduz no simples folhear do número, vamos tendo variados encontros que nos falam da relação da arquitectura com o clima, o lugar e a cultura. Falam-nos do simbolismo e da diversidade inerentes aos territórios sulistas. Da luz e do tempo. Da casa e dos aglomerados urbanos. Da máquina e de poesia. No fim acabamos na Antárctida para perceber que não é só de calor que se faz o sul. 2


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Na casa do Sul Inês Ribeiro, aluna do 5º ano do dARQ

Folheia-se o caderno e eis o sul E o sul é a palavra. E a palavra Desdobra-se No espaço com suas letras de Solstício e de solfejo Além de ti Além do Tejo Verás o rio e talvez o azul Não o de Mallermé: soma de branco e de vazio Mas aquela grande linha onde o abstracto Começa lentamente a ser o Sul Outro é o tempo Outra a medida Tão grande a página Tão curta a escrita Entre o achigã e a perdiz Entre o chaparro e choupo Tanto país E tão pouco Solidão é companheira E de senhor são seus modos Rei do céu de todos E de chão nenhum À sombra de uma azinheira Há sempre sombra para mais um Na brancura da cal o traço azul Alentejo é a última utopia Todas as aves partem para o sul Todas as aves: como a poesia.

Manuel Alegre, Alentejo e Ninguém

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Aquele tempo vasto de homens sentados frente ao café da aldeia, servindo-se da carniça da caça, em grossas malgas, onde conversam e emborcam a largas goladas aquele vinho espesso, deliciando-se do vento manso do sul, carregado de calor. E o tempo de quem transita com fugacidade a estrada, de carro, rompendo as paisagens e as povoações, onde as ramadas de árvores serenas enlaçam as estradas como braços gigantes. O primeiro é aquele tempo insubstituível do viver, pensar e experimentar o seu habitat. O segundo é o tempo longe deste território, de onde vem toda a vida contemporânea. O enigma varia desde o avistar da casa na paisagem, o aproximar à casa que se vive por fora, até ao entrar e trabalhar sobre o espaço da sua intimidade. Na casa do sul, qualquer coisa se passa. O construído horizontal alinha-se com a paisagem vasta, etérea, nostálgica, intemporal. O demorado passar do tempo faz com que o espaço seja brando, modesto e ao ritmo de gestos lentos a paisagem associa-se à casa do sul. Aquela feliz ausência de meios sedimentou o espaço da casa, muito apegado às características físicas do território, onde o campo ganha um sentido ímpar. É este sentido aliado ao aparente imobilismo das paisagens, onde se consegue sentir uma folha de árvore a cair, que nos distingue facilmente este contexto. As fachadas discretas, opacas e brancas que se desdobram para um pátio aberto ao campo fazem com que o habitar a casa seja o habitar a paisagem, identificando-nos no chão que a envolve. Um meio sedutor, cheio de estímulos, potencialidades, com o espírito do lugar, longe da dimensão urbana.

É ali o lugar da manhã Mesmo de tarde. É ali o lugar da solidão Passe quem passar É ali que tudo acontece Quando nada acontece.

Luísa Freire, in O Tempo de Perfil

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{à conversa com}

Jacinto Rodrigues Diogo Vasconcelos, Frederico Martinho e Mário Carvalhal alunos do 5º ano e arquitecto pelo darq

