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AGOSTO DE 2023 // NÚMERO 23

REVISTA-LABORATÓRIO DAS ALUNAS E DOS ALUNOS DO CURSO DE JORNALISMO DA ESPM DE JORNALISMO DA ESPM

SER MULHER: UM ATO POLÍTICO A (FALTA DE) PARTICIPAÇÃO FEMININA QUESTIONA AS GARANTIAS DO ESTADO DE DIREITO

DELAÇÃO DA VIOLÊNCIA

LUIZA BRUNET E OUTRAS MULHERES QUE ENFRENTARAM A JUSTIÇA NOS CONTAM COMO AS DENÚNCIAS AJUDAM A ROMPER CICLOS

DOIS PESOS, UMA MEDIDA A HIPER-RESPONSABILIZAÇÃO DA MULHER NA CONTRAMÃO DO RECONHECIMENTO

FEMINISMO: AVANÇOS E DESAFIOS

Foto: Arte sobre imagem iStock

REVISTA-LABORATÓRIO DO CURSO DE JORNALISMO DA ESPM-SP

Nº23 - 1º SEMESTRE DE 2023

Presidente

Dalton Pastore

Vice-presidente Acadêmico

Alexandre Gracioso

Vice-presidente AdministrativoFinanceira

Elisabeth Dau Corrêa

Coordenadora do curso de Jornalismo-SP

Maria Elisabete Antonioli

Responsável pelo Centro

Experimental de Jornalismo

Antonio Rocha Filho

Editora - Revista Plural

Profa. Cláudia Bredarioli

Editor - Labfor

Prof. Paulo Ranieri

Alunos colaboradores

PLURAL: Bruna Bonato;;Márcia Magalhães;;Gabriela Trevissol (Design); Bianca Iazigi; Julia Dal Bello; Luiza Vezzá; Nina Von Söhstein

CEJor, Centro Experimental de Jornalismo da ESPM-SP

portaljornalismo-sp@espm.br

Rua Dr. Álvaro Alvim, 123, Vila Mariana São Paulo, SP

Tel. (11) 5085-6713

Projeto gráfico

Marcio Freitas

A fonte Arauto, utilizada nesta publicação, foi gentilmente cedida pelo tipógrafo Fernando Caro.

EM BUSCA DE UMA SOCIEDADE IGUALITÁRIA

»»» Ser mulher. Dores, delícias, lutas e descobertas. Em que patamar chegamos e quanto ainda precisamos trihar em busca de igualdade de gênero na nossa sociedade? Foi esse cenário que norteou as páginas desta edição de número 23 da Revista Plural. Pensamos o feminismo, intrínseco e inserido no cotidiano feminino e, mais do que isso, no desenvolvimento da democracia. Ao mesmo tempo, levantamos discussões e expusemos condições que ainda marginalizam e oprimem as mulheres, deixando claro o quão complexo é o processo de contestar as normas e estruturas patriarcais.

Foi um privilégio termos reunido um grupo de jovens jornalistas e designers, mulheres engajadas, ao longo de um semestre, na redação da Plural para construir uma narrativa sobre os avanços que o feminismo tem conquistado, sem deixar de lado o enfrentamento de desafios persistentes que ainda perpassam a vida das mulheres. Sempre dentro do norteamento ético e plural que envolve as produções jornalísticas, trouxemos aqui um olhar atual e panorâmico sobre o tema.

Várias facetas foram expostas e cada uma delas trazia mais desdobramentos. Muitos não puderam ser explorados. Mas conseguimos contar histórias sobre os desafios das mulheres na política; a tripla jornada feminina (que ganhou novos contornos durante o período de isolamento em razão da pandemia de Covid-19); a diferença entre o empreendedorismo feminino e o masculino; o etarismo; a contrução de identidade diante dos padrões estéticos; e tantos assuntos mais.

As pautas giraram em torno de questões do dia a dia - ‘por que eu preciso acordar de manhã e me preocupar se vou vestir um short e pegar o metrô às 11 da noite e o meu amigo de sala não?’ - até abordagens de perspectivas internacionais, como as manifestações das mulheres iranianas.

Dessa forma, o curso de Jornalismo da ESPM-SP assume um papel importante ao colocar em discussão um tema que exige reflexões sobre um movimento dinâmico que evolui com o tempo para abordar novos contextos. Apesar das dificuldades, ele continua sendo uma força vital na busca por uma sociedade mais justa e igualitária para todas as pessoas, independentemente do gênero.

Boa leitura!

e EDITORIAL

página 6

ÍNDICE

página 6

LUIZA BRUNET

No ano de 2016, o Brasil se chocou com o caso de violência contra a atriz e modelo Luiza Brunet. Longe da família, em Nova York, Luiza foi agredida entre socos e chutes pelo ex-marido, Lírio Parisotto, e teve quatro costelas quebradas, além de um hematoma na região dos olhos. Em entrevista à Plural, Brunet relembra a dor do crime que sofreu: “Dia 21 de maio, dia que sofri a pior violência física, psicológica e moral. Nesse dia decidi dar um ponto final no relacionamento”. Após cinco anos juntos, seu casamento se tornou palco de ameaça e violência.

página 10

INTERNACIONAL

17 de setembro de 2022: data que vai ficar para sempre marcada na história dos iranianos, ou melhor, das iranianas, que deram início a uma grande manifestação.

página 20

EMPREENDER

A presença feminina no mundo dos negócios tem crescido significativamente. O empreendedorismo, especialmente entre as mulheres, vem ganhando destaque.

página 30

PRESSÃO ESTÉTICA

A imagem corporal de uma mulher é reformulada de modo constante, quase que instintivamente; à medida que os padrões estéticos avançam, elas tendem a se adaptar

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página 22

página 34 Foto: iStock

Foto: Divulgação Favela 3D

página 22

UM ATO POLÍTICO

A (falta de) participação feminina na política questiona as supostas garantias do Estado Democrático de Direito. Durante 400 anos, as brasileiras foram proibidas de votar e se candidatar.

página 24

ENTREVISTA

A cineasta Cecília Amado conversou com a Plural e contou sobre sua obra, que tenta dar destaque a um olhar feminista, destacando que as mulheres podem fazer tudo o que quiserem

página 34

ETARISMO

Uma em cada duas pessoas no mundo discrimina pessoas idosas, especialmente mulheres. Mas há quem queira mudar esse padrão, como a atriz Michelle Yeoh, que ganhou um Oscar aos 60

página 46

MACHISMO NA IA?

Experiência do Laboratório de Formatos Híbridos testou a ferramenta de inteligência artifi cial generativa ChatGPT para verificar se há ou não um tom machista nos textos construídos por máquinas

página 52

FRIDA KAHLO

página 14

DOIS PESOS

A hiper responsabilização da mulher anda na contramão da carência do reconhecimento dos seus trabalhos. Na pandemia, elas dedicaram aos cuidados domésticos o dobro de tempo que homens.

A equipe da Plural visitou a exposição internacional e imersiva Frida Kahlo - A Vida de um Ícone, que esteve em cartaz em São Paulo no primeiro semestre de 2023.

página 56

GLÓRIA MARIA

Falecida em fevereiro de 2023, ela sempre foi pioneira em todas as frentes de sua vida. Primeira jornalista a aparecer numa transmissão ao vivo e em cores no Jornal Nacional.

Foto: Reprodução Scielo Demi Getschko

DENUNCIAR PARA NÃO PROSPERAR

A delação dos casos de violência contra a mulher como forma de rompimento do ciclo e acolhimento das vítimas

>>> No ano de 2016, o Brasil se chocou com o caso de violência contra a atriz e modelo Luiza Brunet. Longe da família, em Nova York, Luiza foi agredida entre socos e chutes pelo ex-marido, Lírio Parisotto, e teve quatro costelas quebradas, além de um hematoma na região dos olhos. Em entrevista à Plural, Brunet relembra a dor do crime que sofreu: “Dia 21 de maio, dia que sofri a pior violência física, psicológica e moral. Nesse dia decidi dar um ponto final no relacionamento”. Após cinco anos juntos, seu casamento se tornou palco de ameaça e medo. Mais que o impacto de sentir sua integridade ferida, a modelo foi atacada pela pessoa com quem escolheu passar a vida, alguém em quem confiava. “É muito difícil fazer uma denúncia de um homem que vivemos”, relatou a atriz. “Mas é preciso sair o mais rápido possível, pois infelizmente o passo seguinte seria o feminicídio”.

A cada seis horas, uma mulher morre por ser mulher. Como mostra o levantamento do G1, as brasileiras enfrentam a dura realidade de serem diariamente expostas às violências que ferem seu direito à vida, em diferentes instâncias. Existem muitos tipos de violência, como a sexual, moral e física, mas também há categorias ainda mais vulneráveis que

são motivadas pela raça ou identidade de gênero da mulher, por exemplo. As denominações facilitam a identificação dos abusos e ajudam as mulheres a reconhecer que foram vítimas. Pesquisas anuais mostram a evolução das ocorrências, que só aumenta. No ano passado, o levantamento “Visível e Invisível: a vitimização de mulheres no Brasil”, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, apontou o maior número de casos de assédio feminino da história no ano de 2022, com mais de 18 milhões de brasileiras violentadas, somadas todas as modalidades. A violência contra a mulher não tem critérios de lugar ou pessoa, ela acontece em espaços públicos e privados e é imposta tanto por agressores próximos a vítimas, como cônjuges e familiares, como também por desconhecidos.

É muito difícil fazer uma denúncia de um homem. Mas é preciso sair o mais rápido possível, pois o passo seguinte seria o feminicídio
Luiza Brunet, modelo e empresária

O ambiente privado, sobretudo dentro de casa, é onde 53,8% das mulheres que responderam à pesquisa do Fórum foram agredidas. A Lei Maria da Penha prevê cinco tipos de violência doméstica e familiar: física, psicológica, moral, sexual e patrimonial. Sancionado em 2006, o decreto foi resultado de 23 anos de luta por justiça de Maria da Penha, que se tornou símbolo da defesa das vítimas de agressão doméstica. Em 1983, Maria sofreu duas tentativas de assassinato pelo então marido, com um tiro de espingarda, que a deixou paraplégica, e eletrocussão durante o banho. Em entrevista à Plural, a advogada criminalista com atuação em casos da Lei 11.34/06, Izadora Barbieri, disse que as violações mais frequentes são psicológica e moral, embora as outras também sejam comuns. Em razão do tempo durante o qual foram submetidas a episódios agressivos, Izadora reconhece o abalo emocional das vítimas: “As mulheres chegam muito desestabilizadas emocionalmente, por muitas vezes já estarem vivenciando a violência doméstica há bastante tempo. Geralmente, elas já toleram muitos absurdos acreditando na mudança dos agressores”. Luiza Brunet foi mais uma mulher que juntou forças para abandonar seu relacionamento abusivo com o ex-marido: “A força veio tarde, depois de tantas violações, percebi, fazendo uma profunda avaliação, o tipo de relacionamento que estava vivendo”. Para a modelo, termi-

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LUIZA BRUNET FOI MAIS UMA MULHER QUE JUNTOU FORÇAS PARA ABANDONAR SEU

RELACIONAMENTO ABUSIVO COM O EX-MARIDO

nar o casamento era o necessário para sobreviver, uma vez que “a tendência é o agressor continuar a submeter a companheira cada dia mais, levando a vítima a um estado emocional debilitado”. O contraste entre Nova York e a capital mineira, Belo Horizonte, não se estende aos abusos. A estudante de moda e social media Carolina Junqueira, de 28 anos, foi vítima de violência física e psicológica pelo ex-namorado de um ano e nove meses. Segundo Carolina, o relacionamento foi tóxico desde o início, com discussões e desconfiança da parte dele, mas, ao confrontá-lo por ter outra namorada, ele a atacou: “A primeira coisa, ele me deu um tapa no rosto e eu saí correndo para um quarto. Mas ele veio atrás e tentou abrir a porta, e sendo mais alto e mais forte, ele conseguiu. E eu bati contra a parede. Uma das minhas amigas estava com o namorado em casa e ele, quando ouviu meus gritos, foi me ajudar. A gente colocou ele para fora de casa”. Ao relembrar o momento do ataque, ela o descreve como a mistura de estar decepcionada com a atitude da pessoa e o medo dela, pois sabe que ela pode te matar. Uma pesquisa do Instituto Patrícia Galvão em parceria com o Ipec, feita em 2022, aponta que a apreensão de ser morta é um dos principais motivos que impedem as mulheres de reagirem às violências, inclusive a denunciá-las. A denúncia é fundamental na busca por justiça, porém muitas mulheres se sentem inseguras, mesmo que seja necessário colocar um fim no relacionamento. Izadora disse: “Quando entram em contato comigo, é para romper o ciclo da violência e denunciar, o que não é nada fácil.” A etapa seguinte é lidar com a Justiça. Para Luiza, um dos passos mais difíceis foi a lentidão desse processo: “O caminho é o mesmo. Reconhecimento das violências. Fazer a denúncia ou na Delegacia da Mulher ou Ministé-

Modelo e empresária Luiza Brunet, violentada pelo ex-marido em 2016, teve quatro costelas quebradas Foto: Arquivo Pessoal

A LUTA É GRANDE E LENTA. A SOCIEDADE PRECISA

ENTENDER E CONTRIBUIR PARA O ENFRENTAMENTO DA VIOLÊNCIA CONTRA MULHERES

rio Público, onde fiz a minha. O Ministério aceita a denúncia. Ele se torna réu, aí começa um caminho longo e doloroso de exposição e julgamento”. Ela diz que é preciso ter inteligência emocional para seguir com lucidez à espera do reconhecimento do Superior Tribunal de Justiça e de uma sentença justa. A modelo denunciou o caso de agressão em 2016 e, em 2020, o STJ condenou o ex-marido. “A espera de quatro anos na criminal foi longa e de muito agonia. Um sentimento que não consigo qualificar”. Por outro lado, Carolina, temerosa, decidiu não agir legalmente. “Tive muito medo de denunciar o abuso, tanto no sentido legal, que eu não fiz, mas fiquei com medo até de contar para as pessoas, já que venho de uma cidade pequena e ele também, onde todos conhecem a família dele e ninguém acreditou em mim. Preferiram acreditar nele, então não me davam ouvidos”, recorda a estudante. Além de conhecidos, sua própria família não a ouvia. Durante os três anos após o término, sua família a perguntava: “Onde está seu namorado?” e “Por que não volta com ele?”, mesmo que respondesse sempre: “Porque ele me bateu!”.

Os traumas e a vontade de aprender mais sobre as violações despertaram em Luiza e em Carol o desejo de se dedicar às causas a favor da mulher. Durante sua infância, Brunet viu sua mãe ser vítima de violência doméstica e, mais tarde, aos 12 anos, revelou, durante entrevista ao programa In tour, com Jordana Luchetti, ter sido sexualmente abusada pelo patrão da casa onde foi trabalhar. Quando foi agredida por Parisotto, aos 53 anos, tornou-se uma ativista no combate à violência feminina e, hoje, palestra por todo o mundo, na tentativa de alcançar um vasto número de vítimas. “Escolhi trabalhar na pauta para entender melhor e poder falar com mais propriedade sobre o assunto. A luta é grande e lenta. A

ção desconfortável e agressiva com um amigo em quem confiava que não aceitou o “não” da amiga: “As investidas dele começaram a ficar um pouco mais físicas. Ele me prensou contra a parede com o corpo. Colocou os braços em cima da minha cabeça, a perna entre as minhas e começou a passar a mão em mim. Em todas as partes que se pode imaginar. Eu comecei a gritar”.

sociedade precisa entender e contribuir para o enfrentamento da violência contra mulheres”. Para Carolina, um novo olhar surgiu ao buscar mais conhecimento sobre a defesa da mulher: “Depois de um tempo, comecei a estudar e fui conhecer os meus direitos, mais sobre o feminismo e trabalhei com isso. Criei uma ONG, a Mais Mina, para mulheres que tinham passado pela mesma situação que eu”.

