#34 Feio

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feio

revista nu #34 outubro 2010

4,5 euros



FEIO

Revista Nu #34 Outubro 2010

{editorial}

03

Very bored Diogo Lopes, Filipe Madeira e Inês Morão Dias

08

Feia, porca e má Inês Morão Dias

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Doméstico, o espaço da merda Diogo Vasconcelos e Inês Ribeiro

{conversa}

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Álvaro Domingues Inês Morão Dias, Diogo Lopes e Diogo Vasconcelos

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Casa da Música, um projecto feio Nuno Grande

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Iberê Camargo, um edifício trágico Diogo Lopes

{entrevista}

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Denise Scott Brown Diogo Vasconcelos, Diogo Lopes, Inês Morão Dias

{artigo gráfico}

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Do ruído à violência Sofia Santos

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Anywhere out of the world Nikolas Sisic

{contaminações}

57

Feio e Modernidade(s) Luís Calheiros

{a nu}

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Figura Antropomórfica Ictifálica Filipe Madeira, editor gráfico

edição

Diogo Lopes, aluno do 4º ano do darq


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{editorial} Diogo Lopes, Filipe Madeira, Inês Morão Dias alunos do 4º ano do darq

Na edição de Agosto de 2007 da Vogue francesa, Cindy Sherman é convidada a fotografar a colecção do estilista italiano Balenciaga. Em entrevista publicada no arquivo online American Suburb X, depois da comissão, a artista norteamericana explica as suas motivações - «They were expecting me to do almost exactly what I did for Dianne Benson - these happy, goofy, funny pictures. They had me come over, and I chose the outfits, but then they sent me instead a lot of other clothes that were very boring. I didn’t get anything I had chosen, and I was annoyed. I thought, “This is going to be in french Vogue. I’ve really got to do something to rip open the french fashion world.” So I wanted to make really ugly pictures. The first couple of pictures I shot and sent to Dorothee Bis, they didn’t like at all, because they wanted “happy, funny” people. That inspired even more depressing, bloody, ugly characters.»

O “very boring” mundo da moda francesa ver-se-ia desalicerçado, o que poderia aumentar as probabilidades da pluralidade da sua existência, para além do cliché. Tal como na moda, também na arquitectura o Feio opera como uma desconstrução da qualidade mais intrinseca às duas disciplinas, a beleza. O profundo enraizamento da venustas na nossa arquitectura deu-nos a consciência de que a pergunta a colocar não era “Feio, sim ou não?”- na verdade, não saberíamos fundamentar a eventual resposta, o que nos levou a trabalhar no limite do conceito de fealdade. O tema constitui um desvio ao consenso disciplinar - por um lado tenta combater uma normalidade intelectual, por outro reage às inibições na prática que daí podem advir. Acreditamos que identificar o Feio em arquitectura pode ser uma chave para decifrar pequenas evoluções, rupturas, investigações. Mas também para ler oportunidades, aprender lições e enfim, to think different. A aceitação do seu peso como contribuição útil abre espaço por entre as sucessivas unidireccionalidades que se associam ao Belo - suspende-se essa eterna obsessão, conquista-se uma nova amplitude para a estética. Propomos, tal como outros, o Feio como conceito, fora da sua própria literalidade cultural como oposto de beleza. Feio como qualquer coisa que constrói, surgindo um paradoxo:

O “very boring” mundo da arquitectura contemporânea ver-se-ia desalicerçado, o que poderia aumentar as probabilidades da pluralidade da sua existência, para além do cliché. Pedimos para nos falarem do Feio, da modernidade à contemporaneidade na pintura e na escultura, para melhor percebermos a evolução da estética no último século. Partimos da música, do cinema e da filosofia em busca do que poderia ser uma arquitectura feia. Atribuimo-la à Iberê Camargo, encontrámola num dos ícones da década, a Casa da Música. Vagueámos por aquilo que a cultura moderna quase sempre rejeitou, o gosto popular, o kitsh, a imperfeição. Confundimos estética com ética, decidimos não as confundir mais e acabámos expectantes.

