revista nu #37 mito junho 2011
ISSN 1645-3891
mito
revista nu #37 junho 2011
4,5 euros
mito revista nu #37 junho 2011
{editorial}
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Mito Inês Morão Dias
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A mão e as formas Diogo Lopes
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Symbolic atrophies Jean-Paul Jaccaud
{entrevista}
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Tony Fretton Diogo Lopes, Filipe Madeira e Inês Morão Dias
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A Casa, do secreto ao imaginado Inês Lourenço
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Atlas Compostelanus João Jesus
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Thoughts on a project for a Greek Orthodox church Jacques Herzog, introdução por Filipe Madeira
{à conversa com}
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Paulo Catrica Frederico Martinho, Inês Morão Dias e Tiago Ribeiro
{artigo gráfico}
44
Escrita automática: mitos desdobráveis Ana Aragão
{enviado nu}
48
Once upon a place Inês Morão Dias
{contaminações}
50
Scrabble de memória Tiago Pereira e Sofia Ponte
{a nu}
edição
54
Cabinet of Curiosities
Inês Morão Dias, aluna do 5º ano do dARQ
{editorial} Inês Morão Dias aluna do 5º ano do darq
Mito é uma palavra que assusta e atrai por parecer tão maior que nós. Parece pairar sobre o mundo, como uma abóbada celeste, e encerrar silenciosamente lendas longínquas e efabulações, histórias de heróis, a essência de todas as coisas universais. Mas com o mesmo silêncio o mito discorre como coisa terrena por entre a nossa vida habitual, apropria-se de rituais e histórias e tradições, e distorce-os à sua vontade. E por cima disso, nós, ao olharmos uns para os outros, e ao termos aquilo em comum, ainda distorcemos mais, e usamo-lo como queremos. Uma coisa afinal tão mundana que ali nas nossas mãos se pode tornar equívoco, verdade, ilusão. É de facto porque olhamos, em determinado momento, uns para os outros, que nos propomos conversar sobre a forma como vivemos, e representamo-nos. E se aí aparecem as nossas crenças e suposições, aparecem também as práticas mais curriqueiras da vida quotidiana, porque afinal é nela que vamos dar sentido e corpo a essas representações. Começam as contaminações. O hábito deixa-se ser moldado para acolher as crenças e convicções que partilhamos, as convenções que (em silêncio) acordámos, e ao mesmo tempo os mitos reciclam-se e alteramse pelas sucessivas formas que o hábito, o objecto e o ritual lhe vão dando na representação. A certa altura nessa conversa ao longo dos tempos o mito confunde-se com os seus símbolos e as suas reciclagens, altera-se, morre, é adulterado. E a questão do que é o mito, essa forma escorregadia, impõe-se. A dependência entre o que no mito é lenda, objecto, símbolo e afeição à ideia que transporta, sugere que ele é tudo menos estático, universal. É um ser em forma, vive do uso. ‘Mito não é objecto, ideia ou conceito: é um sistema de comunicação, um modo de significação, uma forma’.1
1
BARTHES, Roland, Mythologies, Point
Essais, 1970, Paris
Entendendo o mito como uma forma outra de linguagem, é quando entra em cena o signo que se começa a operar com mito. Desenhar, escrever, dançar, construir, usando códigos já conhecidos, com vista a uma significação, é trabalhar com mito, porque a signficação é o mito em si. Assim qualquer objecto pode incorporar mitos, basta que entre num estado oral, falante, e que, ao seu puro uso, para funcionar como código, se junte um uso social do seu significado, isto
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é, o objecto torna-se aberto a uma apropriação que é colectiva. Constrói-se assim uma base de entendimento para a conversa entre todos, um conjunto infinito de possibilidades de combinação e de significação dos mitos inscritos em silêncio nos objectos que povoam os nossos dias, um extenso arquivo manipulável que é um imaginário e memória conjuntos, que partilhamos. Isso faz das arquitecturas objectos fecundos para tudo o que tem a ver com mito: para a absorção de um imaginário colectivo, porque os espaços onde vivemos são palco de um quotidiano e de um conjunto de forças e ideias que partilhamos e expomos; para a representação, pela capacidade comunicativa e discursiva da arquitectura enquanto construção cultural; e para uma presença que a torna testemunho do que nos é comum ao longo do tempo e que releva a capacidade mítica das próprias construções. Pensar em mito e arquitectura significou para nós reflectir sobre esse conjunto partilhado de imagens, ideias e afectos que interfere com a forma como vivemos, experienciamos e fantasiamos sobre os espaços, as casas e as cidades, sobre uma ideia partilhada de território e sobre como os mitos moldam uma paisagem que apropriamos e construimos colectivamente, sobre o que de mítico e evolutivo tem um ideia conjunta e íntima de habitar. A maleabilidade dos mitos e das formas, a reciclagem e uso que podemos fazer dos códigos, fez-nos pensar em arquitectura como uma possibilidade - de crítica, de reinterpretação, de participação. Levantou-nos questões sobre a contribuição que a disciplina arquitectura pode dar a esse grande diálogo mítico, seja numa aproximação ao que de mais banal e ritual tem a apropriação da arquitectura, seja numa reflexão sobre o que é a imagem e a sua missão cultural, seja na comunicação e num entendimento que permita à arquitectura fazer sugestões sobre a forma como vivemos num espaço partilhado. Pensar em mito significou pensar em arquitectura como um elogio à colectividade.
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a mão e as formas as metamorfoses em arquitectura
Diogo Lopes aluno do 5º ano do darq
Em arquitectura trabalhamos por vocação natural com formas que têm a capacidade de conter a síntese de determinadas intenções. Pensamos muitas vezes que com o fio condutor que trabalhamos durante o percurso do projecto de arquitectura conseguimos dar sentido a todas as formas do projecto, “da cidade ao puxador”, no seu todo e nas suas partes. Esse sentido, que está necessariamente comprometido com determinantes ligadas a um ambiente colectivo, imprime nestas formas um chão comum no qual nos movimentamos como indivíduos. Acontece que essa característica fundamental das formas foi e é motivo de investigação e experimentação ao longo da história, constituindo-se como verdadeiro tema de projecto. Existem, nos livros de arquitectura que prezamos, arquitectos que se detiveram sobre este problema de diferentes ângulos, deixando-nos alguns deles designações específicas, como o ícone – qual a forma icónica da casa?, ou a origem – qual a forma originária da casa?, ou o anonimato – qual a forma anónima da casa?, ou contexto – o que torna a forma de uma casa contextual relativamente a um meio cultural e físico?, ou identidade – qual a forma identitária da casa?, ou tipologia – qual o tipo de casa de Berlim?, ou falante – qual a forma que nos transmite a palavra “casa”? E os arquitectos deram respostas concretas que nos vêm à cabeça ao ler estes termos.