Segundo o Fórum, em 73,7% dos casos, o agressor é conhecido da vítima. A partir de sua experiência com o ex-parceiro, Luiza conclui que as agressões podem acontecer no namoro ou logo depois do casamento: “Pode durar anos. Ouço várias mulheres desconhecidas ou conhecidas sobre como começam e terminam. São depoimentos muito pesados. É triste ouvir mulheres que são submetidas a cárcere privado, vivendo em péssimas condições emocionais e físicas”. No entanto, relações abusivas também podem ser identificadas em amizades e relacionamentos sociais. Além do caso com seu ex-namorado, Carolina viveu uma situa-

Porém, muitos episódios de violência acontecem fora de ambientes privados e são cometidos por estranhos. O estudo de 2022 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontou que 21,3% dos casos ocorreram no espaço público: 17,6% nas ruas e 3,7% em bares e baladas. Algumas formas comuns de assédio nesses lugares são assobios e comentários de cunho sexual, olhares insistentes e perseguição pelos assediadores. Já nos espaços corporativos, 4,7% das entrevistadas disseram ter sido vítimas. A advogada Izadora contou que o caso mais marcante de sua carreira ocorreu dentro do ambiente de trabalho: “Minha cliente sofreu sete anos em um relacionamento abusivo. Trabalhou para o agressor na empresa dele durante todo esse tempo sem receber salário. Ele cometeu diversos tipos de agressões contra ela, inclusive física. Chegou a jogar água quente na perna dela causando queimaduras graves”. Um relatório do Instituto Patrícia Galvão, de 2020, revela que 76% das mulheres já sofreram violência no trabalho, o que afeta o desempenho das profissionais. Situações como supervisão excessiva, depreciação do trabalho, salários inferiores aos de homens no mesmo cargo e ameaças físicas e verbais compõem esse quadro. Izadora ainda explica que a filha da vítima entrou em contato com ela para ir à delegacia, devido a outro caso de agressão e, felizmente, sua cliente recebeu suporte. “Conseguimos ajudá-la a romper

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Com atuação na Lei Maria da Penha, a advogada criminalista Izadora Barbieri atende vítimas de violência de gênero Foto: Reprodução instagram @izadorabarbieRI

Após sofrer um episódio de violência física contra a mulher, Carolina fundou a Mais Mina, uma ONG de acolhimento e apoio a outras vítimas

Foto: Reprodução instagram @caroljqq

o ciclo da violência e ela venceu na Justiça, conseguindo uma indenização por conta de todo o abalo sofrido na relação”. Em vários casos, a indenização não cobre os prejuízos emocionais e psicológicos da vítima. Carol afirma que as consequências foram muito difíceis, impactando inclusive a forma como se relacionava com as pessoas. “Passei a ser extremamente desconfiada, insegura, medrosa”. Hoje, mesmo tendo superado os traumas da violência, ela ainda compartilha um sentimento comum entre as brasileiras, a insegurança: “Não foi o primeiro e não será o último abuso que eu sofri. Isso é uma coisa que acontece constantemente com a mulher. A gente sofre nossa vida inteira de diversas formas, seja na rua, com desconhecido, seja com amigos, namorado”.

Por isso, é importante que as mulheres saibam como agir diante das ocorrências abusivas, que tenham em mente a quem recorrer e quais são seus direitos. Em meio à pandemia da Covid-19, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), criou a Central de Atendimento à Mulher, o Ligue

180 para receber denúncias, orientar as vítimas e acolhê-las, além de oferecer informações sobre as violações que acometem a dignidade das mulheres. Um estudo do Observatório da Mulher Contra a Violência, de 2021, observou o aumento significativo do número de casos de violência doméstica desde o início do confinamento. Em 2020, mais de 105 mil denúncias foram feitas nas plataformas Ligue 180 e Disque 100. Como especialista no amparo das vítimas, Izadora relembra o período de isolamento como “bem desafiador”. Ela aponta que havia meios alternativos, como via e-mail, utilizando dados cadastrais anônimos sem ser o correio eletrônico pessoal dela, ou por meio de um familiar, pedindo apoio jurídico. Existem três principais redes do Governo Federal que viabilizam as queixas: além do Ligue 180, há o Disque Direitos Humanos (Disque 100) e o aplicativo Direitos Humanos Brasil.

Fora do meio virtual, linhas telefônicas voltadas à denúncia, além da assistência da Delegacia de Polícia e da Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (DEAMs), oferecem à mulher a

solicitação de medidas protetivas, independente da modalidade da agressão. No Brasil, existem 492 DEAMs, das quais, no entanto, apenas 60 funcionam 24 horas, prestando serviço não só às mulheres, mas também às vítimas crianças e adolescentes. Elas surgiram na década de 1980, dentro de um contexto de reivindicação dos direitos das brasileiras e foram muito importantes no preparo das autoridades para lidar com os casos de violência contra a mulher. Além disso, a Casa da Mulher Brasileira é mais um espaço de acolhimento e escuta qualificada às mulheres em situação de violência, que presta serviços humanitários e judiciais – há sete unidades em todo o país. A ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, disse que, até o fim do atual governo, mais 40 instituições serão construídas, com a garantia de que cada capital contará com uma unidade.

Outra alternativa de denúncia é por meio de projetos de suporte psicológico que viabilizam canais de combate à violência doméstica. Izadora aponta: “É uma luta, muitas vezes demora para vir a reparação, mas as mulheres precisam se fortalecer e buscar apoio jurídico e psicológico para romper as barreiras do medo e da violência”. O Projeto “Justiceiras” foi idealizado pela advogada Gabriela Manssur durante a pandemia, quando muitas mulheres estavam confinadas dentro de casa com seus agressores. Os institutos reúnem milhares de voluntários para acolher, apoiar e orientar virtualmente as vítimas. Algumas mulheres encontram refúgio e proteção nas pessoas próximas a elas. No caso de Carolina, partilhar a sua história foi essencial: “Depois de um tempo passei a procurar apoio em amigos, ainda não fazia terapia, passei a compartilhar com minhas amigas e ajudou muito para superar o que tinha acontecido”. Os traumas e o modo como os enfrentou são diferentes para cada pessoa, mas é comum que seja um processo longo e pessoal. Luiza afirmou que os traumas são diluídos com o tempo, mas a violência contra a mulher é uma cicatriz na vida de milhões de vítimas que batalham todos os dias para recuperar a confiança nos outros e em si mesmas .

IRANIANAS E A LUTA POR LIBERDADE DE EXPRESSÃO

Quem está ao lado delas nas trincheiras?

NINA VON SÖHSTEN

»»» Dezessete de setembro de 2022: data que vai ficar para sempre marcada na história dos iranianos, ou melhor, das iranianas. Tudo começou com Mahsa Amini, de 21 anos, também conhecida como Jina Amini, seu nome curdo, mulher que foi presa ao sair com o “cabelo indevidamente descoberto” da estação de metrô Haghani, em Teerã, capital da República Islâmica do Irã e da província de Teerã. Dias depois, Amini foi encontrada morta em circunstâncias suspeitas, o que provocou revoltas e protestos generalizados em todo o Irã. A hashtag #BlueGirl, em homenagem à camisa azul que Mahsa usava quando foi presa, tornou-se um símbolo, melhor dizendo, um grito de guerra para as mulheres iranianas. As manifestações se espalharam para ou-

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Laura Kwoczala dá entrevista sobre refugiados iranianos Foto: instagram / @wlaurakwoczala

tras partes do mundo, por meio de iranianos que vivem no exterior e pessoas de outros países que se solidarizaram com a causa. Os protestos trouxeram à tona uma questão há muito tempo ignorada: a necessidade de maior igualdade de gênero e justiça no Irã, além da importante resistência contra o governo autoritário do país.

Os detalhes sobre a morte de Mahsa Amini são confusos e distorcidos, mas boatos insinuam que a jovem teria sido vítima da brutalidade e tortura policial. Sua morte foi um forte gatilho para as mulheres que, há tempos, lutam pelos seus direitos no Irã. Esse caso é um entre muitos, e que, finalmente, conseguiu visibilidade. Laura Kwoczala, de 21 anos, é líder do grupo ativista Women’s Strike, fortemente engajado nos protestos das mulheres iranianas e na assistência a refugiados. Ela conta à Plural que

“Eu foi injustamente acusada de conspirar a favor da pandemia, pelo simples fato de organizar protestos a favor da legalização do aborto. O processo ainda está em curso, mas a pena pode vir a ser de seis meses a oito anos de prisão”
Laura Kwoczala, ativista líder do grupo ativista Women’s Strike

foi injustamente acusada de “espalhar a pandemia”, simplesmente por organizar protestos a favor da legalização do aborto. O processo ainda está em curso, de modo que ela pode receber de seis meses a oito anos de prisão. Assim como ela, inúmeras pessoas foram às redes sociais para compartilhar suas histórias e experiências de violência e opressão, a fim de exigir justiça por Mahsa Amini e pelas muitas outras mulheres expostas a esses horrores. Além disso, milhares desceram às ruas para demonstrar indignação, atitude que exige coragem, já que protestar no Irã é assumir grandes riscos. O governo iraniano é conhecido pela sua vasta história de repressão, recorrendo a táticas violentas para silenciar o povo e manter o controle. Um exemplo é a perseguição do regime iraniano a minorias religiosas. Em 2018, a prisão de cristãos no Irã aumentou 1.000%. De acordo com um relatório do governo dos EUA de 2019, alguns até acabaram detidos por celebrar o Natal em casa. Além do mais, trabalhadores no Irã sofrem nas mãos do governo e, com frequência, são forçados a escolher entre trabalhar silenciosamente sem remuneração ou receber chicotadas por exigir os salários que lhes são direito. Em agosto de 2020, 16 trabalhadores foram condenados a 30 chicotadas e oito meses de prisão por protestar contra salários não pagos. Escritores e ativistas que criticam as atitudes e violações do regime também se arriscam. Em maio de 2019, três escritores foram condenados a seis anos de prisão cada um, por se oporem à censura imposta às artes. As autoridades iranianas costumam usar força excessiva para dispersar multidões e abusam de gás lacrimogêneo, canhões de água e munição real, além da força física. Aqueles que se engajam nos protestos podem ser espancados, assediados, submetidos a tortura e até mortos.

O governo iraniano tem leis rígidas

Mulher segurando bandeira do Irã em protesto Foto: instagram / @mahsaahafezi
“A busca pelo direito das mulheres tem sido uma luta diária nas últimas quatro décadas. Desde o início da Revolução Iraniana de 1979, a República islâmica fez da sua missão controlar a sociedade a partir do controle sobre as mulheres”

em relação à liberdade de expressão, de modo que os protestantes presos podem enfrentar acusações graves, incluindo terrorismo, o que resulta em longas penas de prisão. Há também o conceito polêmico e abstrato de Moharebeh, que significa “crime de ódio contra Deus” e é, praticamente, uma sentença de morte. Em dezembro de 2022, Mohsen Shekari e Majidreza Rahnavard, ambos protestantes e ativistas, foram condenados por Moharebeh. Shekari foi acusado de atacar um membro da Força de Resistência Basij Paramilitar com um facão, enquanto Rahnavard foi considerado culpado por matar dois membros desse mesmo grupo. Defensores dos direitos humanos denunciaram que os julgamentos dos dois ocorreram em tribunais ilegítimos, sem a devida burocracia, uma vez que os indivíduos acusados de Moharebeh não têm o direito de contratar advogado independente e, na maioria das vezes, terminam em confissões forçadas. Em fevereiro de 2023, quatro jovens foram condenados e executados na forca, dentre eles, Mohammad Mehdi Karami, campeão iraniano de caratê. O jovem, assim como Mahsa Amini, nasceu no Curdistão, região histórico-cultural habitada pelos curdos que compõe uma das 31 províncias do país. Além de Mohammad, outras 18 pessoas aguardavam no corredor da morte. Ativistas alegam que esses tribunais dão apenas 15 minutos para a pessoa se defender, o que acelera o julgamento de maneira injusta e fraudulenta.

Em 27 de dezembro de 2022, aproximadamente 90 dias após o início dos protestos pela morte de Mahsa Amini, mais de 22 mil pessoas tinham sido presas e 500 mortes foram documentadas, incluindo 70 crianças e, pelo menos, 29 mulheres. Passados sete meses desde o começo das movimentações, não é implausível supor a significativa ampliação desses números, sem contar as ocorrências que pro-

rico responsável por transformar o Irã, que até então era uma monarquia autocrática pró-Ocidente comandada pelo Xá Mohammad Reza Pahlevi, em uma república islâmica teocrática sob o comando do aiatolá Ruhollah Khomeini.

vavelmente não foram registradas. Casos de envenenamento de estudantes começaram no mesmo período. Desde então, mais de dez escolas femininas foram atacadas. Em fevereiro de 2023, pelo menos 650 alunas foram envenenadas em uma escola feminina na cidade religiosa de Qom, sudoeste de Teerã. Nenhuma estudante morreu, mas dezenas foram internadas. Apesar da província de Qom ser o foco do envenenamento em massa, outras cidades iranianas também sofreram ataques. A iraniana Negin Shiraghaei, ex-apresentadora de notícias e repórter do serviço persa da BBC World Service, fala à Plural. “A busca pelo direito das mulheres tem sido uma luta diária nas últimas quatro décadas. Desde o início da Revolução Iraniana de 1979, a República islâmica fez da sua missão controlar a sociedade a partir do controle sobre as mulheres”. A revolução foi o acontecimento histó-

A estrutura do governo iraniano é complexa e diferente dos governos ocidentais. O site da BBC News Brasil, em 9 de janeiro de 2020, fez uma matéria com o título “Como funciona a complexa estrutura de poder do Irã” para ajudar o público a entender um pouco mais sobre o regime. No topo da pirâmide, está o líder supremo, que corresponde ao chefe de Estado e máxima autoridade religiosa e política do país. Esse cargo, até abril de 2023, foi ocupado apenas por duas pessoas. O líder supremo atual é o aiatolá Ali Khamenei, que ocupa essa posição desde 1989. Aiatolá significa, sob as leis do Islã xiita, o mais alto dignitário na hierarquia religiosa e é o termo utilizado para se referir ao líder supremo. Logo em seguida, vem o Conselho de Guardiões, organização mais influente do Irã, cuja principal função é a de garantir que as leis aprovadas pelo Parlamento estejam em concordância com a Constituição e com a lei islâmica. É composto por 12 pessoas: seis juristas e seis clérigos especialistas em jurisprudência islâmica. Depois, há o presidente, que é a segunda maior autoridade do país. Ele é o chefe do Executivo, mas, na prática, tem seus poderes limitados pelo líder supremo e pelos clérigos e conservadores. Seu mandato dura quatro anos e só pode ser renovado consecutivamente uma vez. Em quarto, estão as Forças Armadas Iranianas, que têm como principal divisão a Guarda Revolucionária, grupo ideologicamente motivado cujo dever é proteger as fronteiras e a ordem interna. Desde o início das manifestações, esse governo instituiu novas regras, a fim de controlar os protestos. Um exemplo são as multas, para quem

ex-jornalista do serviço persa da BBC Negin Shiraghaei, ex-jornalista do serviço persa da BBC Foto: instagram / @neginshira
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Mulheres vendadas durante protesto em Montreal

desrespeitar a lei. As autoridades também já declararam que pretendem implementar dispositivos para impedir que mulheres envolvidas nos protestos saiam do país, além da proibição de exercer certas profissões. Fechamento de lojas e restaurantes, privação de acesso a serviços públicos e apreensão de veículos, caso o uso obrigatório do véu seja desrespeitado, são algumas das outras medidas que podem vir a ser tomadas. Além disso, aqueles que se rebelam podem levar penas entre um e dez anos de prisão.