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FEIA, PORCA E MÁ para uma análise dessa cidade

Inês Morão Dias, aluna do 4º ano do darq

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Título original ‘Brutti, Sporchi i Cattivi’,

1976, Itália, realização de Ettore Scola, produção de Carlo Ponti e Romano Dandi, argumento de Ettore Scola, Sérgio Citti e Ruggero Maccari

‘Feios, Porcos e Maus’ , de Ettore Scola, apresenta em 76 ao público 1

uma Roma que era desconhecida. Familiar para alguns que a viviam diariamente, a novidade que o filme traz às salas de cinema é a mudança de paradigma na representação da cidade eterna. Se na história do cinema Roma havia ganho um estatuto icónico associado a um certo estilo de vida, com Scola reparámos que nenhuma cidade se faz só de coisas boas. A imagem dessa Roma sonhada e vendível é, aliás, uma presença forte no filme, um estigma para aqueles que em Roma nem sempre conseguem ser romanos. Que nova cidade é esta que se nos apresenta? Poderíamos seguir pelo caminho de catalogar de imediato o filme como um retrato de uma condição social periférica num bairro de lata de Roma, das dualidades e distâncias entre as duas metades de uma cidade rica ou pobre, feliz ou infeliz. Poderíamos associar a ‘imoralidade’ das personagens do filme à sua injusta exclusão social, ter pena deles como resultado da voz fraca numa cidade desequilibrada. Ou ainda, para lá da integração, chamar àquele bairro de Monteccioci de feio e assim, irreflectidamente, partir para a reivindicação de uma repetição da cidade aceite. Mas que moral para esta cidade? Sem querer já passámos aqui por três categorias, naquilo que poderíamos dizer sobre este filme: o feio pode ser o banal, o popular; pode ser o grotesco; e pode ser o imoral, o injusto. A tentação imediata depois do filme e num olhar sobre a

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cidade, todas as nossas cidades, à sua luz seria um cruzamento entre essas três catalogações e os meios material, imagético e social em que se movem. Reparem, no entanto, que a herança a que moralmente respondemos impede-nos de tomar uma posição desse tipo. Socorramo-nos então de termos arquitectónicos, de elementos e formas da cidade como pontos de partida para esta análise, ilibandonos assim da culpa de qualquer espécie de juízo de valor ou moralismo. Se mais uma vez sem querer isso acontecer, temos sempre o pretexto do olhar de Scola como filtro - não nos preocupemos.

A Casa A Roma de Scola começa a ser apresentada no interior da casa dos Mazzatella. Num travelling que percorre toda a casa durante a noite, revela-se uma intimidade demasiado íntima: sucessivos corpos sobrepostos no espaço mínimo da casa, ocupando todas as divisões e espaços livres, que dificilmente se distinguem. À sobrelotação acrescentam-se os movimentos ilícitos no silêncio da noite, traições e trocas entre os corpos que também já dificilmente se distinguem. Esta primeira visita à casa não deixa grande espaço para interpretações: este é um espaço corrompido, não há moral e o feio impera. A insalubridade da casa, a falta de luz e a anulação dos limites e hierarquias naquela intrincada interioridade exponenciam essa caracterização. O espaço doméstico é aqui o refúgio, o microcosmos onde a intimidade cria as suas regras próprias, às escondidas da cidade lá fora – é isso que imaginamos de imediato, a oposição entre este pequeno pedaço e a imensidão do espaço, com as suas regras, lá fora. A posição da casa no mundo. Esta casa olha para dentro, mas como todas as casas, está ligada a todas as outras coisas. Aquele espaço ‘imenso’, imaginário, que não o da casa, vai ganhando atribuições, associações, a casa estende-se para ele com canos, janelas, caminhos. Parece ser essa a proposta de aproximação de Scola: as unidades mínimas somam-se, as suas extensões sobrepõem-se, há cidade. No entanto, as representações que preconcebemos a partir, primeiro, da interioridade da casa – uma cabana face à floresta -, e depois, dos rituais de preparação para se sair desse núcleo – a participação num sistema -, perdem-se quando finalmente passamos ao domínio público e conhecemos um espaço que se apresenta como residual e como uma surpreendente extensão do doméstico. Fotogramas do filme Feios, Porcos e Maus, Ettore Scola, 1976