Casa William H. Winslow, 1893 Casa Arthur B. Heurtley, 1902 Casa Frank W. Thomas, 1901 Frank Lloyd Wright, Oak Park
Neste problema que parece ter uma continuidade própria na disciplina podemos encontrar um traço comum: a tentativa de produzir formas absorvidas pelo imaginário colectivo, tomem elas a forma de ícone, de origem, de anonimato, de contexto, de identidade ou de tipologia. Há nestas investigações o desejo de tornar a casa, e não será ao acaso que seja a imagem da domesticidade a mais recorrente, menos perturbadora e menos perceptível. Talvez esta postura corresponda a uma espécie de trauma, uma tentativa de engrandecer a arquitectura devolvendo-a ao utente, às formas que o utente já usou e apreendeu, de tornar a arquitectura um suporte para uma vivência sobre a qual os arquitectos não se querem impor. Nos casos mais radicais significa a própria demissão do arquitecto, desenhando-se meras reproduções de formas já existentes e desadequadas às exigências daquele tempo. Estas respostas parecem tentar por diferentes vias alcançar e sintetizar o longo tempo das formas que as
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sedimentou com todas as evoluções, rupturas, avanços e recuos. Ao fazer este exercício faz-se uma paragem nesse tempo e dá-se a cristalização das formas, uma paralisia que acaba por as destituir de significado e por as transformar em objectos pouco naturais e por isso com poucas possibilidades de serem absorvidas pelo inconsciente colectivo. Há no processo de projecto pistas que nos indicam os problemas de cristalizarmos formas. Existe uma distância considerável entre as formas que imaginamos na nossa cabeça de uma casa e a representação dessa forma numa folha de papel. Existe, já nas palavras, uma diferença: na nossa cabeça temos formas de casas e não uma forma de casa. Temos um imaginário de casa que congrega provavelmente a forma da casa da nossa avó, a forma da casa que nos ensinaram a desenhar no infantário, a forma da nossa própria casa, a forma da casa que nos descreveram nas histórias de embalar, a casa que vimos numa viagem a Amsterdão. Há no processo de projecto um constrangimento natural da arquitectura: quando passamos estas formas directamente para o papel, reduzindo-as a uma só forma, projectamos uma abstractização deste imaginário plural de casa que é pouco produtivo para que participemos, nós próprios fazedores de casas, na construção orgânica do imaginário colectivo da casa. O desajuste temporal e a necessária pluralidade e complexidade contrapõem-se à possibilidade de encontrarmos um modelo que nos reduza à forma de casa que partilhamos. Apesar disso, parece-nos quase sempre evidente que as formas se devem relacionar com mais ou menos intensidade com este amadurecimento colectivo do imaginário de casa, nem que seja por uma questão de adequação e bom senso. Têm essas formas abstractas a vantagem de tornar evidente e explícito o que são e têm sido os traços essenciais da arquitectura que nos une e que servem de matriz para o nosso auto-reconhecimento. Consideremos portanto que estas formas sintéticas são ferramenta de projecto e não produto arquitectónico acabado. Ou seja, que constituem uma espécie de matéria bruta do projecto e que a podemos cortar e moldar, mutilar e remendar, preencher e escavar, acrescentar e subtrair para que ela se ajuste a uma reflexão e intenção arquitectónica. Tomemos esta forma como ponto de partida e não como ponto de chegada de tal modo que no fim a forma encontrada seja ao mesmo tempo a congregação manipulada de todas as formas e forma nenhuma.
1
ALEXANDER, Christopher, Notes on the
Synthesis of Form,Harvard University Press, 1994, Cambridge, Massachusetts
Considerar esta forma como ponto de partida coloca-nos o problema de qualquer alteração que façamos ser, em si, o próprio projecto e o nosso curto envolvimento na longa evolução das formas . Reflectiu-se sobre um tempo em que as casas eram construídas pelos próprios habitantes e o acto de habitar a própria construção da casa: “indeed not only is the man who lives in the one who made it, but there is a special closeness of contact between man and form which leads to constant rearrangement of unsisfactory detail, constant improvement. The man, already responsible for the original shaping of the form, is also alive to its demands while he inhabits it. And anything which needs to be changed is changed at once.”1 Começava-se por repetir as formas sedimentadas das casas dos vizinhos. Uma vez dentro da casa, quando o habitante se sentia desconfortável pela luz que entrava pela proporção de alguma janela, alterava com as suas próprias mãos o detalhe do vão. Caso agradasse aos olhos da restante comunidade, eram copiados esses detalhes e, apenas depois desse momento, absorvida essa nova forma, a posteriori. 5
Symbolic atrophies The Borromean knot of the Real, Symbolic and Imaginary (RSI)
Jean-Paul Jaccaud Jean-Paul Jaccaud Architectes
Some years ago I was held up in the London City Airport with my friend Jerôme Hentsch on a flight back to Switzerland. Jerôme, as an accomplished artist and psychoanalyst, has a rare capacity for establishing links between disciplines and providing transversal insights. We talked as we waited for our flight to depart, of architecture and psychoanalysis (with occasional side steps to food and our mutual admiration for Nigella Lawson), particularly about Lacan and his three orders of the real, symbolic and imaginary. This conversation sparked an interest for me and found its way into a lecture series on contemporary positions in architecture that I gave when teaching at the École Polytechnique Fédérale in Lausanne in 2009-2010. Inês Morão Dias and Diogo Lopes of the Revista NU have kindly asked me to put into written word the principal arguments of this lecture series, which I have attempted to do by remaining on ground which I hope is not too precarious. I am fully aware of the risk of Lacanian scholars and followers tut-tutting at my shortcuts and approximations, I do hope that they will forgive me or at least grant me a reprieve as a fully acknowledged amateur.