Apesar dessas inúmeras ameaças e proibições, as mulheres iranianas não se deixaram abalar. “Mulheres de todos os fragmentos da sociedade se uniram para lutar pela liberdade. Elas uniram as suas dores, e toda essa dor se tornou o coração do movimento”, justifica a repórter Negin, em entrevista. Assim, surgiu a ideia do “No Hijab Day”. O hijab é

o véu que cobre os cabelos e o corpo das mulheres muçulmanas, além de ser um símbolo cultural e religioso altamente debatido e contestado. Para alguns, é sinônimo de privacidade, modéstia e moralidade. Já para outros, como a escritora e ativista Ayaan Hirsi Ali descreve em seu livro Nómada, é um vestuário que “marca deliberadamente as mulheres como propriedade privada e restrita, não pessoas”. O véu distingue as mulheres dos homens e do mundo; restringe-as, confina-as, prepara-as para a docilidade. Uma mente pode ser constrangida assim como um corpo o pode ser, e um véu muçulmano condiciona tanto sua visão quanto seu destino. É a marca de uma espécie de apartheid, não o domínio de uma raça, mas de um sexo”. O hijab tem interpretações e conceitos que variam amplamente entre diferentes países, culturas e comunidades. Dentro

desse contexto, independentemente do seu significado e compreensão, surge o questionamento: deveria ser obrigatório? Em resposta a essa pergunta, no dia 1º de fevereiro de 2023, marcado como o Dia Mundial do Hijab, mulheres e ativistas foram às ruas, tanto no Irã, quanto em outros lugares do mundo, como cidades na Europa e nos Estados Unidos, protestar com os cabelos à mostra para desafiar essa imposição.

As mulheres iranianas têm batalhado de todas as formas possíveis, mas a maioria das pessoas ao redor do mundo nem sequer sabe da existência dos protestos, suas causas e consequências. Isso se dá porque o governo iraniano restringe fortemente o trabalho dos jornalistas no país, dificultando a cobertura de eventos. O jornalista iraniano Mehdi Beikoghli, por exemplo, foi preso após conduzir entrevistas com famílias de pessoas condenadas à morte. Ainda assim, apesar desses desafios, muitas organizações e ativistas têm trabalhado para aumentar a conscientização sobre a situação no Irã e pressionar o governo a respeitar os direitos humanos e acabar com a repressão de seus cidadãos. Os principais meios para a disseminação da informação foram as plataformas de mídia social, que amplificaram as vozes de ativistas e manifestantes iranianos e divulgaram a situação para um público global. “A mudança não depende apenas dos iranianos, depende de cada pessoa no mundo que não concorda com a tortura, punição e repressão a quem simplesmente não aguenta mais ter seus direitos violados” diz Laura Kwoczala sobre a repercussão da causa. No geral, embora a cobertura da mídia internacional sobre a situação no Irã possa não ter tido tanta visibilidade quanto alguns outros eventos internacionais, como nos Estados Unidos ou na Europa, há muitos indivíduos e grupos empenhados em esclarecer a situação para o mundo.

Foto: instagram / @nmahsaahafezi

DOIS PESOS, UMA MEDIDA

A hiper-responsabilização da mulher na contramão da carência do reconhecimento dos seus trabalhos

»»» “A gente acorda, já tem que arrumar as crianças, as coisas da casa, se arrumar, ir pro trabalho, dar conta do trabalho, das crianças, das tarefas e no meio disso tudo a gente ainda precisa lembrar que temos que cuidar da nossa saúde, porque precisamos estar vivas e em pé para poder dar conta de tudo”.

Essa fala é de Juliana Medeiros, advogada e mãe de Luiza e Beatriz, de 12 e

8 anos respectivamente. Mas, assim como ela, muitas mulheres enfrentam uma luta diária para conseguir conciliar a maternidade com as tarefas domésticas sem abrir mão do espaço que conquistaram no mercado de trabalho.

De acordo com o estudo Estatísticas de Gênero: Indicadores sociais das mulheres no Brasil, publicado em 2021 pelo IBGE, que traz informações fundamentais para análise das condições de vida das mulheres no país, o maior envolvimento no trabalho não remunerado

“Criar as crianças que vão ser essa sociedade no futuro é o trabalho mais importante que temos, mas a sociedade não reconhece como tal. Ela não entende como trabalho, mas quer que a gente o desempenhe com excelência”

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Juliana Medeiros e suas filhas Beatriz e Luiza Foto: Arquivo Pessoal
NO BRASIL EM 2019 AS MULHERES DEDICARAM AOS CUIDADOS DE PESSOAS OU AFAZERES DOMÉSTICOS QUASE O DOBRO DE TEMPO QUE OS

ajuda a explicar a menor participação do gênero no mercado.

A pesquisa revela que em 2019, no Brasil, as mulheres dedicaram aos cuidados de pessoas ou afazeres domésticos quase o dobro de tempo que os homens: enquanto estes despenderam 11 horas para tanto, elas gastaram 21,4, número que ainda aumenta diante do recorte de cor ou raça preta ou parda para as mulheres, mas que pouco varia sob a mesma perspectiva em relação aos homens.

Potencializa esse cenário, além do mais, o rendimento domiciliar per capita, uma vez que. De acordo com o mesmo estudo do IBGE, a média de horas trabalhadas nas referidas atividades é de 24,1 horas entre as mulheres que fazem parte dos 20% da população com os menores rendimentos e de 18,2 horas entre as mulheres que se encontram nos 20% com os maiores rendimentos.

Para as pessoas de classe média, média

alta e alta pode-se atribuir a origem da sobrecarga de trabalho principalmente à cultura patriarcal de responsabilização unilateral da mulher e à consequente não divisão de tarefas com seus parceiros, notadamente quando se fala em relações heteroafetivas. Para as pessoas de baixa renda somam-se outras questões como trabalhos informais e menos flexíveis, redes de apoio menores e menos capacitadas para auxiliar.

Isto porque, conforme o indicador social exposto, a renda impacta no acesso diferenciado às escolas, na contratação ou não de alguém para ajudar na realização das tarefas domésticas e na delegação das atividades extras da mulher como um todo, que, apesar de tudo o quanto exposto, são pouco compreendidas enquanto forma de trabalho.

“Criar as crianças que vão ser essa sociedade no futuro é o trabalho mais importante que temos, mas a sociedade não reconhece como tal. Ela não

HOMENS

entende como trabalho, mas quer que a gente o desempenhe com excelência“, conta Juliana.

Segundo Ana Fava, professora e pesquisadora da Universidade Federal do ABC, que atua especialmente com pesquisa de gênero, economia da educação e economia feminista, quando a mulher tem baixa renda e ainda trabalha, fica muito difícil lidar com todas as suas atividades e a saída que ela encontra, muitas vezes, limita as gerações futuras.

“Ela conta com a ajuda de outras mulheres, o que pode ser ruim, porque, se é uma filha mais velha cuidando dos outros filhos, por exemplo, a renda futura dessa filha pode estar sendo comprometida, já que ela está deixando, às vezes, de estudar, de fazer lição, pra fazer esses cuidados. Compromete o futuro dela ou tira outra mulher do mercado de trabalho, como uma avó que é nova e poderia estar ainda trabalhando, mas acaba saindo para a mãe poder trabalhar”, explica Ana.

No que se refere à equidade de gênero especificamente no âmbito dos cargos de liderança, Cláudia Colaferro, executiva por mais de 30 anos, fundadora e CEO da AngelUs, plataforma que tem como propósito ajudar empresas a prepararem mais mulheres para liderar, revela que se continuarmos avançando tão pouco como atualmente, para atingirmos essa equidade precisaremos de 136 anos.

“Antes da pandemia para a gente ser 50% da liderança ia demorar 100 anos. O que aconteceu é que a pandemia entrou e afetou mais as mulheres. A gente foi mais atingida quando todo mundo veio para dentro de casa, por questões culturais. E aí isso piorou em 36%”, desabafa Cláudia.

Para ela a origem dessa problemática é estrutural e reforçada há muito tempo. “Essa história é porque a gente é mais

Ana Fava, professora e pesquisadora da Universidade Federal do ABC Foto: Acrquivo Pessoal

A SOBRECARGA QUE RECAI SOBRE AS MULHERES IMPACTA

SIGNIFICATIVAMENTE SUAS VIDAS PARA ALÉM DE TEREM

MAIOR DIFICULDADE DE INSERÇÃO NO MERCADO

capacitada. É porque culturalmente a gente tem esse sistema reforçado há muitos e muitos milênios”, explica a ex-executiva.

É o que também pensa Ana Fava. “Nessa divisão social de gênero do trabalho que culmina em estereótipos de gênero, a gente acredita que as mulheres são melhores com cuidados do que os homens, quando na verdade essas preferências são socialmente construídas. A gente começa desde pequeno: é menino ou menina? A cor da roupa que o bebê vai vestir, os brinquedos que ele vai brincar… A gente vai moldando as preferências segundo os estereótipos de gênero. E a gente, então, vai criando essa percepção dos cuidados”.

De fato, a partir de simples análises cotidianas é possível perceber que é na infância que começam a ser desenhados os papeis de cada gênero e dito que nem todos eles estão disponíveis da mesma maneira para homens e mulheres.

Antes mesmo do nascimento de uma criança, o seu sexo determina que cores ela usará: se menino azul, se menina rosa. A restrição de possibilidades acompanha o seu crescimento, na medida em que os brinquedos também são previamente escolhidos: para os homens bonecos de super-heróis e de profissões que remetem à força e inteligência e para as mulheres objetos que reproduzem o ambiente da casa, os cuidados domésticos e a preocupação com a aparência física.

Mas se lugar de homem também é na cozinha por que ele não pode ganhar uma casa da Barbie? A ideia de que os cuidados domésticos e com outras pessoas são de responsabilidade exclusiva da mulher está posta de maneira tão confortável na sociedade que, quando se vê um menino brincando de casinha, diz-se que ele está brincando de ser mulher.

“Não estou falando que é errado a mulher ficar em casa. O que eu estou falando é que quem tem que ficar em casa é quem genuinamente gosta de ficar: isso para ela é a energia dela mais vibrante, é o prazer dela, ela gosta dessa coisa de cozinhar, de cuidar da casa, da criança. O que eu acho é que isso às vezes não é uma escolha”

Colaferro, fundadora e CEO da AngelUs

Esse padrão pré-estabelecido, que nada tem a ver com os gostos da criança, posto que ela já chega inundada por ele, vai delimitando o comportamento que se espera dos homens e das mulheres e que direitos e liberdades cada um vai ter, desaguando em muitos preconceitos e nas expressivas desigualdades entre os trabalhos realizados por cada gênero na atualidade. A sobrecarga que recai sobre as mulheres impacta significativamente suas vidas, e para além de terem maior dificuldade de inserção no mercado de trabalho, elas nem sempre contam com compreensão em suas atividades remuneradas quando têm sua rotina modificada pela maternidade.

Juliana conta: “Eu trabalhava de 8h até 22h todo dia, porque o volume de trabalho era muito grande. Quando a maternidade chegou eu botei um freio nisso. Eu disse: ‘Não tem condições. Preciso sair mais cedo, pegar minha filha, ter algum momento com ela’. Mas essa mudança não foi tão receptiva no trabalho de imediato. Tive que ir mostrando que eu estava dando conta para conseguir manter a nova rotina que eu mesma impus por conta do nascimento das minhas filhas”.

Além do mais, ao mínimo sinal de não estar dando conta, a mulher passa a ser alvo de cobranças que vêm acompanhadas de julgamentos, levando-a a entrar em um processo de adoecimento em que ela questiona suas capacidades, sente-se angustiada e entra em sofrimento emocional, para além do esgotamento físico.

“Quando a gente chega na escola, que a filha da gente tem algum problema, a culpa é sempre da mãe. Nunca é do pai, parece que o pai não existe. Parece que a maternidade é um momento só da mãe, a educação é 100% da mãe. É cobrança 24 horas por dia. Você tem que trabalhar bem, ser boa mãe, dar conta da casa, ser uma boa esposa, estar bonita e arrumada. São cobranças infinitas que vêm de todo lugar”, desabafa ainda Juliana.

Não há dúvidas, assim, que a condição feminina, como está posta na sociedade brasileira, precisa ser revisitada. Cláudia Colaferro acredita que, antes de mais nada, as mulheres precisam começar a se questionar sobre o que vieram fazer nesse mundo. “Se for ser mãe, está tudo bem. Não estou falando que é errado a mulher ficar em casa. O que eu estou falando é que quem tem que ficar em casa é quem genuinamente gosta de ficar: isso para ela é a energia dela mais vibrante, é o prazer dela, ela gosta dessa coisa de cozinhar, de cuidar da casa, da criança. O que eu acho é que isso às

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Claudia Colaferro, fundadora e CEO da AngelUs, plataforma que busca ajudar empresas a prepararem mais mulheres a liderar | FOTO: ARQUIVO PESSOAL

vezes não é uma escolha”, explica.

Colaferro afirma ainda que as mulheres precisam ter a consciência de que delegar certas funções não as descredibiliza enquanto mulheres. “A gente precisa acreditar, começando por nós, que nós não somos mais capacitadas, a gente está mais é cheia de peso. Se a gente começar a dividir eles vão, porque eles treinam. Todo mundo pode ser treinado para cuidar da casa, todo mundo pode ser treinado para ser bom pai e boa mãe”.

Juliana afirma: “A gente tem que remodelar a cabeça dos pais e das próprias

mães que criam seus filhos, porque os homens que estão aí hoje foram criados basicamente por mulheres que ficavam em casa. Se os filhos forem educados para entender que o que as mães fazem em casa, eles também têm que fazer quando tiverem suas próprias casas, vai ficar mais fácil”.

Para além disso, são fundamentais as políticas públicas. Segundo Ana Fava, todas as políticas que impulsionam a igualdade de oportunidades são bem-vindas. “É uma atitude muito importante porque você quebra a visão de

que a pessoa não está lá porque ela não tem capacidade. Não, ela tem capacidade, às vezes ela não tem oportunidade”, ratifica.

“Não tem como delegar o aleitamento materno pra ninguém, não tem como trocar com o homem esse lugar. Mas mais tarde, a hora que parou o aleitamento materno, é a hora deles pararem de trabalhar e assumirem a casa que ainda tem um bebezinho, e a gente voltar a trabalhar, porque o corpo já não é necessidade, é um cuidador. Então é a hora da licença-paternidade, na minha opinião, entrar em efeito para que a criança ainda tenha o cuidado de um dos pais. E ele tem que cuidar não só da criança mas da casa também. E com isso tenhamos um balanço melhor: a mulher vai trabalhar e volta no final do dia e o jantar está pronto, a roupa está lavada, a criança está trocada”, diz Colaferro, que defende que a licença-paternidade deveria ser repensada.

Por fim, embora não menos importante, Cláudia nos lembra da importância do movimento HeForShe (em tradução livre: ElesPorElas) - campanha de solidariedade que defende os direitos das mulheres e a equidade de gênero iniciada pela ONU Mulheres em 2014 -, já que, no que se refere à liderança, os homens são quem vão ter a estratégia de equidade e podem nos colocar como prioridade dentro das organizações, uma vez que estes atualmente ocupam os cargos de liderança em 95% dos casos.

“Nós não estamos contra eles, nós estamos querendo que eles nos vejam como possível solução para os problemas deles, porque a gente vai ter uma ótica diferente e ajudá-los a resolver com a nossa ótica”, esclarece Cláudia diante de uma estrutura que se encontra não apenas na liderança, mas nos espaços sociais como um todo.