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doméstico,

O ESPAÇO DA MERDA

Diogo Vasconcelos e Inês Ribeiro, alunos do 4º ano do darq

Por detrás de todas as crenças europeias, sejam elas religiosas ou políticas, está o primeiro capítulo do Génese, a ensinar que o mundo foi criado como devia ser, que o ser humano é bom e que, portanto, deve procriar. Chamemos a essa crença fundamental, o acordo categórico com o ser.1 Fazendo uma das mais originais reflexões a respeito do Kitsch e suas raízes metafísicas, Kundera inicia seu raciocínio abordando o problema teológico da merda. Afirmando que as únicas perguntas realmente sérias são aquelas que podem ser formuladas por uma criança, recorda suas dúvidas infantis frente às gravuras de Gustave Doré numa edição do antigo testamento, mostrando Deus como um senhor de espessa barba e expressão severa. Se Deus é a imagem modelo do homem e, como nós, possuía boca, olhos e nariz, então deveria possuir intestinos que deveriam funcionar de forma semelhante aos nossos2. A criança que ele era intuía o que havia de sacrílego nesta descoberta involuntária da fragilidade fundamental da antropologia judaico-cristã: ou o Homem foi Criado à imagem e semelhança de Deus – e então Deus possui intestinos –, ou Deus não tem intestinos e não nos parecemos com ele3. Concluindo em seguida: Deus dá liberdade ao Homem, e podemos admitir que ele não é o responsável pelos crimes da Humanidade. Mas a responsabilidade pela merda cabe inteiramente àquele que criou o homem, somente a ele.4

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Milan Kundera, A Insustentável

Leveza do Ser, parte VI, A Grande Marcha, 1984 7

Marlon Brando em Último tango

em Paris, Bernardo Bertolucci, 1972

Para ele, a “objecção à merda”, tão comum na cultura oficial até bem pouco tempo atrás, é de ordem metafísica: (...) defecar é dar uma prova quotidiana do carácter inaceitável da criação. (...) Ou a merda é aceitável (...), ou Deus nos criou de maneira inadmissível5. Assim, o Acordo Categórico com o Ser tem por ideal um mundo no qual a “merda” é ignorada, onde todos se comportam como se ela não existisse. Tal ideal estético é o que Milan Kundera identifica como kitsch, palavra alemã que apareceu em meados do sentimental século XIX e 14


que, em seguida, se espalhou por todas as línguas. O uso repetido da palavra fez com que se apagasse seu sentido metafísico original: em essência, o kitsch é a negação absoluta da merda, tanto no sentido literal quanto no sentido figurado. O kitsch exclui do seu campo visual tudo que a existência humana tem de essencialmente inaceitável. Deste modo, quando aceitamos o kitsch, estamos a aceitar, passionalmente, ignorar a realidade. O kitsch é uma espécie de alienação que afasta a sociedade da sua humanidade. Deixamos de pensar sobre a nossa fatídica imperfeição e passamos a encarar o mundo de uma forma idealizada, que não corresponde à realidade. Se encararmos então o kitsch como a negação absoluta da merda, podemos tentar perceber em que grau ele influencia a arquitectura e o entendimento do espaço. No entanto, o homem é um ser complexo, cheio de artimanhas, truques e máscaras e para o analisar, é preciso ir bem fundo. É preciso ir onde mais ninguém vai. O lugar onde não há simulações ou eloquências fingidas. O lugar onde somos o que somos, onde simplesmente existimos. Esse espaço, é doméstico. Actualmente, parece já haver uma boa aceitação do moderno no que diz respeito à música, à moda, ao design e em certa parte à arquitectura. No entanto parece existir ainda alguma relutância na aceitação da visão do arquitecto quanto à caracterização do espaço doméstico. Se por um lado o arquitecto tende a privilegiar o formal e o abstracto, o cliente tende a privilegiar a memória e o emotivo. Esta bipolarização é análoga àquela que Kundera faz em “A Insustentável Leveza do Ser”. Aqui, o Homem é caracterizado e dividido em dois grupos distintos: (...) aqueles que contestam a existência tal como foi dada ao Homem (pouco importa como e por quem) e aqueles que aderem a ela sem reservas6. Esta divisão visa caracterizar duas abordagens diferentes que o Homem pode ter perante a vida. Das duas umas, ou pensa e reflecte sobre os seus actos e as suas consequências, sobre os seus sentimentos, emoções e estímulos, ou então move-se através de um simples jogo de acção/reacção onde, aderindo ao senso comum, aceita passiva e categoricamente a sua condição humana. Nesta perspectiva, rapidamente identificamos com o primeiro grupo de homens, “os que reflectem”, o arquitecto, e com o segundo, “os que reagem”, o homem comum. Para o mais comum dos populares desprovido de qualquer educação espacial, o espaço do arquitecto é abstracto, um espaço frio e cru, com o qual ele não se consegue identificar. Um espaço demasiado depurado onde, devido à procura exaustiva do seu desenho, todas as imperfeições que pudessem tornar ambíguas as pretensões do arquitecto foram apagadas. No espaço perfeito do arquitecto, o homem comum sente-se constrangido e, sem as tão comuns imperfeições (testemunhos da mão humana), torna-se incapaz de reconhecer esse espaço como seu. Para ele, o espaço tem que o interpelar. O abstracto é entendido como um espaço vazio, um espaço a preencher, pois o vazio em si nada evoca. Uma casa vazia é uma casa sem lembranças, sem emoções, uma casa fria, onde tudo é possível e onde o remorso não tem lugar. Uma casa como a de “Paul”7, despida de objectos, onde nada é capaz de trazer à memória a reminiscência das infidelidades cometidas. No campo do doméstico isto tem especial relevância e a típica ausência de uma carga emotiva levou a que o kitsch fosse instituído como o método a seguir na 15


