revista nu #35 XXL dezembro 2010
ISSN 1645-3891
XXL
revista nu #35 dezembro 2010
4,5 euros
{editorial} Filipe Madeira aluno do 5º ano do dARQ
Por volta do ano 500 d.C., no deserto Nazca do Peru, um grupo de homens traçou com ferramentas rudimentares ou, quem sabe, os seus próprios pés e mãos, um sulco contínuo no chão. A forma desenhada por essa linha não era perceptível por nenhum desses homens na sua totalidade uma vez que, pelas suas dimensões e pelo carácter pouco acidentado do terreno, não era fisicamente possível estar numa posição perpendicular à figura e suficientemente afastada do terreno. A reflexão sobre o pensamento que levou a esta acção – e a frequência com que o encontramos ao longo da história – leva-nos a pôr a hipótese da existência de um fascínio intemporal pela temática do XXL, do grande. Ou seja, a ideia de que aquilo que em tamanho físico é maior do que nós, talvez por ser dificilmente aprisionável com um único olhar, nos transcende e nos escapa ao controlo. Sendo esta relação em grande parte uma questão perceptiva/espacial, ela é inevitavelmente necessária e recorrente na disciplina da Arquitectura. Mas precisemos os significados da palavra grande: Grande aparenta ser, em primeiro lugar, uma característica física: extenso, comprido, crescido, desenvolvido, numeroso. Chamamos, portanto, grande àquilo que possui uma quantidade efectiva de matéria maior do que um determinado limite. Supondo que esse aumento de matéria implica um aumento de complexidade na sua constituição, este problema torna-se, para nós, particularmente interessante. A definição realça também um carácter de anormalidade: grande é aquilo que tem dimensões mais que ordinárias. Tal como para qualquer medida, o recurso à comparação é inevitável. Assim, a grandeza de uma coisa só é consequente quando posta em relação com uma outra. Surgem os problemas de escala. Apercebemo-nos também que a grandeza de um objecto, neste caso o arquitectónico, não é nunca um fim nem um início, mas antes parte de uma sucessão de intervenções (o paisagismo, o planeamento do território, a ideologia, etc.). 1
Por oposição, pequeno significa: Que
tem pouca extensão ou pouco volume, curto, diminuto, que é de estatura abaixo da média, que é feito em limitada escala, que está na infância, que é pouco importante, pouco quantioso,
No entanto, dá-se ainda um outro valor à palavra. Pela via da solidez, da fiabilidade, mas sobretudo da admiração, mais é naturalmente melhor. Assim, o que é grande também é grave, copioso, intenso, profundo, respeitável, corajoso, poderoso, heróico, magnânimo, magnífico, ilustre, valioso, enfim, bom.1 Aqui se vê reflectida a atracção do homem, por vezes nefasta, pelo aumento como forma de extremismo, seja ele de um objecto ou de uma ideia.
que é de condição humilde, que tem poucos haveres, apoucado, acanhado, mesquinho, miserável.
De resto, este homem era provavelmente o mesmo que há mil e quinhentos anos quis fazer um desenho que não podia ver.