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Coming back to Lacan, the three orders of the imaginary, the real and the symbolic (or RSI as he names them) are heterogeneous psychoanalytical notions relating to very distinct aspects of experience. Lacan implies that these three distinct notions have in fact got an indivisible and strong link and, in his seminar of 1974-75, explores the balance of these three orders in what he called the Borromean Knot. The Borromean knot, named in reference to the coat of arms of the Borromeo family, could more clearly be described as a mutually interlocking set of three rings, which cannot be separated without breaking the unity of the whole. This interdependence implies a mutual balancing of each aspect and a necessary defining of each order in reference to the other two. Defined individually, the Imaginary is the realm of image and imagination, of projection and fabrication (for instance, I am a ferocious dragon, as children might say), the symbolic is the realm of the laws which structure the social world, of language and common signifiers (the rules of alliances, of families and of tribes as Lévy Strauss may have described) and the real is everything that is present, this IS, that is neither symbolic or imaginary and which we fail to be able to give meaning to. A fundamental distinction in the orders is the difference between what applies to the individual; the imaginary as an intimate and self centred realm, to the collective; the symbolic as the ground for common links and signifiers, and the external; the real, that which is not related to us. If these notions are absolutely heterogeneous, Lacan suggests that their interdependence is fundamental and that they are bound to the subject in a way that avoids any notion of hierarchy, or any priority of any one of the three terms. Should we venture into finding an architectural angle to these notions, I would suggest that the imaginary be the abstract aspirations that may govern the architect’s intimate aspirations as an individual. The symbolic would be what links, what allows built forms to acquire meaning to larger social groups in a way that leads from the individual to the collective. The real, is what IS, built form whose meaning remains uncertain, shifting and impossible to grasp. A consideration of the contemporary architectural landscape may lead to the realisation that the imaginary, the individual expression of intimate aspiration is doing rather well, that we are surrounded to the point of nausea by the real through built forms whose only definition is that of being, devoid of any meaning or sense and that the symbolic, the possibility of collective meaning is atrophied to the point of near disappearance. The conceptual contradictions that arise between the collective and the individual are far from being new and have been the subject of vast quantities of architectural discourse since the decline of modernity. It is however increasingly obvious that contemporary architecture has broadly turned its back on the search for collective significance to focus on the assertion of individual impulses. Architecture is increasingly seen as the production of unique pieces whose “raison d’être” lies in their unicity, in their assertion as individual things resisting any relationship to a broader ordering system which may give them collective significance. The links to an artistic system are obvious, with the implied necessity of originality and individuality of the works. If architecture, in its Albertian definition, is clearly placed in the field of artistic production, this notion has
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{entrevista}
Tony Fretton
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Diogo Lopes, Filipe Madeira, Inês Morão Dias alunos do 5º ano do darq
Tony Fretton formou-se na Architectural Association em Londres, na mesma cidade onde mantém o seu atelier desde 1982 e onde construiu a Lisson Gallery, projecto que deu inicio a uma série de encomendas com influência no espaço público londrino: sobretudo galerias de arte mas também museus e casas para artistas e coleccionadores. A sua prática, marcada pela relevância social deste tipo de programas, propõe-se a trabalhar sobre a contínua construção do valor da colectividade, reforçando-o através da utilização e consequente exposição do seu imaginário comum. De Londres, Fretton fala-nos do mito – da sua importância, das suas possibilidades e qual o papel da arquitectura na sua construção. Myth is a complex term that relates to an efabulation, something which transcends the corporeality of things, and yet it also refers to its manifestation through very concrete languages, poems, objects, traditions, rituals. How would you include the word ‘myth’ in your dictionary of architecture? I think myth, myth and symbolism, are embedded in architecture and buildings, absolutely, without any doubt. And if architects don’t make those myths, the people who use and understand the buildings do make those myths. So it’s up to architects to make their work available as myth. What do you think about that? We think like that as well, we have become interested in myths because, since they belong to a collective imaginary, they become present in our daily life through these absorbed habits and iconographies. We find that in your buildings, contextualism seems to happen with very concrete elements that anyone could recognize as familiar, like doors or windows. We also know about your photographs of London. How do you scan these elements from reality?
Lisson Gallery, Londres, 1992
I think you look at them in the way that any writer or artist would look at them. Instead of just being an architect concerned with production and architecture’s own internal argument, what you think about is how you as a person, not as 13
A Casa: do secreto ao imaginado Inês Lourenço aluna do 6º ano do darq
“El ambiente doméstico, como el rosto, es también un reflejo del alma de quien lo habita. [...] El mundo pessoal de la casa suele estar poblado por fantasmas emotivos y familiares que muchas veces son más determinantes que las corrientes culturales de la época.”1 Ao entrarmos na casa de alguém, sentimos que estamos a invadir o que há de mais privado nessa pessoa. Toda a sua rotina, actividade e vivência são servidos de bandeja na recepção que nos é feita: tudo é revelado e está ao nosso dispor. Mas, à semalhança do rosto, que não revela quem somos num primeiro olhar, também a casa esconde uma infinidade de histórias ao mero visitante. Há uma atmosfera estranha que nos cerca e que pesa em cada passo e em cada olhar. Se, por um lado, estamos rodeados de coisas que nos são próximas e familiares, por outro, estas não passam de sinais ambíguos que cada um lê de forma diferente. Ou seja, por trás do palpável existe o invisível, o desconhecido e o misterioso. É um mundo de traços por decifrar e histórias por adivinhar. O museu Sir John Soane em Londres, que em tempos fora a sua casa, ilustra bem essa aura. A vasta e estimada colecção de antiguidades e obras de arte, determinantes do desenho da casa, foram cobrindo incansavelmente tudo o que é chão e paredes, e traçando um retrato do coleccionador. Entretanto, por sua iniciativa, a casa torna-se museu: todas as peças são expostas ao público e o espaço é devassado a visitantes que, embora estranhos, descortinam sinais de alguém cujo espírito as várias pinturas e esculturas teimam em preservar.
1
PRAZ, Mario, La personalidad del
ambiente. Sensibilidad artística y gusto ornamental. In Monografias de Arquitectura y Vivenda, 1988. p. 49.