Através do seu blog, tomámos conhecimento da formação de Jacinto Rodrigues: sociólogo, filósofo, urbanista e doutorado em história de arte. Foi esta transdisciplinaridade que nos motivou a este encontro com o carismático professor numa esplanada em Vila do Conde. Aqui ele fala-nos incendiadamente do Sul e daquilo que ele representa, procurando percebê-lo para lá da arquitectura. Falamos de cidade e de sociedade. Falamos de ecologia e desenvolvimento sustentável. De consequências e de responsabilidades. Falamos do Sul e do Norte sem nunca nos conseguirmos afastar das questões éticas e morais. Buscamos no primeiro respostas e alternativas para o segundo... Sabemos que nasceu em Luanda e sempre teve contacto com países como Angola, Cabo Verde, Marrocos, Brasil... Este interesse por uma realidade mais a Sul foi despoletado por alguma afectividade, por razões académicas ou por uma consciência moral? Acho que foi um pouco de tudo. Primeiro, as minhas raízes. Nasci em Luanda e aí fiz a escola e o liceu. Fui sempre defensor da emancipação dos povos colonizados e foi por isso que fui parar ao exílio. Estive quase treze anos no exílio em França, Alemanha, Itália, etc. Vivi mais tempo em França onde fiz estudos de sociologia e urbanismo e fui professor na Universidade em Amiens e na Escola superior de Arquitectura, em Rennes. Assim, as minhas raízes e o contexto político em que fui crescendo, levaram-me à luta anti-colonial e anti-fascista, que me marcou profundamente. Todo este mundo do “Sul”, que tem uma força telúrica imensa, foi vivido por mim. Também um imperativo moral impôs-se à minha consciência pois sempre vivi a realidade histórica do “Sul” que era a parte abandonada, colonizada e presa dos interesses do “Norte” ocidental capitalista.

*fotografias cedidas por Jacinto Rodrigues

Este “Sul” incendiou-me a alma desde a infância até à adolescência. Depois, fui para Portugal, para a Universidade de Coimbra. Entretanto o meu primo, o poeta angolano António Jacinto, preso no Tarrafal durante catorze anos, marcara 9


Atelier do Corvo,

Quatro projectos no Sul

20


Carlos Antunes e Désirée Pedro, Atelier do Corvo

Una de las cosas que más me impresionaran durante mi estancia en Luanda fue la luminosidad deslumbrante de la atmósfera... quando se estaba en el interior de un edifício, mirar una ventana era insoportable a causa de la reverberacíon. Las paredes oscuras que enmarcaban la brillante luz exterior davan una sensacíon de gran malestar: acababa uno por apartar la vista de la ventana. Outra cosa que me llamó la atencíon fue la importancia de la brisa... la importancia de la brisa para barrer el aire caliente acumulado en torno al edificio.1 Começamos por dizer o que é óbvio, mas que muitos teimam em não querer ver ou aceitar. Todo o Sul, de uma maneira geral, e África em particular – porque é sobre África que nos propomos escrever - só poderá ser discutido a partir da sua própria diversidade, e considerá-lo como um todo unitário é um erro metodológico que recusamos cometer. No campo estrito do projecto de arquitectura, outro erro comum, que decorre deste, é o de se procurar modelos mais ou menos arquetipificados como modelos meramente formais das novas soluções propostas – pirâmides no Egipto, palhotas em África ou, noutras latitudes, iglus nos pólos, e por aí adiante. Esta fórmula poderá não resultar necessariamente mal, mas enfrenta graves riscos de exaltação de uma vaga ideia de rusticidade e identidade que possamos ter sobre as culturas para as quais estamos a projectar. Todo o trabalho desenvolvido para África nos últimos dez anos pelo Atelier do Corvo procura explicitar esta diversidade. São projectos de naturezas muito diversas, com programas, processos de encomenda e utilizadores que nada têm em comum. Em bom rigor, poderemos afirmar que todos estes projectos apenas têm em comum a mesma preocupação de domesticação da luz, o nosso esforço de a suavizar na transição do exterior para o interior dos edifícios, de defender os utilizadores da luminosidade deslumbrante da atmosfera, nas palavras citadas em epígrafe de Louis Khan. Nesta reflexão abordaremos os projectos das Escolas primárias para a África Subsariana, o Grande Museu do Cairo, o Aparthotel para Luanda e a torre de habitação e comércio também para Luanda. Escolas primárias para a África Subsariana, 2002