XXL revista nu #35 dezembro 2010
XXL
{editorial}
Filipe Madeira 02
Da Cidade e da Sociedade Mário Carvalhal
06
Medium-Large António Lousa
{entrevista}
10
BIG: Bjarke Ingels Group Maria Barreiros e Joana Alves
{artigo gráfico}
20
Do que é que realmente precisas que ainda não tenhas? Pedro Pousada
24
Exacte Echelle des Contextes Christian Pedelahore
{conversa}
26
Gonçalo Ribeiro Telles Diogo Lopes, Filipe Madeira e Mariana Campos
32
Parque City Life, Milão PROAP Estudos e Projectos de Arquitectura Paisagista
38
Torre do Burgo, Uma questão de escala Diogo Lopes e Inês Morão Dias
{contaminações}
44
Margareth, a propósito do hiper-realismo Diogo Vasconcelos e Vicente Nequinha
{a nu}
edição
48
Repetição
Filipe Madeira, aluno do 5º ano do dARQ 1
Da cidade e da sociedade ou algumas notas sobre planeamento urbano e política
Mário Carvalhal Arquitecto pelo dARQ/FCTUC
0. Urbanismo e esfera pública ”…as primeiras décadas do século XIX marcaram o momento em que a sociedade industrial começou a tomar consciência de si e a colocar as suas conquistas em questão.”1
1
CHOAY, Françoise, L’urbanisme, utopies
et réalités, 1965, p.9 2
HABERMAS, Jürgen, The structural
transformations of the public sphere: an inquiry into a category of bourgeois society, 1991
A emergência, durante o século XIX, da esfera pública2, um espaço de debate social alargado, proporcionou uma dinâmica de reflexão da sociedade civil sobre os problemas sociais e urbanos da sociedade industrial. De facto, a forma congestionada da cidade industrial aparecia como a face desses problemas e, em última análise, a sua transformação aparecia como a forma mais óbvia de intervenção sobre a sociedade. Assim, a reflexão sobre a questão urbana, ora dominada por questões higienistas, ora humanistas, veio constituir o corpo reflexivo sobre o qual se iria montar a disciplina do urbanismo. No entanto, o debate sobre a intervenção urbanística ao longo do séc. XX, nomeadamente no seio dos CIAM, difundiu uma estruturação da prática urbanística como área exclusivamente técnica, afastando a reflexão disciplinar
2
da esfera pública, e reduzindo-lhe o potencial transformador sobre as dinâmicas sociais e culturais. No entanto, podem-se registar algumas experiências onde essa agenda transformadora reemergiu pontualmente.
1. Urbanismo e Revolução A Revolução Russa de 1917 estabeleceu-se como o primeiro pólo de experiências urbanísticas totalmente inovadoras. Aqui, a reflexão sobre a cidade não se limitava à visão higienista ou maquinista da cidade industrial, mas pretendia sim a criação de um novo quadro de vida e de relações urbanas conforme o projecto de sociedade socialista. Existia a convicção de que uma sociedade mais igualitária e sem classes poderia ser estimulada pelo quadro de vida em que se desenvolve a sociedade e que o espaço construído tinha um papel fundamental nessa tentativa de mudança social. O conceito de condensador social emerge neste contexto, tendo como objectivo a transformação do cidadão individualista, próprio da cultura capitalista, num cidadão responsável e altruísta, através da criação de espaços colectivos, quebrando as hierarquias sociais e criando espaços de igualdade social. A total reorganização económica, social e espacial do território russo, de escala continental, revelava-se um desafio sem precedentes em termos de escala de intervenção. É neste contexto que a liderança soviética lança o concurso de ideias “Cidade Verde” em 1928, tentando lançar a discussão sobre os modelos urbanos a adoptar. Como resposta, para além de várias propostas seguindo os princípios do urbanismo funcionalista em voga na Europa Central, depararam-se com uma teoria inovadora, o desurbanismo: tentando quebrar as contradições entre cidade e campo, e indústria e agricultura, tal como tinha sido preconizado por Marx, os desurbanistas propunham uma noção radical de planeamento disperso.
Moisei Ginzburg e Mikhail Barsch, Projecto para o concurso “Cidade Verde”, 1930
Tomando a forma tradicional da cidade industrial como materialização da desigualdade e exploração promovida pelo capitalismo, a abolição do capitalismo seria indissociável da abolição das formas tradicionais de cidade. Assim, seria necessário criar uma nova estrutura urbana para esta nova estrutura social: em vez de desenhar novas urbes ou expandir as antigas, a forma de resposta ao congestionamento urbano passaria por suprimir as cidades, repartindo a população urbana por uma vasta superfície do território, e disseminando-a numa extensa paisagem infraestruturada através da União Soviética, então rural. As plantas desurbanistas apresentavam-se então na forma de fitas interligadas, dedicadas à indústria, agricultura ou equipamentos culturais. Aplicando o conceito de condensador social à escala total do território, o desurbanismo defendia um tipo de planeamento democrático, no qual as redes infraestruturais de indústria, transporte e electricidade seriam colectivas e fornecidas pelo Estado. A propriedade seria eliminada, e os habitantes poderiam escolher em que pontos da rede se instalar.