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{à conversa com}

ÁLVARO DOMINGUES

O professor de Território e Formas Urbanas da FAUP fala-nos de Paisagem e Planeamento duma perspectiva longe daqueles que habitualmente vemos como referencias, sejam arquitectos ou urbanistas. O nosso anfitrião faz questão de se demarcar do discurso tanto do belo como do feio. Antes de mais, “Conheça-se primeiro...”. Participa intensamente no debate público sobre o espaço colectivo. Dos Foruns do Feísmo na Galiza ao seu livro Rua da Estrada, juntando a participação na discussão do concurso de ideias para o Vale do Ave, sentimos um profundo envolvimento na tentativa de perceber os constrangimentos de uma sociedade afectada pela dor, entre aquilo que perdeu e aquilo que nunca ganhou. Nesta conversa vamos ao encontro da contemporaneidade e dos seus estigmas estéticos, procurando esclarecê-los. Desde logo, sem quase falarmos, Álvaro Domingues começa por nos explicar “Porque é que o feio é tema de repente”... 19


casa da música,

UM PROJECTO FEIO

Instalação VIP3, Very Irregular Polyhedric Room, 2007, Nuno Grande


Nuno Grande, arquitecto, docente dARQ/FAUP

Quem feio ama… À luz dos preceitos eruditos que aprendemos da tríade vitruviana, da tratadística renascentista, da sistematização tipológica iluminista, da urbanística oitocentista, ou mesmo na doutrina funcionalista do Movimento Moderno, o projecto da Casa da Música pode parecer-nos disforme, desconexo, desproporcionado, deslocado; ou, de um modo mais prosaico… feio. Na verdade, nada nessa Sala de Concertos parece resultar: da relação harmoniosa entre estética (venustas), estabilidade (firmitas) e uso (utilitas); da estratificação lógica entre embasamento, piano nobile e coroamento; da hierarquização espacial entre espaços “servidores” e espaços “servidos”; da composição de um qualquer “gesto” haussmanianno; ou mesmo da tradução directa de uma dada “função” numa “forma”. Do meu ponto de vista, essa aparente fealdade tem uma explicação: o projecto da Casa da Música não pode ser avaliado a partir de cânones classificatórios “clássicos” ou “modernos”, uma vez que ele nasceu, precisamente, da subversão de regras e de princípios arquitectónicos tidos, até hoje, como lógicos e universais. O desenho de Rem Koolhaas começa, desde logo, por desequilibrar a referida tríade, destabilizando a própria firmitas do edifício, num complexo e instável jogo de planos oblíquos, que condiciona, decisivamente, a sua venustas e a sua utilitas. Do mesmo modo, o projecto desfaz qualquer ideia precedente de hierarquia volumétrica ou planimétrica, já que a “massa” do edifício é distribuída, plano-a-plano, de modo aparentemente arbitrário, parecendo resultar, mais da sucessiva justaposição das valências interiores, do que de uma ideia de composição global exterior. Já estas valências surgem, não como “adições” espaciais determinadas por um qualquer organigrama funcional, mas, pelo contrário, como “subtracções” nessa “massa” informe, na qual os vazios “úteis” e os espaços intersticiais adquirem um mesmo protagonismo. Por fim, a Casa da Música não se confunde com um “monumento” clássico, enquanto centro focal ou compósito de qualquer eixo ou praça monumental – sendo mesmo “lateral” à urbanidade da Rotunda e da Avenida da Boavista – oferecendo, por isso, mais desafios do que certezas à cidade contemporânea, e em particular, ao Porto do século XXI. Como se depreende, nenhum outro equipamento público parece estar, hoje, mais longe da razão iluminista ou da ordem funcionalista que serviram de matriz aos inúmeros Teatros e Salas de Concerto que a cultura arquitectónica ocidental foi consagrando ao longo dos últimos dois séculos. Sabemos bem aquilo que a Casa da Música não é; mas não conseguimos deixar de fazer a pergunta óbvia: então, afinal, o que é? O que faz um objecto aparentemente tão feio tornar-se, de repente, tão estimulante para a cultura contemporânea? Ou, no mesmo sentido, o que levará o insuspeito jornal The Times, a designá-lo como um dos cinco edifícios da década, alcunhando-o de “louco, perverso, mas brilhante?” 35