Sendo provavelmente o coleccionador aquele que cultiva de forma mais obcessiva o ambiente em que se move, qualquer homem tem por instinto modificar o que o rodeia à sua imagem. Numa inevitável atitude narcisista, decora o seu habitáculo de forma harmoniosa, ou seja, de modo a ver-se reflectido nele. A decoração da casa, acumulação de objectos e pertences que identificamos como nossos, não é mais do que uma projecção do eu. E a casa, alimentando um amor platónico pelo seu dono, recebe essa projecção. As paredes têm ouvidos, elas absorvem as conversas, os cochichos, as lamentações, os risos, o choro. E assim vão inchando de experiência, vão ficando mais pesadas, mais ricas, mais domesticadas. Segundo Adolf Loos, a acústica de uma sala de concertos não depende somente da geometria da sala ou do tipo de material que a reveste, mas também, e sobretudo, da qualidade da música que nela se toca ao longo do tempo. Perante
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o facto de a Ópera de Viena ter sido tomada como de má acústica quando inaugurada e de entretanto, passados largos anos, ser considerada como um dos teatros com melhor acústica, explica: “El material ha ido tragando siempre, a lo largo de cuarenta años, buena música, y se ha impregnado de los sonidos de nuestra filarmónica y de las voces de nuestros cantantes. Son ésos misteriosos cambios moleculares, que hasta ahora sólo podíamos advertir en la madera de un violín.”2
Museu Sir John Soane, Londres
2
LOOS, Adolf, El misterio de la acústica.
In Escritos II 1910/1932, 1993. p. 60. 3
BAÑÓN, José Joaquín Parra, Habitar é
um verbo vazio. Conjecturas sobre hábito e habitação. In Do habitar, 2005. p. 66. 4
TANIZAKI, Jun’Ichiro, Em louvor às
sombras, 1999. p. 12-14.
Há, portanto, um outro factor fundamental no gradual enriquecimento do espaço: o tempo. No que toca ao espaço doméstico, o tempo consolida as relações estabelecidas entre ele e o homem. Habitar pressupõe desde logo a existência de hábitos, ou seja, significa fazer algo no mesmo local de forma repetitiva. “Não é pela sua aparência que uma habitação é reconhecida primariamente. […] Aquilo que a engendra e define é o uso: não o uso circunstancial que pela sua temporalidade podia chamar de ocasional, fugaz, mas aquela que, incitado pela experiência, é uma actividade frequente e ordenada.”3 O hábito é o fruto de uma relação íntima e duradora entre o sujeito e o local ou o material. As marcas do tempo são uma prova dos laços que se criam entre os dois, que se vão estreitando precisamente graças a uma insistência temporal. O tempo acrescenta assim valor simbólico ao palpável, cria uma película invisível e misteriosa sobre o real. Em Louvor às Sombras, o escritor japonês Jun’ichiro Tanizaki, descrevendo a cultura japonesa, refere-se a esta dimensão do tempo nas coisas, a esta imaterialidade que é tão mais forte quanto mais tempo passa sobre elas: “De uma maneira geral achamos que é difícil viver-se com objectos que brilham e que reflectem a luz. Contrariamente aos ocidentais, que usam a prata, o aço e o níquel para os objectos de servir à mesa e lhes dão lustro para que adquiram um brilho fino, nós procuramos atingir o efeito oposto pondo-os a uso. […] Não é verdade que tenhamos aversão a tudo quanto brilha, mas preferimos um brilho severo a um brilhante insípido, uma luz sombria que, quer em pedra ou artefacto, emane um reflexo de antiguidade. Este “reflexo de antiguidade” de que tanto ouvimos falar, nada mais é do que o brilho da sujidade. Tanto em chinês como em japonês, as palavras que referem este brilho descrevem o lustro que advém de tanto se tocar, o brilho produzido pelos óleos que naturalmente permeiam um objecto depois de muitos anos de manuseamento – isto é, a sujidade. […] para bem ou para mal, nós amamos as coisas que trazem em si as marcas da sujidade, da fuligem e do tempo, e amamos as cores e o brilho que trazem à memória o passado que as fez. Viver em casas antigas, no meio de objectos antigos é, de forma misteriosa, uma fonte de paz e de repouso.”4
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Atlas Compostelanus Esquissos de Ă lvaro Siza MAURI, Annalisa, Ă lvaro Siza - Centro Gallego, Momenti Di Architettura Moderna, Firenze, 1997, p.12.
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João Jesus arquitecto formado pelo darq
Todo o arquitecto procura imprimir nos seus projectos a profundidade necessária. É certamente por excentricidade que recorre à ilusão, imagem ou metáfora, numa inglória tentativa de humanizar o mundo. O arquitecto, como o poeta, é um fingidor, reunindo dentro de si todas as problemáticas humanas que dele extravasam sob a forma de belos movimentos. É certamente o caso de Siza na concepção do Museu de Santiago de Compostela. Possivelmente surgido por ímpeto existe, entre os esquissos iniciais, um desenho de Atlas, uma figura surgida do novelo caótico de riscos sobrepostos. Não é ao titã da mitologia grega que se refere somente. É quase certo que este desenho surgira como mnemónica no momento de criação, numa tentativa de apreender um conceito já à partida puramente intelectual. Porém, não deixa de ser interessante que o exercício projectual coincida numa imagem puramente metafórica, casando o museu junto ao Convento de S.Domingo de Bonaval com a cidade de Compostela. Afim de entender o seu significado vemo-nos então obrigados a ler subliminarmente o que significara para Siza esta figura antiga. Atlas, titã da mitologia grega, personifica a imagem de peso e penitência, condenado a sustentar o mundo para toda a eternidade. Por analogia encontramos no seu projecto para Santiago de Compostela uma concepção dissimulada logo à cabeça (na entrada). Talvez relembrando a sua formação inicial de escultor, Siza idealiza o alçado de topo como uma grande parede de pedra, sustentada por dois pequenos e atarracados pilares. A ilusão de aparente leveza encontra assimetricamente no desenho desses pilares torcidos a ideia de esforço e peso. Afigura-se um processo já conhecido como barroco ou poético. Procurando por isso impressionar, a força expressiva dessa metáfora reside na tensão criada entre identidade e diferença. Se por um lado a parede pétrea simboliza o peso e os pilares o esforço, a aparente levitação do material é motivo de estranho acontecimento. O próprio Siza refere, em memória construtiva, que os critérios de preservaçãotransformação neste projecto envolvem sobretudo a escolha dos materiais de revestimento, particularmente cientes das especificidades de Santiago, assumindo uma expressão independente do sistema construtivo a que está subordinado. Essa sobreposição de conceitos técnicos encontra-se de forma evidente na fachada e nos cunhais do edifício, contradizendo alguns pressupostos da construção em pedra (como podemos ver no corte das pedras de topo). Esse método construtivo utilizado de forma “mascarada” procura identificar-se com um bloco talhado em granito, em vez da placagem de que é feito. É fácil