OSA, Tovarechteskaia Kommuna (variantes do módulo habitacional). 1930
Na aproximação à pequena escala, estes projectos apostavam na construção de habitação modular pré-fabricada, fácil de montar e desmontar, que seria providenciada pelo Estado aos cidadãos e que permitiria a anexação de mais módulos na construção de unidades de habitação e de equipamentos comunitários. 3
Medium-Large Je prends Venise pour mon témoin1
António Portovedo Lousa Arquitecto, docente no dARQ
1. O conceito arquitectónico de megaestrutura, consolidado por Reyner Banham no seu livro ‘Megastructure. Urban Futures of the recent past’, publicado em Londres em 1976, revelava que a sombra do Plano Obus para Argel de Le Corbusier, cuja última versão havia sido apresentada em 1939, se estendia por várias décadas enquanto proposta de cidade-objecto, povoando o imaginário de sucessivas gerações de arquitectos que, de forma mais ou menos lúcida, sentiam escorrer-lhes por entre os dedos da mão a possibilidade de propor a cidade ideal, ou seja, a cidade ‘desenhável’. A nostalgia do desenho total e redentor, num esforço de procura de uma autoridade disciplinar específica, que o sistema social surgido após a 2ª Guerra Mundial se vinha encarregando de diluir, encontrou dois momentos de concretização da utopia modernista urbana, Chandigard (1951) e Brasília (1957), que constituíram, simultaneamente, um momento exaltante de concretização da cidade dos objectos moderna, bem como o seu canto do cisne.
1
Afirmação de Le Corbusier na memória
justificativa do projecto para a Ville Radieuse, 1935, exemplificando a cidade histórica de Veneza enquanto ‘mecanismo urbano perfeito’. Imagem: Projecto para o Hospital de Veneza, Le Corbusier, 1963 , Alçado Poente, 1ª fase
Pouco mais restava às novas gerações do que retomar a lógica objectual do viaduto habitado, que resolvendo simultaneamente estrutura, infra-estrutura e imagem arquitectónica, proporcionava a hipótese da manifestação da vontade de forma individual, através da formalização diferenciada das células habitacionais, num gesto desenhado com evidentes ambições territoriais. Entre Utopia e Distopia, entre os Metabolistas Japoneses e os Italianos contra-utópicos dos Superstudio e Archizoom, quase duas décadas assistem ao desenrolar de propostas urbanas megalómanas, em formato XXL, onde o predomínio do recurso a soluções de alta tecnologia, como forma de legitimar um discurso urbano totalizador, se transforma no mínimo denominador comum. 6
2. Entretanto, vias alternativas de entender e propor a cidade vinham sendo testadas, desvalorizando a grande escala decorrente do programa urbano radical Moderno, nomeadamente através da recuperação de alguns arquétipos urbanos enquanto elementos válidos de desenho da cidade, no sentido em que a cidade histórica consolidada era reconsiderada como matéria de projecto, a acrescentar às conquistas formais, espaciais e técnicas que, de forma assertiva, o período heróico modernista havia afirmado. Neste contexto, em Setembro de 1963 Le Corbusier é chamado a Veneza, pela administração do Hospital Central da cidade lagunar, para resolver o imbróglio causado pelo concurso para o novo Hospital, realizado em Julho do ano anterior, que havia sido inconclusivo quanto á selecção de uma equipa de projecto. O Hospital, que á época ocupava as instalações da Scuola San Marco, deveria ser transferido para um terreno situado na embocadura do Cannareggio, rematando o quarteirão de San Giobbe, na sequência da demolição dos estaleiros de Macello que libertariam uma área de terreno de aproximadamente 30.000m2, estando prevista, na fase de concurso, uma cércea máxima de 25 metros de altura. Previam-se 1500 camas e exigências absolutamente precisas em relação ao nível de resposta clínica e assistencial pretendido. Após uma demorada visita à cidade, a encomenda é aceite em Março de 1964, resultando numa proposta inicial em Outubro do mesmo ano, que seria apresentada pessoalmente por Le