1

Louis Khan, De “Perspecta”, 7, 1961

<

Projecto para escola primária, África

Subsariana, 2002

Em resposta a um concurso internacional, promovido pelo Banco Islâmico de Desenvolvimento para o projecto de escolas primárias para a África Subsariana, desenhámos duas famílias tipológicas a partir de uma unidade morfológica única. 21


Articulando a Cidade Dividida

L’alliance de la ville et du concept jamais ne les identifie mais elle joue de leur progressive symbiose: planifier la ville, c’est à la fois penser la pluralitè même du réel et donner effectivité à cette pensée du pluriel; c’est savoir et pouvoir articuler.1 28


Jorge Mario Jáuregui, arquitecto urbanista com prática sediada no Rio de Janeiro

O traçado “livre” da favela em oposição ao traçado ortogonal da cidade formal, é um dos aspectos mais evidentes da diferença entre a cidade legal e a cidade “ilegal”. Não se trata tanto de vantagens do traçado livre acompanhando a topografia, em relação ao modelo impositivo ortogonal, se não das consequências de uma determinada estrutura social. Afinal como falava Henry Lefevbre, “a cidade é a projeção de uma determinada sociedade sobre o terreno”. Neste sentido, fica bem claro que tipo de sociedade está projectada sobre o terreno; uma sociedade dividida entre beneficiários e excluídos dos benefícios da urbanidade. Como é sabido, a este modelo “livre” e carente de infra-estrutura e equipamentos básicos, corresponde uma forma de relacionamento social muito rica e intensa, com uma enorme energia de vida na rua e nos espaços intersticiais, em contraste com a menor interação da vida na cidade formal. Neste sentido, as intervenções para a requalificação urbanística e ambiental da cidade e da sociedade dividida não só não devem reduzir esta energia, quanto reorganizá-la, acolhe-la e potencializá-la, e isto deve ser feito incorporando os novos equipamentos sociais tais como o centro de geração de trabalho e renda, os centros desportivos e os centros de lazer, concebidos como novos atractores capazes de provocar a mobilização produtiva do território. É nesta perspectiva que a favela pode funcionar como uma referência para a introdução de espaços e condições para a intensificação da vida social, na própria cidade formal. A favela mostra que, apesar de todas as limitações, é a pulsão de vida o que predomina, aliada a uma enorme criatividade e capacidade de improvisação no enfrentamento dos desafios da vida quotidiana. Portanto, do que se trata através dos projectos é de provocar um encontro entre duas lógicas, duas inteligências, duas culturas; a cultura erudita e a cultura popular, e sobretudo, produzir uma “inserção soft” no lugar. É sobretudo uma questão de “saber ler” a estrutura de cada lugar, e de ter um método para “escutar as demandas”, fazendo o que deve ser feito, isto é, de acordo com a psicanálise, trata-se de uma questão ética.

1

Michel de Certeau

Os processos actuais no campo do urbano-social implicam um desafio para todos os actores da cidade: para os habitantes, obrigados a novos comportamentos; para os profissionais envolvidos, que devem fazer evoluir as formas de conceber e intervir; e para os tomadores de decisões de interesse público, obrigados a orientar e arbitrar, em parcerias de projectos de grande complexidade abrangendo diversas escalas.

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Nos trópicos sem Le Corbusier Ana Vaz Milheiro, arquitecta, docente no ISCTE