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Thoughts on a project for a Greek Orthodox church in Zurich
Filipe Madeira aluno do 5º ano do darq
Fotografias da exposição Architektur Denkform, 1988
1
Jacques Herzog e Pierre de Meuron,
Em 1988, numa palestra com o nome The Hidden Geometry of Nature, Jacques Herzog identificava na sociedade presente um desfasamento tal entre o imaginário dos indivíduos e as ferramentas técnicas disponíveis - obsessivamente impulsionadas pelo ideal cego de progresso - que não mais permitia a existência de um conhecimento comum a que chamaríamos Tradição. Para Herzog, a cultura Pós-Moderna, ao fabricar relações com formas históricas através da citação, não conseguindo com essa prática penetrar mais longe do que a superfície da retina1, era o reflexo da inabilidade actual de produzir objectos verdadeiramente contemporâneos. No mesmo ano, o atelier Herzog & de Meuron é convidado a expôr o seu trabalho no Architekturmuseum de Basileia, de onde resultaria a exposição Architektur Denkform - Arquitectura, Forma de Pensamento. A maneira como encaram a mostra dos seus trabalhos é em si uma resposta ao problema e reveladora dos princípios que iriam guiar os seus próximos projectos. Ao cobrir as amplas janelas do museu com serigrafias de imagens dos seus edifícios, H&dM não estão apenas a produzir representações de objectos existentes, mas a tornálas arquitectura: através da sobreposição de pormenores das suas obras à Basileia que figura por detrás das janelas - fachadas nos pisos de onde vemos fachadas, telhados de onde vemos telhados, etc. -, criam um layer intermediário entre observador e cidade, modificando a sua percepção. É nesse sentido que o projecto para uma igreja Ortodoxa Grega de 1989 se torna especialmente importante para este número. Aqui, a manipulação de imagens, ambicionando a manipulação das percepções, é o recurso encontrado para tentar tornar possíveis na arquitectura contemporânea, na sua essência e não na sua aparência, os mitos de sempre, como nos explica Jacques Herzog.
The Hidden Geometry Of Nature (1988), in Gerhard Mack, Herzog & de Meuron, 1978-1988, The Complete Works, Basileia, Birkhäuser Verlag, 1997
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Interior de Igreja Ortodoxa
Jacques Herzog e Pierre de Meuron Arquitectos fundadores do atelier Herzog & de Meuron em 1978, na cidade de Basileia
Every Orthodox Church built today, in the West as well as in the East, is as a rule equipped with icons produced by contemporary artists. These works, whether mosaics, paintings on wood or frescos, are executed according to rules that have been obeyed for centuries. Because these Orthodox rules have always carried such weight traditionally, the artist, as opposed to the work, i.e. the icon, was always somewhat in the background. This means that the liturgical value of the icon was always more important than its artistic value or, perhaps, that the liturgical value of icons was always so fundamental that their artistic merit was not divisible from them. The liturgical, artistic, aesthetical instance formed a whole – a whole that included every other element of the church’s space: its architecture, the surface of its materials, its music, the light of its candles and its smell. These correlations are impressively and perspicaciously described by the Russian priest and philosopher Pavel Florenskij1 who examined the issue of icons during the Stalinist period of secularization of Orthodox churches and cloisters. What is wrong with icons being produced and churches being built today? It cannot be because of our lack of faith in God that we fail to be moved, otherwise other wonderful traditional church spaces would leave us cold as well. It is rather the now impossible and therefore disintegrated unity of the liturgical and artistic value of icons and architectural space. Icons painted according to rules handed down and with paints mixed following old recipes have now become mere handicrafts, even when they come from the hands of an artist cut off from telecommunication information and living in the most secluded cloister in the world.
1
Pavel Florenskij: Die umgekehrte
Perspektive, MĂźnchen 1989.
The impossibility of keeping tradition alive is a universal and irreversible phenomenon. The impossibility of producing new Orthodox images according to traditional rules did not just suddenly become a fact from one day to the next. Rather, a long-term process is taking place (actually, the process is always taking place although we only perceive it in its marked eruptive moments), but one that
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{à conversa com}
Paulo Catrica Frederico Martinho, Inês Morão Dias, Tiago Ribeiro alunos do 5º ano do darq
Encontrámo-nos com o fotógrafo Paulo Catrica na baixa de Coimbra e sentámos para esta conversa no café Nicola. As fotografias e os objectos que preenchiam esse espaço foram sendo exemplos para a conversa, bem como as imagens que apareciam nas auto-estradas e ruas que tinha percorrido por esses dias. De facto, foram os espaços que se percorrem e vivem diariamente e que todos reconhecemos como familiares, que constituiram para nós interesse no trabalho de Catrica, que parece procurar nessa banalidade uma leitura do espaço colectivo - o território e a paisagem.