Corbusier em Veneza em Abril de 1965, acompanhado do arquitecto chileno Julián de La Fuente, que viria a assumir o desenvolvimento das fases subsequentes do projecto após o seu falecimento inesperado em Agosto de 1965. A cidade histórica de Veneza representara, para Le Corbusier o argumento legitimador da sua proposta teórica urbana hiperfuncionalista da Ville Radieuse (1935), no sentido em que a infraestrutura de circulação se encontrava resolvida de forma óbvia, sem cruzamentos de nível entre peão e gôndola, bem como pela massa construída quase uniforme que permitia evidenciar os edifícios e espaços urbanos significantes, sem prejuízo de uma leitura global da cidade enquanto objecto. Naturalmente, este discurso aproxima-nos mais da cidade-objecto linear do Plano Obus do que da expansão territorial cartesiana da Ville Radieuse. Independentemente da constatação das contradições aparentes, o Projecto do Hospital de Veneza representa, antes de mais, uma espécie de reconciliação com a história urbana europeia, com o peso específico da sua evolução e consolidação, com a capacidade de leitura sensível e operativa do existente enquanto ‘regra e modelo’ de intervenção contemporânea.
Capa da 1ª edição de Megastructure, 1976
Esta constatação encontra-se explicitada na opção por uma escala intermédia ‘medium-large’, concretizada através da definição de uma cércea constante de 13,66metros,resultante de uma análise aturada da massa construída existente, de uma estruturação espacial resultante da definição de uma célula-base, o quarto hospitalar, que através da sua capacidade agregativa organiza sectores específicos do edifício, proporcionando o desenho de ruas, largos e praças internas que nos remetem para a estrutura urbana de Veneza, bem como por uma unificação formal do conjunto apoiado numa sucessão de pilotis que possibilitam o avanço determinado do conjunto sobre o plano de água, por oposição à solução
7
{entrevista}
BIG: Bjarke Ingels Group
10
Joana Alves e Maria Barreiros arquitectas pelo dARQ/FCTUC
Em 2007, aquando da primeira edição da Trienal de Arquitectura de Lisboa, a redacção da NU foi ao encontro de Bjarke Ingels, o “most handsome” jovem arquitecto do momento, vencedor de um Leão de Ouro da Bienal de Veneza 2004, aos trinta anos, com um projecto para uma sala de concertos em Stavangar, Noruega e o prémio Forum AID pelo conjunto habitacional VM (Copenhaga, 2006). Durante a entrevista percebemos porque o grupo que dirige se chama BIG. Efectivamente, tudo parece ser em grande: desde a confiança com que apresenta as suas ideias, à escala dos seus projectos, à exaustiva promoção dos mesmos, à diversidade de formas e programas com que trabalha, mostrando o porquê do seu lema Yes is more!. O que pretende é trabalhar com todos os elementos da realidade, ou seja, em colaboração com todos os actores da cidade, como os investidores, os políticos e o próprio público. Percebendo como funcionam os mecanismos, acredita ser possível procurar uma integração de todas as ideias e oposições em prol da imaginação. Distanciando-se dos trabalhos embrionários realizados no PLOT (atelier dirigido com Julien Smedt entre 2001-2005), os seus projectos parecem ser todos “BIG ideas”, de grande escala, variedade programática q.b., e um jogo de cintura entre todos os intervenientes, lutando por orçamentos, autorizações políticas e públicas, que definem cada vez mais o papel proactivo do arquitecto, e o consequente sucesso ou não da proposta. E, sobretudo, constrói um enredo consistente no qual o seu discurso seduz, motiva e impulsiona. No fundo, Bjarke quer apenas fazer toda a gente feliz. 11
{artigo gráfico}
Do que é que realmente precisas que ainda não tenhas? Pedro Pousada
Pintor, docente dARQ
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nem XXL nem XXS, mas EEC:
Escala Exacta dos Contextos
Plan d’Aménagement et de Développement Durable. Vallée de Maury. (66460). Urbanisme archipélagique méditerranéen. Catalunya nord.
