#18 Revistas

Page 1


[editorial] rasgar através do toque Bruno Gil [edit] postal à sra. tosoni A. Joana Couceiro revistas: medium e media Joaquim Moreno internacionalismo crítico: Nuno Grande o possível lugar de uma revista de arquitectura

03 04 06 10

garage media Diogo Seixas Lopes

14

da coerência e da entrega Manuel Graça Dias

16

insisto ou desisto? Pedro Bandeira 3 perguntas a jacques gubler A. Joana Couceiro + Pedro Baía o texto precede a imagem na esperança Jacques Gubler da sua emulsão tipográfica? an endorsement for the small magazine Cynthia Davidson o pequeno mundo do livro de arquitectura Francesco Dal Co três são uma família Adela Garcia-Herrera

18 22 24 28 32 36

[entrevista] mansilla + tuñon Susana Faria que parte do futuro queremos conservar? circo: uma conversa em voz baixa Luis Mansilla + Emilio Tuñon

38

lembrar e esquecer: a unidade (1988-1992) Jorge Figueira

48

em cima do joelho Gonçalo Canto Moniz

46

52

desejos adolescentes Francisco Ferreira

56

[1º acto] nudez Pedro Jordão

58

[contaminações] homeless mona lisa António Olaio arty art(e) magazine

60


O fenómeno editorial na arquitectura, eis o que se discute pelos próprios. Resta falar sobre a própria: Procura-se um registo livre de pressões, nu na sua essência. Com poucos meios busca-se a essencialidade, se assim não for a NU perde o sentido. Se algum dia a NU se vestir, perderá o seu território, a sua identidade. Se algum dia se vestir, vista-se de transparências que permitam serem rasgadas seguidas do toque incisivo; pressionando, incansável em busca da razão da problemática, abanando entorpecimentos e vícios de opinião. A NU exporta e importa opiniões. Imparcialmente, congrega vozes construindo uma extroversão permanente no debate da arquitectura. É uma rede de encaminhamento que a Escola de Coimbra cria. Afastou-se para se moldar, despindo-se. A NU já adquiriu uma personalidade. É possível reconhecer o seu perfil. Que os estudantes do DARQ a assumam enquanto sua, que a façam regressar, e dispam-na até, inequivocamente, se vislumbrar a tatuagem DARQ. Aí, lancem-na de novo às feras; mas nunca a soltem, segurem-na sob a pena de a tatuagem se diluir. A NU justifica-se no contexto do DARQ, fora dele o carácter será necessariamente diferente. Entre Lisboa e Porto, apesar de situadas em patamares dificilmente comparáveis, a partilha de uma indefinição na renovação de redes, provavelmente causada pelo peso cultural das duas Escolas. Coimbra, a cumprir quinze anos de existência, busca exportar integrando numa tentativa de sedimentação de Escola, na juventude da motivação. Uma espécie de bolsa contemporânea no enclave de duas regiões que lidam com a renovação. Que a bolsa não se iluda perante o crescimento; que continue a arrepiar caminho em busca de uma

[março 2004] 02.03

identidade; que se assuma enquanto Escola; que crie redes de transformação do potencial DARQ; que a NU entre no terceiro ano de vida e que toque rasgando. É assim que agarro ‘uma escola na qual (...) passe a haver projecto integrativo, projecto que se faz não apenas no estirador mas também na sala de conferências, na visita de estudo, na palestra, no debate’1. Distingo duas realidades possíveis no ensino da arquitectura: 1. Uma inclusiva que visa a interdisciplinaridade; procura o arquitecto generalista em detrimento do especialista e busca redes de encaminhamento que incluam os arquitectos em tudo o que não seja só a arquitectura. Uma escola que forma o futuro arquitecto com base numa orientação para a comunicação desenvolvendo, a partir de campos de discussão diversos, uma consciência crítica; que transmita uma concepção de projecto de coesão e inclusão. 2. Uma exclusiva que defende o arquitecto especialista. Uma escola que ‘produz’ arquitectos desprovidos de um background teórico sustentável, fechados hermeticamente na fria resposta projectual, acríticos pautados pela superficialidade, demitidos de uma motivação, desligados da realidade. Há que distinguir Escola de escola (ou não-Escola). [P. Jordão, tu deste o primeiro toque e motivaste um projecto crítico; agora que termino, despeço-me desejando que a NU continue através do toque.] * aluno do 6º ano do DARQ, director da revista NU. (1)Paulo Varela Gomes, ECDJ 2, 2000, p.50


A. Joana Couceiro* Podia falar-vos da história deste número da revista: Motivações. Impulsos. Vontades. Não vou fazê-lo porque a história faz-se/conta-se em cada texto [edit]ado. O edit é apenas o desejo de um espaço físico para o editor. Ah! Preencher este espaço meu. Agarrá-lo para depois me libertar. Despedir-me dele e enviá-lo a todas as senhoras Tosoni. Na conferência de Jacques Gubler, La chanson du BA, hier et aujourd’hui, ou ‘A canção do Betão Armado, ...’1, Gonçalo Byrne apresenta Gubler projectando um desenho de Siza na tela branca. A voz de Byrne começa a desenhar a relação. Era um dos postais enviados por Gubler à Sra. Tosoni. É uma história simples que começa quando também começa a revista ‘Casabella’. No início havia uma máquina de escrever, olivetti talvez, e um telefone, e a sra. Tosoni. A sra. Tosoni era o corpo escondido da revista. E ao mesmo tempo a sua alma. Porque tudo o que era exposto nos compartimentos da casa bella passava cuidadosamente pelos seus dedos. Mudam as circunstâncias. Muito depois, a ‘Casabella’ e Vittorio Gregotti (então seu editor) decidem lembrar a Senhora Tosoni, aproveitando cada novo número da revista para a saudar com um postal. Gubler escolhia a imagem. Fazia o comentário. E enderessava a cartolina à cara Senhora. Na última página de cada uma dessas revistas somos confrontados com estes postais, cartolinas à sra. Tosoni2, e emocionamo-nos com o gesto, ‘grande’. Ah! Por isso me liberto deste espaço. Despeço-me, e envio-o, e ofereço-o à sra. Tosoni. Ou a todos os que estão por trás das capas, dos índices, das fichas técnicas. Os que (se) dão, que (se) entregam, que se enchem de palavras e de imagens. Pelo outro. [março 2004] 04.05


3

*aluna do 6º ano do DARQ, editora NU#18 [revistas]. (1)conferência de Jacques Gubler, com apresentação de Gonçalo Byrne, realizada no dia 2 de Março de 2004, integrada no programa da Semana Cultural da Universidade de Coimbra. Uma iniciativa organizada pelo Departamento de Arquitectura da FCTUC, com o apoio da Pró-reitoria para a Cultura da Universidade de Coimbra e da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto. (2)vai ser editado um livro que compilará toda a colecção de cartolinas, bilhetes postais enviados à sra. Tosoni. (3) [O Outro] DAS ANDERE, revista de curta duração editada por Loos em 1903. Trazia o significativo subtítulo de Revista para a introdução da civilização ocidental na Áustria.


[marรงo 2004] 06.07



[marรงo 2004] 08.09


imagem: Pablo Picasso, poema de Guillaume Apollinaire, publicado originalmente na revista ‘SIC’, 191?


[marรงo 2004] 10.11


à evolução politica e ideológica da própria Modernidade, estando presente em todos os movimentos associativos do operariado europeu, nomeadamente entre a Primeira e a Quarta Internacional, num período que liga 1864 a 1938, abrangendo cidades como Londres, Paris e Moscovo, e contando com a influência ou a acção directa de personagens como Marx, Lenin e Trotski. Da mesma forma, as vanguardas artísticas e arquitectónicas do início do século XX acompanham esta evolução ‘internacionalista’, expressando um forte sentido congregador, quer através de correntes como o Construtivismo russo ou a Nova Objectividade alemã e holandesa, quer através de organismos colectivos como a União Internacional de Artistas Progressistas, formada em 1922, ou os Congressos Internacionais de Arquitectura Moderna (CIAM) fundados em 1927. Nestes movimentos, a necessidade de uma união ideológica afigurava-se mais urgente do que a expressão diferenciada dos distintos contributos nacionais. O ‘internacionalismo’ tornava-se assim num meta-discurso do Movimento Moderno, estruturando, quer a sua orgânica política, quer a sua disseminação propagandística - em 1932, Philip Johnson e Henry-Russell Hitchcock organizam, no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, uma exposição sobre a Arquitectura Moderna europeia, que ficaria, definitivamente, designada pelo epitáfio International Style. As críticas transdisciplinares que se acendem no pós-II Guerra Mundial contra o dogmatismo do Movimento Moderno, denunciam a uniformidade conceptual e a burocratização dos sistemas produtivos gerados sob esse desejo de ‘internacionalismo’. No campo disciplinar da Arquitectura, grupos como Team X (saídos do CIAM 10, realizado em Dubrovnick), e figuras como Ernesto


Rogers, resgatam o conceito de um debate multinacional, em rede, sem obliterar a diferenças regionais ou locais de cada contributo crítico. No campo político, e ao longo da década de 60, a explosão concertada de lutas urbanas, lideradas pelo operariado e por estudantes universitários contra os sistemas burocráticos tardo-modernos, generaliza-se a diversos países, adquirindo, em cada um deles, uma condição autóctone – contra o academismo universitário, contra o peso das instituições oficiais, contra os domínios e guerras coloniais. De certa forma, a partir de então, o desejo de ‘internacionalismo’ perdia a sua condição utópica e redentora para adquirir uma dimensão adaptativa e ‘crítica’. Por outro lado, e já na década de 80, o historiador e crítico de arquitectura inglês, Kenneth Frampton, desenvolve o conceito de ‘regionalismo crítico’ como posição reactiva à progressiva uniformização dos mecanismos de produção arquitectónica gerada no seio do capitalismo tardio, num Ocidente ainda dividido entre dois universos ideológicos e económicos. Para Frampton, a arquitectura enfrentava então o perigo de uma estandardização hegemónica forçada pela economia de mercado (apoiada no modelo norte-americano), que tendia a apagar as diferenças regionais em favor de um progressivo mimetismo internacionalista (controlado por firmas de Corporate Design). Enaltecia, por isso, o que denominou de ‘arquitectura de resistência’, tomando como exemplo o trabalho de determinados arquitectos que permaneciam, na sua concepção, militantemente empenhados em operar sobre a sua especificidade cultural em detrimento dos mecanismos globalizadores. Entre nós, Álvaro Siza constituiu uma das suas mais eloquentes referências.

[março 2004] 12.13

Regressemos, então, ao intuito central da revista Casabella. Desta breve evolução política e disciplinar, que lição pode ser retirada da dicotomia histórica entre ‘internacionalismo’ e ‘regionalismo’? De que forma pode essa lição balizar o posicionamento metodológico (e talvez ainda ideológico) da crítica e da edição de Arquitectura, numa Europa pós-Muro de Berlim? Finalmente, que contributo pode ter, neste contexto, uma revista de arquitectura, para além da mera ilustração do universo produtivo do actual star-system arquitectónico? A resposta parece estar na reinvenção do conceito de ‘internacionalismo crítico’, conforme é utilizado por Jean-Louis Cohen. Este autor constata que os arquitectos que trabalham hoje a partir de fortes contextos culturais são precisamente aqueles cujo modus operandi tem vindo a ser disseminado na rede de relações globais, incluindo o da própria encomenda. Lembra, por exemplo, e de novo, o caso de Álvaro Siza. Neste sentido, parece já não fazer qualquer sentido fixar o papel da crítica numa condição eminentemente ‘regionalista’, por oposição aos mecanismos da produção arquitectónica internacional, o que leva Cohen a insinuar que o conceito de Kenneth Frampton se tornou obsoleto, face a um contexto onde já não há um dispositivo único globalizador que se oponha à diversidade local. A multiplicidade de relações que hoje podemos estabelecer dentro das redes de comunicação internacionais, permite-nos chegar ao ponto de utilizar o ‘local’ como subversão crítica do ‘global’, desde que saibamos compreender e operar dentro da própria Globalização. Fenómenos como: o exponencial aumento da mobilidade de estudantes e professores universitários (proporcionada por programas europeus como o Erasmus e o Leonardo); o incentivo ao debate urbanístico e


arquitectónico através da organização de Seminários internacionais abertos ou de Workshops de índole realista ou académica; a proliferação de concursos internacionais, do tipo Europan, qualificados por júris ligados aos meios da crítica (permitindo a introdução de olhares ‘estrangeiros’ em problemáticas concretas de cada região); e o aumento da investigação transdisciplinar, entre a arquitectura e outras áreas da criação, passível de divulgação pelos meios editoriais e pela própria internet, constituem sinais encorajadores à formação de uma rede multidimensional de debate e reflexão a que podemos chamar ainda de ‘internacionalismo crítico’. Trata-se, por isso, de deixar de ‘resistir’ defensivamente contra a ‘banalização’ do mercado internacional da Arquitectura, opondo-se-lhe uma visão localista e nostálgica; trata-se antes, de investigar e perceber como actua esse mesmo mercado global, para reflectir sobre a sua ‘adaptabilidade’ local, antecipando o momento das grandes decisões políticas e económicas que controlam a encomenda da Arquitectura. Neste sentido, o reforço do ‘internacionalismo crítico’ pode constituir um ‘manual’ de desmontagem de uma ‘política-espectáculo’ hoje cada vez mais apoiada numa ‘arquitectura-espectáculo’. Numa recente conferência em Portugal, o sociólogo Manuel Castells (um dos mais proeminentes ‘descodificadores’ do fenómeno da Globalização) acentuou o papel fulcral que as Universidades têm neste contexto, enquanto lugares de inovação científica, mas também de reserva de reflexão crítica em torno, precisamente, dos sistemas políticos e económicos – estão suficientemente perto, mas também suficientemente longe, dos mesmos sistemas para se permitirem analisá-los ‘criticamente’. Da mesma forma, os materiais editoriais que emanem da Universidade, ou utilizem a sua ‘massa crítica’,

poderão constituir um meio de reflexão e disseminação ‘internacional’ - aproveitando as relações transversais e ‘em rede’ - assim queiram os seus corpos administrativos, docentes e discentes. Serão, seguramente, meios alternativos ao mercado editorial de índole ‘comercial’, quase sempre instrumentalizados pelos referidos mecanismos-espectáculo. A propósito, não deixa de ser irónico que a própria revista Casabella – um dos veículos dessa reflexão apoiada no contributo de notáveis académicos e investigadores - tenha sido recentemente ‘redireccionada’ pelo grupo editorial a que pertence, obedecendo ao mercado das audiências e a parâmetros puramente economicistas. O exercício do ‘internacionalismo crítico’ pode, por isso, começar dentro de um Departamento de Arquitectura, numa vetusta Universidade como a de Coimbra, e mesmo através de uma revista como esta em que escrevo. De certa forma, um instrumento editorial como a NU, desprovido de uma hierarquia rígida, aberto a múltiplos contributos inter-disciplinares e, evidenciando a intenção de abraçar temáticas da contemporaneidade com evidentes implicações no universo de Arquitectura, são a prova que a ‘frescura’ crítica pode ser, simultaneamente, informal e institucional. Hoje, o ‘internacionalismo crítico’ já não implica a criação de um meta-discurso, não obriga à diáspora de uma qualquer intelligentsia, nem envolve formas concertadas de oposição política contra sistemas cada vez mais difusos. Sobrevive na construção de um espaço intelectual comum, que pode estar numa simples edição elaborada por estudantes universitários. *arquitecto, professor no DARQ.