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Interessa-nos a forma como os mitos podem estar presentes numa construção colectiva da paisagem. Já o ouvimos dizer que há hoje uma ‘necessidade da paisagem, ou da imagem da paisagem’. Porquê? Uso paisagem no plural, a paisagem natural, que implica a Natureza, ou aquilo que sobra ou cresce da terra, e a paisagem idealizada ou construída, rural, urbana ou outra. Acontece que vivemos entre imagens. Só aqui, nestas paredes, estão seguramente mais de uma vintena, e o modo como nos relacionamos com as imagens interfere seguramente nas práticas de todos os que fazem ‘paisagem’: o agricultor, o arquitecto, o urbanista, o paisagista, o empreiteiro - os especialistas; o sr. X que faz subir a altura do muro da sua casa ou acrescenta a varanda com a marquise ou o sr. do café que coloca estes cardápios com fotografias de ‘paisagens’ na parede; não esquecendo o fotógrafo e o designer que a tentam representar. Ou seja, a paisagem e a imagem da paisagem parecem muitas vezes indistintas, por isso existe cada vez mais a necessidade de pensar e de interrogar o modo como se faz paisagem e o que são ou significam as imagens da paisagem. Enquanto conduzia na A1 lembrei-me de como a paisagem é hoje um suporte para a imagem de outra paisagens. Quando eu era criança e adolescente, as estradas quase não tinham imagens – havia apenas nas aldeias e vilas o painel de azulejos do Nitrato do Chile e o Licor Beirão. Hoje na auto estrada perto da Mealhada está um outdoor que anuncia a sopa da pedra de Almeirim, um outro os vinhos do Alentejo, etc... depois aquelas coisas enormes e castanhas com letras brancas e um design pavoroso vão-nos anunciando os interesses específicos dos locais por onde passamos, Termas, Catedrais, Minas, etc. Sugerem locais, função e história da paisagem que remetem para outras paisagens e necessariamente para outras imagens. Sendo a paisagem cada vez mais uma imagem, as pessoas dos centros urbanos procuram o campo, perseguindo a ideia de natureza/natural que retém das imagens. Mais, a paisagem ‘natural’, ou melhor o campo, é hoje interface de desportos radicais, raides de todo-o-terreno, ciclo montanhismo, parapente, rafting. É cada vez menos agrícola. Depois este espaço rural, ‘o campo’, é ele mesmo um produto, tem o turismo histórico, o pedagógico, o agrícola, o rural, portanto não existe apenas uma paisagem existem muitas experiências fisicas de paisagem, e muitas imagens dentro da paisagem. De certa forma, a paisagem é em simultâneo as coisas que por lá se fazem, e as imagens associadas a essas ‘aventuras’ na paisagem. Assim, as imagem de paisagem são cada vez mais uma necessidade, e os meios audiovisuais são desde há muito ferramentas preferenciais na construção desse edifício lúdico e de um outro crítico. Neste último, a filiação técnica das imagens tem cada menos relevância na construção da narrativa, as imagens podem ser as fotografias do Álvaro Domingues ou do André Cepeda, os filmes do Pedro Costa ou da Catarina Mourão, etc. Todas estas imagens constroem um argumento e uma reflexão critica.
Lfc 854 Rua da Escolha Velha, Malveira da Serra 1.7.2009 11:40hrs f45/8
Importa referir que as implicações plurais do termo paisagem de que falo remetem para o inglês, Landscape, palavra que refere, em simultâneo, todos os elementos visíveis de uma área/parte/sítio, usualmente consideradas em termos estéticos; uma imagem ou representação desse lugar/local/sitio ou parcela de campo, seja uma vista (view), um género pictórico da pintura, ou, ainda, no 35
{artigo grรกfico}
escrita automรกtica: mitos desdobrรกveis Ana Aragรฃo aluna de doutoramento do darq
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{enviado nu}
Arquitectura e ficção
Inês Morão Dias aluna do 5º ano do darq
Once upon a place1 era o nome do ciclo de conferências. Propunha-se pensar que histórias é que os espaços e os edifícios nos contam, e que conhecimento para a arquitectura e a sua experiência é que as efabulações podem sugerir. Juntei-me desde logo a essas perguntas. Já intrigada com estas questões dos mitos, fui encontrando no centro do seu mistério uma duplicidade: eles são de fabrico nosso, de uma moldagem que fazemos da realidade, como plasticina, e no entanto são entes invisíveis, e quando cada um de nós cá chega, já têm vida própria para o colectivo. Parece uma grande efabulação pensar se terá cada coisa real uma outra existência num plano paralelo de significação, e por isso, centrando-nos nas ‘coisas’, é inevitável pensar que propriedade é que elas terão, para além do peso, dimensões, densidade, textura, que as ligue nesse sistema de invisibilidades que é o gigantesco patchwork do imaginário. No fundo, o que está entre o concreto e o mito? Com a desconfiança de que esse entre se baliza pela vida - o uso-, e pela ficção - a imaginação-, fui ao primeiro dia destas conferências tentar perceber as influências recíprocas entre arquitectura e ficção, quer esta se manifeste sob formas literárias ou outros meios de narrativas visuais e cultura popular, como prometia o resumo do evento.
1
O ciclo internacional de conferências
Once upon a place - haunted houses and imaginary cities decorreu entre 12 e 14 de Outubro de 2010 no Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian e no Museu da Electricidade, em Lisboa, associado à Trienal de Arquitectura de Lisboa, com organização associada à FAUTL de Susana Oliveira e Pedro Gadanho. (http://www. onceuponaplace.fa.utl.pt/)
Once upon a place transporta-nos para a frase de abertura de todas as histórias que nos querem, instantaneamente, arrancar por um bocado da realidade onde estamos e levar-nos para uma imaginada. Num trocadilho inteligente, o nome do ciclo lança questões à partida. Place substitui time. Sugerem-se os lugares como os sítios onde as coisas acontecem. Que as invenções podem criar um lugar imaginado com mais ou menos referências a lugares geográficos, concretos, e que o transporte da realidade para o universo das histórias pode ser feito num salto entre esses espaços recriados. Da mesma forma, imprime-se aos próprios lugares a hipótese de se constituirem temporalmente. As ruas, as casas, a arquitectura podem ser narrativas? É certo, elas vão ser palco da vida, vão ter uma duração, vão ser transformadas, ter um tempo, mas estamos habituados a pensar nessa existência dura e material como muda. Por outro lado, será que as histórias, os tais outros meios de narrativas visuais e culturais em que o tempo é material e que usam imagens ou evocações de lugares e arquitecturas, será que têm o poder de alterarem o nosso entendimento dos espaços onde vivemos, e até a maneira como os produzimos?