iberê camargo,

UM EDIFÍCIO TRÁGICO Diogo Lopes, aluno do 4º ano do darq

“A evolução progressiva da arte resulta do duplo carácter do espírito apolíneo e do espírito dionisíaco, tal como a dualidade dos sexos gera a vida no meio de lutas que são perpétuas e por aproximações que são periódicas”1 (Friedrich Nietzsche in Origem da Tragédia)

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A polarização da arte fundamentada por Nietzsche em Origem da Tragédia revela-nos o pensamento grego sobre a criação humana, substanciado pelo entendimento nietzschiano da arte como ponto de partida para o nosso entendimento do mundo e como reflexo do nosso ser. Ancorado na mitologia grega, metaforiza os dois espíritos criadores antagónicos sob os quais se dá a concepção artística - Apolo, deus da luz, e Diónisos, deus do vinho. Aquilo que representam as duas divindades traduz-se nas metáforas do sonho e da embriaguez. A primeira, associada ao apolíneo, simboliza a ingénua busca pela beleza ideal, do artista perfeito, capaz de se alienar do mundano para criar formas sobre-humanas, dotadas de proporções divinas apoiadas na razão como base da criação. Tal postura desemboca na ideologia clássica do belo, no espaço inteligível e conceptual platónico, onde a matemática das formas alcançaria a ordem e a medida que elevariam o homem à intemporalidade. Por contraponto à “mais alta verdade, a perfeição deste mundo”, a atitude dionisíaca aproximase do instinto humano e das suas vicissitudes, da “realidade imperfeitamente tangível de todos os dias”2. A embriaguez representa a natural obscuridade do ser humano, contrariando a visão de um homem iluminado e introduzindo na arte o sombrio, a melodia, o severo, o triste, a sedução, o êxtase. Para Nietzsche, do desafio e desequilíbrio entre os dois espíritos nascerá a grande arte, capaz de atingir a unidade artística através da aceitação do sentimento trágico da vida. A Iberê Camargo, em Porto Alegre, Brasil, é um edifício que começa por aceitar desde sempre a sua realidade circunstancial mais ou menos perfeita. “Uma vista extensa sobre a belíssima massa de água a partir de um terreno que é como um anfiteatro, um buraco na encosta com uma vegetação luxuriante e que tem que ser ocupado totalmente pelo edifício, não se dispondo de muito espaço”3, descreve-nos Álvaro Siza, acrescentando que talvez das maiores dificuldades nasçam os melhores projectos. Neste caso, nasce ainda da consciência da sua liberdade, fora do tecido consolidado da cidade, onde crescerá um objecto “rodeado de terreno natural, sem qualquer intrusão”4. Serão estes factores a influenciar directamente a forma do projecto que, depois de resolver racionalmente toda a sua estrutura funcional, vai ganhar capacidade para se libertar daquilo que no início foi uma imagem cúbica, quase diagramática, na distribuição do programa e das suas relações mais necessárias. Isso mesmo mostram os desenhos de Siza, que aos poucos começam a esculpir e a desconstruir a percepção de um cubo saudável, conferindo-lhe uma vitalidade entre a força da sua forma e a pujança da natureza que o envolve. Os motivos de cada opção formal, além de expressarem a composição das partes no todo, incluem um carácter instintivo. O objecto reage à imperfeição do terreno moldando-se segundo uma curva que retoma a linha harmoniosa e contínua da paisagem. O volume é agora a deformação daí resultante, gerando-se a partir do buraco no terreno e assumindo os problemas geométricos que antes não lhe pertenciam. Do cubo pré-existente ficam como reminiscências os braços que se estendem do agora corpo principal, introduzindo o ângulo e a severidade das suas geometrias e sombras. As circulações entre pisos, correspondentes a estes elementos, soltam-se da sua estrutura interna para se revelarem no seu dramatismo, desequilibrando um volume que já tinha sido deformado. A sua aparência multiplica-se e de cada lado que o olhamos surge assimétrico, retalhado ou disforme. De nenhum ponto de vista temos a impressão dos 39