Diogo Seixas Lopes* « ey, breaking up is an idea that has occurred to far too few groups, sometimes to the wrong ones.» Big Black, Songs About Fucking À falta de melhor, considera-se que era pedido um ‘testemunho’, uma confissão de bastidores no mundo de aventuras das publicações da especialidade. Quase nada a acrescentar, muito menos sobre o que se passa nos grandes centros de decisão e influência (...na periferia, não fazemos parte deles). Uma primeira distinção: em Portugal, nestes como noutros campos, é mais um modo de sobrevivência que um modo de afirmação. Esta condição será precária, primitiva, pode até chamar-se, a ela, coisa chã; continua a convergir para um estado de défice infraestrutural. No entanto, regressando ao tema, muitos terão sido os projectos editoriais cuja exemplaridade deriva, afinal, da sua natureza atípica. Fracassos gloriosos, panfletos obscuros, agit-prop ou, tão só, o tempo justo para as coisas. Lá por fora, dos anos 70 em diante, alguns títulos possíveis: Oppositions, Ottagono, 9H, Assemblage. Ainda que muitas das vezes fortemente alavancados por contingentes académicos, o que passa neles é uma vontade crítica de questionar e analisar o real, também pela arquitectura. E, de outro modo, o desejo de um meio de comunicação integrado: total controlo de conteúdos, total controlo de produção. O único formato que cumpre na íntegra esse princípio é o fanzine. Ele será uma baliza óbvia desta matéria. Do outro lado, o álbum de mesa, capa dura, ilustrado em quadricromia. Oscilaremos ainda entre ambos ou, pelo contrário, inclinamo-nos para a hipermediatização do último? Uma percentagem considerável das publicações de arquitectura nacionais dos últimos 10 anos foram, ou são, em termos técnicos, fanzines. Porque cumprem os requisitos acima citados, porque muitas vezes a sua periodicidade é vaga, porque não parecem responder a mais do que à vontade dos seus participantes em fazêlas. É certo que existem hoje mais metros lineares de escaparates mas, sem muitas dúvidas, também menos espaços para prosas desalinhadas, pequenas editoras, livros de autor. Nessa perspectiva de lucro curto, senão mesmo nulo, cinge-se a equipa, meios e gastos ao ínfimo. São as realpolitiks de uma pequena unidade (Unidade) de combate. Uma ‘imprensa de garagem’, tal qual o ‘rock de garagem’, com os seus grupos de alinhamento reduzido e amplificadores a atravancar o local de ensaio improvisado. Vai-se fazendo assim, pela garagem (ou porque não pela oficina ou mesmo pelo atelier?). Há uma intrínseca proximidade desse trabalhar, na garagem. A garagem, para lá da sua dominância física na paisagem deste país e consequente latência num certo imaginário colectivo de espaços, é a ideia do último reduto. Reduto do privado - e de tudo o que nele podemos fazer - mas também do criativo: a tralha, o jogo de ferramentas, a ética, enfim... do faça-você-mesmo. Poder-se-á perguntar se, perante a manifesta ausência (nossa) de normas ou protocolos na interacção social, parte do que se produz não sai desse espírito de garagem? O escritório de vão-de-escada, o pequeno cochicho

onde ainda cabe uma ou outra maquinaria e, claro, o clássico da nossa senhora dos aflitos que é o cocktail casa-estúdio. Por força de muitos outros prejuízos, vingam esses termos de produção. São, a mais das vezes, presenças fugazes (falta um sistema que saiba, possa, ou queira consolidá-las) ou então actos de voluntarismo meio obstinado, para não dizer mesmo sacrificial. Não se nega a poética destas estranhas formas de vida – ‘morrer jovem’ ou ficar ‘só contra todos’ –, apenas se faz notar os seus possíveis danos colaterais. Para a Prototypo, que se encontra já em plena fase de aterragem, poder-se-iam assinalar pontos cardeais para a sua navegação à vista. Na partida, a impressão quase só sussurada dos DA-Documentos de Arquitectura, feitos em Lisboa em meados dos 90. Num conceito claro a qualquer edição alternativa, juntou-se um pequeno núcleo de pessoas para proclamar o sentimento difuso de uma identidade. A sua afirmação, porém, é tensa: foram dispensados os adjectivos, floreados ou letras serifadas. Uma micro-série de números constituinte, por si só, de uma pequena história secreta feita em missais minimalistas, de um objectualismo mudo. A forma segue decerto a função. Na chegada, encontraremos a NU que parece responder a um comentário feito pelo ilustrador e designer Jorge Colombo, a propósito do arranque da Prototypo, qualquer coisa como: «Tudo isto me parece muito bem, mas porque é que as revistas de arquitectos têm sempre de ter este ar limpo e brilhante? Sonho com publicações de arquitectura rápidas e militantes, feitas em cima do joelho (Em Cima Do Joelho).» Pela cadência infatigável, pelo suporte ultra-leve, pelo regresso assumido ao mundo de liberdades do fanzine, a NU é, talvez, essa publicação agora. Um elo perdido sobre o qual pesa o eterno estigma do caso único, como quase sempre na lusa teoria de excepções, que teima em não se entretecer como cultura. Ou talvez não, se levarmos em conta outras publicações que têm vindo a sair das universidades. Por aí, andam algumas fundações para a leitura crítica do facto arquitectónico. Nas grandes superfícies a guerra é outra. Dispensamos o purismo calvinista dos que profetizam um severo regresso às origens (quais?), dos que condenam a lúxuria visual com que as coisas se propagam, dos pecados e malefícios em que se incorre com esse contacto. Mas não se descarta a noção de que os media fazem, antes de mais, tráfico de imagens. Apesar de imateriais, estas estabelecem rotas de mercadorias, onde os mais artilhados disparam sucessivos títulos e, com eles, um certo livro de estilo. Seja a armada espanhola (Croquis, GG), o conglomerado alemão (Taschen) ou a frota britânica (Phaidon), a publicação é hoje um assunto de geo-estratégia. Contam-se os mercados em jogadas múltiplas no tabuleiro. E que espaço para a arquitectura por entre todas essas páginas? Abrindo para o verdadeiro problema, que espaço para a memória? Ainda assim, vingam também outras coisas, vinga o que se faz contra o esquecimento, seguindo as bitolas de uma civilização. Aqui, em tempos de aperto, podemos sempre voltar à garagem. *co-director e editor da revista Prototypo.


[marรงo 2004] 14.15


Demorei algum tempo a iniciar este texto. Penso que a principal inibição se ficou a dever ao facto de me sentir pouco à vontade para ‘transmitir’ fosse que ideia fosse ou experiência ou avisada opinião, que pudessem ter o mínimo de interesse ou novidade. Isto é: sinto-me mais ou menos em pé de igualdade (claro que sou mais velho, mas também aviso já que detesto ‘populismos’) com a equipa que põe de pé, hoje, a NU. Ser arquitecto não me dá especiais capacidades para fazer sair uma revista, ou escrever, ou lidar com publicitários, ou descobrir novos valores, ou agendar assuntos interessantes, ou escolher projectos adequados para mostrar e discutir. Encaro este trabalho como uma espécie de ‘missão cívica’. É preciso que alguns de nós se voluntarizem, de quando em quando, para darmos algum do nosso tempo a projectos ligeiramente fora dos nossos reais interesses. No caso de um projecto editorial, é preciso que tiremos tempo a outras coisas para pensar nos outros, no que reunir para os outros, no que preparar e pôr em comum para que cada um, depois, elabore as suas conclusões, construa uma ideia, entenda o que quiser. Reunir materiais ricos então. ‘Ricos’ de conceitos, insinuações, pistas. ‘Rico’ enquanto ‘complexo’, como não imediato, como não previsível ou evidente; não digerido já, também [estamos todos fartos de fast food]. Encontrar pessoas que gostem de pensar e partilhar o pensamento com os outros através da escrita ou do desenho, encontrar quem goste de ouvir para saber entrevistar, quem goste de relatar com alegria e isenção, quem goste de estudar, descobrir e dar a ver. Uma revista, um livro, um objecto destes que reúna escrita e desenho e papel impresso, que se guarde e nos acompanhe com memórias boas muito tempo (e a que se volte de tempos a tempos, procurando os sublinhados, as páginas puídas, rasgadas, quase desfeitas), degraus do aprender.

Eu sou apenas arquitecto; gosto de arquitectura. Da que faço (às vezes), e da dos outros (às vezes, também). Procuro compreender, em paralelo com os processos pelos quais passei, os passos que esses arquitectos terão dado, o que terão sentido, o que lhes faltou, como terão chegado ali, porquê, com que memórias ou desejos, com que invenção ou repetição, com que ajustada vontade, com que ironia ou distância, com que botões da intuição ligados, com que suspeitas. Às vezes engano-me. Muitas vezes invento. Mas as ficções a que dou expressão aproximam-se da arquitectura quando ela é poderosa, tudo aquilo ‘colando’ por andar perto. Se houver entrega, então a coerência sempre adere. Volto atrás, à ‘missão’: a ética é natural e não precisa de construção se a generosidade for a motivação principal. [Bate uma porta ao longe, no corredor: é A; tenho que acabar o texto antes do fim das sonatas de Carlos Seixas que pus a tocar, antes que A. mo venha buscar, passar a limpo]. Na realidade, portanto, não tenho nada a dizer aos NU's. Só tenho a aprender com o seu exemplo, força, obstinada determinação. [Vou enviar para ilustração esta foto que fiz há anos (onde? Em Pombal, quando M. se casou com M.?): uma parede fina de madeira, biombo a seccionar o espaço da taberna a meio, o frigorífico do lado de cá, o armário rigorosamente para os dois lados, a colecção de Porto Taylor (?) na prateleira, por cima. Mundo um bocado sujo, apenas exacto de lambris, bandeiras e esperanças de luz nos compartimentos ao fundo. Mundo tão real, tão longe da merda da arquitectura clean, chata e vazia dos arquitectos clean, ou da merda da decoração pimba com que os vendedores de balcões e máquinas de café inundam o país]. NU's: Nunca se vistam de arquitectos, OK? Conservem-se disponíveis. Até novas dobras de tempo!


[marรงo 2004] 16.17



1. ‘IN SI(s)TU – é uma revista de cultura urbana entendida quase como um diário de uma casa de projectos, o seu programa prevê a abertura de um espaço de discussão que possa reflectir sobre a cidade, melhor dizendo, as cidades da cidade, feita de lugares outros, pessoais mas comunicáveis. A constatação da diversidade de usos e significados que a condição metropolitana produz, normalmente sobrepostos, promove uma cidade de todos, mas principalmente de cada um, sendo esta propriedade a do significado e do património de relação com que cada indivíduo investe o espaço que o rodeia. A proposta In Si(s)tu é assim uma curiosidade acerca das cidades outras, uma vontade de iniciar um diálogo que implique na vida a transformação da cidade no sentido de nomeação e apropriação. Não falamos no entanto de folclore genérico nem de arte para todos, mas da festa em lugar do espectáculo, do participar em lugar do assistir, da voz activa de quem a ela esteja disposto. A proliferação de situações que ajudem à deriva e à aferição de mapas psicogeográficos, que conscientemente façam perceber quanta praia jaz debaixo da calçada. Com um corpo editorial fixo, constituído por Paula Pinto, Joaquim Moreno e Pedro Bandeira, através da procura de novos interlocutores, olhares estrangeiros e opções de co-edição esperamos levar a discussão da cultura urbana a um sentido mais abrangente que o urbanismo ou a produção artística reconhecida como tal.’ (editorial IN SI(s)TU #1) 2. A política editorial da revista IN SI(s)TU é simples: escolhe-se uma temática (leia-se antes um pretexto), no

[março 2004] 18.19

âmbito do que dominamos por ‘cultura urbana’, que possibilite reunir uma panóplia de ensaios multi-e-ou-trans-disciplinares. Associando a divulgação de ensaios que pensamos ‘incontornáveis’ à experimentação vinculada a novos criadores, impôs-se um design gráfico sóbrio capaz de nivelar as diferenças de modo a enfatizar os conteúdos em desfavor das formas ou mesmo das autorias. Subtilmente, a IN SI(s)TU é também um lugar de conflito. 3. A crítica à IN SI(s)TU tem sido favorável, no entanto, não é um projecto auto sustentável financeiramente o que condiciona de algum modo a sua política editorial. Com apoios do Instituto Português do Livro e das Bibliotecas (IPLB), do Instituto do Cinema, Audiovisual e Multimédia (ICAM) e no início, da Sociedade Porto 2001, a IN SI(s)TU sobrevive número após número em edições não regulares. Tendo em consideração que os apoios institucionais cobrem 1/3 dos custos de produção (outro terço é suportado pela venda de páginas de publicidade e um outro pelas vendas) mas em que a distribuição custa 54% do preço de capa (13 euros, mil exemplares) depressa se conclui a inviabilidade do projecto sem a respectiva dependência subsidiária. 4. Mesmo assim, para que a IN SI(s)TU se torne um projecto viável será necessário adoptar uma das seguintes opções: 1) duplicar o preço de capa; 2) duplicar a tiragem de exemplares.