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Da sequência de intervenções a que assisti creio terem-se esboçado duas formas de propor uma perspectiva temporal sobre a arquitectura e as ficções. Dois tempos paralelos, um macro e um micro - o grande tempo, da História, no qual a arquitectura se inscreve inegavelmente como testemunho e escrita em todas as eras; e o tempo subjectivo, individual ou colectivo, da experiência das cidades e da arquitectura, o tempo de construção de um entendimento desses lugares. Os dois primeiros segmentos do dia, Utopias and Dystopias e Stories from History, curados respectivamente por Diogo Burnay e Eduardo Côrte-Real, pegam na questão do tempo macro, mas surpreendentemente o discurso revela um tempo que se permite não ser linear, em que há suspensões, analepses, retornos, fragmentos. Para lá da incorporação, na arquitectura e na sua produção teórica, dos valores e crenças de cada tempo, falou-se aqui de como a arquitectura pode operar numa manipulação desse tempo. As utopias de arquitectura e de cidade, por exemplo, incidem sobre uma deslocação para um outro tempo. Os desenhos do american sublime de Ferriss foram apresentados ao lado dos de Piranesi2 como exemplares desses momentos de fuga, da própria arquitectura, da sua realidade mais palpável, para um trabalho de fantasia - um sobre o futuro, as novas formas e tecnologias, the metropolis of tomorrow, o outro sobre a poetização nostálgica de formas de tempos passados. Ideais de progresso ou de bem cristalizados na simulação e evocação de um futuro e de um passado manipuláveis por uma série de imagens e formas que querem actuar criticamente. A arquitectura a querer viajar no tempo, em sonhos para um outro colectivo. O tempo histórico a ser ficcionado e retalhado em prol de uma crítica do presente.
Desenhos de Ferriss
2
Ferriss: Visions of Utopia, intervenção
de Alexandra Ai Quintas (CIAUD/FA.UTL) 3
Divided Cities: Mythologies of Place
and Nostalgic Utopias, intervenção de Anita Bakshi (Clare College, Univ. Cambridge)
O uso dos lugares e da arquitectura como escrita da História acontece, de resto, pelos próprios sistemas sociais. Uma outra intervenção3 deu alguns exemplos claros de vontades de poder que assentam na constituição de mitos relativos aos lugares, que lhes alteram a realidade e dão identidade, mesmo que equivocada, numa premeditada manipulação da História. Por exemplo os mitos de construção e vida das nações, cristalizados numa representação do espaço - o mito do vazio, a land without people for a people without land, e o mito da presença longínqua, da construção sobre a cidade antiga de David, são discutidos a propósito de Jerusalém. Ou os inúmeros exemplos de sobreposição de construções representativas do poder, numa tentativa de apagar o passado, dando a ilusão de que ele foi como o presente - a esse propósito foi referida a grande praça política construída no lugar do grande templo em Lhasa, no Tibete, reescrevendo sobre o mito antigo um novo poder. A reescrita desse passado, a manipulação da memória colectiva, a selecção da História, são nesses exemplos apresentadas como advindas de um uso simbólico, carregado de emoção, dos espaços. A peso físico dos lugares talvez dê ilusão de permanência no tempo, daí a efectividade do seu uso na construção e simulação de vontades e tempos, no moldar da memória. Por outro lado, é a fugacidade do tempo que nos permite projectar, em utopias de futuro ou em nostalgias, desejos de lugares outros. A História aparece como manipulável, efabulável, uma megaficção em que a arquitectura é um instrumento eficaz na instauração de mitos e na provocação de fantasias, na construção de verdades e mentiras que indissocia lugares imaginados e reais. 47
{contaminações}
Scrabble de memória
Tiago Pereira Realizador e visualista Sofia Ponte Artista e investigadora em arte moderna e contemporânea
Legenda da imagem: Regadinho, 2008 Mandragora Officinarium, 2009 Calizio, 2009 Making Off B Fachada Tradição Oral Contemporanea, 2008 We’re Not Old Ladies Singing We’re Musical Instruments, 2010 Fireworks ao vivo na Casa da Música, 2010 Paus (recolhas), 2011 © Direitos Reservados
Sofia Ponte És um dos disseminadores dos discursos pós-cinemáticos em Portugal. Aprofundas e desenvolves práticas multimédia e uma linguagem muito própria na criação de projectos audiovisuais que umas vezes são documentários, “filmes-tese”, outras vezes performances em tempo-real e filmes-musicais. Tens investido num entendimento renovado dos conceitos de tradição e contemporaneidade mas também da experiência cinematográfica e do que se pode fazer com ela. Tiago Pereira Sou um caçador de ritmos, de canções e de loops. Estou entre o arquivo e a sua desconstrução, entre o sampler e o remix. Entre Lomax1 e Spooky2. Encaro o meu trabalho como um arquivo imaterial de memória musical colectiva, onde cada momento captado (documentado) é tratado como uma célula viva. Estou a produzir uma base de dados audiovisual onde cada célula (recolha) será usada e “remixada” infinitamente. Entendo que qualquer conteúdo tratado assim, entendido como um instrumento, produz um potencial inesgotável de experiências e impressões. Fazer recolhas assim como eu as faço, de forma artística e não científica, necessita de uma dose muito grande de determinação. Dou por mim a desmistificar ideias estereotipadas sobre o que recolho. Uma dessas ideias refere-se à descontextualização das recolhas (aquilo que tomo por
50
1
Alan Lomax (1919-2002), etno-
musicólogo norte-americano que realizou durante toda a sua vida importantes recolhas musicais folclóricas, sobretudo nos EUA. 2
Paul D. Miller (1970), conhecido por
DJ Spooky, compositor, escritor e artista multimédia norte-americano com contribuições inovadoras no movimento
células). Existe uma resistência imensa em aceitar a desconstrução artística de ideias e temas que estão enraizados num certo imaginário colectivo da nossa sociedade. O universo das paisagens sonoras e da ecologia acústica é quase inexistente em Portugal. As escolas não formam indivíduos para ouvir, tão pouco os sensibilizam para isso. Quando um indivíduo desperta para os sons, encontra as recolhas mais difundidas, que são as que foram realizadas há 50 anos atrás pelos etno-músicologos mais conhecidos como o Sardinha3, o Michel Giacometti4, o Ernesto Veiga de Oliveira5. Estas recolhas representam um tempo e uma forma de estar que nem sempre são a melhor amostra audiovisual da nossa cultura, eu pelo menos não me identifico com elas. Frequentemente incidem sobre um Portugal moribundo e triste o que, a meu ver, não corresponde à realidade actual. As minhas recolhas baseiam-se na história da vida das pessoas, ou melhor no(s) mito(s) que cada um dos indivíduos com que me cruzo fabricam sobre a sua própria vida. Esse(s) mito(s) são muitas vezes confundidos com a Tradição, um fenómeno identitário e generalista, esbatido no espaço e no tempo, que ninguém sabe muito bem o que é. As novas gerações já não têm que ver com o PREC6 ou com o 25 de Abril, não têm o peso emocional e social que daí vinha. São mais livres, não têm vergonha ou fascínio pela ruralidade. Têm curiosidade e isso abre caminho para explorar outro tipo de sonoridades e fazer-se um trabalho de laboratório que era o que nunca tinha sido feito até aqui (pelo menos sistematicamente). Para isso é que desenvolvo este conceito de arquivo vivo e mutável.