EMPREENDEDORISMO FEMININO: INCLUSÃO E DIVERSIDADE

Como mulheres empreendedoras podem contribuir com uma sociedade mais plural

»»» A presença feminina no mundo dos negócios tem crescido significativamente ao longo dos anos. O empreendedorismo, especialmente entre as mulheres, vem ganhando destaque, com mais pessoas buscando iniciar

seu próprio negócio. Segundo uma pesquisa realizada pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) em parceria com o Instituto Brasileiro de Qualidade e Produtividade (IBQP), o empreendedorismo feminino no Brasil cresceu 21,1% entre 2009 e 2019. No entanto, é importante entender

que a lógica do empreendedorismo não atua da mesma maneira entre homens e mulheres. No Brasil, 47% do empreendedorismo feminino é motivado por necessidade – para os homens, esse índice é de 34%, indicando uma das dificuldades enfrentadas por empreendedoras brasileiras, de acordo com o Monitoramento de Empreendedorismo Global (GEM), em

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Empreendimentos diversos possuem vantagem por terem novas perspectivas Foto iStock

O BRASIL FICOU EM SÉTIMO NO RANKING DE PROPORÇÃO DE MULHERES À

FRENTE DE EMPREENDIMENTOS INICIAIS, SEGUNDO O GLOBAL ENTREPRENEURSHIP MONITOR

dado publicado em 2017. E ainda, dentro do empreendedorismo feminino, há diversas interseccionalidades que precisam ser consideradas, como etnia e classe social.

Apesar dos desafios, como dificuldade de acesso a recursos, financiamento e mentoria, as mulheres empreendedoras têm demonstrado resiliência e criatividade para superá-los. Muitas vezes, criam negócios que buscam solucionar problemas sociais e ambientais e contribuem para a construção de uma economia mais justa e sustentável.

Carolina Videira, em suas palavras, é uma mulher branca, de 44 anos, com cabelos e olhos escuros. Ela sempre faz essa autodescrição por um motivo muito maior por contexto que logo logo você vai entender. Carola, como gosta de ser chamada, conquistou muito do que é almejado pela sociedade antes dos 30 anos. Assim que se formou na faculdade, começou a trabalhar em uma grande indústria farmacêutica. Ali começa a sua história com as questões de igualdade de gênero. “Eu era a única mulher no meu time. A gente tinha que se vestir igual aos homens para ser aceita, dentro daquele contexto que já me incomodava, já me causava um estranhamento”, diz.

Aos 28 anos, Carola decidiu engravidar e se tornou mãe de uma criança com múltiplas deficiências. No primeiro dia em que retornou da licença-maternidade, seu chefe a chamou e falou que ela era muito bem-vinda de volta, mas que teria que escolher entre ser mãe, ser esposa e ser gerente comercial, porque as três coisas ela não poderia ser. Depois de conseguir um período sabático para buscar por tratamento para seu filho nos Estados Unidos, ela pediu demissão. “No meu pedido de demissão, eu disse que poderia ser o que eu quisesse. E nnaquele momento eu entendia que eu precisava mudar a educação de alguma manei-

Carolina Videira, empreendedora social e ganhadora do prêmio Internacional da ONU Mulheres “Rise and Raise Others”

Foto: acervo pessoal

“É responsabilidade de qualquer mulher, toda vez que subir, puxar uma outra mulher... Se

você

subir e parar de puxar, a gente vai estar se equiparando a tudo aquilo que a gente tanto quer combater”

Carolina Videira, empreendedora social

ra, e não era educação para crianças com deficiência, porque a educação inclusiva é um paradigma muito maior do que a educação especial”, relata Carola, que fundou a ONG Turma do Jiló, criada em 2015 para ser agente transformador e atuar com metodologia transdisciplinar.

Ao migrar de uma carreira de sucesso - na tradicional concepção da sociedade -para o chamado empreendedorismo social, Carola persegue um propósito: “Mais uma vez, é mais um privilégio na minha vida ter descoberto o meu propósito com 30 e poucos anos de idade, de não deixar ninguém para trás”. Sem nunca imaginar que essa idealização seria quase que profetização, em 2022, a empreendedora recebeu o prêmio Internacional da ONU Mulheres “Rise and Raise Others”, que no Brasil ficou conhecido como o movimento de uma sobe, puxa a outra. “É responsabilidade de qualquer mulher, toda vez que ela subir, puxar uma outra mulher. Se você subir e parar de puxar, a gente não vai sair do mesmo lugar e a gente vai estar se equiparando a tudo aquilo que a gente tanto quer combater. Então é uma conquista coletiva e que essa inspiração seja real, que eu possa continuar puxando outras mulheres”, diz Carola sobre a premiação.

E esse é um diferencial entre os empreendedores homens e mulheres: a forma de liderança. As mulheres tendem a ser mais colaborativas e valorizar o trabalho em equipe, enquanto os homens costumam ter uma postura de autoridade. “A mulher tende a já ter um olhar mais humano, então ela torna os ambientes e as empresas menos violentas e, consequentemente, um mundo menos violento”, destaca Carola. Portanto, é preciso que haja um incentivo maior para as mulheres no empreendedorismo, com mais investimentos e apoio por parte do governo e do

AS MULHERES ESTÃO À FRENTE DE 34% DOS NEGÓCIOS

FORMAIS DO PAÍS, SEGUNDO PESQUISA DE 2019 DO SERVIÇO

BRASILEIRO DE APOIO ÀS MICRO E PEQUENAS EMPRESAS

setor privado. A equidade de gênero no ambiente empreendedor só trará benefícios para a economia e para a sociedade como um todo.

No entanto, não podemos falar de empreendedorismo feminino sem levar em conta as diversas interseccionalidades que afetam as mulheres empreendedoras. A interseccionalidade é um conceito que reconhece que as mulheres não são um grupo homogêneo. Suas experiências são afetadas por diferentes fatores, como raça, classe social, orientação sexual, entre outros. Esses fatores podem influenciar as oportunidades e os desafios enfrentados pelas mulheres empreendedoras.

Mulheres negras e indígenas, por exemplo, têm dificuldades em conseguir investimentos e em acessar redes de contatos que possam ajudar a alavancar seus negócios. Elas, ainda, são muitas vezes sub-representadas em eventos de empreendedorismo e em programas de aceleração de negócios. Da mesma forma, mulheres LGBTQ+ podem enfrentar barreiras para se estabelecerem em setores de negócios tradicionalmente masculinos e podem sofrer preconceito e discriminação por parte de clientes e investidores.

Luciana Amância, mais conhecida por apenas Lu, se intitula uma menina, filha de Dadá e Pretinha que cresceu e virou marqueteira e jornalista. Quando criança brincava de escritório, de ser professora e acabou que tudo com que brincava de ser, acabou sendo agora adulta, aos 34 anos. Nascida na periferia de Salvador, cresceu sem saber que era negra e só teve a constatação de identidade racial aos 30 anos de idade. A assessoria de imprensa sempre foi o brilho de seus olhos. Quando viu a oportunidade, deu início ao projeto de sua empresa solo. “A gente precisa ter muito cuidado para não romantizar o empreendedoris-

A jornalista e empreendedora Lu Amâncio trabalha há seis aos assessorando negócios inovadores do Nordeste pelo Brasil afora

Foto: Arquivo Pessoal

“A gente tem talento, não precisa de muito, mas aquilo que nos falta, se nos fosse dado, nos colocaria num outro lugar”
Lu Amâncio, jornalista

e empreendedora

mo. Eu vivia com meu pai e minha mãe. O que é que eles me disseram? Vai, tenta, se der ruim, a gente ajuda a segurar o reggae até você voltar para o mercado, e isso me deu a coragem que eu precisava para apostar no meu sonho”, conta Lu sobre o apoio que recebeu no começo de seu empreendimento.

Iniciar um empreendimento já é um verdadeiro desafio para qualquer pessoa, mas para uma mulher, a jornada é ainda mais complicada. É por isso que a rede de apoio é fundamental para ajudar uma empreendedora a alcançar seus objetivos. A rede de apoio pode ser formada por amigos, familiares, parceiros comerciais, mentores e outras empreendedoras, que oferecem suporte emocional e prático em todas as etapas do empreendimento. Isso inclui desde a concepção da ideia até a expansão do negócio.

No caso de Lu Amâncio, seu maior suporte foram seus pais. Já para Carolina Videira, o caminho foi um pouco diferente. “Eu construí uma rede de apoio. A rede de apoio não chegou pronta, não? Pelo contrário, as pessoas mais próximas, que poderiam ser a minha rede de apoio, achavam que eu estava querendo salvar o mundo, que era um devaneio. Mas eu fui encontrando pessoas ao longo desse caminho, que eu ia contando toda a minha ideia, meu projeto e a cada dez nãos, eu ganhava um sim, e eu ia entusiasmando outras pessoas que toparam empreender junto comigo”, diz a empreendedora.

É preciso ainda levar em conta que nem todos os empreendimentos surgem da mesma forma. Enquanto algumas têm a oportunidade de investir em um negócio a partir de uma ideia ou de uma demanda identificada no mercado, outras acabam empreendendo por necessidade, como meio de sobrevivência. A falta de estrutura para atender a essas pessoas que empreendem

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por necessidade é um problema no país, já que muitas vezes esses empreendedores não têm tempo ou conhecimento para planejar, precificar e entender que o trabalho que fazem é de fato um negócio. Lu Amâncio enfatiza: “A gente não vai partir do mesmo lugar, embora eu seja uma mulher negra, periférica, eu sei que eu tenho estruturas e privilégios, sobretudo hoje, e por isso eu me vejo nessa obrigação de abrir esses espaços que essas pessoas não têm. É vender o almoço para comprar o jantar.”

Embora haja muitos desafios para quem empreende por necessidade, principalmente mulheres negras da periferia, é preciso valorizar a resiliência dessas pessoas. “A gente tem talento, não precisa de muito, mas aquilo que nos falta, se nos fosse dado, nos colocaria num outro lugar”, diz Lu. Para isso, são necessárias políticas públicas que estruturem e apoiem esses empreen-

dimentos, oferecendo recursos financeiros, emocionais e educacionais para que esses empreendedores possam ter sucesso em seus negócios. Além disso, é preciso garantir o acesso à informação e a recursos como crédito e capacitação, para que esses empreendimentos possam se desenvolver.

O empreendedorismo feminino é um motor de mudança que pode transformar a economia e a sociedade. Por isso, é importante que todos nós nos engajemos na luta pela equidade de gênero e pelas condições adequadas para que as mulheres possam prosperar como empreendedoras. Lu Amâncio bem coloca: “Quando eu empreendo e o meu negócio cresce, eu tenho uma oportunidade de trazer outras, de contratar outras. E aí, se outro negócio abre, outros negócios vão abrir, e outros, e outros, e outros. Então, é uma oportunidade de atuar em rede”.

MAIS DE 40% DAS EMPREENDEDORAS SUSTENTAM SUAS FAMÍLIAS COM O DINHEIRO DA EMPRESA, DE ACORDO COM O INSTITUTO REDE MULHER EMPREENDEDORA

O

que está em
iStock
pauta é pensarmos como formar mulheres para um ambiente de poder Foto

A Bancada Feminina e a Procuradoria da Mulher do Senado promovem o “Seminário Mais Mulheres na Política”

Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado

SER MULHER: UM ATO POLÍTICO

A (falta de) participação feminina questiona as garantias do Estado Democrático de Direito

>>>Não há como negar que o ambiente político no Brasil tem muito a avançar até que o respeito, o reconhecimento e a inclusão ocupem as cadeiras da desigualdade de gênero e do machismo sofridos pelas mulheres. Em 2015, adesivos misóginos da primeira e única mulher eleita a governar o país, Dilma Rousseff (PT), de pernas abertas, eram vendidos e colados na entrada do tanque de gasolina dos carros. Já a deputada estadual Isa Penna (PC do B) foi vítima de assédio sexual dentro do plenário da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) ao ter seus seios apalpados pelo também deputado Fernando Cury (União Brasil), diante dos políticos, do presidente da

Alesp e das câmeras. Os casos de Dilma e Isa mostram que nem a presidente da República nem uma parlamentar eleita são poupadas do abuso, da exposição e da diminuição que mulheres sofrem dentro da política apenas por serem mulheres.

A presença feminina na política do Brasil sempre foi bastante limitada. Durante 400 anos, as brasileiras foram proibidas de exercitar o voto e a candidatura. Apenas em 1932, conquistaram o direito ao voto e puderam, pela primeira vez, participar das eleições. Segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o resultado das eleições de 2022 mostrou que, para um total de 513 vagas da Câmara, apenas 91 candidatas foram eleitas, o equivalente a 17,7% da bancada. Ao longo dos anos, sua participação conta com a luta feminista por mais

espaço e respeito na política, e figuras como Luna Zarattini provam os lentos, mas significativos avanços dos últimos anos. Ela é uma das mulheres que representam a parcela feminina na política e batalham pela defesa da mulher brasileira. Além de ser a mais jovem vereadora de São Paulo, é a única mulher da bancada do Partido dos Trabalhadores (PT). Em entrevista à Plural, Luna aponta que a política não foi feita por mulheres nem para elas, o que determina uma estrutura político-burocrática incapaz de compreendê-las. “O desafio de ser mulher na política é transformar esses espaços de fazer política e pensar política, porque, hoje, no Brasil, não tem como a gente pensar qualquer tipo de política pública sem pensar nas mulheres”. Na Câmara Municipal de São Paulo, por exemplo, havia um regulamento, que deixou de existir há pouco tempo, no qual a entrada no plenário só era permitida com o uso de gravata. No entanto, não é uma peça tradicionalmente feminina, o que pressupõe que a Casa seja um ambiente feito para o domínio exclusivo de homens. Como reforça o discurso a favor da mulher na política, prezar por sua representação e participação não implica a ausência de homens nesse cenário. Apenas denota que as esferas de poder sejam compostas proporcionalmente

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COMPOSIÇÃO DA CÂMARA FEDERAL - ELEIÇÕES 2022

Composição da Câmara Federal

-Eleições 2022-

Candidatas(os)

por homens e mulheres, afinal é função primordial desses órgãos atender aos interesses e necessidades do povo por meio de projetos de lei. Como apontou Luna, quando existem mulheres na política, a política se transforma e passa a ser pensada para a maioria da população, levando em consideração que 53% do eleitorado são mulheres, como divulgou o TSE. O nome disso é representatividade. Em resposta ao porquê isso é importante, a ex-deputada estadual de São Paulo Janaina Paschoal (PSL) disse à Plural: “Eu penso que toda forma de representatividade importa na política, por sermos um país plural”.

A presença feminina garante que as necessidades e demandas das mulheres sejam ouvidas e consideradas na formulação de políticas públicas, “a partir de um recorte de classe, raça, um recorte de posição política no mundo para as mulheres”, como disse Luna. “Precisamos organizar políticas para fortalecê-las. Primeiro, na defesa da vida, então contra o assédio, o feminicídio, aborto, ou seja, para estarem vivas. Depois, a autonomia financeira e empregabilidade, discutir a educação delas. Ter essa vivência de mulher pode trazer de fato transformações para a vida das mulheres”. Ela relembrou a frase da ex-presidente do Chile, Michelle Bachelet:

“Para estar na política, você precisa ser uma mulher forte. É uma questão de resistência”

“Uma mulher na política muda a própria mulher. Muitas mulheres na política, muda a política”.

Para Luna, a representatividade permite dar o exemplo. Mostrar à sociedade que esse espaço também pertence às mulheres, para garantir que as políticas e decisões tomadas sejam representativas e justas para todas as pessoas. Em relação a isso, a professora de Relações Internacionais da ESPM-SP Denilde Holzhacker disse à revista: “Os temas de maior impacto político ainda são de domínio dos homens e isso resulta em uma menor espaço para as mulheres também no debate público. Existe um estereótipo de que as mulheres tratam dos chamados temas ligados a casa e à família, então não entrariam nos prin-

Eleitas(os)

Mulheres

TSE Mulheres, 2022

cipais embates políticos”. Na experiência da vereadora, ela fala que o objetivo de muitas mulheres é mostrar que são qualificadas para agir em prol não apenas do gênero, mas de todos os assuntos, como economia, esporte, cultura e educação, que são temas normalmente destinados à perspectiva masculina. “As mulheres têm capacidade de estar nos espaços de comando e de poder. É um absurdo a gente ter tido uma única mulher presidenta do Brasil. Então eu acho que não é o fato de que as mulheres não são preparadas para o cargo, eu acho que é o fato do machismo estrutural existir”, diz Luna.