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Christian Pedelahore de Loddis,
12 Aforismos para uma Arquitectura Dialógica1
Arquitecto e Urbanista AXE SUD Arq.
1. Contra a Ville Franchisée e a vida transformada em produto, combate a arquitectura dialógica dos territórios e das culturas. 2. O conhecimento e a consciência, mental e corporal, do ecuménico constrói a indivisibilidade e continuidade da Arquitectura, da cidade e dos terrtórios humanos. 3. Contexto, identidade, racionalidade: a arquitectura deve ser procura da essência e revelação dos meios: geográfico, geológico, hidrográfico, antropológico, cultural. 4. A arquitectura não é abstracção conceptual desencarnada e superficial, mas antes a expressão mesma dos territórios antropizados e o construir actualizado dos arquétipos do habitar. 5. Em todos os lugares, o primeiro material do projecto contextual é o real que se encontra à frente dos teus olhos, atrás das paredes e debaixo dos teus pés. 6. O olho e o espírito do arquitecto servem para ver o que está para lá de, o que está oculto, o que está ainda para nascer. Os territórios humanos são Ouvroirs d’Architecture Potentielle. O projecto dialógico é assim a epifania, a expressão poderosa e refinada do que já lá está. 7. O durável é o bom senso do material. É edificar concretamente a ascese do vazio, é dar sentido e grão ao quase nada. É a acção pragmática e económica do fazer com o que se encontra no sítio. 8. A arquitectura contextual dos territórios é a edificação cautelosa de um reencantamento do real. Ela participa conjuntamente de um regionalismo crítico e de um realismo mágico. Ela é um racionalismo sinestésico. 9. A arquitectura dialógica é, ao mesmo tempo, cosa pratica e cosa mentale. Ela é entrançar, sedimentar, folhear, conciliar e unificar os contrários. 10. As cidades dialógicas já existiam pelo passado. Cada um tem as suas. As nossas são Tenochtitlan, Ankor, Machu Pichu. Elas reencarnam hoje na Europa e na Ásia, nas cidades que dão novamente lugar à topografia, à hidráulica, à agricultura, às espacialidades arquetipais, aos usos e aos saberes populares. 11. A arquitectura dos territóios é simbiótica e está já em obra sobre os cinco continentes. Ela manifesta e encarna concretamente o diálogo das culturas e dos saberes. Cabe-nos estabelecer-lhe novas expressões contemporâneas, as mais vibrantes e incandescentes.
1
traduzido do francês pela redacção da Nu
12. Contra o fast food arquitectónico, abrandem, observem e amem os territórios e os homens: reunam através do mundo, no Norte como no Sul, no Ocidente como no Oriente, aqueles que edificam, em intuição e em razão, a Slow Arch de hoje e de amanhã. 25
{à conversa com}
Gonçalo Ribeiro Telles
Diogo Lopes, Filipe Madeira, Mariana Campos alunos do 5º e 3º anos do dARQ
Olhar para uma planta de uma cidade a preto e branco significa, em parte, dividir dois mundos. A representação do território pelo tradicional “planmasse” transmite a ideia de que existe uma parte espessa, composta por elementos mais ou menos agregados que compõem um ambiente entre os pretos, onde o homem vive em comunidade. Existe um motivo simples para chamar à discussão alguém como o arquitecto Gonçalo Ribeiro Telles, tratar aquela parte da arquitectura que fica entre os edifícios, entre o cheio, entre aquilo a que chamamos equivocadamente “o construído”, apenas uma parte daquilo que é a natureza imaginada e construída pelo homem. Nas páginas seguintes tratar-se-á o vazio XXL como forma de pensar o território, e da sua coesão necessária e fundamental com o que representamos a tinta preta. Falemos da espessura do vazio com um dos primeiros arquitectos paisagistas formados em Portugal, no ano de 1952. 26