Infelizmente, a primeira opção afastaria parte do público-alvo da revista (os estudantes universitários) e poria a IN SI(s)TU num patamar mais elevado de competição com outras publicações (temos plena consciência que por 26 euros existem mais alternativas). A segunda opção, a de duplicar a tiragem, só teria sentido se estivéssemos a falar de um país com 20 milhões de habitantes (e não nos falem da hipótese de vender no Brasil onde nem o Abrunhosa consegue vingar). 5. Especificamente, no caso das revistas de arquitectura, a situação não parece ser mais favorável. Considerando o panorama nacional, dificilmente deparamos com uma política editorial interessante associada a um optimismo financeiro. E também, ao contrário de outros países, mesmo as revistas de iniciativa privada e assumida ambição comercial (o que acaba por condicionar conteúdos… ou por vezes nada condicionar!) têm dificuldade em manter-se enquanto publicações de referência. Aparecem e desaparecem sem que se dê conta. Quanto às publicações universitárias sabemos que os apoios rareiam e não será com o dinheiro das propinas que poderão subsistir, embora esta seja parte da solução em Princeton, Harvard ou no MIT. Mas será este o modelo que queremos/podemos? 6. De âmbito mais comercial ou académico restará às revistas depender da venda de páginas publicitárias, por

[março 2004] 20.21

exemplo: a revista italiana Domus, edição de Janeiro, agora editada por Stefano Boeri, abre com 45 páginas de publicidade para além das regulares secções dedicadas ao ‘design industrial’ que certamente exploram outros compromissos comerciais. Não me interessa discutir nem a quantidade nem a qualidade de publicidade em revistas. Por vezes a situação inverte-se: há publicidade que faz a qualidade das revistas, mas quase sempre falamos de mercados de maiores dimensões que o nosso e cujas preocupações estéticas vão para além do galo de Barcelos adaptado ao Euro 2004 (e já não falo do fado por causa da Mísia). De qualquer modo, na lógica das empresas, continua a ser mais eficaz comprar a mailing list à Ordem dos Arquitectos do que pagar uma página de publicidade numa revista que chega, na melhor das hipóteses, a 1000 arquitectos. 7. Quanto às distribuidoras, podemos dizer que simplesmente não estão interessadas em publicações com pouca tiragem (mesmo 2 mil exemplares é um número ridículo considerando a Gente, a Caras, a TV Guia, a Ana, a Maria, ou a Tânia. A Laura, do Departamento de Arquitectura da Universidade do Minho, são só 800 exemplares). O desinteresse das distribuidoras reflecte-se na percentagem que reclamam do preço de capa e na vontade que demonstram em acertar contas com as revistas. Como se não bastasse, as distribuidoras são pouco sensíveis na relação dos lugares de venda com o público-alvo das revistas de arquitectura ou áreas afins.


8. Paradoxalmente, assistimos nos últimos 15 anos a um aumento do número de publicações, quase (não quero exagerar) proporcional ao número de licenciaturas em arquitectura! Esta situação, saudável como princípio, terá como consequência, ainda, uma maior fragmentação do mercado. Num país em que o poder de compra está, aparentemente, de rastos, um maior número de publicações implicará necessariamente um menor número de tiragem. Menor tiragem, menor alcance da distribuição e depressa estamos todos a falar para o nosso próprio umbigo. A consequente política editorial destas ‘bolhas herméticas’ é editar quem se sabe que compra aquilo que se edita. Por isso o lugar comum de: ‘são sempre os mesmos’ ou, com mais justiça: ‘somos sempre os mesmos’. Com mais optimismo e menos ironia defende-se: 9. Solução 1: Buckminster Fuller inventou a palavra ‘sinergia’ para referir o comportamento de sistemas totais não dedutível a partir dos comportamentos dos seus sistemas individuais. O povo diz ‘a união faz a força’. Parece-me que tendo em conta as dimensões do país justificaria contrariar uma dispersão de esforços em favor de uma maior concentração de projectos que resultasse numa estrutura mais sólida e à escala da nossa realidade. Um primeiro passo nesse sentido foi dado com a edição conjunta do Departamento de Arquitectura da Universidade do Minho e da Faculdade de Arquitectura da

Universidade do Porto: a revista chama-se Psiax (editada por Joaquim Pinto Vieira e Victor da Silva) e pretende ser um estudo em torno do desenho e da imagem. O primeiro resultado desta sinergia parece ser a construção de um projecto com um objectivo específico e delimitado, estimulando o aprofundamento de matérias, no sentido oposto de uma política editorial genérica, quase sempre superficial e redundante. Um segundo passo ‘sinergético’ seria encontrar uma distribuidora para edições de arquitectura, que cobrisse todo o território nacional (como se fosse muito!) começando pelas escolas e que não se ficasse pelas FNACs do Porto e Lisboa. 10. Solução 2: No caso específico da IN SI(s)TU e enquanto não se alterarem os cenários descritos nos pontos anteriores, vamos mudar-nos para WWW.INSISTU.COM e WWW.INSISTU.NET, contornamos os distribuidores e os custos de impressão. A política editorial será sensivelmente a mesma, o toque do papel couche mat acetinado, 135 gramas, é que não. Fevereiro de 2004

*arquitecto, professor no DAAUM, elemento do corpo editorial da revista IN SI(s)TU.


[marรงo 2004] 22.23



Mendrisio, 6 de Abril de 2004 Cara Joana, caro Pedro, caras cabeças pensadoras, investigadoras e sonhadoras da NU, NU, que bonito título para uma revista! Pediram-me para nela deposita r, à velocidade da luz, algumas marcas tipográficas. Como fugir à elegante delicadeza do vosso convite que tem acompanhado as minhas noites de sono e as minhas manhãs de insónia? Mas porque não interpelar, em primeiro lugar, Charles Baudelaire? Na volta do correio, Baudelaire vos daria Mon coeur mis à nu, mais uma página do diário onde, pouco antes de morrer, ele proclama: ‘glorificar o culto das imagens (a minha grande, minha única, minha primitiva 1 paixão).’ A vossa questão postula o confronto entre a palavra e a imagem; opõem a escrita à iconografia nas revistas de arquitectura. Eu desconfio da mecânica binária do 0 e do 1, mesmo se ela funde toda a informática e, consequentemen te, a mobilidade do teclado com o qual escrevo estas palavras. Em compen sação, pela admiração por Benjamin Franklin e pelo seu Tratado da Electricid ade, gosto da oposição bipolar do mais e do menos. De modo que o programa da revista de arquitectura torna-se numa tensão entre o escrito e o dar a ver. ‘Dar a ver’, e trago aqui uma frase de Paul Claudel. Que a teoria da arquitectura seja, em primeiro lugar, um género literário, esta lembrança elementar é fundamental. Não se trata de saber se Vitruvio escreve classicamente, em ‘bom latim’, ou numa língua ‘impura’ e contornada, carregada de helenismos, cujo principal se lê no título do tratado: arquitect ura. Inútil comparar o texto de Vitruvio à prosa de Júlio César ou de Ciceron. O facto é que os dez livros de Vitruvio contam histórias, do mesmo modo que enumera m as receitas do modus operandi (à maneira dos livros de cozinha), ou descreve m belas máquinas. O seu tratado é fundador de um vocabulário técnico e conceptu al. Os seus relatos visam o leitor que está por vir. Germann2 demonstrou que toda a arquitectura até ao século XVIII dialogava com Vitruvio. O escrito respond e ao escrito: e estamos em plena literatura. Entre os arquitectos modernos e/ou ‘pós-modernos’ que, no último terço do século XX, propõem e defendem posições teóricas pessoais, tal como Gregotti,

[março 2004] 24.25


a. As Rossi, Venturi, Colquhoun, alimentam-se todos de uma enorme bibliotec s-decaminho dos horário o mas Borges, de labirinto o são não as suas bibliotec de discos -ferro transposto em romano de formação. Como uma colecção m escolhidos um a um, ao longo dos anos e dos decénios, os livros que acumula bom uso o praticam autores Estes oupa. guarda-r seu o são as bibliotec suas nas das aspas. À força de publicar, dão-se a um estilo. Gregotti combina a escolástica e a dialéctica de longos períodos que traduzem apesar de, a sua identidade de professor. Utiliza as preposições relativo, excepto, Os sólidas. mais posições suas as adiantar não obstante, e usa o condicional para olhar O . moderna condição da de dificulda a m exprime difíceis: são seus textos leitura. A lúcido, colocado sobre o presente, condiciona o apetite quotidiano de tradução a (faço Gregotti de ão ruminaç a eis de, propósito do fantasma da virtualida A: ‘Se afastarmos a ingenuidade desta proposição: que francês) o para italiano do regras da o cálculo tinha reforçado a imaginação visual ao explodir com as é preciso então regras, estas a vas alternati criando antes, representação, ou da admitir que a virtualidade, para o momento e pelo menos no campo a gramátic sua a que meios próprios seus pelos arquitectura, está tão deslumbrada facilita que medida à ão, imaginaç da ica morfológ prisão a torna-se instrumental da a representação; e isto, a partir do seu modo de aparição no ecrã, do fascínio do imagem a instante, cada a suscitar, de forma da sua aparição progressiva, porque a milagre tecnológico enquanto solução de todo o problema, ainda mais, virtual tação represen A o. expressã da virtualidade fixa, sem alternativa, as regras mais forma de então, ou papel, o sobre e realidad hiper uma parece privilegiar , mais sofisticada, a representação sobreposta de traços sucessivos do projecto or ainda, a incompletude e uma compreensão parcial que permite ao observad s, para fantasma próprios seus os projectar imagem, a valor, bom seu a r, completa ta confinar assim numa cumplicidade comunicativa e, mesmo, numa ferramen 3 Ao lerem Gregotti, apertem bem o cinto e fechem .’ muito astuta de consenso é a sua por vezes os olhos, para melhor o seguirem na sua corrida dialéctica. Tal o quando cedo, manhã de mesa à raiva quotidiana de escrever, que se senta seus dos Além . telefone do iva imperat música a precede canto dos pássaros pinta, textos eruditos, Gregotti escreve ainda longos e íntimos opúsculos, onde avô. seu do ões recordaç as e ternamente, as suas emoções de infância


Esta dimensão autobiográfica da arquitectura foi enunciada por Aldo Rossi. Recordai-vos que a autobiografia constitui um dos géneros literários mais correntes desde Rousseau e o romantismo. O primeiro livro de Rossi sobre L’architettura della città lê-se com entusiasmo. Não sei se ainda continua a ser imposto nas escolas como textbook. De qualquer modo, a sua leitura é aprazível, como uma viagem pela história e geografia urbanas, grande descoberta adolescente do mundo. Recomendo-vos abrir a edição reconstruída por Daniele Vitale, quando, finalmente, o texto e as imagens entram em sustentação4. Mas nunca vos direi, jamais, para lerem o segundo livro de Aldo Rossi, Autobiografia scientifica. É como quando insistem com os vossos amigos para irem depressa ao cinema ver aquele filme único, feito à medida deles, e vocês sabem que eles acabam por não ir. É melhor nada dizer. Portanto, sobretudo não leiam esta Autobiografia scientifica. para Por razões tortuosas, Aldo Rossi congela, à partida, o seu texto italiano em Vem, inglesa. tradução bela numa melhor o apresentar nos Estados Unidos, 5. inicial texto do italiana ão publicaç a surge te, Finalmen francesa. seguida, a versão podem se que livros belos Qualquer que seja a língua, trata-se de um dos mais rio. Tal é encontrar numa vida de arquitecto, de veterinário, médico ou funcioná colar na poder se de ilusão à nu, à mis coeur dentro, s trazemo que ade a curiosid de um nostalgia a e presente o pele e nos ossos do outro. O texto evolui entre tempo do dade ambigui a sobre joga autor O ão. recordaç na imperfeito suspenso problema real e do tempo dos verbos, sobre os cheios e os vazios da memória. O , mas na não se coloca, como na vossa questão, na oposição do texto e da imagem de crítica a e Dick Moby Dante, Plank, livros: Os coisa. a e palavra a relação entre a se como tónica, arquitec Melville por Olson, colocam no centro a temática uma de menos pelo mito, um de sempre senão a, arquitectura fosse precedid a velha narração fundadora. Os fragmentos do caderno rossiano ilustram mais livro, do título do apesar , física dos ‘átomos curvos’ que a nova física quântica raphie. Selbstbiog haftliche Wissensc tomado a Max Plank, que ‘Talvez me tenha interessado pela arquitectura devido às lendas míticas que sabia Eu . Micenas de túmulos os ou envolvem a Grande Muralha da China estas Mas . verdade sido tivesse nunca até talvez ou o, terminad tudo isso tinha me; este construções resultantes do esforço dos corpos humanos impressionavam-

[março 2004] 26.27


corpo do homem que eu encontrava nas figuras de cera dos Sacro Monti, nas catacumbas de Palermo, ou estendido nas igrejas do Brasil. Vejo bem que a fidelidade de toda a técnica está presente: na identificação do objecto com a sua representação imaginária. Mas está também na recondução da imagina ção à sua origem, ao seu fundamento, à terra e à carne.’6 Tema rossiano obsessiv o, o tipo barraca é trazido à terra através de pilotis. Projectos a tinta e fotografias a preto e branco completam-se e as recordações de Mântua e da ilha de Elba contamin am a descoberta de Portugal: ‘Estas barracas como pequenas casas inocente s:a inocência de se despir, repetindo gestos antigos e familiares, as roupas molhadas, os jogos, o sabor ácido do sal marinho. Eu vi, no norte de Portuga l, grandes barracas deste tipo, parecendo casas, os Palheiros de Mira, feitos com madeira cinzenta clara de destroços encalhados e incluindo uma espécie de hangar para os barcos. A madeira do barco e da casa possui esta cor cinzento esquelet o bem característica: a dos corpos abandonados pelo mar ao longo dos anos, dos séculos, sobre qualquer praia... Como nas fabulosas ilustrações onde se vêem os esqueletos dos piratas ladeados dos seus tesouros, pedras preciosas, esmeral das, que o tempo não pode devorar, evocando um imbróglio de histórias desconh ecidas.’7 Continua no próximo número da NU... *alunos do 6º ano do DARQ. **Jacques Gubler, francês, historiador da Arquitectura Moderna e professor na "Accademia di Architettura" de Mendrisio.