No Brasil, as mulheres que conquistaram espaços de poder apresentam uma formação política semelhante à dos homens, porém representam uma pequena parcela. “Talvez, se não houvesse machismo, acho que poderia ter estado nesse espaço da vereança antes. Não só eu como muitas outras mulheres, com certeza”, ela diz, em relação à falta de oportunidades para uma mulher construir sua carreira política, enquanto os homens recebem muitos recursos para ingressarem. Existem fatores dentro da política eleitoral que ajudam os homens a começar sua campanha com muitas vantagens em relação às candidatas: “Na grande maioria, a campanha dos

Homens Mulheres Homens Infografia: Gabriela Trevisan Gráfico da composição de gênero da Câmara Federal nas eleições de 2022

candidatos tem mais recursos, tem mais dinheiro. Muitos deles já estão em cargos. O fato de eles já estarem aqui dentro ajuda muito na campanha”. Luna ainda explica que, mesmo com o aumento dos últimos anos das candidaturas femininas, as chances de serem eleitas são menores. Isso acontece, pois, conforme a vereadora, há um descrédito por parte do setor feminino em votar nas candidatas, devido a um preconceito de gênero generalizado.

Além disso, as mulheres que ocupam cargos públicos muitas vezes enfrentam dificuldades adicionais, como a falta de apoio institucional. Numa tentativa de modificar esse cenário, órgãos do governo, como o TSE e o Congresso, têm criado novas leis de incentivo à mulher na política, com o intuito de promover sua participação na vida político-partidária. Por exemplo, o Congresso Nacional promulgou uma lei que obriga todo partido a direcionar no mínimo 30% do Fundo Eleitoral e do Partidário às candidaturas femininas. Conforme a emenda, essa porcentagem é válida também ao tempo de propaganda em rádios e TV aberta e ao número de candidatas, isto é, pelo menos 30% dos políticos de cada partido devem ser mulheres. Em relação a isso, Luna destaca: “Dentro do PT, com a ampliação do Fundo Partidário, com certeza isso aumentou as chances das mulheres, jovens e negras. Tivemos uma boa renovação no país inteiro de candidatura. Foi uma regra que funcionou bastante no PT”. No entanto, os partidos políticos escolhem para quais mulheres o fundo será distribuído e o valor direcionado, além de como serão apresentadas no rádio e na TV. Um desvio frequente é a concentração de dinheiro em poucas candidaturas, deixando o restante sem recursos, mas de uma forma que cumpra o regulamento – são chamadas candidatas-fantasmas. Neste sentido, Denilde

Vereadora de São Paulo, Luna Zarattini, se apresenta no Encontro da Juventude do PT , em Arararaquara FOTO: REPRODUÇÃO INSTAGRAM @GIOVANNACSTNT

“Para estar na política, você precisa ser uma mulher forte. É uma questão de resistência”
Luna Zarattini

reforça: “É crescente a participação das mulheres, mas o Brasil ainda tem uma baixa representação. Os partidos dizem apoiar e dar suporte, mas na realidade falta todo tipo de apoio e suporte às candidatas. É um desafio para as mulheres independentemente do espectro político”. Já para Janaína, a cota representa “bilhões jogados fora”. “Não acredito que os problemas estejam aí”.

Além disso, projetos como o canal de denúncias criado em 2022 pelo TSE, para violência política de gênero, com foco

na época das campanhas eleitorais, são medidas que buscam providenciar segurança às mulheres e oferecer-lhes apoio. Os abusos são fatores de desmotivação ao ingresso feminino no mundo político, tanto que a criação da Lei 14.192, em 2021, que criminaliza a violência política, foi motivada pelo medo comum entre as mulheres de terem sua integridade e proteção ameaçadas. Desse modo, exemplos como o de Rodrigo Pacheco, o atual presidente do Senado, que assumiu o compromisso de nomear uma mulher para ser a líder de seu projeto, a Comissão Permanente pela Defesa da Democracia, incentivam mais mulheres a perseguir uma carreira política.

A agressão causada por gênero assombra a carreira de muitas mulheres e é cometida por pessoas que querem prejudicar o exercício de seus direitos, dentro e fora dos partidos. Essa violência pode ocorrer em diferentes níveis e em diferentes espaços políticos, desde a participação em campanhas eleitorais até a ocupação de cargos públicos. É muito comum localizar esse comportamento

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A ex-deputada de São Paulo, Janaína Paschoal, em discurso no Plenário do Senado FOTO:

no meio virtual, em ataques por publicações ou fake news, mas as candidatas estão expostas a agressão quando saem às ruas durante sua campanha. “Desde questões mais pontuais até outras que envolvem o machismo a seu extremo. O machismo, agressões físicas e sexuais, tentativas de tirar o cunho político das coisas que estamos falando pelo simples fato de sermos mulheres”, disse Luna. Elas são interrompidas quando discursam, excluídas de decisões e difamadas por suas ideais, sem citar a maneira como são desqualificadas diante dos políticos. Os agressores, para intensificar esse cenário de opressão, não somente estão dentro da política como permeiam a imprensa. Denilde diz que, por mais que nos últimos anos a mídia tenha dado maior cobertura para as mulheres em cargos políticos, ainda “temos um contexto atual muito polarizado e algumas pautas são discutidas por esse viés, mesmo na mídia tradicional”. “Os preconceitos com relação às mulheres são muito comuns na cobertura jornalística”. Janaina aponta que a própria mídia dis-

crimina. “Cansei de ser perguntada por jornalistas, homens e mulheres, por que não desistia do Senado. Ninguém perguntou isso aos concorrentes homens.” Para uma profissional que atua na área política há muitos anos e consolidou sua carreira num meio de maioria masculina, a deputada aprendeu que a imprensa pode, em algumas situações, ser tão machista quanto a política.

Oassassinato da vereadora Marielle Franco é um dos mais conhecidos casos de violência política contra a mulher do Brasil. Em 2018, Marielle e seu motorista foram mortos a tiros e nunca houve justiça. Porém, o legado da ativista é símbolo da luta feminista e incentiva a criação de leis em defesa da mulher. Entre elas está o Dia Nacional Marielle Franco. O Governo Federal transformou o dia 14 de março - o mesmo da morte da vereadora – em uma data focada no combate à violência política de gênero e na ampliação desse debate. Foi lançada uma série de medidas em relação às mulheres. Luna explica: “O Dia Marielle Franco é um dia de luta, que vai ficar

marcado para a gente discutir a violência política de gênero, porque o assassinato dela tem a ver com o fato de ela ser uma mulher negra, bissexual e uma mulher na política”. A conscientização do assunto é essencial para compreender a violência em todos os sentidos: a ausência de mulheres em espaços da política e o assédio de mulheres no Parlamento são exemplos de agressões de gênero.

Em resposta a quais são as grandes discrepâncias no tratamento de homens e mulheres, Denilde diz: “Discute-se muito mais a vestimenta e a postura das mulheres do que as ideias e posições. As políticas mulheres são várias vezes subestimadas. Algo que não é visto sobre os homens”. Luna relembra que já passou por momentos em que se sentiu desvalorizada. “Muitas pessoas interpretam de maneira errada a mulher na política. O nosso corpo acaba sendo visto como público, toques, comentários sobre a nossa aparência. Antes de eu assumir como vereadora, já ouvi falarem: ‘Pelo menos você é bonitinha’”. Ela relatou que, muitas vezes, as ameaças a fazem querer desistir, até que pensa em quantas mulheres precisam dela e de sua voz para defendê-las. “Parte de uma aliança, de uma sororidade entre as mulheres, de a gente entender que temos que fazer as batalhas aqui dentro dos parlamentos”.

Por isso, ao falar pelas mulheres que atuam na política,a vereadora entende que exerce um compromisso com as brasileiras e se mantém firme em seus posicionamentos: “Para estar na política, você precisa ser uma mulher forte. É uma questão de resistência”. Em sua experiência, Janaína concluiu: “Creio que pesou mais o fato de eu não transigir”. Mesmo em lados opostos do espectro político, Luna e Janaína são referências de vigor e determinação e reforçam a importância da atuação política das mulheres no Brasil.

MULHER E JORNALISTA, QUER MAIS O QUÊ?

Os desafios e triunfos das mulheres que escolhem seguir carreira no jornalismo

»»» Nos primeiros sete meses de 2022, foram registradas 66 agressões graves, que envolvem episódios de violência física, destruição de equipamentos, ameaças e assassinatos a jornalistas. Esse número representa um crescimento de 69,2% em comparação com o mesmo período de 2021, segundo dados do monitoramento de

ataques contra jornalistas feitos pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji). A quarta edição da pesquisa Visível e invisível: a vitimização de mulheres no Brasil permite estimar que cerca de 18,6 milhões de mulheres brasileiras foram vitimizadas em 2022, o equivale a um estádio de futebol com capacidade para 50 mil pessoas lotado todos os dias. Historicamente no Brasil, as

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Patrícia Campos Mello em cobertura de guerra Foto: @patacamposmelo via instagram

AS MULHERES ENFRENTAM UM CONJUNTO ESPECÍFICO DE DESAFIOS, INCLUINDO ASSÉDIO SEXUAL, AMEAÇAS DE VIOLÊNCIA FÍSICA E ONLINE

MULHERES NO JORNALISMO BRASILEIRO

mim”. A fala do ex-presidente, feita em frente ao Palácio do Alvorada, foi publicada nas redes sociais e gerou uma série de ameaças, menções a estupro e memes de cunho sexual contra ela. Respondendo a perguntas de alunos na aula magna do curso de Jornalismo da ESPM-SP, em março de 2023, ela disse: “Eu chegava num lugar esperando o momento que alguém ia chegar e comentar algum xingamento pornográfico, alguma coisa assim...”

mulheres sofrem ataques e são vítimas de violência em favor do gênero, mas o que acontece com as que escolhem seguir carreira no jornalismo?

Segundo a pesquisa Perfil do jornalista brasileiro 2021, realizada pela Universidade Federal de Santa Catarina, as mulheres já são maioria na profissão, representando 64,1% dos jornalistas atuantes no país. Contudo, a presença feminina não é equilibrada em todos os setores: enquanto na TV as mulheres preenchem mais da metade dos postos de trabalho, com 4.040 profissionais contra 4.007 homens, no rádio elas ocupam apenas 20% do mercado.

Apenas um terço das mulheres ocupa cargos de diretoria ou posições de destaque como editoras-executivas, editoras-chefes, presidentes ou vice-presidentes em veículos de comunicação.

Mulheres Homens

Além disso, a maioria dos órgãos de comunicação ainda é de propriedade de homens, com cerca de 65% dos cargos de poder nas mãos masculinas.

As mulheres enfrentam um conjunto específico de desafios, incluindo assédio sexual, ameaças de violência física e online, além de discriminação baseada em gênero. O artigo Mujeres Periodistas y Libertad de Expresión, de Edison Lanza, diz que a cada dez casos de violência contra jornalistas no mundo, três acontecem com mulheres.

Assédio e abuso de poder são cenas comuns no dia a dia das repórteres brasileiras. Foi o caso da jornalista Patrícia Campos Mello, da Folha de S.Paulo, que foi vítima de ataques do então presidente da República Jair Bolsonaro (PL).

Ele disse: “Ela queria um furo. Ela queria dar o furo a qualquer preço contra

Campos Mello moveu – e ganhouum processo de indenização por danos morais contra o presidente em fevereiro de 2020, representada por Mônica Galvão e Tais Gasparian, duas das fundadoras do Tornavoz. O instituto tem como missão garantir defesa especializada aos que sofrem processos em razão do exercício da manifestação do pensamento e da expressão. Em 2022, a Associação Nacional de Jornalismo (ANJ) concedeu a Gasparian e ao Tornavoz o prêmio Liberdade de Imprensa em razão do trabalho “na defesa da liberdade de imprensa em um ambiente de crescentes ameaças e dificuldades ao jornalismo”.

Patrícia contou um pouco de como esse processo foi para ela, como mulher e jornalista. “Aquilo aconteceu pra mim de uma forma tão bizarra, tão ‘meu deus do céu, o que tá acontecendo?’. Eu nunca fui processada , e eu também nunca tinha processado ninguém, então não é uma coisa típica não é uma coisa que eu faria naturalmente. E a gente, eu digo como corpo de um jornal (eu pessoalmente processando), eu tive assistência jurídica do jornal.

Fonte: Perfil do jornalista 2021

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ASSÉDIO E ABUSO DE PODER SÃO OCORRÊNCIAS COMUNS NO DIA A DIA DAS REPÓRTERES

Tenho o privilégio de ter uma advogada que faz isso de graça, o que não é a realidade de muitos que precisam. Foi uma percepção de que isso não ia parar, porque era um negócio que eles (autores dos ataques) começaram a repetir essas alegações sexuais em vários lugares, eles iam em podcast de 5 milhões de pessoas, eles iam fazer um vídeo.”

A jornalista moveu diversos processos por conta da onda de ataques, ganhou muitos deles, mas também perdeu alguns. “Me deu muita esperança de que tem ainda uma independência do Judiciário em certos lugares, assim como alguns não. Tem processos que eu perdi e estou recorrendo.”

Segundo pesquisa da Abraji sobre mulheres no jornalismo, 64% das jornalistas que participaram do estudo já sofreram abuso de poder ou autoridade de chefes ou fontes.

A jornalista Beatriz Trevisan, produtora e apresentadora do podcast O ateliê junto com Chico Felitti, passou por um episódio similar. Ao entrevistar Rubens Espírito Santo, investigado por liderar uma seita suspeita de praticar violência contra estudantes, Trevisan teve sua capacidade questionada e foi alvo de comentários sexuais e assédio por parte da fonte. “O tom dele comigo, as coisas que ele falava para mim, ele só falava para mim porque eu era mulher, mesmo sendo uma mulher, uma profissional, uma jornalista que estava ali junto com o Chico, falando com ele no mesmo tom, fazendo as mesmas perguntas para ele”, disse. “Eu não estava ali numa posição de assistente do Chico. Ele me apresentou como jornalista, eu sou jornalista e gente veio perguntar sobre tais coisas. Para mim, ele sempre fazia comentários sexuais ou para tentar questionar o meu conhecimento ou a minha formação”. Beatriz lembrou que Rubens sempre recorria

Beatriz Trevisan teve sua capacidade questionada e foi alvo de assédio

Foto: Reprodução Instagram

O tom dele comigo, as coisas que ele falava para mim, ele só falava para mim porque eu era mulher Beatriz Trevisan, jornalista

ao consentimento para justificar suas acusações, ele dizia que todos os participantes da seita estavam lá porque queriam. “Então ele virou pro Chico: ‘Chico, se eu mandar você comprar um charuto, você vai?’ Para mim, era ‘Beatriz, mostra os peitos. Se eu falar pra você mostrar os peitos você vai mostrar? Se eu falar que vou cuspir na sua boca?’ Era sempre assim: ‘Ah, sobe na mesa e fica pelada’, sabe?”

Após a repercussão do podcast, Trevisan foi alvo de muitas críticas. É claro, todo trabalho publicado na internet está sujeito a comentários e críticas negativos, mas foi a natureza dos comentários que chamou a atenção. Ela

conta um pouco sobre isso. “Eu acho que O ateliê para mim foi uma experiência de como o mundo funciona com mulheres. É então primeiro comigo, por ser uma jornalista jovem. É tendo uma voz mais fina falando sobre um crime, então as pessoas acham que podem falar sobre quem podem criticar, porque eu sou uma mulher.” O que nos faz refletir muito sobre o policiamento de vozes femininas.

O artigo From Upspeak to Vocal Fry: Are We Policing Young Women’s Voices? publicado na NPR em 2015 discute como a maneira como as mulheres jovens falam é frequentemente criticada e considerada irritante ou inadequada para certos contextos profissionais. O upspeak pode ser considerado como falta de confiança ou insegurança, enquanto um tom assertivo ou mandão é frequentemente criticado como rude ou agressivo. O vocal fry é frequentemente associado a uma imagem negativa de mulheres jovens, vistas como preguiçosas ou pouco ambiciosas. Curioso observar que esses pontos foram os mais criticados em relação às vozes tanto da apresentadora do podcast quanto da personagem principal, Mirella Cabral. Trevisan reflete: ”Se ela tem uma voz um pouco mais grossa e ela fala sem chorar sobre violência, se ela fala do jeito mais incisivo, ‘é chata, é arrogante.’ Não é vítima, não pode ser vítima.”