Sabemos que começou os seus estudos na perspectiva de se tornar engenheiro agrónomo e que depois acabou por fazer parte do primeiro curso de arquitectura paisagista… Fui um dos primeiros alunos do Curso Livre de Arquitectura Paisagista do Instituto Superior de Agronomia da Universidade Técnica de Lisboa, que se podia frequentar após aprovação de dois anos comuns às licenciaturas em agronomia e silvicultura. O que é que lhe interessou na relação do Homem com a Natureza? A Natureza existe para o Homem, que é responsável pela sua integridade e complexidade, procurando em cada tempo, sem a destruir, a melhor forma para o efeito. Trata-se de criar a paisagem propícia ao desenvolvimento da sociedade humana, exaltando a própria Natureza. É nesta amplitude ética que surge o termo “Conservação da Natureza”. A natureza que hoje pretendemos conservar em Portugal é uma natureza que está implícita na paisagem construída pelo Homem. Pode haver situações pontuais ou aspectos contínuos, sem intervenção directa do homem, que estão apenas sujeitos às leis da Natureza, mas, na maior parte do território, a paisagem é uma construção de sucessivas gerações de agricultores e pastores, onde a Natureza e os seus sistemas estão presentes. É esta Paisagem que está hoje sujeita a graves problemas de desertificação humana e de transformação por extensas manchas culturais mono específicas. Que temas é que lhe interessaram nessa natureza moldada pelo homem? Interessou-me, substancialmente, o Ordenamento da Paisagem e a sua valorização, ou seja, “agir sobre o país” como fizeram, gradualmente, gerações sucessivas que foram moldando e transformando a paisagem, criando uma cultura harmónica com as circunstâncias morfológicas regionais e as tipologias construídas, resultantes da instalação das comunidades no território. Sabemos que defendeu ao longo da sua vida o conceito de Paisagem Global… O Homem, para se instalar num território necessita de criar espaços com diferentes ocorrências e funções. O primeiro é o espaço aberto, a clareira e os vales de onde se obtém e colhem os alimentos essenciais à vida e por onde corre a água. O segundo é o espaço fechado, coberto permanentemente de vegetação, a mata que estabelece a necessária relação do espaço aberto cultivado com o espaço de Natureza. Um terceiro elemento veio juntar-se ao espaço aberto da clareira e do vale e ao espaço fechado de mata, matos e sebes – as obras de defesa da comunidade, a habitação, abrigo das famílias e as construções de recolha dos instrumentos de trabalho e dos bens produzidos. De uma forma global, podemos dizer que, nos dias de hoje, a Paisagem global agrupa em Portugal três valores territoriais: a urbe, o campo e a serra. Considera portanto fundamental defender esse conceito de Paisagem Global…
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{insight}
Parque City Life PROAP, Mil達o 2010
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João Ferreira Nunes
Manifesto
arquitecto paisagista
A expressividade plástica deste projecto corresponde não à procura de uma plástica gratuita ou de uma acção de cosmética, mas antes de uma coerência e capacidade de síntese, alicerçado numa leitura pragmática do território, numa economia de recursos ponderada e num funcionamento operativo claro. A estrutura radial emerge do espaço e do contexto e é dessa forma que todo o território de intervenção é compartimentado. A partir desta estratificação espacial horizontal são criados diferentes nichos de apropriação, bacias visuais que nos distanciam, compartimentam o espaço e, por isso, revelando pontualmente, que ritmam o espaço, dividem-no e dão-lhe continuidade. A estratificação surge também no plano vertical, dissecada em três níveis: a matriz urbana (o chão da cidade); o complexo de modelações (o enrugamento morfológico); e finalmente o copado das árvores (o tecto do parque). O primeiro nível, a matriz urbana, garante a continuidade territorial da cidade, enquanto o segundo, o enrugamento morfológico, introduz a noção de distância – distância entre espaço público e privado, mas também distância relativamente à arquitectura – funcionando como dispositivo cénico. Mas é também este nível, em conjugação com o terceiro, o copado das árvores, que à distância opõe a revelação – revelação de eixos visuais e dos volumes arquitectónicos, de locais de interesse, de aproximações e afastamentos. O raciocínio projectual concentrou-se, em termos processuais, no nível