(1) Charles Baudelaire, Œuvres complètes, texte établi par Y.-G. Le Dantec, Paris, La Pléiade, 1958, p. 1227. (2) Georg Germann, Einführung in die Geschichte der Architekturtheorie, Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1980, 1987, 1993. (3) Vittorio Gregotti, Diciassette lettere sull’architettura, Bari, Roma, Laterza, 2001, p. 77-78. Je traduis «gabbia morfologica alla immaginazione» par prison morphologique de l’imagination. (4) Aldo Rossi, L’architettura della città, a cura di Daniele Vitale, Milano, CLUP, 1978. (5) Aldo Rossi, A Scientific Autobiography, translation by Lawrence Venuti, Cambridge, Massachusetts, London, MIT Press, 1981; Autobiographie scientifique, traduction de Catherine Peyre, Marseille, Parenthèses, 1988; Autobiografia scientifica, Parma, Pratiche Editrice, 1990. (6) Édition française de 1988, p. 66. (7) Ibidem, p. 48.


[marรงo 2004] 28.29



[marรงo 2004] 30.31



O mercado editorial de arquitectura é um mercado de nichos, com as vantagens e dificuldades que isso comporta. Electa architettura ocupa uma posição de relevo neste mercado: todos os anos, publicamos em média 35 livros e o nosso catálogo conta com cerca de 300 títulos, cuja metade é ainda viva. Na base da minha consciência, e tendo em conta a nossa edição inglesa com a marca Electarchitecture, Electa é a principal casa editora especializada do mundo. Paralelamente, juntam-se a nós em Itália, outros editores, em alguns casos com presença irregular, mas editores importantes que reservam um certo espaço à arquitectura no interior dos seus programas gerais; outros editores, por sua vez, operam no interior de nichos ainda mais restritos daquele que nos ocupamos, mas com propostas, por vezes, de óptima qualidade. A escolha, há já alguns anos, tem vindo a ser mais articulada. Hoje, longe de uma produção substancialmente anárquica (e não o digo com negativismo), tem-se vindo a afirmar um campo editorial interessado naquilo a que chamarei de ‘grandes passagens históricas’: histórias de episódios relevantes, de monumentos específicos, de determinados momentos ou movimentos, de transformações urbanas, de ambientes culturais, etc. Hoje, a monografia sobre arquitectos, quer sejam do passado, quer do presente (por exemplo Vignola ou Zaha Hadid) têm tiragens análogas às dos livros que faço e, em alguns casos, inferiores à de obras sistemáticas; é o que temos vindo a observar na Electa, considerando as notáveis tiragens dos volumes que compõem a Storia dell’Architettura Italiana, que chegou agora ao sexto volume. É um sinal interessante. E já que as escolhas editoriais devem procurar responder às exigências do público, assim como prefigurar e estimular a curiosidade dos leitores, assinala-se o crescente interesse pelos textos teóricos escritos por arquitectos, contemporâneos ou não, e pela ‘sabedoria’, como o demonstra o sucesso da nossa nova coluna Architetti & architettura (A&a) que em dois anos já atingiu os dez títulos, metade dos quais já reeditados. Os dados sobre os quais importa reflectir passam pela escassa propensão dos arquitectos (e não apenas os italianos) a operar no campo da produção teórica. Como sabemos, a situação académica italiana é preocupante, mas também o é

[março 2004] 32.33


a profissional. E esta dupla crise acaba por resultar na carência de profissionaisprofessores-pensadores à altura dos problemas que angustiam o mundo da arquitectura. No panorama americano, o relançamento da teoria arquitectónica (aquela que eles, incipientemente, chamam tout court ‘theory’) é um dos fenómenos mais vistosos e sobreestimados, tanto do ponto de vista editorial, como a nível académico. Olhando, com olho de editor, para a produção editorial, não devemos contudo esquecer que nos Estados Unidos a publicação de textos de teoria (e curiosamente, também dos livros especializados) é favorecida pelo facto da University Press, ao contrário de nós, usufruir de convenções que possibilitam a impressão de volumes que não teriam qualquer possibilidade de se afirmar autonomamente no seu mercado. É uma situação de favor e contra favor, que alimenta grande parte da mitologia da ‘primazia’ da investigação nos Estados Unidos. Mas, nos países anglo-saxónicos, o número de títulos dedicados à arquitectura tende a diminuir. No que respeita aos países europeus, uma forte contracção atingiu igualmente a França e a Alemanha, enquanto que o campo editorial de língua espanhola dá sinais de grande vitalidade. Situação particular é a dos ingleses, onde, por tradição, o livro de arquitectura é editorialmente indissociável do livro de arte, um parentesco que ajuda parcialmente a tiragem comercial. Também a Electa nasce como casa editora de arte, fundada por Bernard Brenson; mas a partir dos anos sessenta, a área de arquitectura tem vindo a adquirir uma posição cada vez mais autónoma, com a constituição da Electa architettura, à qual, recentemente, se associou a Electarchitecture. O início coincidiu com o lançamento da Storia dell’Architettura Universale, co-editada em cinco línguas e que, ainda hoje, continua a ser publicada e traduzida (a versão mais recente é a chinesa, estando a ser preparada a coreana). O processo que levou à formação da Electa architettura representou o retomar na frente editorial, sob o tema da pesquisa histórico-crítica, de um projecto pronto a afirmar a sua


autonomia e especificidade dos estudos dedicados à arquitectura. De facto, é também o retomar de tudo o que aconteceu, sobretudo em Itália, nos anos setenta e oitenta; uma vez que é progressivamente afirmada uma historiografia arquitectónica autónoma (também do ponto de vista da instrumentalização) com respeito à história da arte, mas interessada no confronto com ‘todas as histórias’ (do meu ponto de vista, é um dos maiores méritos dos ensinamentos de Manfredo Tafuri). Ao observar a lista dos livros que publicámos em 2003, por exemplo, não me lamento da diversidade de abordagens e de temáticas levadas a cabo. No que diz respeito ao estudo da história da arquitectura, do ponto de vista da profissão, parece-me que, por mais que sejam os volumes biográficos, os sistemáticos oferecem preciosas informações (penso, por exemplo, naqueles recolhidos da Storia dell’Architettura Italiana, uma iniciativa editorial, é preciso sublinhar, que não tem equivalente noutros países). Por sua vez, apesar de muitos dos nossos historiadores e críticos terem uma formação de arquitecto, é-lhes escassa a consideração pelos dados materiais e técnico-construtivos da arquitectura. O campo editorial especializado tem necessidade de estudos dedicados a este problema; deste ponto de vista, Electa architettura é muito aberta! Para dar uma ideia, estamos a preparar um livro curioso que contará a história da construção (em onze meses) do Empire State Building. A ‘Casabella’ procura informar o leitor sobre a metodologia através da qual os arquitectos projectam e constróem as suas obras. Por esta razão, e porque consideramos o projecto como uma disciplina, reservamos uma atenta preocupação editorial, quase obsessiva, na reprodução dos desenhos e imagens, tratando-as como verdadeiros textos, oferecidos a ler ao nosso público. A ‘Casabella’ tem periodicidade mensal e só por isso já se torna muito diferente do ‘Giornale dell’ Architettura’: fechamos os nossos ‘serviços’ três meses antes da chegada da revista às bancas. Portanto, ocupamo-nos da actualidade mas com um certo destaque, ou melhor, com um certo vagar.

[março 2004] 34.35


Por exemplo, tentemos comparar o Disney Concert Hall de Los Angeles e o museu Guggenheim de Bilbao, ambos de Gehry. O Disney Concert Hall foi recentemente inaugurado, tendo os media dedicado muito espaço ao evento; ninguém, no entanto, ao comentar esta última obra do arquitecto californiano, notou uma coisa importante: apesar de inaugurados com seis anos de distância, ambos os projectos foram elaborados ao mesmo tempo. O Disney Concert Hall faz agora parte de uma anacronística ‘acrópole cultural’ que compreende, entre outras, obras assinadas por arquitectos notáveis como Moneo e Isozaki; o museu Guggenheim, por sua vez, ocupa a margem de um rio onde se encontrava um depósito de contentores insinuando-se entre o espaço de uma cidade degradada. Porém, o Guggenheim contribuiu substancialmente para a mutação, através da paisagem, da vida de Bilbao. O Disney Concert Hall, por sua vez, não possui mais do que uma função celebrativa. São dois objectos ‘iguais’: ‘igual’ a sua história; ‘igual’ os seus projectos; mas os seus destinos diferentes e também as suas funções. Trata-se de um paradoxo, mas só interrogando a especificidade do objecto que Gehry construiu, se poderá compreender isso. A Yourcenar tinha razão ao atribuir (apenas) ao tempo o título de ‘construtor’. Voltando ao nosso trabalho editorial, procuramos documentar a experiência dos arquitectos mais interessantes, mas também daqueles que se vão afirmando ou que estão nos primeiros passos, sabendo o quanto é difícil, sobretudo em Itália, e ainda mais para um jovem, estar nesta profissão. *historiador, professor no Instituto Universitário de Arquitectura de Veneza (IUAV), responsável científico pela área de arquitectura da editora Electa, director da revista ‘Casabella’. Publicado originalmente em formato entrevista sob o título ‘Carlo Olmo em conversa com Francesco Dal Co’, por Bruno Pedretti, no ‘Giornale dell’Architettura’, Dezembro 2003. Publicado na NU por indicação e permissão de Francesco Dal Co. Tradução livre por Marta Pedro, aluna do 6º ano do DARQ.


A AV Monografías foi criada em 1985 por uma equipa sob a direcção do arquitecto e professo r Luis Fernández-Galiano. O seu objectivo mais espe cífico era provocar o debate e contribuir para a reflexão sobre a produção contemporânea. Três anos mais tard e, em 1988, nasceu a Arquitectura Viva e fundou-se a edito ra com o mesmo nome, que desde então publica ambas as revistas. Dirigida igualmente por Fernández-Ga liano, esta segunda revista vinha complementar o cont eúdo monotemático da prim eira com um trata men to mai s ágil da info rma ção e uma aten ção esp ecia l a out ras manifestações artísticas próximas da arquitectura. A linha editorial de ambas as revistas é idêntica e pode definir-se com três adjectivos: crític a, porque pretende questionar o que nos rodeia; literária, porque concede ao texto tanta importância como às imag ens; e ecuménica, porque por princípio não exclui nada nem ninguém. O urbanismo, a arquitectura e a pais agem são cada vez menos disciplinas autónomas, e isso reflecte-se nas nossas páginas. Nos nossos índices onomásticos figu ram numerosos colaboradores que são membros de equipas de redacção de outras revistas de arquitectura espa nholas e, sobretu-

do, estrangeiras, além de críticos e historiadores. Uma parte importante dos nossos autores são arquitectos que combinam o seu trabalho profissional com a actividade docente e com a escrita; publicámos edifícios, mas também textos de, por exemplo, Rafael Moneo. E fragmentos de obras de autores pouco habituais nas revistas de arquitectura, como Michel Houellebecq, também são reproduzidos nas nossas páginas. Os assuntos em que as revistas fixaram a sua atenção ao longo destes anos são muito variados, tal como os pontos de vista ou enfoques adoptados para tratá-los. Consequentemente, a cobertura geográfica foi igualmente muito ampla, o que não nos impediu de atender à nossa envolvente mais próxima; desde 1993, a AV Monografías publica um anuário de arquitectura espanhola; e a Arquitectura Viva dedicou números à maioria das regiões da Península. Procura-se contar com arquitectos, críticos e fotógrafos ligados aos temas que desenvolvemos; busca-se também o complemento do olhar alheio, que contenha uma visão exterior. Também preferimos a pluralidade de pontos de vista no que se refere às imagens; por exemplo, publicar fotografias de uma obra em Toledo tiradas por um

[março 2004] 36.37


fotógrafo de Estugarda é habitual. Os nossos leitores são maioritariamente arquitectos e estudantes de arquitectura, e o que desejávamos era que aumentasse essa pequena parte do nosso público para o qual a arquitectura não é uma profissão, mas uma devoção. Desde 1993, a Arquitectura Viva é responsável pela página de arquitectura que o El País, o diário espanhol de maior tiragem, publica em cada semana; provavelmente, esta é uma forma, dentro das possíveis, de fazer com que a arquitectura seja mais comunicativa. Está prestes a aparecer uma terceira revista que tem como nome AV Projectos, com a qual a equipa editorial de AV Monografías e Arquitectura Viva pretende estreitar laços com os seus leitores e dedicar à arquitectura não construída uma atenção preferencial que não lhe prestam as suas publicações irmãs. Nela terão lugar projectos de concurso, investigações teóricas e, em geral, propostas de futuro. Os textos, breves e anónimos, apoiarão, tanto quanto necessário, um discurso eminentemente gráfico. *arquitecta, redactora-chefe da ArquitecturaViva. Tradução livre por Pedro Jordão, licenciado pelo DARQ.