Bafata, Ana Vaz Milheiro, 2009

Em 1933, a propósito do projecto não construído para a Argélia, Le Corbusier escreve acerca da necessidade de adaptação climatérica da arquitectura moderna às especificidades locais. Recorda então o exemplo de um elemento arquitectónico vernáculo, a janela marroquina e a sua gelosia, reforçando que “os mesmos resultados plásticos e arquitectónicos podem ser conseguidos com as técnicas modernas”.1 O objectivo é obter “unidade” e “estilo regional”, como conclui. O projecto moderno inicia aqui a sua inclinação para as expressões locais que permitirão abordagens fortemente conotadas às regiões tropicais e que culminam na exploração do brise-soleil e suas variantes (varandas profundas, grelhas, palas, etc.). Nessa pesquisa por uma localidade universal, o clima é um dos elementos determinantes de um desenho positivista e funcional. Mais tarde este processo será objecto de tratamento por parte de discípulos corbusianos em publicações que surgem a partir dos anos de 1950 sobre as regiões quentes e húmidas e que fortalecem a consolidação de uma “linguagem moderna” internacional, todavia reveladora “das condições do clima, dos hábitos do povo e das aspirações dos países, quer estes estejam sob o céu azul dos trópicos secos ou do céu nebuloso do mundo equatorial”2. Alguns desses peritos, como Maxwell Fry e Jane Drew, autores de Tropical Architecture in the dry and humid zones, acabam mesmo por formar uma geração de arquitectos portugueses que constitui o último contingente profissional do Gabinete de Urbanização do Ultramar que, 34


em Lisboa, aprofunda um método de projecto dirigido especificamente para os trópicos. Esta formação passa por frequentar, durante a segunda metade da década de 1950, o curso de Arquitectura Tropical ministrado na Architectural Association. Antes disso, contudo, os portugueses vão acumulando diversas experiências em África e o seu caminho até chegarem à arquitectura moderna não se faz linearmente. Na mesma época em que Le Corbusier descobre o norte do continente africano, cujo conhecimento aprofunda em sucessivas viagens à região do Mediterrâneo, os portugueses trabalham já para os territórios tropicais nos mais variados programas e combinações climatéricas. Antes do arranque da segunda guerra mundial prolongam velhas experiências, disseminadas pelos territórios subsarianos, construindo edifícios de “traça colonial” com galerias exteriores e coberturas muito pronunciadas que permitem proteger as paredes da exposição solar e simultaneamente evitar os efeitos da forte pluviosidade. Gradualmente, a par dos problemas que envolvem a construção (materiais disponíveis e qualidade de mão de obra), percebem a potencialidade do clima na definição de uma arquitectura que, apesar de ajustada ao meio e racional na sua organização funcional, possa garantir uma clara associação com a potência colonizadora. Durante a guerra, a novidade que os edifícios públicos mais recentes trazem é precisamente a combinação entre uma resposta ao clima e uma figuração que evoca a metrópole. Mas mais do que isso, os portugueses estão empenhados em provar que a tradição nacional – especificamente a tradição do sul de Portugal – pode estar na origem de uma arquitectura tropical. A partir dos anos de 1930 dispõem-se a demonstrá-lo.

1

Le Corbusier in Curtis, 1986, pág. 116

2

Fry; Drew, 1982, pág. 9

3

Arquitectura, 1927, pág. 21

4

Regaleira in Fonte, 2007, pág. 474

5

Regaleira in Fonte, 2007, pág. 484

A opção por uma via nacional inicia-se ainda no final dos anos de 1920, em projectos de feição “tradicionalista” do arquitecto Vasco Regaleira, de que é exemplo a ermida do Lobito retratada na revista Arquitectura como sendo desenhada com “linhas sóbrias e simples” e onde o alpendre é apontado como elemento arquitectónico adequado ao “calor, que é enorme naquelas inóspitas paragens”3 reflectindo já uma consciência mínima quanto à climatologia local. O caso de Regaleira é exemplar, prosseguindo em abordagens cada vez mais historicistas como provam o projecto de alterações do Colégio de S. José de Cluny (Luanda, 1943), insistindo-se no “intento de aportuguesar a nossa arquitectura dando-lhe uma feição colonial”4, ou as duas propostas para a catedral de Nova Lisboa (Huambo, 1943 e 1945) onde “se procurou diminuir a intensidade da luz do dia” dando “maior inclinação [aos] telhados para escoamento das águas das chuvas torrenciais, ventilação interior, etc.”5. O uso já extemporâneo desta 35