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{entrevista}

DENISE SCOTT BROWN

Diogo Lopes, Diogo Vasconcelos, Inês Morão Dias alunos do 4º ano do darq

O já longo percurso de Denise Scott Brown é suficientemente inquieto e intenso para que frequentemente voltemos a olhar para ele com o interesse de sempre. Temos a ideia de que a arquitecta, professora e teórica é alguém que se propõe a perceber as energias dos nossos tempos e a partilhar as suas percepções com os outros. É assim desde o final dos anos 50, uma altura em que a crença numa verdade absoluta faliu e que a cultura seguia o seu caminho para a massificação. Nessa vontade acompanhou-a Robert Venturi, seu parceiro ao estirador e num conjunto de obras e textos que nos mostraram a posição da arquitectura num mundo cheio de Complexidades, Contradições e Las Vegas. Impressiona-nos sobretudo a liberdade com que escolheu alguns dos seus objectos de estudo e como, ainda hoje, essa disponibilidade se mostra intacta. Denise Scott Brown fala-nos da relação entre a arquitectura e a fealdade, desde a sua cidade natal, Johannesburg, aos problemas que inquietam a nossa geração. 43


DO RUÍDO À VIOLÊNCIA Sofia Santos, aluna do 4º ano do darq

Não só no plano formal mas também no processo criativo e na relação com os sentidos, música e arquitectura são recorrentemente comparadas. Em ambas está presente um desejo de domínio que permita submeter a matéria-prima da criação a uma determinada regra. No entanto, ao aceitar o plano do incontrolável e imprevisível, confrontando-o com a inicial necessidade de ordem, geram-se novas experiências que questionam os parâmetros mais eruditos e clássicos das duas disciplinas. A era da máquina do princípio dos anos 20 deu origem a caminhos diferentes na arquitectura e na música. Enquanto a primeira se volta para a estandardização e o racionalismo da forma, a segunda encontra novos horizontes no expressionismo musical. L’Arte dei Rumori (A Arte do Ruído), 1913, de Luigi Russolo, artista integrante do Futurismo Italiano, introduz uma nova forma de pensar a música e os seus instrumentos, um desejo de mudança que integra as possibilidades técnicas emergentes. Era urgente alargar e enriquecer o campo de trabalho musical, incorporando o ruído, resultante da apologia da máquina. It can be

Intonarumori, instrumentos criados por Luigi Russolo para produzir ruído, 1913

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1

RUSSOLO, Luigi, L’Arte dei Rumori.

Utilizada a versão inglesa “The Art of Noise”, UBU Classics, 2004. 2

CAGE, John, Silence, UPNE, 1961

3

Idem

noticed that all contemporary composers of genius tend to stress the most complex dissonances. Moving away from pure sound, they nearly reach noisesound.1 A utilização do ruído não se apresenta como um mimetismo vazio, mas como algo completamente novo, que se concretiza num exercício de complexidade e exploração emocional, na associação de elementos sonoros inusitados. Os pressupostos futuristas preconizados por Luigi Russolo foram seguidos por outros compositores, como John Cage. Este defende que o papel do compositor é esconder a beleza, imediatamente aceite pela mente humana, para assim conduzir o público a um exercício de abertura na compreensão da actividade musical. Wherever we are, what we hear is mostly noise. When we ignore it, it disturbs us. When we listen to it, we find it fascinating.2 O ruído é inerente à nossa própria existência, sendo impossível o silêncio, pois no limite o ser humano vê-se confrontado com os sons do seu próprio organismo. Para John Cage, os sons devem fluir espontaneamente, sem que exista um domínio total por parte do autor, permitindo qualquer combinação e qualquer continuidade, ainda que sigam uma estrutura com base na duração temporal. Os sons não devem ser meros veículos de teorias e sentimentos, podendo estimular sensações distintas nos seus ouvintes, porque enquanto o criador conhece os caminhos do seu trabalho, para o ouvinte trata-se de um objecto a descobrir. New music: new listening. Not an attempt to understand something that is being said, for, if something were being said, the sounds would be given the shapes of words.3 No entanto, estes ruídos à partida abertos a qualquer significado, remetem para o quotidiano, para a acção humana mais prosaica. Se por um lado, a exposição de um som cru, anti-melódico, poderá ser alvo de rejeição, por outro simboliza o homem enquanto ser defeituoso, num acto de dessacralização da música. À semelhança do som, a arquitectura da cidade oscila em escala, altura e frequência, silenciando-se no vazio. A melodia encontra-se no ritmo controlado, na pureza da forma racional, enquanto que o ruído surge no caos da construção clandestina que cresce em espaços esquecidos. As favelas são a antítese de qualquer princípio moderno, pela ausência de uma regra, e representam a vergonha moral e estética das suas cidades, estando fora do controlo das autoridades, pois ao contrário da cidade dita formal, esta não foi projectada, mas gradualmente construída por todos os seus moradores. Não existe uma planta anterior ao projecto, porque estes são pedaços de cidade que resultam de bricolages sucessivas, crescendo de acordo com as necessidades concretas dos seus habitantes, os quais testam directamente a relação do corpo com o espaço que acabam de criar.