Susana Faria* com colaboração de Bruno Gil** No país onde há mais concursos e revistas de arquitectura, a procura de inovação e de uma resposta sempre melhor, torna-se uma meta cada vez mais disputada. Luis Mansilla e Emilio Tuñon destacam-se, não só pelo invejável curriculum de projectos premiados, como também pelo recente projecto (em construção) do Museu de Arte Contemporânea de Castilla e León – MUSAC. O percurso destes arquitectos caracteriza-se por um crescente desprendimento de princípios e regras. A subjectividade eleva-se na vontade de diluir as fronteiras do conhecimento. ‘Nós não temos uma arquitectura.’ O entendimento da arquitectura, por esta dupla madrilena, traduz-se num processo de conhecimento, fomentado pelo cruzamento de várias ideias sociais e condicionantes, que encaram sempre como vantagens. Nesse sentido, aceitaram e responderam ao desafio de propor uma intervenção numa zona histórica como a Baixa de Coimbra, no âmbito do projecto do Metro de Superfície, com o mesmo sentimento que a solução transmite. Arrojada e sonhadora, ganha relevo entre as propostas apresentadas, obtendo o lugar de pano de fundo do cartaz do ‘Seminário Internacional de Desenho Urbano _ Inserções’1. Como objectivos (permanentes) do seu trabalho destacam-se: produzir conhecimento, optimismo e, fundamentalmente, uma aproximação à realidade e à vida. ‘A arquitectura somente tem sentido confrontando-se com a vida.’ Este é o espírito. O que também se sente na maneira informal e transparente com que desenvolveram a entrevista.

imagem: joseph beuys

Será sempre redutor, apesar de ser uma necessidade comum, enquadrar a linguagem usada pelos diversos arquitectos, e daí ser inevitavelmente negada, ainda que

[março 2004] 38.39


admitindo influências. Este caso não é excepção. A colaboração com Rafael Moneo, no início do seu percurso, reflecte-se numa das suas primeiras obras, o Museu de Zamora. De formas um pouco abstractas, evoluem para formas mais expressivas e figurativas, de que é exemplo o Museu de Cantabria, ou o Grand Slam de Madrid. Apesar da sua natureza objectual, não se fecham na sua singularidade, integrando-se e promovendo a interacção com a natureza envolvente. Outras vezes, parecem fundir-se nela. Neste contexto, são usadas metáforas que funcionam como meras explicações, que comunicam e aproximam a obra arquitectónica ao ser comum . ‘A metáfora não produz arquitectura.’ O processo de criação da obra evolui de objectos a ideias que se desvanecem. Ideias invisíveis introduzem-nos ao conceito de arquitectura potencial, onde o pragmatismo é a ferramenta face às diversas dificuldades e constrições. Tudo se conjuga num sistema operativo de ordem e liberdade. MUSAC é exemplar na aplicação deste princípio que surpreende pela sua capacidade expressiva. Padrão teia tela tecido, de quadrados e losangos. Sistema. Abstracto. Subjectividade, uma consequência desejada. E, num tempo em que a disciplina da arquitectura se vai despindo, cada vez mais, de valores e regras, em que o ontem já está obsoleto, a preocupação dos arquitectos Mansilla+Tuñon é ‘Que parte do futuro queremos conservar?’. (1 Seminário organizado pelo Centro de Estudos do Departamento de Arquitectura da FCTUC (CEArq) e pela Capinal Nacional da Cultura 2003.

Como definiriam a vossa arquitectura? Emilio Tuñon: Nós entendemos a arquitectura como uma forma de conhecimento. No fundo, uma forma de conhecimento sempre em constante mutação. Porque se prossegue consoante o que se vai conhecendo, transformando. Por isso, a nossa arquitectura não é algo que se esgote, é algo que se produz no tempo e, portanto, mutante. Os temas que nos interessam são as famílias de pensamentos, as famílias de coisas; nesse sentido estamos muito interessados, por um lado, na igualdade, por outro, nas estruturas de sistemas e de subjectividade, por outro ainda, na marca e no território. E essas famílias formam parte de um processo de conhecimento da realidade. Achamos por isso que não faz falta definir a arquitectura, mas sim enquadrá-la enquanto sistema de conhecimento. Luis Mansilla: O que nos desconcerta mais, é dizer-se ‘vossa arquitectura’; provoca uma certa rejeição pensar-se que há arquitectura de alguém. Digamos que, na realidade, acredito precisamente que, embora a nossa arquitectura possa parecer pessoal, há um esforço para que o não seja. Isto é, há um esforço de afastamento, de distanciamento de nós mesmos e do que é a produção da arquitectura, porque nos parece que assim se aproximam os outros. Uma arquitectura muito pessoal acaba sempre por produzir uma rejeição, por isso desconcerta-nos dizer ou ouvir ‘vossa arquitectura’. Nós não temos arquitectura. T Exactamente. Como já foi dito, a arquitectura que nos interessa é a que produz conhecimento; digamos que o


nosso trabalho só se entende enquadrado numa metodologia em que o que se procura é uma forma de conhecer a realidade face ao mundo, uma aproximação à vida. Entender a arquitectura como coisa formal, ou entender a arquitectura como coisa mediática, tem interesse, simplesmente, na relação com a forma de conhecer o mundo e a vida, enquanto ferramenta para dissolver os limites entre a arte e a vida, entre o público e o privado, entre a natureza e o artificial, entre o trabalho e o ócio. E isso é um pouco o nosso trabalho. M Mas não temos nenhuma meta rígida a atingir; pelo contrário, a cada dia que passa parece que vamos mudando, o que nos agrada e satisfaz muito. Alguns dos projectos mais recentes tal como o Museu de Cantabria e o Grand Slam de Madrid, autenticam a transição de uma arquitectura mais abstracta e racional para uma arquitectura mais figurativa e expressiva. Falam do museu como se fossem montanhas, e o Grand Slam é representado com uma lata de Coca-Cola. Isto representa uma mudança no vosso trajecto, uma mudança de abordagem, ou é apenas uma experiência? M Há sempre uma evolução, mas sobre os mesmos temas; as coisas são iguais e diferentes em arquitectura, como uma manifestação do que é o Homem. Parece-nos, sobretudo, que é um modo de nos aproximar à arquitectura. Nós pensamos que a metáfora não tem a capacidade de criar arquitectura. O museu de Cantabria é um projecto em que estamos ao lado de coisas que são iguais e diferentes, em que o comum, o colectivo, é uma soma de individualidades. O resto são ideias sociais, e é com isso que nós trabalhamos. Uma coisa é o que produzem os projectos, outra, é o modo como podem ser explicados ou vistos. E são duas coisas distintas. O projecto de

Cantabria não nasce para ser como as montanhas; no entanto, uma vez concluido, está no seu sítio e ao fundo há, de facto, umas montanhas. Então dizemos, ‘é como essas montanhas’. Mas isso está relacionado com a ansiedade das pessoas em identificar as coisas e torná-las suas. No projecto do MUSAC, um projecto mentalmente muito abstracto, logo também muito expressivo, aconteceu-nos uma coisa muito curiosa quando o explicávamos ao ministro: —Bem, isto é um edifício, é uma sala de exposições, aqui está fechado, ali estão os losangos, … —Mas isto o que é? — perguntou-nos no fim. Olhávamo-nos e repetíamos: —É um edifício, aqui está a sala, ali pode expor-se desta forma, ... —Mas isto o que é? — continuava ele. —O que quer você dizer? — perguntámos finalmente. —Quando os jornalistas me perguntarem o que é, que respondo? Há edifícios que são como peixes, como montanhas, e deste, que posso eu dizer? Então regressámos a Madrid e, depois de muito pensarmos, ocorreu-nos e voltámos: —Este edifício é como o leito do Douro, é como os afluentes dos rios, em que a água é sempre nova, mas sempre a mesma, igual à arte. A partir desse momento, antes de tudo, cada vez que se fala do edifício nos jornais, dizem que é como os rios. Mas isso não produz arquitectura. A metáfora não produz arquitectura. No entanto, tem uma espécie de eco que permite a aproximação das pessoas, é um pouco misterioso e perigoso também. Mas o que quero dizer é que não é a utilização de metáforas que produz arquitectura, mas sim a nossa preocupação pela repetição. O igual e o distinto avançam e vão percorrendo outros territórios, mas nós vêmo-lo em continuidade.

[março 2004] 40.41


T Não há nenhuma ruptura no processo do escritório, porque continuam a ser as mesmas famílias ou espécies de espaços; as mesmas espécies de arquitecturas ou de formas de construir, ou de definir, ou de trabalhar a realidade para seu conhecimento. Para transmitir essas ideias às pessoas comuns, há que simplificá-las, como os literatos, como trabalham os poetas, com metáforas. Mas as metáforas, em si, não são criativas. O que é criativo é o processo de expressão do conhecimento da realidade, através dos mecanismos disciplinares da arquitectura, que são muito complexos e muito difíceis de explicar a uma pessoa que os desconheça. Mas, no entanto, se dizes que uma coisa é como um rio, ou como uma montanha, ou como um bosque, isso já permite às pessoas começar a pressentir os problemas da arquitectura; então é um truque, um truque mediático que tem a ver com a comunicabilidade e não com a génese dos projectos. A génese dos projectos não vem, em nenhum momento, catalisada por essa condição figurativa, nem por essa expressão, mas sim, talvez, por mais complexas que sejam as coisas, pelos sistemas, famílias e espécies. M Não são metáforas autenticamente, mas explicam o mesmo. Nós trabalhamos sobre estes espaços que parecem ‘irmãos’, mas cada um tem uma luz diferente, e isso é o que ocorre na natureza. Então, quando dizemos que são como qualquer coisa, trazemos isso ao mundo

da arquitectura; não é que tenham a forma de montanhas, mas comportam-se como tal, não é que coincidam na sua forma, mas coincidem na sua forma de ser, no seu comportamento. Quando dizemos, ‘este edifício é como as árvores’, não é que tenha forma de árvore, mas este é um espaço e esse é outro. Reconheces-lhes a mesma espécie, mas este é mais alto e esse é mais pequeno. Toda a nossa arquitectura é só isso. Não há mais. O resto é arte, é trabalho, é esforço, é aprender, observar, mas só existe isso. Todos os nossos projectos são assim; há uma família de lanternins em Zamora, há uma família de janelas em Léon, há uma família de secções em Castellón, há uma família de quadrados e losangos no MUSAC, uma família de lanternins em Cantabria, mas é só uma ideia. Uma ideia que vai passando por sítios distintos, com a sua realidade, com a sua função, no seu lugar, com cada obsessão nossa e qualquer forma, mas, repito, é só uma ideia. E, as pessoas, através dessa metáfora formal, podem entrar no mundo da nossa arquitectura. Mas não é um processo criativo, nem é uma coisa formal; é difícil de explicar. T A metáfora é a chave de uma porta, quando a abres, descobres outras coisas atrás. Podes entrar por um sistema mais complexo, mas para chegares à pessoa comum, a metáfora não serve como chave, no entanto é a explicação. M Então todos estes quinze anos de trabalho são sobre isso; o resto pode interessar mais ou menos, mas isso é o que sempre está. Não procuram uma subversão do significado, por exemplo, no Grand Slam, de Madrid? Não há um outro objectivo para além de umas bancadas onde as pessoas vão para ver o campo de ténis, ver o jogo?


M Sim, em todos os projectos há sempre algo; é como uma lasaña, em muitos há harmonia, noutros há reflexão sobre os movimentos filosóficos, artísticos, enfim, há muitas coisas. O que queremos dizer é que, para nós, há sempre um que é muito importante e está sempre presente. E há que fazer coisas diferentes que relacionem a natureza, a técnica; isso é que os difere. Falam muitas vezes de uma postura muito pragmática na vossa abordagem ao projecto, de acordos múltiplos com o lugar, com o programa e com as pessoas... M_ Como já referimos, eu penso que no mundo em que vivemos, com muitas restrições, muitas normativas, muitas dificuldades, não há outro remédio senão ser optimista, pensar que tudo são vantagens; é a única possibilidade que temos, não é? E desse ponto de vista podem, inclusive, resultar criações. Como se pertencessem a mundos surrealistas, cuja origem desconheces. Há que considerá-lo como um ponto de partida criativo, como uma oportunidade, não como uma dificuldade. Nesse sentido, os acordos com os programas, com os clientes, com as suas obsessões, convertem-se em algo que pode ser novamente criativo. Não há outra possibilidade! Não é bom converter-se numa pessoa que se queixa sempre. O projecto tem que nos agradar, não há outra possibilidade. T_ Parece-nos que a nossa arquitectura está enquadrada

entre o mundo e o pensamento pragmatista. A arquitectura do sec. XXI é uma arquitectura que se baseia no pensamento pragmatista, na confrontação do pensamento com a realidade das ferramentas de projecto. Mas toda a arquitectura pragmatista é igual. A nós, interessa-nos introduzir esse salto, diferenciar a condição de arquitectura potencial, um termo que nos interessa muito, como a arquitectura que é capaz de despoletar as possibilidades das recessões, das limitações e da confrontação com a realidade. A arquitectura pragmatista que nos interessa é a arquitectura potencial. Disseram numa entrevista, ‘Interessa-nos a construção do espaço como um consenso colectivo’. Acreditam ser possível chegar a um consenso total ou é uma utopia que importa existir para chegar à melhor solução? T Eu penso que consenso total não existe. Richard Rogers diz que o êxito se produz na coincidência (e diz acidentalmente) entre as associações privadas e as necessidades públicas. Quando falamos de consenso, quando falamos de micro-política, quando falamos de coincidência das associações para necessidades públicas, estamos a falar da situação a que o arquitecto se tenta aproximar, mas produz-se como uma projecção das suas próprias obsessões; não se nega à condição liberal do pensamento, não se nega à condição solidária do trabalho. É híbrida, essa configuração que desvanece os limites entre a condição liberal do pensamento pessoal e a condição solidária das necessidades públicas. Isso é o que nos interessa. Não nos interessa ter obra numa cidade em que as pessoas se oponham. O que não quer dizer que se consiga que toda a cidade esteja de acordo contigo. É positivo, natural, democrático e saudável. Na mesma entrevista referiram uma afirmação de Joyce que diz ‘As piores poesias são as mais sinceras’. Como


fazem a transição desta afirmação para o vosso percurso? M Vou explicá-lo muito bem com um personagem português. Pessoa dizia ‘o poeta é um fingidor, finge tão completamente que chega a fingir que é dor, a dor que deveras sente’. E o que quer isto dizer? Quer dizer, que, em qualquer actividade que tenha a ver com o mundo da arte, há uma necessidade de distância, isto é, o poeta sente dor, mas não pode dizer ‘Eu tenho dor’, porque o seu trabalho é que tu sintas que ele sente dor e não que a sinta ele; isso quer dizer que há um processo em arquitectura no qual tu tens ideias e tens que te distanciar delas, apagá-las, convertê-las em possíveis para os outros, não para ti. Esse trabalho é muito interessante em arquitectura, vês a erosão da personalidade. Entre outras coisas, porque não há outro caminho possível. É uma necessidade psicológica, mas é também a garantia de que o que fazes é um espaço para os outros, e não só para ti. Como é intervir numa zona com um valor histórico tão grande e com uma estrutura tão rígida como a Baixa de Coimbra? T Sobre o que falava à pouco, da dissolução dos limites entre o natural e o artificial, parece-nos que a arquitectura tem muito desse pensamento. Não nos interessa trabalhar em nenhum contexto que tenha uma condição diferencial limitativa. Parece-nos que, quando se trabalha sobre a natureza, é tão enriquecedor como quando se trabalha numa zona histórica ou numa zona suburbana; resultam decisões diferentes, mas há o mesmo dramatismo. Quando se tem que trabalhar sobre o subúrbio e há que demolir construções populares pobres, económicas, é tão dramático como quando se tem que intervir na zona histórica e demolir um edifício com valor. Então parece-nos que a atitude presente na arquitectura, perante cada obra, é quase virgem. Há que fazer um esforço para