Bolívia, 2010 Frederico Martinho, aluno do 5º ano do darq

* fotografias do autor

Vindo do Brasil, entro no país pela pequena vila de Puerto Quijarro. É quase cenográfica a mudança de ambiente paisagístico e urbano quando se percorrem apenas umas dezenas de metros a pé entre os postos fronteiriços. Apesar de pequena, a vila alberga alguns restaurantes, mercearias e lan houses, que se multiplicam como avatares de contacto com uma realidade ainda distante. São cerca de onze da manhã e o único comboio do dia só sai ás seis. As horas que se seguiram foram a entender o tempo como um valor perdido que encontrei neste país. Nenhum horário corresponde ao da tabela e uma viagem que duraria quatorze horas acabou por durar cerca de vinte e uma. Chego, à cidade mais populosa da Bolívia, Santa Cruz de la Sierra, quase um dia depois sem dar o tempo como perdido. Os seiscentos quilómetros a uma média de 40km/h acentuam e valorizam a percepção da distância real que percorremos e sentimos na pele o isolamento que assola este bocado de terra. A chegada a esta cidade foi o primeiro grande impacto que tive enquanto observava os aglomerados residenciais que na sua maioria não têm acesso aos serviços básicos, e isso traduz-se em esgotos a céu aberto, electricidade roubada da rede pública, etc. Sem tempo para muito mais segui para Sucre, a capital boliviana, desta vez de autocarro, que veio confirmar a precariedade das infraestruturas rodo e ferroviárias. Noutro lugar do planeta a relevância das cidades surge no território através de uma rede de acessibilidades que revelam a importância e as necessidades dos núcleos urbanos, enquanto que na Bolívia tal rede pura e simplesmente não existe. A ligação entre as principais cidades resume-se a uma via precária com poucas ou nenhumas alternativas. Prova disso foram as dezasseis horas de viagem para fazer pouco menos de trezentos quilómetros percorridos na sua totalidade por uma estrada adoçada ao alto maciço montanhoso da Cordilheira Oriental desprovida de qualquer tipo de pavimento, sinalização ou iluminação. Ao longo do percurso reina o silêncio nas serras despidas de vegetação onde, a dada altura, algumas aldeias vão marcando o ritmo de aproximação à capital. Em Sucre aproveito para descansar e poucos dias depois sigo para La Paz, que se encontra a mais de 3600 metros de altitude e forma com El Alto (quase 500 metros acima) a maior aglomeração urbana do país. Atravesso o altiplano boliviano já conformado com as péssimas condições destas jornadas, mas ainda rendido à constante presença do deserto. As serras de terra e pó contrastam com os picos longínquos cobertos de neve que revelam a sua grandeza á medida que nos acercamos da cidade. Entrar em El Alto é um exercício de observação do crescimento da cidade através do edificado uma vez que da consolidação urbana vão resultando edifícios com cada vez maior investimento na sua concepção, quer a nível formal quer construtivo, passando gradualmente do adobe para o tijolo, da ausência de revestimento ao vidro espelhado. Depois do autocarro percorrer praticamente em linha recta quase toda a extensão de El Alto chega finalmente ao limite do planalto abrindo-se dramaticamente sobre a cidade de La Paz que se encontra lá em baixo cercada pelos Andes. Demora algum tempo até que me aperceba do seu tamanho real tendo em conta que os seus prédios altos e bairros a perder de vista vêem a sua escala completamente alterada quando atrás vinga o cume do Ilimani. A descida faz-se então demorada e a sensação é de entrar numa cratera. Quanto à cidade em si mostra-se como a mais ocidentalizada, onde o contraste com a cultura autóctone roça a virtualidade. Sigo para o Peru, a fronteira é uma estrada cortada ao meio e do outro lado pouca coisa mudaria. 40