de hip hop e da música experimental contemporânea. 3
José Alberto Sardinha, investigador que
tem contribuído para a preservação de diversas tradições musicais portuguesas. 4
Michel Giacometti (1929-1990), etno-
musicólogo nascido na Córsega que se instalou em Portugal onde fez recolhas etno-musicais nas décadas de 60 e 70. 5
Ernesto veiga de Oliveira (1910-1990),
etnólogo que teve um papel fundamental na renovação dos estudos etnográficos em Portugal. Director do Museu de Etnologia, em Lisboa, entre 1973 e 1980. 6
PREC siglas que se referem ao “Processo
Revolucionário em Curso”, período intenso de actividades revolucionárias em Portugal ocorrido entre o dia do golpe militar, 25 de Abril de 1974, e 25 de Novembro de 1975. 7
John Cage (1912-1992) compositor,
músico, escritor e artista norte-americano que contribuiu seriamente para um alargamento das ideias e práticas artísticas
SP Quando falas do teu trabalho usas termos e conceitos operativos que se parecem referir a uma linguagem que está por existir. Está um vídeo no Youtube do programa de televisão I’ve Got a Secret, muito popular nos EUA nos anos 60, com o excerto de uma participação do John Cage7 numa das edições. Cage apresenta uma composição musical que se chama Water Walk. Nesta composição intervém instrumentos como um jarro de água, um tubo de ferro, um apito de ganso, uma garrafa de vinho, uma batedeira, um apito, um borrifador, cubos de gelo, dois pratos, um peixe mecânico, um apito de pássaros em madeira, um pato de borracha, um gravador, um vaso de rosas, uma garrafa seltzer, cinco rádios, uma banheira e um piano de cauda. Nesta altura Cage já tinha composto a peça 4’33’’, constituída por 3 movimentos onde não existe uma única nota de som, apenas a indicação da duração de cada um dos movimentos que perfaz 4’33’’ minutos, como o título da peça indica. Durante este tempo em que o intérprete está imóvel junto ao seu instrumento ficamos sujeitos, aparentemente, ao silêncio. Damo-nos conta de que o único som a que estamos expostos é o do ambiente em que tudo isto se passa. Este gesto, que manifesta uma noção radical de som, de música, de performer, de espectáculo e de espectador, estimula-nos a ouvir para além do óbvio. Proporciona-nos uma experiência de escuta cheia de nuances sonoras, tal como a realidade.
a partir do pós–guerra. 8
A Música portuguesa a gostar dela
própria é um projecto que tem por objectivo gravar semanalmente músicos a tocar na rua ou em locais inóspitos e que celebra a enorme variedade de música que se faz em Portugal. Mais info: amusicaportuguesa.blogspot.com
TP No princípio só gravava som, a paisagem sonora de cada espaço. Este ano quando criei o canal de vídeos de música na internet, A música portuguesa a gostar dela própria8, tive a preocupação de gravar os músicos em espaços incluíndo o ambiente sonoro do local da gravação. O canal não só documenta o que se faz hoje, 2011, em Portugal mas também arquiva para o futuro, para daqui a 20, 30 anos se estudar a música portuguesa de 2011, por exemplo. 51
{a nu}
Cabinet of Curiosities Domenico Remps, 1690s, Florenรงa
54
a revista
nu é a publicação planeada e produzida pelos estudantes do
departamento de arquitectura da universidade de coimbra. essencial, imparcial e descomprometida, a nu é uma ferramenta de aprendizagem que tem como objectivo a reflexão e debate em diversos temas relacionados com a arquitectura, um encruzilhadas, dois lugares, três cidades, quatro Morada Revista NU, Dep. de Arquitectura,
mecanismos, cinco àreas de contaminação, seis imagem, sete
Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade de Coimbra, Colégio das
desvios, oito tempo, nove sexo, dez ismos, onze tecnologias,
Artes – Largo D. Dinis 3000 Coimbra Telefone/fax (darq)
doze onde
está coimbra?, treze pecado, catorze oposições,
+351 239 851 350 +351 239 829 220 E-mail revista.nu@gmail.com Arquivo digital arquivonu.blogspot.com Director Diogo Lopes Sub-director Filipe Madeira
quinze viagens, dezasseis oriente, dezassete revolução dezoito revistas, dezanove colagens, vinte onde vinte e um marginalidades, vinte e dois game
digital,
está portugal?,
design, vinte e três
brasil, vinte e quatro espectáculo, vinte e cinco utopia, vinte e seis identidade, vinte e sete habitar, vinte e oito velocidade, vinte
Editora Inês Morão Dias
e nove modus
operandi, trinta poder, trinta e um chão, trinta e
Redacção Diogo Lopes, Diogo Vasconcelos, Filipe
dois ocupa, trinta e três consumo, trinta e quatro feio, trinta e cinco
Madeira, Frederico Martinho, Inês Lourenço, Inês Morão Dias, Inês Ribeiro, Luís Madeira, Tiago Ribeiro, Vicente
XXL, trinta e seis sul, enriquecida pela colaboração de diversos arquitectos e
Nequinha Colaborações
académicos de todo o mundo.
Ana Aragão, Herzog & de Meuron Architekten, Jean-Paul Jaccaud, João Jesus, Paulo Catrica, Sofia Ponte, Tiago Pereira, Tony Fretton Editor Gráfico Filipe Madeira Revisão e Grafismo Diogo Lopes, Diogo Vasconcelos, Filipe Madeira, Inês Morão Dias Impressão Nocamil Nova Casa Tipográfica Lda. Tiragem 500 exemplares
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revista nu #37 mito junho 2011
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