[março 2004] 42.43

apagar os conhecimentos, ou melhor, desaprender o que se sabe. Quando se enfrenta a natureza tem que se desaprender, porque temos que nos enfrentar, ou seja, entender o dramatismo tendo a capacidade de optimismo. Esse dramatismo da história tem acontecido com tanta frequência que esteriliza a produção, impede de produzir; isso é muito típico, dramático e triste. Então, há que experimentar o conceito de desaprendizagem, certa condição para esquecer. Milan Kundera dizia que não tinha que esquecer as coisas com sentido de humor. Há quem não goste da ironia, do cinismo, do sentido de humor desta vida que nos cabe viver. No entanto, a nós parece-nos muito importante porque permite desaprender e esquecer as coisas. Quais são os princípios gerais da vossa proposta? Luis Mariño2_ No fundo abre uma oportunidade para que a cidade mude e tenha o que os seus cidadãos desejam. É uma oportunidade fantástica para mudar a cidade. Não só o metro como muitas outras coisas; podes abrir a cidade ao rio, tirar toda a linha de caminho de ferro obsoleta, mudar, unir, o que seja. O que a nossa proposta pretende, com optimismo, é que a Câmara, a Universidade e toda a cidade, tomem consciência que é uma oportunidade para mudar com a inserção do Metro de Superfície. T Bem, eu penso que a oportunidade de trazer arquitectos de fora da cidade para intervir em Coimbra tem de bom o distanciamento, a capacidade de uma pessoa ser capaz de prescindir de muitas coisas. Eu acredito que o distanciamento gera optimismo, através do sentido de humor, do riso. E eu acho que a nossa proposta tem muito disto. Os arquitectos mais sérios talvez não entendam da mesma forma esta coisa mais académica


do seminário. Mas a nossa proposta tem o sentido de humor capaz de dizer que há uma zona importante, o rio, e encarar a arquitectura como se fosse um vírus capaz de contaminar o outro lado, ver a arquitectura como algo capaz de gerar optimismo nas pessoas. Para nós, o mais importante deste seminário era a capacidade que este podia ter ao gerar optimismo; e a nossa proposta quer precisamente isso, através de optimismo dizer que Coimbra tem que ser uma cidade um pouco mais alegre. Abordaram sempre a arquitectura para além do projecto, escrevendo e cruzando-a com as outras artes. É uma necessidade vossa ou acreditam que é uma necessidade da própria arquitectura? T Nós gostamos de ser amadores da arquitectura; se olhas através de outra disciplina, se te colocas de fora, podes ver as coisas de outra maneira. Acontece, então, que a arte parece-nos interessante por ser algo que se relaciona intimamente com a vida e a arquitectura precisa de atractivos que possam ajudar a desvanecer esses limites entre arte e vida. Ver a arquitectura através de outras disciplinas, a arte, a antropologia, a literatura, a poesia, permite absorver as coisas de outra forma e obriga, também, a ter uma formação académica e disciplinar muito profunda. Parece-me que todas estas actividades têm um pouco de solidariedade, filosofia, planeamento familiar; tudo isto é falar da vida e a arquitectura só tem sentido confrontando-se com a vida. M Perguntas se é uma necessidade da arquitectura, mas o conceito de arquitectura não existe. Para nós e vós, pessoas que têm muitas preocupações, o nosso trabalho é ser arquitecto, fazemo-lo o melhor que podemos, mas é só um trabalho. Não existe um mundo abstracto que se chame arquitectura. É como perguntar a um sapateiro:

[março 2004] 44.45

—O que é que pensa da sapataria? —Faço sapatos, faço-os o melhor que posso. Que querem as pessoas? A minha vida é muito ampla, as nossas vidas são muito amplas, tocam na arte. Como o Emilio dizia, temos um trabalho, ser arquitectos, mas não é mais do que isso. T Nós lutamos muito por reivindicar essa condição específica da arquitectura, da disciplina, que por vezes enriquece e permite dissolver os limites entre arte e vida. Mas, no fundo, é necessário que muitas escolas de arquitectura se esqueçam da formação disciplinar e específica da arquitectura. M Gostas deste sapato porque entendes que há um esforço subjacente: por ser cómodo, por não ter decoração ou por tê-la. Um sapateiro também pensa em fazer um sapato exemplar, o mais ligeiro que consiga, o mais cómodo, mas não o explica a todo o mundo, constatas. Como caracterizariam a arquitectura espanhola? T A arquitectura espanhola move-se. Eu penso que, por conseguir uma coisa muito boa, por questões aleatórias, questões importantes como uma lei que obriga a que toda a obra pública se faça por concurso, a arquitectura espanhola vive um saudável momento de vida. Algo que não tem a ver propriamente com a arquitectura, mas que catalisou uma forma de trabalhar que se produz num extracto muito grande de gente; dos quarenta, quarenta e cinco anos para baixo, todos conseguem os trabalhos via concurso. É uma forma democrática de conseguir trabalho, uma forma competitiva mas também divertida de expor a ideia, de confrontar o trabalho, de confrontar as sucessões, e isso é bom.


Mas há outras coisas a considerar, dois dados: primeiro, a Espanha é o país onde mais concursos se faz no mundo; segundo, a Espanha é o país onde mais revistas de arquitectura há no mundo. Isto influencia a arquitectura espanhola quer nos seus defeitos quer nas suas virtudes. Cada vez se erguem mais vozes que afirmam que a arquitectura se encontra num impasse, necessitando de definir novos caminhos. Souto Moura, por exemplo, afirmou que ‘Estamos numa fase em que o passado já não chega e o futuro não chegou‘. Que questões principais se apresentam hoje aos arquitectos? T Eu acredito numa coisa engraçada. Durante muitos anos, os arquitectos estavam obcecados por como e por que parte do passado queriam conservar: este é um edifício renascentista, há que conservá-lo como edifício renascentista; este é um edifício moderno dos anos trinta de alta qualidade, há que conservá-lo como edifício dos anos trinta; isto é uma peça pré-histórica, há que conservá-la. Então, sobre essa obsessão, sobre que e como conservar o passado, gostaria de contrapor com o seguinte, ‘que tipo de arquitectura, e que passado, queremos para o que nos sobra do futuro?’ Parece-me que este pensamento deveria estar na base da arquitectura; a arquitectura requer uma certa dignidade. Por um lado, há um pensamento sofisticado, intelectual; por outro, há muito trabalho. E a todas estas vozes que dizem que estamos num impasse, eu responderia ‘Não estarão vocês num impasse? Será que já não sabem o que fazer com a arquitectura do passado?’ Eu penso que essa frase é um pouco pessimista, há que pensar que o futuro é muito atractivo, sempre melhor do que o passado. M Emilio disse que havia essa obsessão, ‘que parte do passado queremos conservar?’ Melhor ainda será

perguntar, ‘que parte do futuro queremos conservar?’ T Isso é uma escolha muito importante. Que parte do futuro queremos conservar, ou que parte do futuro queremos que, os que nos sucedem, conservem. Eu penso que há muitas coisas que não nos interessam e que não nos vão interessar. Mas de qualquer maneira, parece-me muito triste haver quem diga que o passado era melhor. Eu acredito que o futuro é mais excitante. Mas isso implica uma negação do passado? T Não. Não estamos a pôr em causa o passado que quisemos conservar, ou como o queríamos conservar; estamos sempre a pensar em relação à arquitectura que se produz, e que produzimos, enquanto colectivo de arquitectos do mundo. M O das ilusões. Por um mundo melhor, de optimismo, por uma sociedade mais justa. Essa é a parte que há a conservar. O passado é nada. *arquitecta estagiária, licenciada pelo DARQ. **aluno do 6º ano do DARQ.

‘Têm ainda tempo, ou arranjam ainda tempo, entre as actividades docentes, para parar o atelier uma vez por mês, de modo a dedicarem um dia à produção de um boletim de reflexão arquitectónica – CIRCO – que fazem depois circular por entre os arquitectos amigos. Não é despicienda esta constatação já que releva de uma generosidade e de uma entrega pouco comuns nos céleres tempos de hoje, tempos que outras gerações tendem a ler/ver como retratos impensados de feroz individualismo, já que teriam perdido hábitos e maneiras mais compartilhados de viver a profissão.’ Manuel Graça Dias, in J.A nº199.


(em cima) capa Circo nยบ60, 1999; (ao meio) Graham Metson, Renacer, 1969

[marรงo 2004] 46.47


A arquitectura é um conjunto de ideias nebulosas, anteriores à própria presença da necessidade ou do lugar, que tomam forma, isso sim, reagindo ao irromper contra os contornos da vida, contra as dificuldades do lugar e as obsessões dos clientes. Esse é o momento definitivo, tanto da crítica como da arquitectura: o momento em que as coisas tomam uma forma. Portanto, o lugar central da arquitectura, sobrevoa o concreto e pertence, necessariamente, ao domínio do abstracto. Ora bem, como é que as coisas se tornam forma?... Trata-se, sobretudo, de um processo de decomposição das partes que continua numa recomposição hipotética das mesmas. Isto quer dizer que os projectos são como um pedaço de vida, e que, na sua confrontação com a realidade, chocam contra os seus próprios contornos. Como ‘o jardim de veredas que se bifurcam’, os distintos aspectos do projecto prendem-se a ele e desenvolvem-se com independência. (Um projecto nunca é devedor de uma só ideia, pois só se pode partilhar o que não está ocupado pela omnipresença das ideias; na realidade, só é habitável o espaço entre elas). Neste processo de formação, cada um toma, pois, o seu caminho: a estrutura adquire um carácter específico, o plano, por exemplo. A planta começa a desenhar-se a partir de uma ‘estrela votiva’, os materiais começam a focalizar-se a partir da lembrança de um brasão gravado num tijolo romano. Ou qualquer outra coisa. Isso não importa. O que de facto importa é a passagem entre as coisas e as ideias. Uma passagem contínua das ideias que aparentam formas, às formas que sugerem ideias. Quando os caminhos avançam, o projecto chega ao seu ‘ponto de crise’, um ponto em que o que está feito interessa tanto como o que está por descobrir; de certo modo, a partir desse momento, há algo pré-determinado. E o projecto começa a alimentar-se das próprias exigências e necessidades. É o tempo em que o que o vivido com independência, deve aproximar-se. Como a ‘visão estrábica’, que não vê uma figura mas sim duas, o projecto deve distanciar-se para que as coisas se foquem. Encontrar o ponto exacto onde as figuras têm um único perfil, uma forma de expressão em que, apesar de estarem presentes, de algum modo desaparecem. Projectar é ocultar o próprio, ‘tornar invisíveis as ideias’, para dar espaço ao resto. É um processo de respiração, de ida e volta, de expansão; logo chega o momento de simplificar e intensificar. E a forma torna-se então destino, uma vez que se decide a resolução particular dos possíveis. E deste modo, um projecto converte-se, antes de tudo, na sua forma de expressão. Perante a noção de verdade das coisas, estas pensam-se separadamente, desde o princípio, com todas as suas

roupagens. Mas, uma vez que desapareceram as verdades, onde reside a coerência deste processo?... Somente na integridade pessoal. O cepticismo sobre a ‘verdade maior’, própria de um aficcionado, desenha um espaço para a ‘razão menor’, um lugar onde convivem o entusiasmo pelas ideias com a consciência da contingência das mesmas: nada há de contraditório nisso. É uma questão de escolha, mais do que de normas. Por isso não nos interessa falar de temas, senão de ‘acordos’ e ‘desacordos’ entre as coisas. Parece que, assim, deixamos um espaço para quem caminha entre o construído. Um espaço que pode repercurtir algo comum a todos os homens acima do seu lugar e do seu tempo, aquilo que consideramos mais humano: sentirmo-nos, simultaneamente, iguais e distintos. E essa essencial homogeneidade da espécie, que se trava, como uma intriga, com a multiplicidade de cada qual, parece-nos um espelho onde o humano se reconhece, um vínculo que aproxima os homens, que lhes permite dilatar o seu próprio ser para aproximá-lo dos outros. Uma presença do homogéneo, que deixa lugar para o particular. O seu interesse pelo diferente gera uma forma reflexiva de compreensão da própria cultura. E o seu esforço por ser, tenta tornar visível, ao tempo, a igualdade e diversidade do espaço, como rumor pessoal da simpatia humana. A arquitectura encarrega-se de, num determinado momento, tornar presente a infinita ordem do possível, para depois nos mostrar a sua distância ao sentimento que nos descobre o sistema da vida. Deste ponto de vista, CIRCO não se diferencia de outro projecto qualquer. O esforço está em encontrar a forma como as coisas vêm expressas: é o mesmo que falar de tamanho, de textura, de ordem, da sua independência, do seu carácter final, é o mesmo que estudar a estrutura, a textura, a luz, o espaço ou o lugar de um projecto qualquer. A arquitectura, como a natureza, esconde-se no caminho entre as ideias e o modo como estas se expressam. CIRCO é uma ‘conversa em voz baixa’, um espaço para a ‘razão menor’. E fazer arquitectura, tem também algo disso, mais de voz baixa do que de silêncio, porque as ideias estão presentes, mas o verdadeiro esforço é torná-las invisíveis. *arquitectos, coordenadores da revista Circo. + Publicado originalmente na Circo nº60 (Circo M. R. T. coop, Madrid, 1999). Publicado na NU por indicação e permissão de Luis M. Mansilla e Emilio Tuñon. Tradução livre por João Lopes, aluno do 6º ano do DARQ.