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{entrevista}

Pezo von Ellrichshausen Mauricio Pezo e Sofia von Ellrichshausen trabalham no Chile, numa prática jovem entre arte e arquitectura, e aparecem-nos nos livros e revistas a encabeçar o grupo da ‘nova arquitectura emergente do Sul’, rótulo que prontamente recusam. No AICO*, onde os conhecemos, percebemos que a geração e a geografia se tornam secundárias, num trabalho assente sobre uma noção ampla e pessoal de território: um território que é o Sul, vasto e resistente, mas também um território que é o deles, das referências que reunem e constroem. Do seu discurso retivemos mais do que um fascínio pela visão exótica de alguém que chega de outras paragens: percebemos uma reflexão continuada sobre a universalidade da pergunta de como responder com arquitectura a cenários difíceis de manejar.

Diogo Lopes, Filipe Madeira, Inês Morão Dias alunos do 5º ano do darq

We know that Sofia is from Argentina and Pezo is from Chile. Has that had any influence in your education and vision of architecture? Sofia

Yes, of course. It’s inevitable. In the lecture we started with an image of an artist who projects the map of the country on his back. This is a precise reference to show how the place you live in influences you. Your childhood influences very much the way you think. Coming from Argentina, I think I have a very strong local influence but, due to my family heritage, I also have a lot of external references. In my house we spoke English, and my grandparents are German, so Europe is always very present. Our bookshelves were full of European art and literature references. We probably know Europe much better than what most European people know about South America. But we grew up in South America, so we also have these other references extremely present. Somehow we have to find a way of articulating all this double influence.

Pezo

By nature you are guided by several references. Naturally you feel, see and understand the world according to those references. In our case, we have been trying to be honest with our own references, with the references that are comfortable for us. Sometimes architects start with a lot of anxieties trying to focus on what is happening in a place that they don’t really understand. In our

*Architecture International Congress at Oporto, organizado pela revista DARCO em Setembro de 2010

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Circular, Ascot, England, 2010

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ComentĂĄrios sobre o trabalho de

Solano BenĂ­tez

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Angelo Bucci, arquiteto pela FAUUSP, onde é professor desde 2001. Mantém o escritório SPBR

...não estamos feitos de outra substância senão dos outros.

Arquitetos desde 2003.

Recentemente ouvi a citação acima de Solano Benítez. Ele não prescinde dos poemas para nos fazer ver as razões de seus projetos de arquitetura. A fonte, que ele citava, já não me lembro mais. Nem me lembraria, pois é na sua atuação que essas imagens ganham vida intensa, é nela que o seu sentido perdura na memória da gente. Os poemas são parte do arsenal que ele usa para nos fazer ver seu campo de ação, seu ideal de cidade e a causa em que ele se engaja. Poesia ali é matéria. Melhor, é técnica. É ali, no campo simbólico, que ele confia a direção e o sentido das suas ações. Para ele, poesia é bússola, coordenada, é rumo de navegação. Então, cabe à gente se perguntar: em que nave ele navega? A nave, no caso, são as casas do Solano. Mas como elas estão feitas? De tijolos quebrados, alguém poderia responder. Aparentemente correta, essa resposta é profundamente falsa. Não é apenas incompleta porque ela nega o campo da questão. Seria tola, como se boiasse perdida na superfície do mar em que ele navega, se não fingisse responder com o que sabe não ser o bastante. Pois a resposta esconde atrás da aparência de um material, em si precário, a elaboração cuidadosa e a sofisticação arquitetônica que se mobilizam na realização desses projetos. É, afinal, uma resposta inaceitável. Pois, nessas obras, não existe a dimensão superficial. Talvez não seja por acaso que ele não aceite nem mesmo a superfície de um tijolo, quebrando-a. Para olhar essas naves é preciso mergulhar no mar em que elas navegam e ali, imerso, saber ver. Sendo assim, não se partirá de outro pressuposto senão da consideração de que ali não existe um único tijolo quebrado. Tudo ali está solidário num conjunto armado de tal modo coeso que a unidade mínima não pode ser nada menos do que a obra inteira. Ali tudo tem integridade, ali todos os tijolos, digo eles todos juntos, são perfeitos. Suas obras são templos da essência. Essência de quê? Da coerência de uma obra feita ao longo da vida do arquiteto. Precedente Em 1994 os trabalhos de Solano Benítez foram apresentados pela primeira vez fora do Paraguai. Foi em Portugal, por ocasião dos eventos de Lisboa Capital Ibero Americana da Cultura. Estávamos ali num grupo de - então, uns mais que outros - jovens arquitetos brasileiros: eu, Alvaro Puntoni, Luciano Margotto, Luiz Mauro Freire, Vinicius Andrade, Marcelo Morettin e Anna Julia Dietzsch. Todos éramos convidados para o evento com passagens pagas pelo governo brasileiro e hotel oferecido pela prefeitura de Lisboa. Solano Benítez era o único representante paraguaio.