Colin Rowe, proposta para o concurso Roma Interrotta de 1978

A construção da favela consiste numa assemblagem de fragmentos muito diversos que contém em si uma grande dose de contradição, constituindo ainda um todo marginal em relação à cidade planeada. É esta questão de como lidar com as contradições do crescimento urbano que Colin Rowe e Fred Koetter desenvolvem em Collage City (1978). Nesta obra são apresentados dois esquemas de figura-fundo do centro da cidade de Parma e do Plano para Saint-Dié de Le Corbusier, resultando numa comparação entre a cidade medieval, definida por ruas e praças, e o modelo modernista dos amplos espaços exteriores pontuados por objectos puristas elevados do chão. Ainda que os autores expressem uma 51


{artigo gráfico} Nikolas Sisic aluno do 4º ano de Design de Comunicação da FBAUP


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Máscaras e Reflexos de Crâneo no Espelho, James Ensor

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{contaminações}

FEIO E MODERNIDADE(S) Luís Calheiros Pintor, Crítico de Arte, Professor de Estética, Docente do Departamento de Comunicação e Arte da ESEV-IPV

Discorre este texto sobre as mais relevantes disciplinas artísticas objectuais que desde a antiguidade clássica pertencem, pela sua excelência poiética, ao panteão superlativo das Belas-Artes: a Pintura e a Escultura. E ainda sobre outras, que superam fronteiras disciplinares, como a Instalação e a Performance. Irá, portanto, analisar as manifestações artísticas mais recentes, do «novecentismo», que iremos classificar como aquelas em cujos discursos a categoria estética dominante é o “Feio”. Um superlativo Belo-feio, expresso em plurais registos iconográficos. Porque a “fealdade” estética é a realidade fenomenológica mais relevante, dinâmica, activa e generalizada da arte dos tempos mais recentes. Do Século XX. Conformando um novo paradigma estético categorial, que tem sido nomeado como pós-modernidade, mas que preferimos designar antes como modernidade última, modernidade (mais) recente ou terceira modernidade.1 O Feio artístico, o Belo-feio, é a categoria estética que melhor caracteriza as artes do novecentismo. Um tempo entrópico, entre a utopia e o apocalipse. Época veloz, em que o tempo acelerou e o espaço encolheu. Tempo dinâmico e caótico. Imprevisível. Idade certa do apogeu estético de uma “fealdade” superlativa que contamina todo o panorama das artes. Uma “fealdade” omnipresente, registo testemunhal da fealdade real da vida. Transfigurando, no seu testemunho, as inúmeras iniquidades que povoaram a barbárie trágica dos últimos tempos. Uma “fealdade” que irá revelar-se transgressora, subversiva, insólita, perturbadora, desconcertante. Geradora das maiores perplexidades.

1

Seguimos como mais rigorosas as

nomeações epocais decorrentes das análises paradigmáticas dos cientistas sociais Jürgen Habermas, Harold Bloom ou Umberto Eco.