intermédio, já que o enrugamento morfológico é a ferramenta por meio da qual se garante uma única solução morfológica capaz de efectivar uma compartimentação espacial coerente, de adequar capacidades de carga a potenciais usos e, no fundo, de gerir a relação delicada entre a vida humana no Parque e as formas de vida, tão díspares quanto sensíveis, das comunidades vegetais e animais. Deparamo-nos com uma solução morfológica que tira da complexidade a condição fundamental para operacionalizar a activação ecológica num meio urbano tão denso. A vibração da morfologia cria espaços de recolha e de distribuição da água, promovendo a sua retenção e disponibilizando-a em quantidades necessárias para que a vida ali aconteça. De uma estratificação horizontal que é no fundo uma compartimentação operacional, de uma estratificação vertical, distribuída em três níveis de continuidade, distância e revelação e, finalmente, do enrugamento morfológico como vibração necessária para a vida, consegue-se uma reinterpretação da identidade espacial – a transformação deste espaço num lugar. 33
Torre do Burgo,
Uma questão de escala Diogo Lopes, Inês Morão Dias alunos do 5º ano do dARQ
Fotografia de Luís Ferreira Alves
A memória descritiva do projecto de Souto Moura para a Torre do Burgo começa com a ideia da estranheza da encomenda: Os países pequenos fazem sempre arquitecturas pequenas. Quando fomos grandes (fomos grandes?), o ‘grande’ foi sempre encomendado a estrangeiros.1 Se por um lado o projecto assenta numa encomenda rara no contexto português, chegando mesmo a ser considerado por Souto Moura de um provincianismo fazer uma torre de 60 metros2, por outro lado existia a priori uma série de constrangimentos exteriores à arquitectura agarrados ao programa, fruto de uma condição contemporânea onde o compromisso inter-disciplinar é imposto. Ironicamente, a volumetria da torre e o seu núcleo central, elementos decisivos para o desenho e tradicionalmente atribuídos ao arquitecto, estavam condicionados quer pelo orçamento, quer pelos regulamentos, quer pela engenharia. Os dados desta equação são decifrados por Souto Moura já fora desta memória descritiva quando fala da relação da arquitectura com as forças que fazem a cidade. Para o arquitecto hoje existe este vazio de informação de programa, que é uma coisa que desapareceu da arquitectura, os programas.2 Para ele, a encomenda ideológica, na maioria dos casos, já não existe, porque as convicções políticas e sociais também não. Este caso é paradigmático porque uma torre, pelo seu carácter excepcional enquanto elemento decisivo na silhueta da cidade, e pela sua posição numa das mais importantes avenidas da cidade do Porto, tem
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Alçado norte
já a sua escala definida através de consensos que não incluem a arquitectura. A partir desta premissa urbana, Souto Moura identifica o tema de projecto numa primeira aproximação: A silhueta foi imposta e o Alberti (firmitas, utilitas e venustas), definitivamente enterrado. Sobrava-nos a arquitectura da pele, o Herzog tinha razão.1 No entanto SM ultrapassará a imediatez da roupagem, de uma película que se separa da estrutura enquanto elemento e que traduzirá uma nova relação com o exterior. O que será proposto é uma fachada estrutural, que na verdade não se separa da estrutura portante do edifício, mas que a irá incluir. Apesar disso, o aparente sistema de empilhamento que constrói a fachada através de elementos comuns como os pilares e vigas não corresponderá sempre, à parte dos primeiros cinco pisos, a uma necessidade estrutural da torre. Isto é, o ritmo de 3 vigas por piso (uma tradicional que remata a laje + duas aparentes entre as outras) com pilares associados repete-se em toda a altura da torre, mesmo quando a estrutura já não precisa de tanta distribuição e de tantos travamentos. Depois, os mesmos elementos, com o mesmo ritmo, continuam a ser usados, quando é preciso proteger o interior da luz, tornando-se a espessura dos elementos um brise-soleil com o vidro recuado para o plano mais próximo do interior. Apesar das explicações pragmáticas, todo o desenho da fachada tratará o tema da simulação por alternativa ao tema da imagem, como esclarece o arquitecto, Aquilo é uma simulação, mas não é uma imagem. Aquilo é alumínio e pedra, o