Ser mulher e jornalista tem um lado muito lindo. A capacidade de transformar a vivência do machismo como combustível para a profissão. Claro que a desconstrução dos preconceitos baseados em gênero, principalmente dentro do jornalismo ainda tem um longo caminho para percorrer. É importante que cada vez mais mulheres tenham lugar na profissão e usem suas vozes para mudar essa triste realidade.

Representatividade da periferia na mídia

O Nós, mulheres da periferia é um portal de notícias independente, feito por mulheres periféricas. “Somos mulheres que criaram um site para escrever textos e registrar histórias que não encontravam em lugar nenhum”, diz apresentação do grupo no portal. A cofundadora do Nós, Jéssica Moreira, esteve presente no bate-papo de lançamento da 17ª edição do Troféu Mulher imprensa, em maio último na ESPM-SP. O tema deste ano foi regionalidade, mais especificamente a diversidade regional dentro e fora das redações.

Durante sua participação, Jéssica fez uma análise sobre o cenário de maior representatividade da periferia na mídia e da conquista dos direitos das mulheres nos últimos dez anos. Ela reconhece que avançamos muito, mas os desafios não deixam de existir. “Tem que ser discutidas políticas públicas pensadas para comunicação local, para financiamento da comunicação local e é

necessário multiplicar esse conhecimento que a gente vem adquirindo para que outras tantas mulheres, outros estudantes, as populações negras, indígenas, periféricas, também possam se utilizar desse jornalismo que nasce a partir dos territórios.”

É muito importante que existam coletivos como o Nós. Os vieses subconscientes dos leitores são muitas vezes construídos pela grande mídia, que frequentemente separa pouco espaço para a discussão de realidades diferentes. Veículos independentes podem abrir contrapontos e trazer mais diversidade.

Jéssica Moreira, cofundadora do Nós, mulheres da periferia Foto: arquivo pessoalarquivoreprodução Instagram
Logotipo do portal Reprodução

>>> A imagem corporal de uma mulher é reformulada todo ano, quase que instintivamente. Segundo Audrey Souza e Viviane Campagna, do Instituto de Psicologia da USP, no artigo Corpo e imagem corporal no início da adolescência feminina, publicado em 2006, à medida que os padrões estéticos avançam e se modificam conforme o que está em alta, ou melhor, o que está “na moda”, nós mulheres tendemos a também nos padronizar. Independentemente da infinidade de corpos que existam, os padrões ainda prevalecem e atingem negativamente quase toda a população de uma vez. Tal perspectiva é também reforçada nos dias de hoje. Uma pesquisa realizada pela organização britânica Girlguiding revela que a autoimagem de meninas e adolescentes piorou durante a pandemia, apontando que 25% das garotas entre 7 e os 10 anos “se sentem pressionadas a ter um corpo ‘perfeito’ e 15% se sentem envergonhadas em relação à sua aparência”.

De acordo com uma pesquisa feita pela marca Dove em 2018, A verdade sobre a beleza, apenas 4% das mulheres brasileiras se sentem bonitas consigo mesmas. Esse levantamento não traz somente uma reflexão de como nós, como sociedade, estamos enfatizando a beleza nesses padrões estéticos majoritariamente magros, mas também, uma problematização de como poderíamos mudar esse olhar interno que a autoestima requer para que nos aceitemos.

Conforme as autoras, ao longo da adolescência crescemos com uma idealização do que é “superior” e consequentemente, inalcançável. Meninas, jovens mulheres ou até mulheres adultas sempre tiveram como sombra a busca por uma realidade alterada, muitas vezes vista e alimentada

PRESSÃO ESTÉTICA E CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADE

A busca incançável de mulheres por um corpo “ideal” e a dificuldade de jovens meninas de consolidarem suas personalidades

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A busca pelo “corpo ideal” persegue mulheres desde seus primeiros anos de vida

A PANDEMIA E O EXCESSO DE EXPOSIÇÃO NO AMBIENTE ONLINE TROUXERAM AINDA MAIS COMPLEXIDADE AO PROCESSO DE ACEITAÇÃO DAS ADOSLESCENTES

pelas redes sociais. Essa utopia declarada desde cedo trouxe consequências na vida de muitas mulheres que carregam consigo influências corporais de outras mulheres que também não se vêem satisfeitas com seus corpos, mas ainda sim compartilham da magreza online.

A adolescência como um todo envolve questões muito maiores do que um simples corpo revestido de hormônio. Sendo assim, as autoras descrevem esse período de puberdade como “processos biológicos que culminam com o amadurecimento dos órgãos sexuais”. Podemos pontuar então a juventude como a mudança de processos corporais, mas também psicológicos, e é neste momento que a falta de maturidade em discernir corpos e estruturas ainda é presente.

Audrey e Viviane abordam também o modo como as meninas em fase de construção de identidade se portam em relação a seus corpos. Deste modo, “observando-se esta questão do ponto de vista do desenvolvimento feminino, percebe-se que, além da dificuldade intrínseca de fixar uma imagem de si, mesmo que temporária, nesse corpo em transformação, a jovem, em nossa sociedade ocidental contemporânea, tem que lidar com novos desafios, trazidos pela globalização e forte influência dos meios de comunicação nos comportamentos humanos”.

A questão da globalização abordada pelas autoras investiga a massa padronizada que hoje, e mesmo décadas atrás, jovens mulheres estão visando como base de inspiração. Quando se tem uma alta e forte pressão global sobre um corpo estereotipado e visto como o “certo” a se influenciar, atingindo essas meninas em período decisivo com questões de beleza, há uma resistência delas de manterem uma “imagem fixa” de si mesmas. O corpo gordo, o corpo magro e o corpo saudável, muitas das vezes, não possuem nada em comum.

novas tendências de beleza inalcançáveis para mais que a metade da população feminina brasileira.

As redes proporcionaram a ela uma mania de comparação que antes nem sequer a estudante temia. Pietra enfatiza a importância de tentarmos ao máximo nos adaptar às mudanças sempre dentro do nosso limite, uma vez que “nosso corpo é nosso lar e onde vamos passar o resto de nossas vidas, e com isso, devemos priorizá-lo a todo custo”.

Há enraizada culturalmente a ação de nos apontarmos 1.001 defeitos próprios que muitas vezes são pensamentos de autossabotagem, defeitos que de fato não existem. Essas mesmas questões em outros períodos históricos não eram vistas com esse grau de negatividade. A relação que era imposta sobre a corpulência vinha com referência à fartura, com corpos propositalmente avantajados, ou seja, ser gorda naquela época era sinônimo de riqueza.

O impactO das mídias

As redes sociais podem ser interpretadas de inúmeras maneiras. Em princípio, têm indícios de fonte de informação, opinião pública ou lifestyle. Mas não é sempre assim que essa ferramenta online estimula seu público. Pietra Bessa, de 19 anos, estudante de administração, diz que já foi influenciada pelas redes de maneira negativa e que “muitas vezes o que é mostrado nem sempre é real, ou melhor, nunca é”. A estudante também acredita que somos impactadas de maneira quase homogênea quanto às

A Vênus de Willendorf, conhecida também por Mulher de Willendorf, é uma escultura esculpida por volta de 25 mil antes de Cristo. Essa obra é uma representação clara de como o corpo feminino era tratado anteriormente. Busto grande, quadril largo, cintura grossa, culote marcado e furos na parte traseira que representavam celulites. Alguns autores interpretam a estátua como a Deusa Mãe-Terra (Grande Mãe) da cultura europeia no tempo Paleolítico. O símbolo que faz referência à fertilidade poderia ser representado também por um símbolo de segurança, de sucesso e de bem-estar.

Trazendo para o momento atual, com a pandemia da Covid-19, jovens em geral ainda mais submersas no universo online tiveram diversas consequências que afetaram significativamente sua autoestima. Enaltecendo perfis online, cerca de 84% das brasileiras com apenas 13 anos já apli-

Foto: reprodução instagram pietra bessa Pietra Bessa defende a adaptação às mudanças naturais dos corpos

caram filtros ou photoshop em suas fotos, segundo uma pesquisa do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) em parceria com a marca Dove. O estudo também destaca que 75% dessas mesmas meninas “gostariam que o mundo se concentrasse mais em quem elas são, em vez de em sua aparência”, reforçando ainda mais como é exorbitante o distúrbio de imagem e a forte concorrência estética de todas estarem padronizadas.

A balança é considerada crucial nesse processo e é inegável que a ferramenta faça com que essas jovens sofram ainda mais com seus corpos. Milhares de profissionais da saúde ainda se dispõem a mudar o conceito de “corpo ideal” e mostrar que a balança não passa de números, uma vez que o saudável é construído no dia a dia. A personal trainer Laice Nogueira, de 30 anos, reforça que a maioria das jovens adolescentes de hoje ainda se prendem aos números.

Ela conta que há uma enorme necessidade em educar acerca do que é fundamental, precisando então “entender como a pessoa está por dentro, se há alguma patologia, se existem predispo-

sições a doenças ou alterações fisiológicas, como: diabetes e colesterol alto”, em vez de focar exclusivamente no que é mostrado pela pequena tela do aparelho de pesagem.

A profissional continua acrescentando que esse tipo de comportamento com a balança é “outro fator que está enraizado na cultura”, e que “a maioria se apega a quanto estão pesando, quando na verdade, o que é importa é a composição corporal”. Laice finaliza afirmando a importância da transformação de hábitos na nossa rotina que estimula naturalmente o alcance a uma vida saudável, como a ingestão de água em maior quantidade, por exemplo, e completa dizendo que acredita no trabalho multidisciplinar o qual une dois ou mais profissionais especializados naquilo que o paciente precise, sempre alinhados a criar uma estratégia a fim de beneficiá-lo.

Tornou-se febre nos últimos tempos um “remédio milagroso” mais conhecido por Ozempic. O medicamento injetável é receitado para pacientes com diabetes, sendo “utilizado para reduzir o açúcar no sangue (glicose sanguí-

Foto: Reprodução Creative Commons 32/33 A “Mulher de Willendorf”, de 25 mil anos antes de Cristo, retrata o que seria a composição real do corpo feminino Para Laice Bessa, é importante dar destaque à composição corporal Foto: acervo pessoal Laice Nogueira

A nutricionista Andrea Burgos sustenta a importância de um “acompanhamento empático” dos pacientes

nea) em adultos com diabetes tipo 2”, de acordo com a própria bula. O que impulsionou pessoas não diabéticas a fazerem o uso do Ozempic foi o fato de que o medicamento reduz a fome, fazendo com que a ingestão de alimentos no decorrer do dia diminua. Mas também houve muita influência dos assuntos que circulam nas redes sociais, por grandes e pequenos criadores de conteúdo.

Elon Musk, empresário e diretor-executivo do X (ex-Twitter), publicou recentemente o “segredo” de aparentar estar saudável. Ao ser questionado, sua primeira resposta foi breve: “Jejum”. E logo depois acrescentou: “Wegovy”. Wegovy tem o mesmo princípio ativo do Ozempic, que é comercializado no Brasil, a semaglutida, estimulante na secreção de insulina. “A publicidade gratuita feita por ele fez com que muitas pessoas fossem em busca da medicação que é semelhante à Ozempic”, segundo texto publicado pelo Jornal do Commercio.

A cantora Jojo Todynho também apareceu nos stories do Instagram relatando sua experiência com o medicamento, dizendo aplicar duas vezes por

RELAÇÃO ENTRE EMAGRECIMENTO E BELEZA PRECISA SER MUITO

DISCUTIDA

83% DAS BRASILEIRAS DE 13 ANOS JÁ APLICARAM FILTROS ÀS SUAS PUBLICAÇÕES

semana, o que causou burburinho entre seus seguidores. A empresa fabricante do Ozempic, Novo Nordisk, emitiu uma nota refutando a maneira como Jojo utiliza a caneta emagrecedora dizendo: “A companhia não endossa ou apoia a promoção de informações de caráter off-label, ou seja, em desacordo com a bula de seus produtos”.

O que muitos não sabem é que os efeitos colaterais podem variar desde leves a graves. As reações mais comuns podem iniciar com diarreias e enjoo. As moderadas são seguidas por sensação de tontura, pulso rápido, alteração do paladar e no gosto de alimentos e bebidas, ou até refluxo e azia. Já os efeitos colaterais graves podem aparecer por inflamação no pâncreas (pancreatite aguda), reações alérgicas graves incluindo reações anafiláticas e complicações da doença do olho diabético.

A nutricionista Andrea Burgos explica o malefício do uso desse medicamento e diz que “o Ozempic gera uma lentificação do sistema digestório fazendo com que a pessoa se sinta empachada, cheia”. “O uso descontrolado dessa subs-

tância tem sido alvo de grande preocupação para nós da área da saúde. A desnutrição é o primeiro complicador, em seguida efeitos do sistema digestório e efeito sanfona”, completa.

Dessa mesma maneira, a advogada Renata Guimarães emagreceu consideravelmente nos últimos meses com o uso do remédio injetável. Ao comparecer a um evento casual entre amigos, ela relatou: “Nunca fui tão elogiada em toda a minha vida. Essa situação está me fazendo refletir sobre os padrões sociais”. Isso porque, assim que chegou ao local, ela ouviu várias vezes frases como “Nossa, como você emagreceu, está linda!”. A relação imediata do fator emagrecimento com a beleza é algo que ainda precisa ser muito debatido para que essa visão se desconstrua.

Andrea Burgos, por fim, fala que no âmbito da nutrição, ainda que no que diz respeito ao emagrecimento, pode ser feito “um acompanhamento mais empático, sem pressões desnecessárias por parte dos profissionais da saúde”, estando atentos aos sinais dos pacientes para um melhor cuidado e supervisão.

Renata Guimarães relata sobre a polêmica de usos de remédio para emagrecer Foto: Arquivo Pessoal Andrea Burgos Foto: Arquivo Pessoal Renata guimarães

>>>“Nossa,como a Maria está velha, cheia de rugas”. “Você tem idade para ser a mãe dele”. “Você acha que tem idade para usar essa roupa?”. Quem nunca ouviu ou até mesmo falou alguma dessas frases? A Organização das Nações Unidas (ONU) classificou, em 2021, a discriminação por idade como um desafio global. Em um relatório divulgado conjuntamente por quatro de suas agências e fundos, incluindo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a entidade estimou que uma em cada duas pessoas no mundo tenha atitudes discriminatórias que pioram a saúde física e mental de pessoas idosas e reduzem sua qualidade de vida.

O etarismo pode ser entendido tanto como o preconceito contra pessoas de idade avançada, quanto também como o temor e a rejeição ao envelhecimento. Essa discriminação pode se manifestar por meio de violência psicológica, verbal e até mesmo física em diferentes meios, como nas relações familiares, nas universidades e no mercado de trabalho. Embora afete também pessoas jovens, são os idosos quem mais sofrem com o etarismo no Brasil e no mundo.

Em 2019, a Universidade de São Paulo (USP) iniciou a participação na campanha #OrgulhoPrateado. Dos dias 28 de outubro a 1º de novembro, esse movimento tinha o objetivo de conscientizar e combater o preconceito contra idosos. “Esse preconceito, que em última instância afeta a todos que envelhecem, ainda é pouco discutido e pode ser encontrado nas atitudes, práticas e pensamentos discriminatórios, bem como nas políticas institucionais que excluem ou limitam a participação dos idosos”, de acordo com o jornal da instituição.