1. Entre a cidade e a universidade Em cima do joelho é a revista da editorial do Departamento de Arquitectura da FCTUC que trata o quotidiano da arquitectura no mundo académico da universidade e no espaço urbano de Coimbra. É um quotidiano difícil de uma disciplina que tem estado ausente da Alta e da Baixa. Neste sentido, assume-se, desde o primeiro momento, como uma revista de intervenção, uma espécie de plataforma de debate que regista criticamente as polémicas e provoca moderadamente os consensos. Ecdj aparece, então, como ‘uma password para a arquitectura em debate’** fugindo aos modelos, por um lado, das revistas de arquitectura e, por outro lado, das revistas académicas. Procurando eventualmente o lugar da arquitectura na universidade. Este é um lugar híbrido entre as ciências e as humanidades, entre a história e a teoria, entre a engenharia e a arte, passando pela antropologia, pela geografia, pela matemática, pela física ou pelo cinema. A ecdj, tal como a arquitectura, atravessa o vasto campo do conhecimento tentando, nos diversos projectos, evidenciar a sua pertinência eminentemente ‘pública’. A cidade de Coimbra é o território de investigação do curso de Arquitectura pretendendo-se, a partir desta realidade, problematizar as questões relevantes ao ensino da arquitectura. A revista ecdj tem vindo a devolver à cidade a reflexão que o curso lhe dedica quotidianamente, expondo a capacidade que a arquitectura tem de transformar e de propor sobre um tecido urbano muitas vezes obsoleto e muitas vezes, também, com dificuldade em aproveitar a sua capacidade de renovação. Deste modo, alimenta-se uma cidade em transformação, com a capacidade de gerar urbanidade. 2. De dentro para fora Em Outubro de 1999, sob a iniciativa de Jorge Figueira e José António Bandeirinha, publica-se o primeiro número da revista ecdj reforçando, com uma publicação periódica, o recém criado serviço editorial do Departamento de Arquitectura. Desde então a ecdj, com a sua estrutura flexível, tem vindo a

[março 2004] 52.53


equilibrar o tom mais académico da série Debaixo de Telha, espaço de publicação de trabalhos académicos. Criada como uma alternativa necessária, a revista tornou-se numa espécie de projecto de arquitectura, olhando, registando, experimentando e propondo. Ao longo dos últimos cinco anos, a ecdj tem aproveitado oportunidades que lhe permitam pôr em evidência algumas das questões em discussão na Escola de Coimbra, diagnosticando os debates visíveis, ou provocando debates invisíveis. Nestes debates têm participado uma grande diversidade de colaboradores vinculados a diferentes ‘escolas’ e de diferentes nacionalidades, representando uma aposta na troca de experiências e na potencialidade evidente de uma discussão heterogénea. A partir do Colégio das Artes dialoga-se com os estudantes, com os estudiosos, com os arquitectos e com os curiosos, discutindo a universalidade através da localidade. 3. De Távora à Sofia Tal como um joelho, articulam-se temas diversos, por vezes desconexos, na consciência de que o caminho se faz somando quilómetros e experiências, isto é, caminhando: ecdj1. A ‘Polémica do Freixo’ é o tema de estreia, aproveitando a polémica gerada à volta da proposta de Fernando Távora, na requalificação do Palácio do Freixo, para discutir o estado da modernidade e o sentido das suas propostas na intervenção sobre o património construído através de diversas participações e opiniões, como a de Manuel Mendes ou de João Paulo Rapagão. A presença de Távora no curso de Coimbra cria a obrigação de pensar sobre a inteligência e a convicção das suas propostas. ecdj2. No segundo número, celebra-se, reflectindo os dez verdes anos da eventual escola de Coimbra, ainda no arranque da sua construção. ‘Construir uma escola’ procura as preocupações evidenciadas ao longo de dez anos de ensino no Colégio das Artes, relançando objectivos e, por que não dizê-lo,


construindo a sua identidade. Neste momento, pareceu também importante abrir à cidade e à universidade o debate interno que tem como palco os ‘Encontros de Tomar’, sendo o II Encontro publicado na ecdj2**. Paulo Mendes da Rocha encerrou os Encontros e fechou a revista. ecdj3. ‘Novos mapas para velhas cidades’ lança a prévia discussão sobre a cidade de Coimbra fazendo uma espécie de ponto de situação. É um dossier sobre a história urbana da cidade, ponto de partida para uma reflexão sobre os limites da cidade. A abordagem contou também com a participação do geógrafo Álvaro Domingues e com os projectos urbanos de Manuel Fernandes de Sá, Manuel Graça Dias e António Belém Lima. ecdj4. Em ‘Coimbra: um novo mapa’, a ecdj cria, sob a forma de um workshop, um laboratório de projecto a partir do desafio lançado por Alexandre Alves Costa de desenhar um novo mapa lançado a seis arquitectos convidados, entre os quais os espanhóis Manuel Solá-Morales e Manuel Gallego, e a sessenta estudantes ou recém-licenciados de arquitectura. É o contributo dado ao debate alargado a toda a cidade que o ‘Congresso pela Cidade’ propôs sob o mote da democracia participativa. A abrir a revista, Álvaro Siza, também convidado no workshop, fala da sua relação com Coimbra e dos seus trabalhos para diferentes cidades. ecdj5. Num momento de confronto com o sistema universitário deparamo-nos com a pergunta ‘investigação em arquitectura?’. Na incerteza da resposta, os arquitectos procuram desbravar um caminho que aparentemente não é o seu, investigando como quem projecta, na certeza de que não é mais possível projectar sem investigar. É o número mais próximo do modelo académico onde, ao lado de Georges Teyssot, se desafia diversos jovens arquitectos a apresentar as suas investigações. Na oportunidade da Capital Nacional da Cultura, Coimbra 2003, a ecdj publica dois eventos desenvolvidos no Centro de Estudos de Arquitectura da FCTUC: o Seminário de desenho urbano: ‘Inserções’ e o Concurso de Ideias para a Rua da Sofia. Tal como no ‘Coimbra: um novo mapa’, entende-se que a discussão sobre a cidade é mais produtiva quando parte de projectos.

[março 2004] 54.55


ecdj6.7. ‘Inserções’ aproveita a possibilidade de construção de uma infraestrutura, o metro ligeiro de superfície, para repensar toda a cidade de Coimbra, ‘estabelecendo uma tensão positiva com a cidade existente, eventualmente consolidando centralidades novas ou históricas’. Assim, convidaram-se 10 arquitectos oriundos de diversos contextos, entre os quais a dupla madrilena Mansilla e Tuñón, a equipa brasileira MMBB ou Eduardo Souto Moura, para projectar diferentes áreas urbanas de Coimbra. ecdj8. ‘Rua da Sofia’, ainda em preparação, publica os projectos apresentados no ‘Concurso de ideias para a rua da Sofia’, sobre espaço público de suporte da universidade quinhentista, hoje abandonado ou mal tratado. É um momento decisivo para discutir se a cidade quer dar sentido à sua história integrando-a na contemporaneidade como geradora de oportunidades ou se, simplesmente, a quer ignorar. Os projectos premiados de Pedro Bandeira (1º), Eduard Bru (2º) e Walter Rossa (3º) oferecem à cidade três diferentes perspectivas de abordar a reabilitação deste complexo espaço urbano. 4. Palavras, desenhos e imagens sobre um joelho O projecto gráfico é também entendido como um projecto de arquitectura onde se procura valorizar os conteúdos sem descurar o objecto. Criando cumplicidades com as linguagens contemporâneas preserva-se uma certa severidade através do uso crítico das tecnologias e das metodologias gráficas. A produção deste objecto reflecte a especificidade do tema em debate explorando a capacidade imagética das palavras e dos desenhos. Assim, a partir de algumas invariantes, desenvolve-se o ambiente do debate proposto. Desenhada por um arquitecto***, a ecdj não hesita em manipular textos e desenhos para enfatizar ou propor ideias, ‘cultivando o gosto pelas subversões’. Abrindo todos os números com perspicácia e ironia, António Olaio faz, através dos seus logos, a desejada síntese em cima de um joelho. *arquitecto, professor no DARQ, co-editor da revista ecdj. ** As citações são retiradas dos editoriais da revista ecdj. *** Pedro Ganho e, a partir da ecdj.6.7, Francisco Marta.


LAURA é um desejo adolescente. E, a partir da ansiedade desse desejo reivindica tudo a que, ‘naturalmente’, tem direito: a pertinência da voz, vacilantemente determinada; a entrada, ligeiramente desconfiada, no enclave ‘maduro’ do olhar crítico; a esperança fantasiosa – ou fantástica – de interferência na esfera cultural, com a vontade subliminar de a des-geometrizar. LAURA é um protótipo espontâneo que se sonha convertida em protótipo do instantâneo, da experiência, para ser, ‘popmente’, actual. LAURA quer-se assim, ambiguamente doce na aparência, mas desconcertante na traição das convicções de quem, à distância ou desde o seu interior, a olhe como coisa já codificada. LAURA quer ser, nesse sentido, um composto a-estratégico. Construída como topografia descomplexadamente heterogénea, formula-se como ser visitado por escalas de discurso variáveis, por profundidades de significado contraditórias, por temporalidades fictícias. LAURA quer insinuar-se como agente inventivo na busca imaginária do mapa da ‘ordem’ civilizacional; não quer, portanto, ‘produzir’ cultura, mas colocá-la sob ameaça, problematizá-la e, finalmente, desenraizá-la da sua estrutura controladamente ‘realista’. Pretende com isso sublevar a ficção, incentivar o sonho, defender a desobediência ao ‘ajustar’ de cânones. Interessará, então, conceber a LAURA através das fronteiras invisíveis que definem o contacto dos seus componentes, pelo que, não tentará nunca apresentar vestígios de sutura; incapaz de se reconhecer em qualquer matriz identitária, poderá existir apenas como presença de contornos variáveis, perceptíveis desde a equidistância que terá de manter entre matéria e artifício, memória e acontecimento. arquitecto, professor no DAAUM, elemento do corpo editorial da revista LAURA. Nota: Laura é uma publicação periódica do Departamento Autónomo de Arquitectura da Universidade do Minho de que foi editado o número zero em Novembro de 2003.

imagem: fotomontagem a partir de cartazes de Miguel Duarte, com base no lettering e concepção gráfica da revista por Patrícia Cativo.


[marรงo 2004] 56.57


[marรงo 2004] 58.59


Como é que se despe um corpo? Não precipites a resposta, não lances já as mãos inquietas sobre a roupa. Demora-te. Começa pelo princípio. Pergunta primeiro: o que é despir um corpo? Libertá-lo do que lhe pesa. Do que o esconde. Expô-lo. Mas principalmente: procurar entender. Ler. Para além da superfície. Começar com a nudez. De qualquer modo, é sempre assim que se começa. Com o mundo a exercer pressão sobre a pele. Lembrando que viemos apenas ocupar mais uma porção de vazio. Mas. Os vazios não passam de pontos de partida. Sonhar é decretá-lo. É afirmar que há algo que falta. Foi por aí que começou a NU. A nudez não se escreve. Mas quisemos tentar. A ingenuidade faz parte do jogo: as melhores palavras são sempre as que parecem inúteis, as que insistem no impossível. Porque são escritas contra o bom senso, querem ir além do aconselhável. Sabem que dificilmente serão verdadeiramente novas e que jamais conseguirão entender o todo. Esta última frase, obviamente, deverá ser apagada da memória após a sua leitura. O que interessa é esta falsa inocência. A NU é uma revista pretensiosa. Colocou a fasquia demasiado alta, teve a insolência de quem não podia perder. Quis ser mais do que seria de esperar de uma revista de estudantes, transbordar desde o início os limites da Escola, da pouca idade, pensar sem dispensar o atrevimento. Quis aprender onde outros têm a pretensão de ensinar. A NU quis fazer Escola. O que não significa escrever a Escola. Tal como construir o corpo não significa desenhar o umbigo. Fazer Escola é construir pelo menos mais dez centímetros de mundo com estes instrumentos que nos colocaram nas mãos. Tal como construir o corpo é relacioná-lo com o que o envolve. A NU é um corpo. Qualquer corpo é uma construção lenta. As dores de crescimento foram várias. Como em qualquer projecto amoral, há uma moral da história: não aceitar cegamente a moral dos outros, construir a própria. Em Coimbra, no meio de uma cidade e de uma universidade cansadas de tanto suportarem o peso da história e das tradições, a NU rasgou um caminho. Teve a sorte de surgir numa Escola que ainda hoje se inventa, sem o lastro de uma marca registada, de doutrinas ou pensamentos mais ou menos únicos. Procurar a máxima pluralidade era a única via disponível. Nos temas, nas abordagens, nas colaborações. Nomes, rostos, palavras, ideias. Diferentes. A NU foi construída sem piloto automático. Obrigou-se a pensar em cada metro percorrido. O caminho teve