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44
Margareth, Diogo Vasconcelos e Vicente Nequinha, alunos do 5º e 2º anos do darq
a propósito do hiper-realismo
Uma câmara anónima capta um instante através da janela. Margareth, de 54 anos espera Gregory. Margareth não tem sono. Está preocupada... O seu marido, funcionário de uma empresa de marketing na Madisson Avenue, avisou-a de que teria que ficar a trabalhar até tarde uma vez que tinham que preparar uma apresentação para no dia seguinte se confrontarem com os donos de uma conhecida marca de tabaco. No entanto Margareth não consegue descansar. São agora 2:57 da manhã e ela não consegue deixar de pensar nos olhares cínicos e irónicos que as jovens secretárias da empresa de Gregory lhe lançavam, sempre que por lá passava para lhe levar o almoço. “Bom dia Mrs. Smith”, diziam elas com aquele sorrisinho idiota estampado no rosto. “Que elegante está hoje, Mrs. Smith!”, quando no fundo todas elas sabiam que embora Margareth não estivesse de todo acabada, não se lhes opunha qualquer tipo de competição. Em tempos já tinha sido assim. Curvas definidas, peitos firmes e bem contornados, a pele límpida e bem esticada, o cabelo forte e reluzente... Jovem. Em tempos fora jovem e confiante como todas elas.. Entretanto, 3 filhos criados e uma crise de ciática, tinham-lhe levado já grande parte do fulgor com que há 32 anos atrás tinha arrebatado Gregory. Isso por vezes desanimava-a quando se olhava ao espelho, mas no fundo, Margareth sabia ele nunca tinha deixado de a amar. Todos os dias antes de se deitar ele sussurava-lhe ao ouvido “Boa noite, minha princesa”, virava-se e dormia, quase instantaneamente. E isso descansava-a. Todas as suas dúvidas e inquietações trazidas pelo cliché da meia idade se dissipavam quando ouvia aquele sussuro... “Boa noite, minha princesa, boa noite, meu amor. Boa noite...” Só que esta noite Gregory estava fora, e o sussuro tardava... Tinha o coração em sobressalto... E por mais chá de camomila que tomasse, por mais que tentasse dormir, por mais que se tentasse convencer que nada se estava a passar, que aquilo era apenas trabalho... Aqueles sorrisinhos convencidos das criaturazinhas luxuriantes que habitavam o escritório do seu marido, não lhe saíam da cabeça. “Volta”, pensava Margareth encostada à cabeceira da cama, “Volta...” Pois bem... Toda esta narrativa poderia de facto corresponder à realidade, caso não se tratasse de uma imagem da escultura In Bed do artista australiano Ron Mueck. Mueck aparece no mundo artístico através da criação de marionetes, dirigindo, posteriormente, o seu interesse pela execução de esculturas com um carácter super perfeccionista, levando a que por vezes a sua obra seja catalogada de hiper-realista. Mas será realmente assim? De facto nesta obra (ou em Margareth, se não quisermos abandonar o falso sentimentalismo simulado nos parágrafos anteriores), é bem visível os desígnios associados frequentemente ao hiper-realismo: a captação inflexível de um momento quase fotográfico, uma técnica de representação hiper-rigorosa com vista a captar um momento, uma pessoa, uma expressão de uma forma 45
{a nu}
48
a revista
nu é a publicação planeada e produzida pelos estudantes
do departamento de arquitectura da universidade de coimbra. essencial, imparcial e descomprometida, a nu é uma ferramenta de aprendizagem que tem como objectivo a reflexão e debate em diversos temas relacionados com a arquitectura, um encruzilhadas, dois lugares, três cidades, Morada Revista NU, Dep de Arquitectura,
quatro mecanismos, cinco àreas
de contaminação, seis
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Dezembro 2010
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revista nu #35 XXL dezembro 2010
ISSN 1645-3891
XXL
revista nu #35 dezembro 2010
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