A menopausa, diferente de ser moti-

O ETARISMO E OS TABUS EM TORNO DA IDADE

A importância da representatividade na quebra de estigmas
Michelle Yeoh, primeir mulher 60+ a ganhar um Oscar
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Foto: reprodução instagram / michelle yeoh

A cantora Madonna foi bastante criticada e vítima de etarismo por sua aparição no Grammy Foto: Reprodução/Metropoles

vo de vergonha, deve ser vista como uma maneira de simbolizar uma trajetória de vida. Madonna, diva pop, já com seus 64 anos de idade, sendo eles 40 de profissão, carrega consigo inúmeros prêmios históricos que farão com que décadas à frente saibam dela. Recentemente, em fevereiro de 2023, a cantora foi vítima de etarismo, ridicularização pela sua aparência e até mesmo dismorfia facial no Grammy Awards. Comentários como: “O que foi que ela fez no rosto?”, “está completamente irreconhecível” ou “é melhor parar de mexer nesse rosto e fazer as pazes com o espelho”, fizeram com que Madonna se pronunciasse nas redes devido a

tamanha repercussão. “Mais uma vez, estou presa no olhar do preconceito e misoginia que permeia o mundo em que vivemos”, disse Madonna.

Outro discurso inspirador, também numa grande premiação, foi o de Michelle Yeoh, atriz do filme “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo”. No Oscar de março deste ano, Michelle, de 60 anos, foi a primeira asiática a ganhar seu primeiro Oscar de Melhor Atriz e discursou sobre essa oportunidade dizendo: “Obrigada a todos os meninos e meninas que se parecem comigo que estão assistindo, isso aqui é símbolo de esperança e possibilidade, de que todos os sonhos se tornam realidade. E,

ESSA DISCRIMINAÇÃO PODE SE MANIFESTAR POR MEIO DE VIOLÊNCIA PSICOLÓGIC A, VERBAL E ATÉ MESMO FÍSICA EM DIFERENTES MEIOS RECENTEMENTE, MADONNA FOI VÍTIMA DE ETARISMO, RIDICULARIZAÇÃO PELA SUA APARÊNCIA E ATÉ MESMO DISMORFIA FACIAL NO GRAMMY AWARDS

senhoras, não deixem ninguém dizer que vocês já passaram do seu auge. Nunca desistam”.

PatríciaLinares, aluna de 45 anos vítima de etarismo por meninas de uma faculdade particular de Bauru, escreveu nas redes sociais que o discurso da atriz a inspirou e que parecia que Michelle falava diretamente com ela. A estudante foi alvo de deboche vindo de três alunas jovens, apenas por ela ter mais de 40 anos e estar cursando uma graduação. “É um sonho de adolescência que nunca pude realizar porque tive várias interrupções de estudo. E agora também não vou desistir, o sonho não morreu dentro de mim”, explica.

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Háclaramente características que tornam uma pessoa, majoritariamente mulheres, foco dos olhares sociais discriminativos. Cabelos brancos, rugas, flacidez nos braços e pernas por exemplo, levam mulheres a se tornarem vítimas de diversos procedimentos estéticos que muitas das vezes são reflexos de uma opressão estrutural. Tatiana Vasconcelos, âncora da rádio CBN, persiste em dizer que o etarismo já está presente só por já termos uma problematização com os cabelos grisalhos. “O etarismo é presente e invisível para quem pratica e chocante para quem sofre.

O fato de o cabelo ser um assunto já é sinal. Tive cabelos de todos os jeitos e cores e não me lembro de ter de falar tanto deles quanto dos meus brancos. Esse já me parece um sintoma”, conta a jornalista. Ela continua dizendo que a juventude possui um alto valor na sociedade, a qual foi construída historicamente e apenas se adaptou para os dias de hoje. A radialista ainda comenta que gosta “de relembrar os movimentos de caça às bruxas do século 17, que perseguiam e queimavam sobretudo as mulheres mais velhas. Essa lógica foi se adaptando até hoje em dia, em que jovens de 25 anos se sentem velhas, em que os sinais físicos do passar do tempo, como flacidez, rugas de expressão ou cabelos brancos são considerados feios e inadequados, quando deveriam ser entendidos como algo inexorável e natural”. Tatiana finaliza aconselhando meninas e mulheres de hoje, dizendo que o importante é sabermos nos ouvir e não ultrapassarmos o limite do nosso corpo, ainda que seja difícil a pressão estética estabelecida e existir de maneira confortável quando quase tudo ao redor diz que você está inadequada.

Rosa Saito, modelo de 72 anos considerada inspiração para diversas mulhe-

Tatuadora filipina quebra estigmas posando com suas dezenas de tatuagens pelo corpo

ESSA PRÁTICA É UM SÍMBOLO O QUAL EXTERIORIZA HISTÓRIAS E TRANSMITE CONHECIMENTOS TRAZIDOS DE SEUS ANCESTRAIS

res mais velhas que também sonham em trabalhar no ramo da moda, já esteve presente nas passarelas da fashion week e explica que em situações como no camarim ou as preparações para os desfiles, sempre foi tratada da mesma maneira que meninas de 16, 18 ou 20 anos. “Você deve enfrentar por igual, mesmo junto de meninas mais novas. Eu tenho 72 e sou tratada igualmente à elas, isso me deixa muito feliz”, comenta. A modelo continua dizendo que a idade é só mais um número e que “precisamos correr atrás daquilo que sonhamos a vida toda, mas tivemos trabalhos e famílias que não podíamos nos dedicar. Não importa se é pra dançar, se é pra namorar, se é pra aprender línguas

Foto: Reprodução de capa da Vogue Filipinas com foto de Renee de Guzman
“O etarismo é presente e invisível para quem pratica e chocante para quem sofre. O fato do cabelo ser um assunto já é sinal. Tive cabelos de todos os jeitos e cores e não me lembro de ter de falar tanto deles quanto dos meus brancos. Esse já me parece um sintoma”
Tatiana Vasconcelos

A radialista Tatiana Vasconcelos diz que só o fato do cabelo grisalho ser assunto já é sinal de preconceito

Foto: Arquivo Pessoal / Tatiana Vasconcelos

estrangeiras”, aconselha Rosa.

Numa tribo filipina chamada “Kalinga”, tatuagem é sinônimo de beleza e força interior, além de deixar marcas de uma vida. A tatuadora filipina Apo Whang-Od foi capa de abril deste ano da revista Vogue Filipinas. Apo tem 106 anos e pratica o batok, estilo indígena de tatuagem. Essa prática é um símbolo o qual exterioriza histórias e transmite conhecimentos trazidos de seus ancestrais. Segundo o portal de notícias Globo, “acredita-se que os desenhos em sua pele os protegem de espíritos malignos e viajam com eles para a vida após a morte, enquanto os bens tangíveis não”. Mais do que ser referência na tatuagem, ela foi a pessoa mais

modelo Rosa Saito ingressou no ramo da moda com 64 anos e se tornou inspiracão para diversas mulheres 50+

velha a posar para a capa da Vogue, quebrando estereótipos pela idade que tem e as diversas tatuagens em seu corpo.

A menopausa é outro tópico pouco discutido, mas muito apontado como uma fase de transição da mulher para a velhice. Antes de ser visto dessa forma, esse fenômeno deve ser interpretado como um período de liberdade, autoconhecimento e busca por novas realizações. O preconceito e a falta de informação recorrente são grandes inimigos das mulheres que passam pelos 50 anos, e consequentemente pela menopausa, e buscam maneiras de se adaptar às mudanças naturais do corpo, com o fim do ciclo reprodutivo, reforçando a beleza dessa nova fase.

Em uma entrevista feita no Jornal da Tarde pela TV Cultura, Carmita Abdo, psiquiatra e coordenadora do núcleo de medicina sexual do Hospital das Clínicas, explicou que “a menopausa é um tabu porque é um fenômeno muito recente se a gente pensar que as mulheres passaram a viver além dos 50 anos não tem muito tempo. Portanto, algo que vem sendo estudado, conhecido, discutido há pouco mais de 100 anos”. A especialista acrescenta dizendo que é importante o autocuidado por parte dessas mulheres nesse momento transitório de tantas mudanças, começando pela boa alimentação, hábitos saudáveis como exercícios físicos e uma boa noite de sono.

A Foto: Arquivo Pessoal / Rosa Saito

“Uma em cada quatro meninas não tem acesso a absorventes, segundo dados da Fiocruz Foto: Ollykava / IStock

POBREZA E VULNERABILIDADE MENSTRUAL

Ainda hoje cresce o número de meninas que sofrem com a escassez de saneamento básico, absorventes e remédios que amenizam cólicas menstruais

>>> Ao redor do mundo, diversas meninas sofrem ou já sofreram com pobreza menstrual. No Brasil o número de garotas atingidas por esse fenômeno é ainda mais alarmante, chegando a 713 mil meninas sem acesso a banheiro ou chuveiro dentro de suas casas, e mais de 4 milhões sem acesso a

itens mínimos de cuidados menstruais nas escolas, de acordo com o estudo do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).

A pesquisa mostra ainda que a pobreza menstrual não deve ser somente associada a falta de absorventes ou a princípios menstruais, mas também a ausência de saneamento básico (água encanada e esgotamento sanitário), falta de aces-

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so a medicamentos para amenizar problemas acarretados pela menstruação, “falta de informação sobre saúde menstrual e autoconhecimento sobre o corpo e os ciclos menstruais”, além dos “estigmas e preconceitos sobre a menstruação que resultam na segregação (ou separação) de pessoas que menstruam de diversas áreas da vida social”.

A pobreza menstrual tem a ver então com a pobreza no sentido literal da fala. “No dia a dia, a vulnerabilidade faz com que essas pessoas recorram a outras alternativas para conter o sangue menstrual, como panos velhos, jornais, papel higiênico e até mesmo miolo de pão amassado”, segundo o portal jornalístico Colabora. A falta de acesso a água impossibilita uma higienização correta no período menstrual sobre quaisquer métodos de absorção do sangue, sejam eles através de absorventes descartáveis, coletores menstruais ou calcinhas absorventes. Um levantamento feito pela marca Sempre Livre aponta que 22% das jovens brasileiras de 12 a 14 anos “não têm acesso a produtos de higiene no período menstrual. “Quando se trata de adolescentes entre 15 e 17, o número sobe para 26%”.

Esses apontamentos nada mais são do que um reflexo desigualdade da sociedade brasileira por também rebater questões de cunho racial diante dessas adolescentes. Segundo dados apresentados no relatório, as chances de uma menina negra morar em uma casa que não possui banheiro são três vezes maiores do que a de uma menina branca, “o que expõe, ainda, que a população negra é a que está em maior número quando se fala em vulnerabilidade social”.

A dificuldade em se falar sobre a menstruação e introduzir este assunto até mesmo dentro de casa diz muito sobre a vida e as etapas que uma adolescente deve enfrentar hoje em dia. Uma socie-

Ginecologista Dilma de Moraes expressa inconformismo com a falta de auxílio que muitas meninas sofrem

Foto: Reprodução Instagram / Dilma De Moraes

dade na qual essas mesmas meninas escondem os absorventes e até se envergonham ao serem vistas comprando, é algo crucial para refletirmos e entendermos o porquê de tantas jovens crescerem e passarem por toda a fase da primeira menstruação sem nunca terem conversado com familiares e amigos sobre o assunto e consequentemente, passarem por todo processo sozinhas.

Pietra Mari, estudante de 13 anos, menstruou com apenas 11 anos e relatou sua experiência com a chegada da menstruação. “Assim que eu menstruei, pedi para a minha mãe não contar para ninguém porque, além da vergonha que eu estava sentindo, o assunto era pouco falado entre as meninas da minha sala. Acho que elas sentiam a mesma coisa que eu, vergonha dos meni-

nos e de como isso iria ser visto por eles. Bobeira de adolescente”., disse. A adolescente completa dizendo que a TPM (tensão pré-menstrual), também foi algo que acarretou significativamente nas suas relações pelo fato de que em algumas semanas do mês, ela se sentia estressada e expunha isso, mas os colegas da classe não entendiam. “Isso acontecia tanto dentro de casa com os meus irmãos quanto na escola, na sala de aula. Me viam como a ‘estressadinha’ que sempre se enfurecia por coisas simples e sempre estava de TPM”.

Há diversos alertas os quais nós, enquanto cidadãos, devemos tornar sufocantes até que esse estigma mude. A ginecologista e obstetra Dilma De Moraes diz: “Infelizmente, no nosso país, ainda existe pouca informação sobre as diversas fases da vida da mulher, principalmente no interior dos estados. A desinformação leva as adolescentes a não saberem o que é um ciclo menstrual, não conhecerem o próprio corpo, não terem noção de higiene e muito menos acesso a absorventes”. A médica continua pontuando ainda outra desigualdade a qual se é pouco comentada. “Vivemos num mundo machista, distribui-se camisinha nos postos, mas nãoabsorventes. Pense nas moradoras de rua ou detentas que menstruam e não tem nada que as oriente nem em relação à higiene e muito menos à saúde. E o pior é que muitas dessas meninas param de estudar devido a vergonha desse período menstrual”.

Dilma finaliza sua fala trazendo conselhos sociais os quais poderiam beneficiar essas meninas nos períodosmenstruais. “Acredito que mais informações na escola, ou mesmo o governo criar nas UBS planos de conscientização para adolescentes, programas com distribuição de absorventes, médicos especialistas nessa área, podem auxiliar extraordinariamente essas jovens”.

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ENTREVISTA: CECÍLIA AMADO CINEASTA

NÃO TEM NENHUM ESPAÇO QUE A MULHER NÃO CONSIGA IR

Foto: Mariano Mantel/CC

A NETA DE JORGE AMADO E ZÉLIA GATTAI, APESAR DE CARREGAR O PESO DO SOBRENOME, CONSTRUIU UMA LINDA TRAJETÓRIA POR CONTA PRÓPRIA. ELA DISCUTE O FEMINISMO ATRAVÉS DAS SUAS EXPERIÊNCIAS COMO PROFISSIONAL E MULHER.

»»» Cecília Amado, diretora e roteirista carioca, iniciou a carreira em 1995 e, desde então, sempre esteve muito engajada com a luta feminista. Ela fundou na Bahia a sua produtora Tenda dos Milagres, que costuma dialogar com o universo infantojuvenil e levantar a bandeira do cinema nordestino. Uma parte significativa das suas produções tem uma angulação em comum: dificuldades, desejos, confissões e conquistas de meninas e mulheres contemporâneas.

Cecília está no cinema desde o início da Retomada, período após a crise cinematográfica na década de 1990, até os dias de hoje e acompanhou todas as transformações desse ramo. Ela conta à Plural que na época em que adentrou o mercado seguiu o exemplo de Carla Camurati, cineasta brasileira, com o filme Carlota Joaquina, Princesa do Brazil, e por isso, almejava a possibilidade de mulheres conquistarem espaço no audiovisual. “É muito importante que mulheres estejam atuando porque isso repercute na história final, não só na da diretora ou das atrizes, mas toda a cadeia vai repetir no final”, comenta Cecília.

Ela já entrevistou todos os tipos de pessoas nos mais variados lugares, desde aldeias exóticas a mansões de luxo. Em meio ao leque de histórias, vidas e personagens de suas produções, Cecília afirma

NINA VON SÖHSTEN
“(...) EU ACHO QUE A GENTE SEMPRE TEM QUE PENSAR EM FEMINISMOS, PORQUE NÃO EXISTE UM PENSAMENTO QUE SEJA COMUM A TODAS AS MULHERES”

ser difícil escolher o mais interessante. “É uma vida constituída há bastante tempo, então entender como funciona o processo de educação dentro do Movimento Sem Terra foi lindo. Fomos em duas escolas, os valores de educação são muito altos e muito importantes” conta Cecília, sobre a produção da série “Toda Menina Baiana”, gravada no assentamento do MST na Chapada Diamantina, parque nacional localizado na Bahia.