então de ser escolhido, arriscado. É difícil classificá-la porque a NU é propositadamente vaga no posicionamento. É demasiado irrequieta para ter um ponto de vista. A NU teve sempre uma tendência canibal, tentando devorar com critério mas sem cerimónias o que de mais marginal a arquitectura ia exibindo. Não procurando as unanimidades mas os fragmentos, a miríade de ideias e opiniões. Antes o confronto do que a anestesia. A NU quis apenas ser um olhar diferente. É nesse caleidoscópio de vontades e insanidades que se vão descobrindo os espaços em branco, a preencher. O espírito NU é esse: cobrir de palavras o corpo, tatuá-lo com as verdades do momento. Começar na margem, no limite, para ir conhecendo a essência. Desviar do caminho óbvio em direcção ao que nos escapa na distracção dos dias, arriscando a miragem, o engano. A arquitectura nos lugares mais (in)suspeitos. Porque A arquitectura é: entediante. Quando se imobiliza deslumbrada com o seu reflexo. A arquitectura é demasiado lenta para que a pensemos devagar. A arquitectura é: apaixonante. Quando se deixa infectar, subverter. A arquitectura vive dessa promiscuidade com o mundo. O resto é construção. A NU procura a subjectividade porque em arquitectura só ela é objectivamente útil. Importa menos afirmar do que interrogar. Importa discutir, mais do que descrever. A diversidade é o único meio de tentar tocar em todas as feridas, de chamar a dor que chama a atenção que chama o pensamento. Pensar a arquitectura é abandonar a pretensão de alcançar a verdade. O que importa é deixarmos as impressões digitais no papel, a sujidade dos dedos transferindo-se para a folha quase branca, admitindo que o que é real não pode ser puro. Não pode ser verdadeiro. A verdade não passa de uma bola de espelhos. O que a NU tenta fazer é escrever alguns dos seus reflexos. A responsabilidade acaba aí. Só fornecemos o sal. Cada um lança-o depois onde quiser. Na boca ou nas chagas. Nudez. Revelar aos olhos e às mãos o que se esconde por detrás do artifício. Por detrás das roupas, das palavras. Por detrás do enfeite, do ilusório. Iludir um pouco mais, iludir diferente. Quebrar barreiras, anular a distância de segurança. Resistir a desviar o olhar, a cobrir a nudez onde ela nos fere. *arquitecto estagiário, licenciado pelo DARQ, primeiro director da NU (#01 a #09)



A revista on line Homeless Mona Lisa foi criada no seio do Grupo de Investigação Arte e Arquitectura do Centro de Estudos do Departamento de Arquitectura da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra (FCTUC). Encarámos a presença de artistas plásticos como eu, o Pedro Pousada e o Sebastião Resende no corpo docente de um curso de arquitectura, como uma oportunidade para potenciar uma reflexão sobre as relações entre as artes plásticas e a arquitectura. E encontrámos a melhor forma de investigar estas relações fazendo arte e criando situações para que ela aconteça. Assim, criámos uma revista na net coordenada por mim, pelo Pedro Pousada e pelo arquitecto Jorge Figueira, sempre dado a estes desafios. Para além das preciosas colaborações dos nossos colegas arquitectos, ficámos surpreendidos pela resposta de imensos artistas que nela colaboraram com obras inéditas. O tema que lhes propusemos foi a ideia de camuflagem, tema óptimo para começar. Na relação entre o indivíduo e o espaço, evidente denominador comum entre as artes plásticas e a arquitectura, a ideia de camuflagem foi um excelente ponto de partida. A camuflagem implica uma fusão, a indistinção entre o indivíduo e o seu espaço. Como a arte não trata as coisas como entidades descontínuas, mas sim das suas relações, a ideia de

[março 2004] 60.61

camuflagem resulta numa óptima síntese da relação entre as manifestações artísticas e a realidade, ou, melhor, da arte como imagem da realidade. Tanto a arte como a arquitectura tratam da relação entre o(s) indivíduo(s) e o(s) espaço(s). A arquitectura, numa relação entre arte e utilidade, opera fisicamente no espaço, no sentido em que, nascendo de uma relação estética com a realidade, interpreta-a e transforma-a. As artes plásticas fazem corresponder a uma relação estética com a realidade a criação de imagens que traduzem essa relação. Quaisquer que sejam os meios utilizados, o resultado de uma obra de arte é sempre uma imagem. Já o senhor D dizia que o espectador faz a obra. O que, por outras palavras, pode querer dizer que fazer arte é imaginar, fazer arte é tornar imagem. A arquitectura, enquanto arte útil, enquanto experiência estética neste paradoxo de ser arte e ser útil, opera fisicamente na realidade, onde a funcionalidade, sendo condicionante é, ao mesmo tempo, motivação. As artes plásticas, não tendo de operar na utilidade, ficam libertas para fazer coincidir o deleite da especulação filosófica com a pura plasticidade, o que também pode ser deliciosamente paradoxal. A plasticidade enquanto o que trata dos significantes e não propriamente dos significados, não poderia ser uma forma de filosofia, na perspectiva da racionalidade. Mas racionalidade e razão não são a mesma coisa, e a inteligência, se encarada no sentido mais pleno, não pode


deixar de incluir a ambiguidade. E não há nada mais ambíguo do que a realidade. Na história de arte temos exemplos de uma procura da plasticidade no primitivismo (basta pensar na relação entre o cubismo e a arte primitiva africana, ou mesmo no Gauguin). Esta procura do primitivo para uma relação com a realidade, limpa dos constrangimentos da racionalidade, foi uma estratégia frequente na procura de uma percepção limpa de preconceitos, ou seja, na procura de uma percepção em que as coisas ganham um sentido renovado, na recuperação das suas valências significantes. Mas a plasticidade também pode ser atingida além da racionalidade e não aquém dela. E também não faz sentido procurar a plasticidade exclusivamente na pura visualidade das formas, mas também na consciência da potencialidade plástica do jogo das ideias. Ao contrário do que as ciências procuram, a arte não busca o conhecimento claro e operativo. A arte não procura domar a complexidade da realidade, pelo contrário, trabalhando a relação entre as coisas, exponencia essa complexidade... Como manifestação do pensamento complexo, a arte ecoa a realidade no campo informe da possibilidade. Em arte, verdadeiro e falso não fazem parte do seu vocabulário, nem A pode ser o contrário de B. A é tudo o que A evoca e B é tudo o que B evoca. E, no limite, A evoca B e B evoca A.

E numa obra de arte pode acontecer a coisa fantástica de traduzir uma ideia una e, ao mesmo tempo, a pura possibilidade. Em Duchamp, a coexistência da maximização das relações entre as coisas e da unidade simbólica é um exemplo eloquente. Em Duchamp, a evocação da imagem simbólica de Adão e Eva coexiste com a potencialização do interminável campo de possibilidades das relações entre coisas banais. E fá-lo como se a banalidade de cada momento fosse contemporânea da ideia de origem. Aqui, a ideia de sucessão temporal perde o sentido. Recentemente, numa reunião no Departamento de Arquitectura o arquitecto Alexandre Alves Costa mostrava alguma perplexidade na presença de disciplinas de História de Arquitectura nos cursos de Arquitectura, de História de Arte nos cursos de Artes Plásticas, o mesmo acontecendo nos de Literatura, de Música, ou seja, em todos os cursos artísticos, enquanto que nos cursos encarados como científicos o correspondente não acontece. Num curso de Física pode ser perfeitamente dispensável uma disciplina de História da Física. De facto, provavelmente os cursos artísticos não podem deixar de ter disciplinas de História por uma razão paradoxal: a arte não tem história. Ou, melhor, a História de Arte não faz sentido enquanto acontecimentos em sucessão evolutiva. Faz sentido estudar História de Arte porque as


questões essenciais da arte, e todas as manifestações da arte, são sempre contemporâneas. A arte não acontece na procura da pura operatividade das significações, e não se rege pela lógica evolutiva do conhecimento científico. Porque o objecto da arte é outro, tão indefinido e abrangente quanto a ideia de indivíduo, ou possivelmente, será mesmo o que consiste ser um indivíduo: é a imprecisão dos contornos da individualidade que a ocupa. E, pela arte, a ideia de indivíduo define-se ao indefinir-se, ou seja, o indivíduo revela-se como complexidade de relações. Duchamp, ao surgir numa foto como Adão, não procurava talvez, representar o símbolo de uma unidade original, possivelmente manifestava algo que pertencia à sua condição na contemporaneidade, na indiferenciação das subjectividades. Se cada indivíduo é definido pelo jogo das suas relações, no limite todos os indivíduos poderão ser uma coisa só, porque, no limite, serão tudo. E, assim, a Homeless Mona Lisa não tem casa porque não precisa. Enquanto revista on line, a Homeless Mona Lisa estava muito bem nessa condição. Não há nada mais imaterial que a net. Mas brevemente, a imaterialidade do seu espaço manifestar-se-á de outras formas. Da colaboração do Círculo de Artes Plásticas de

[março 2004] 62.63

Coimbra com o Departamento de Arquitectura da FCTUC, surgirá em papel outra revista com o mesmo nome. E a sua condição de homeless será também traduzida pela diluição de fronteiras com colaboradores em vários países. Numa condição em que Coimbra terá uma centralidade centrífuga, e, ao mesmo tempo, centrípeta. E será uma revista de e sobre artistas (artistas plásticos, ou arquitectos, ou ...), de e sobre arte. Assumindo-se como Arty Art(e) Magazine, será uma revista de arte, artística, na relação entre a reflexão sobre arte e o fazer arte. Despudoradamente plástica, no sentido em que procurará produzir novas situações significantes, mais do que simplesmente dar conta do que acontece. Despudoradamente lúdica e não há nada mais lúdico do que a forma como a arte procura o conhecimento. E não tenham pena desta rapariga que pode ser homeless vivendo em hotéis de luxo, com as suas malas Louis Vuitton. E, ainda por cima, como não passa de uma personagem (de um filme que o Hitchcock não fez porque não teve tempo) são outros que lhe pagam a conta. *pintor, professor no DARQ, coordenador da revista on line Homeless Mona Lisa.




#01

#02

#03

#04

#05

#06

#07

#08

#09

#10

#11

#12

#13

#14

#15

#16

#17

#18

enviar uma fotocópia deste cupão assinalando as opções pretendidas

ASSINATURA

30€ Portugal, 45€ Espanha, 55€ resto mundo [9 números por ano – inclui portes de envio]

nome: morada: código postal: telefone:

e-mail:

nº contribuinte: cheque nº:

banco:

[importante: o cheque deverá ser passado à ordem de NUDA - AAC]

assinatura: enviar para:

números disponíveis: #02

#03

#08

[#1,#4,#5,#6,#7,#10 esgotados] [assinalar número(s) pretendido(s)] [enviar pedido por carta, fax ou e-mail] #09

#11

#12

#13

#14

#15

#16

[preço: 2,5€ até ao #09 (inclusivé), 3€ nos restantes (não inclui portes de envio)]

[ março 2004 ] 66.67

#17

#18

revista NU Departamento de Arquitectura Universidade de Coimbra Colégio das Artes – Largo D. Dinis 3000 Coimbra


ALGARVE Livrarias Bertrand AVEIRO Byblos.arte@net Livraria Bertrand BRAGA Livraria 100ª Página Livrarias Bertrand COIMBRA DARQ Livraria 115

Livraria do Castelo Editora Livraria Quarteto Livrarias Bertrand TAGV XM ÉVORA Livraria Barata FUNCHAL Livraria Bertrand VIANA DO CASTELO Livraria Bertrand

LEIRIA Livraria Bertrand GUIMARÃES Livraria do DAAUM Livraria Bertrand LISBOA Librus - U. Lusíada Livraria A+A Livraria Barata - Av. de Roma Livraria Bisturi Livraria Buchholz Livrarias Bertrand

PORTO Livrarias Bertrand Livraria Leitura Livraria Nova Fronteira Livraria Pretexto Livraria Artes em Partes Livraria da AEFAUP Livraria da Fundação de Serralves FNAC's VISEU Pretexto

DIRECTOR Bruno Gil EDITOR A. Joana Couceiro REDACÇÃO A. Joana Couceiro, Ana Fonseca, António Correia, Carina Silva, Carolina Santos, Daniel Beirão, Inês Dantas, Joana Alves, João Crisóstomo, Mário Carvalhal, Pedro Baía, Rui Aristides, Vera Pinto COLABORADORES Adela Garcia-Herrera, António Olaio, Cynthia Davidson, Diogo Seixas Lopes, Emilio Tuñon, Francesco Dal Co, Francisco Ferreira, Gonçalo Canto Moniz, Jacques Gubler, Joaquim Moreno, Jorge Figueira, Luis Mansilla, Luis Mariño, Manuel Graça Dias, Nuno Grande, Pedro Bandeira, Pedro Jordão, Susana Faria TRADUÇÃO A. Joana Couceiro, Gonçalo Azevedo, João Lopes, Marta Pedro, Pedro Baía, Pedro Jordão, Susana Faria REVISÃO A. Joana Couceiro, Bruno Gil, Inês Dantas, Pedro Baía GRAFISMO A. Joana Couceiro, António Correia EDIÇÃO GRÁFICA António Correia DISTRIBUIÇÃO XM IMPRESSÃO Imprensa de Coimbra, Limitada TIRAGEM 500 exemplares DEPÓSITO LEGAL 178647/02 ISSN 1645-3891

PROPRIEDADE NUDA/AAC – Núcleo de Estudantes de Arquitectura CONTACTOS NU . Departamento de Arquitectura . Faculdade de Ciências e Tecnologia . Universidade de Coimbra . Colégio das Artes – Largo D. Dinis . 3000 Coimbra . tel [ darq ]: 239 851 350 . fax [ darq ]: 239 829 220 . e-mail: revista_nu@hotmail.com

imagens:

capa/contracapa antónio correia . p 3 antónio correia . p 9 revista sic . p 10_13 capa casabella nº630-31 . p 15 antónio correia . p 17 manuel graça dias . p 18 pedro bandeira . p 28 antónio correia . p 32_35 antónio correia . p 38_45 mansilla+tuñon . p 46 capa circo nº60 graham metson . p 48_51 antónio correia . p 52_55 antónio olaio . p 56_57 miguel duarte patrícia cativo .



Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.