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{a nu}

62


a revista

nu é a publicação planeada e produzida pelos estudantes

do departamento de arquitectura da universidade de coimbra. essencial, imparcial e descomprometida, a nu é uma ferramenta de aprendizagem que tem como objectivo a reflexão e debate em diversos temas relacionados com

Morada Revista NU, Dep de Arquitectura, Faculdade de Ciências e Tecnologia,

a arquitectura, um encruzilhadas, dois lugares, três cidades, quatro mecanismos, cinco àreas

de contaminação, seis

Universidade de Coimbra, Colégio das Artes – Largo D. Dinis 3000 Coimbra

imagem, sete desvios, oito tempo, nove sexo, dez ismos,

Telefone/fax (darq) +351 239 851 350 +351 239 829 220 E-mail revista.nu@gmail.com Arquivo digital arquivonu.blogspot.com Director Diogo Lopes Sub-director

onze tecnologias, doze onde

está coimbra?, treze pecado,

catorze oposições, quinze viagens, dezasseis oriente, dezassete

revolução digital, dezoito revistas, dezanove colagens, vinte onde

está portugal?, vinte e um marginalidades,

Filipe Madeira

vinte e dois game

design, vinte e três brasil, vinte e quatro

Editores

espectáculo, vinte e cinco utopia, vinte e seis identidade,

Diogo Vasconcelos, Frederico Martinho Redacção

vinte e sete habitar, vinte e oito velocidade, vinte e nove modus

Diogo Lopes, Diogo Vasconcelos, Filipe Madeira, Frederico Martinho, Inês Morão Dias, Inês Ribeiro, Mariana Campos, Vicente Nequinha Colaborações Ana Vaz Milheiro, Atelier do Corvo, Jacinto Rodrigues, Jorge Mário Jauregui,

operandi, trinta poder, trinta e um chão, trinta e dois ocupa, trinta e três consumo, trinta e quatro feio, trinta e cinco XXL, enriquecida pela colaboração de diversos arquitectos e académicos de todo o

Nástio Mosquito, Mário Carvalhal, Mauricio Pezo, Sofia Von Ellrichshausen

mundo.

Editor Gráfico Filipe Madeira Revisão e Grafismo Diogo Lopes, Diogo Vasconcelos, Filipe Madeira, Frederico Martinho, Inês Lourenço, Inês Morão Dias Impressão Nocamil Nova Casa Tipográfica Lda. Tiragem 500 exemplares

para adquirir

uma nu envie-nos um e-mail com o seu endereço e

contacto para revista.nu@gmail.com ou visite a reprografia

do darq, onde estão expostos os exemplares disponíveis. pode consultar

ISSN 1645-3891

todos os números anteriores e fazer o download das edições esgotadas em

Março 2011

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revista nu #36 sul marรงo 2011

ISSN 1645-3891

Sul

revista nu #36 marรงo 2011

4,5 euros


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