O “Feio” comandará o sentido de mudança da arte mais recente. Provocará a subversão de muitos dos valores até então dominantes. Acelerará, com as suas rupturas, o ocaso das estéticas idealistas, de obediência platónica. Que tinham dominado o devir das artes, da antiguidade aos últimos tempos. Agora em decadência derradeira. O “Feio”será o toque a finados das suas disciplinas autoritárias e censoras, das suas normas imperativas, tornadas obsoletas. O fim da obediência obrigatória e exclusiva aos cânones do passado e aos seus arquétipos de transcendência. Será o ocaso conclusivo do paradigma da Beleza formosa, do Belo antigo: um Belo-bonito, sereno e harmonioso. Alegadamente intemporal (perene, imutável, absoluto, total). Que tais tinham sido os seus atributos imperativos durante séculos. Um Belo que até então se julgava único e eterno. Esse mundo antigo de beleza idealizada ruirá fatalmente! Com o triunfo geral do seu antagónico contrário: um Belo paradoxal, o “Feio” estético, o Belo-feio. Que será presença generalizada na arte da modernidade última. Substantiva marca do seu discurso testemunhal. Serão facilmente reconhecíveis os seus sinais “estranhos” povoando os discursos artísticos mais recentes: o actual, o prosaico, o trivial, o banal. A multiplicação axiológica da “fealdade” nas artes abarcará um alargado espectro de valores: o cómico, o mordaz, o sarcástico, o burlesco, o bizarro, o grotesco, o pícaro, o jocoso, o satírico, o paródico. Opostos do formoso, do gracioso, do sereno, do solene, do harmonioso, valores a que estávamos, há demasiado tempo, habituados, submetidos. 57


{publicidade}

Arte Paixão Desenho Requinte Linha Amor Esboço Detalhe Ódio Vertigem Curva Interesse Paixão Belo Forma Sentimento Projecto Urbanismo Plano Pormenor Qualidade Interior Excelência Habitat Elegância Calor Espaço Traço Arquitectura Cidade


Rua da Fé N.º958 4800-039 Costa - Guimarães, Portugal / www.artcitta.com tlf 00 351 253 580 010 / fax 00 351 253 527 100 / e-mail gabinete@artcitta.com


{a nu} Filipe Madeira aluno do 4º ano do darq

Figura Antropomórfica Ictifálica, Gravura rupestre em Penascosa, Foz Côa Imagem do Pré-Historiador de Arte António Martinho Baptista

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a revista

nu é a publicação planeada e produzida pelos estudantes

do departamento de arquitectura da universidade de coimbra. essencial, imparcial e descomprometida, a nu é uma ferramenta de aprendizagem que tem como objectivo a reflexão e debate em diversos temas relacionados com a arquitectura, um encruzilhadas, dois lugares, três cidades, quatro mecanismos, cinco àreas Morada Revista NU, Dep de Arquitectura, Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade de Coimbra, Colégio das Artes – Largo D. Dinis 3000 Coimbra Telefone/fax (darq) +351 239 851 350 +351 239 829 220 E-mail revista.nu@gmail.com

de contaminação, seis

imagem, sete desvios, oito tempo, nove sexo, dez ismos, onze tecnologias, doze onde

está coimbra?, treze pecado,

catorze oposições, quinze viagens, dezasseis oriente, dezassete

revolução digital, dezoito revistas, dezanove colagens, vinte onde está portugal?, vinte e um marginalidades, vinte e

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dois game

Direcção

vinte e cinco utopia, vinte e seis identidade, vinte e sete habitar,

Diogo Lopes, Diogo Vasconcelos, Filipe Madeira e Inês Morão Dias Edição Diogo Lopes Redacção

design, vinte e três brasil, vinte e quatro espectáculo,

vinte e oito velocidade, vinte e nove modus

operandi, trinta

poder, trinta e um chão, trinta e dois ocupa, trinta e três consumo,

Ana Sofia Santos, Diogo Vasconcelos, Filipe Madeira, Inês Morão Dias, Inês Ribeiro, Joana Eira-Velha, Mafalda Maurício, Rosa Bandeirinha Colaborações

enriquecida pela colaboração de diversos arquitectos e académicos de todo o mundo.

Àlvaro Domingues, Denise Scott Brown, Luís Calheiros, Nikolas Sisic, Nuno Grande Editor Gráfico Filipe Madeira Grafismo Diogo Lopes, Nikolas Sisic, Diogo Vasconcelos, Inês Morão Dias Impressão Pedro Batista, Artes Gráficas, Lda. Tiragem 500 exemplares

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uma nu envie-nos um e-mail com o seu endereço e

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do darq, onde estão expostos os exemplares disponíveis. pode consultar

Depósito Legal 178647/02 ISSN 1645-3891

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ISSN 1645-3891


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