A discussão acerca do que é feminismo é algo bem claro para Cecília. Além de ser um conceito importantíssimo, ela acredita que deve ser visto como “plural”, já que para a vida de cada mulher se aplicam diferentes vertentes da ideologia. “Eu acho que algumas mulheres estão vivendo, mas muitas, sem uma consci-

ência de quais são as batalhas feitas para as mulheres e elas perdem muito. Essas mulheres são muito podadas e limitadas nas possibilidades quanto mulheres” diz a carioca, ao reconhecer que há mulheres que ainda precisam se encontrar no feminismo. Uma boa maneira de ajudar nessa questão é assistir a alguma das produções de Cecília.

Qual a importância do feminismo para a criação de identidade e empoderamento femininio?

“Eu acho que algumas mulheres estão vivendo, mas muitas, sem uma consciência de quais são as batalhas feitas para as mulheres e elas perdem muito. Elas não querem ter consciência dessa situação para evitar conflito, conflito

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Ceciia Amado com os atores durante a gravação do filme Capitães da Areia, lançado em 2011.
“EU ERA MUITO DESRESPEITADA E ISSO ACONTECE ATÉ HOJE. SEMPRE TEM UM OLHAR DE TESTE, COMO SE QUESTIONASSEM: SERÁ QUE ELA É MESMO CAPAZ?”

justo com as pessoas que não querem que as mulheres tenham mais autonomia e posição igualitária na sociedade. Tem a etapa da mulher que está totalmente alheia e alienada às possibilidades do feminismo. Tem mulheres que já descobriram o feminismo mas que não acham que seja para elas. Tem mulheres que já estão envolvidas na sua própria luta e, também, em lutar pelas outras. E tem mulheres que são militantes mesmo, num estágio, às vezes, muito radical em áreas de imposição. Esses espaços de imposição incomodam muito quem está vendo de fora ou está ali no neutro, mas é porque as mulheres precisam se firmar e se prender à repetição para quebrar barreiras e estereótipos. A gente tem que ajudar quem ainda não se encontrou no feminismo, respeitar os limites de cada uma, e apoiar quem está na luta, mesmo que, às vezes, assuste um pouco, porque abrir caminho no mato é difícil, depois que a estrada está feita, é mais fácil seguir esse caminho”.

O que é feminismo para você?

“O feminismo é uma vivência diária da mulher. É um movimento que vai pensar e gerenciar os pensamentos em torno de como a mulher precisa se colocar numa posição mais igualitária, a partir desse déficit enorme que existe no reconhecimento do papel da mulher na sociedade. Se você for pensar no Brasil, essa discussão é muito pautada por questões raciais, sociais, econômicas e por questões de cultura mesmo, porque isso está ligado à diversidade, ao tamanho do nosso país e ao desenvolvimento social de cada canto e região do Brasil. Então eu acho que a gente sempre tem que pensar em feminismos, porque não existe ainda um pensamento que seja comum a todas as mulheres”.

Hoje em dia, os tempos são outros. Como mulher, você já vivenciou experiências difíceis no seu trabalho, na sua trajetória trabalhando com audiovisual, cinema e TV?

“No cinema, tem uma hierarquia de organização das equipes, que, em muitos lugares, é vista como hierarquia de poder. A mulher tinha o seu lugarzinho ali, como figurinista, acompanhava o diretor e só podia trabalhar com algumas poucas coisas. Quando eu entrei, em 1995, o cinema tinha tido uma parada grande com o fim da Embrafilmes, e estávamos vivendo a Retomada do cinema brasileiro. Um grande marco desse momento foi o filme Carlota Joaquina, Princesa do Brazil, da Carla Camurati, que era uma grande diretora mulher de uma grande produção. Por isso, eu já vinha com esse exemplo, já enxergava a possibilidade das mulheres conquistarem esse espaço. Quando me tornei diretora eu era muito nova, então foi bem complexo porque as equipes que eu comandava eram equipes extremamente masculinas, o respeito era muito pouco. Eu era muito desrespeitada e isso acontece até hoje. Sempre tem um olhar de “teste”, como se questionassem: será que ela é mesmo capaz? Não necessariamente porque nós, mulheres, conquistamos esse lugar de prestígio, significa que vamos ser respeitadas, umas até mais que outras, por isso, eu retomo a questão dos feminismos”.

Em meio aos seus trabalhos, você esteve em muitos lugares interessantes, com pessoas peculiares e, certamente, viveu experiências únicas. Qual delas mais te marcou?

“Tem dois lugares que foram bem distintos. O primeiro foi filmar no assentamento do MST na Chapada Diamantina. A gente filmou duas meninas assenta-

das lá e foi bem lindo porque eu desconhecia bastante do Movimento Sem Terra. É uma vida constituída há bastante tempo, então entender como funciona o processo de educação lá dentro. Fomos em duas escolas, os valores de educação são muito altos e muito importantes. Ver uma menina que passou de um assentamento para outro, que sempre teve uma vida rural com instabilidade e preconceito foi bem revelador. E eu filmei com meninas indígenas em Coroa Vermelha, que é na região de Cabrália e Porto Seguro, em duas aldeias. Uma aldeia é a Reserva da Jaqueira, que tem o etnoturismo e é bem tradicional com oca e tudo. E a aldeia de Coroa Vermelha mesmo, que é uma aldeia urbana que quebra a ideia de que todos os indígenas vivem em tribos como antigamente. Foi transformador conhecer as escolas indígena, mais ainda, porque fomos parar em Cabrália, lugar onde chegou Pedro Álvares Cabral no Brasil e onde foi realizada a Primeira Missa. Ali é chamado de Costa do Descobrimento, mas as meninas indígenas têm a visão de que é a Costa das Invasões. É um lugar de mudança de ponto de vista para a nossa civilização brasileira”.

Como surgiu a inspiração para que você construísse esse olhar voltado para pautas importantes e assuntos pouco discutidos, como questões raciais, universo feminino, diversidade, etc.? “Eu queria sempre dar voz para o desconhecido, falar um pouco de quem, aparentemente, não interessava o mercado. E isso era sempre uma briga porque a gente quer que nossos filmes sejam vistos mas, também, quer contar histórias que não são contadas. Eu trabalhei como assistente de direção numa série em 2004/2005, chamada Cidade dos Homens, que surgiu a partir do filme Cidade de Deus, filmada nas favelas do

Rio. Eu fiquei muito intrigada em como estava sendo contada essa história e em como chegava no público de uma forma legal. Esse foi o passo para eu começar com a Minha Rainha, depois com Capitães da Areia, para buscar esse Brasil do futuro, porque quem vai contar o Brasil no futuro são as crianças e os jovens de hoje. A minha tendência é essa: contar a história de quem não tem voz, de quem não se vê na TV”.

Como você escolhe as pessoas e “personagens” para as suas produções, de modo que elas representem a ideia que você deseja transmitir?

“Quando a gente cria um projeto, mesmo de documentário, a gente inventa personagens que a gente imagina que existam na sociedade, mais ou menos, o tipo de perfil. No Toda Menina Baiana, por exemplo, eu tinha uma ideia dos personagens que eu queria. Uma menina artista, meninas da religião evangélica, meninas atletas, meninas gêmeas, meninas quilombolas e etc… Abrimos a inscrição porque muito da troca da linguagem documental é que as pessoas também queiram contar as suas vidas. A gente foi nos lugares, nas associações atléticas, orfanatos, escolas, associações comunitárias e pelo boca-boca também. Vai muito também de o quanto a pessoa está disponível para abrir sua casa, abrir a sua vida, quando envolve criança tem a questão dos pais também. É sobre achar quem está disposto a participar e abrir o verbo”.

Você dirigiu o filme da obra de Jorge Amado “Capitães da Areia”. Você acredita que o seu olhar feminino, principalmente como uma mulher contemporânea, deu uma nova perspectiva à história?

“Não quer dizer que seja mais romântico ou fofo, mas acredito que tem um

“TODAS AS FUNÇÕES PODEM SER FEITAS POR MULHERES. SIGA O SEU TALENTO, A SUA INTUIÇÃO. SEU PODER DE ORGANIZAÇÃO”

muito “mãe” desses meninos. A gente passou um ano se relacionando, e desse relacionamento, surgiu um lado maternal e acolhedor. Isso é, de certo modo, um aspecto feminino, não premeditado, na forma de se envolver com seu objeto de trabalho”.

“Da Manga Rosa” é uma série que traz elementos do feminino, da cultura e da culinária. Qual era o seu objetivo com essa produção?

tipo de sensibilidade diferente, uma forma de produzir e de ter prioridades, desde valores até a forma de cobrar a equipe – isso influencia no resultado final. Em relação à história em si, sobre a adaptação, eu não sei se tive um olhar mais feminino, mas é diferente do de Jorge Amado. Ele era um homem de vinte e quatro anos quando escreveu o livro, em um Brasil dos anos 1930, no qual ele já trabalhava para o Partido Comunista e tinha um olhar muito radical. Então, alguns aspectos disso estão presentes nessa obra, que é o ponto de partida do livro Capitães da Areia. Ao mesmo tempo, na obra há uma sensibilidade das relações humanas, e é aí que eu entro. Eu trago no filme uma óptica sobre as relações humanas. Muita gente falava, quando o roteiro ficou pronto, “ah, gourmetizaram, romantizaram a miséria, como se esses meninos fossem lindos”. Como se a única versão tivesse que ser algo com tiro, arma, violência e agressão, mas é muito mais complexo que isso. A minha percepção é que eu fui

“A ideia era tratar um tema de culinária, mas não com foco nas receitas, e sim a nossa relação com os alimentos. E, ao mesmo tempo, eu queria fazer uma série erótica e sobre sexualidade para mulheres que não fosse estereotipada. Também não queria algo sensualizando e objetificando a mulher, que normalmente são séries sobre sexualidade muito mais voltadas para o público masculino. Então a ideia do Da Manga Rosa foi buscar falar de sexualidade da mesma forma que a gente fala de comida, porque são prazeres que nascem com a gente. E foi muito surpreendente porque a gente não imaginava que as pessoas iam ter tanta disponibilidade para falar em público. Vez ou outra você fala com uma amiga, mas é realmente um tabu enorme e principalmente na televisão. Então a gente conseguiu juntar as duas coisas com o tom de conversa que a gente usa hoje em dia, no século XXI”.

A produção mais recente que você participou, “Beleza da Noite”, ela traz a questão do empoderamento negro e do rompimento com o padrão imposto pela sociedade. Como surgiu essa ideia?

“Beleza da Noite não é um projeto meu, mas eu fui chamada para co-dirigir. Ele fala de três gerações de mulheres negras: Michellini (a protagonista), a sua filha e a sua mãe. Elas são do bairro da Liberdade, em Salvador, que se consolidou com uma presença muito

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forte de religiões de matriz africana e também tem uma grande diversidade e heranças culturais. Michellini promete para a filha uma boneca e quando vai comprar, ela acha uma boneca bebê negra e leva. A filha não gosta e diz que faz questão de uma boneca branca porque é mais bonita. Assim, ela topa participar do concurso da Beleza Negra do Ilê Aiyê. A filha acompanha essa trajetória toda da mãe e vê com uma outra perspectiva que toda mulher negra deve se ver como uma rainha. Foram várias pessoas na produção colaborando a partir de suas vivências específicas, mulheres brancas, através de suas perspectivas do feminino, e mulheres negras, sobre o feminino atrelado às questões raciais”.

A série “Toda Menina Baiana” conta histórias de várias meninas de 15 anos com trajetórias, culturas e vivências completamente diferentes. O que essas meninas têm em comum?

A ideia da série era focar nesse momento da identidade feminina: os quinze anos. São muitas dúvidas, muitos questionamentos sobre o futuro, é o marco zero da vida adulta. Essas mudanças passam pelo corpo também, então temos a menstruação, as mudanças hormonais, como a menina se vê virar mulher. Essa percepção de “agora eu sou mulher” vem para todas. O que essas meninas têm em comum são duas questões, uma física e outra social. A física remete às mudanças no corpo, a sexualidade com os desejos e as possibilidades mais afloradas, e também esse corpo estranho, né? E a parte social é a questão do relacionamento, que é algo muito forte. Mesmo quando elas falam que não querem namorar, todas sabem que existe uma cobrança. Quando a gente fala de feminismo é muito importante falar desse momento de transição dos quinze anos. Muitas coisas ficam marcadas – o que pode,

o que não pode. É quando as meninas são menos ouvidas também, devido aos tabus, que a gente, enquanto sociedade, deveria dar mais atenção. Aprendi muito com elas”.

O que você diria para jovens mulheres que almejam adentrar o mercado de trabalho e traçar um caminho como o seu?

“Vumbora! Não tem nenhuma função no audiovisual que a mulher não possa realizar. O mais desafiador ainda é o topo – quem decide, quem assina o cheque, quem contrata. Mas, ainda sim, está abrindo muito espaço nas áreas maiores de poder. Todas as funções podem ser feitas por mulheres. Siga o seu talento, a sua intuição, seu poder de organização. Quando mais mulheres estiverem ocupando esse espaço e contando a história de outras mulheres, mais a gente vai poder se ver e, as nossas filhas e netas vão se reconhecer no futuro nessas histórias. Vamos lá!”.

WWV
Cecilia Amado e a sua equipe no processo de filmagem de uma produção.

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CHAT GPT: I.A. RESPONDE AOS MACHISMOS DO COTIDIANO

A interação com a ferramenta foi realizada durante a oficina Laboratório de Formatos Híbridos (Labfor)

LABORATÓRIO DE FORMATOS HÍBRIDOS (LABFOR)

>>>Ao longo de três meses, a estudante Julia Rodrigues Candiani apresentou ao Chat GPT situações machistas do dia a dia. Foram realizadas conversas em diferentes contextos e o chat demonstrou um comportamento politicamente correto - as imagens das

conversas podem ser observadas na página ao lado.

Sobre as vestimentas utilizadas pelas mulheres e os sentimentos de medo do possível julgamento a ser cometido pelas pessoas, a resposta veio num tom motivacional. A inteligência artificial sugeriu que a mulher se sinta confortável sobre a própria decisão e deu dicas sobre como reagir: “Não é certo pensar que, para ter

mais segurança ao sair de casa, é necessário uma roupa que esconda o corpo. A segurança de uma pessoa não deve depender de sua aparência ou das roupas que ela usa”.

Para melhor análise sobre a inteligência e o aprendizado da máquina, uma segunda dinâmica foi aplicada. Em uma das mensagens, foi enviada uma frase para que o chat completasse: “Lugar de mulher é?”; e, novamente, o mantém o raciocínio: “Em qualquer lugar que ela queira estar e onde suas habilidades, talentos e interesses possam ser expressos e valorizados”.

GPT significa “Generative Pré-trained Transformer”, (em português “Transformador Pré-treinado Generativo”). O principal intuito é promover conversas com o usuário, oferecendo informações obtidas por meio das pesquisas instantâneas. A máquina é levada a aprender a cada interação.

O chat possui diversas funções, desde conversas do cotidiano e recomendar músicas, até escrever redações e resumir artigos. Criado em 2015 por Sam Altman, da OpenAI, uma organização sem fins lucrativos nos Estados Unidos que realiza pesquisas e interações com o desenvolvimento de I.A. (inteligência artificial). Atualmente, dezenas de ferramentas com sistema de I.A. são desenvolvidas e colocadas no mercado por semana.

Além da interatividade com o Chat GPT, o Labfor produziu um projeto que indica os endereços das Delegacias da Mulher na cidade de São Paulo, desenvolveu um jogo sobre literatura, colocou uma artista do modernismo para disputar vaga no mercado de trabalho, ilustrou em HQ a carreira de uma jogadora de futebol mundialmente conhecida e, em parceria com o Laboratório de Design, apresentou em números as realidades de mães pretas, indígenas, adolescentes e trans.

DELEGACIAS

O mapeamento das delegacias da mulher na cidade de São Paulo foi desenvolvido com auxílio do Google Earth. Nele, há endereços, telefones e imagens dos locais. O projeto é público e pode ser atualizado. Caso você saiba de alguma atualização sobre as informações ou conheça outra mais recente, fique à vontade para sugerir.

TARSILA

Há vagas para artistas. Foi necessário muita pesquisa sobre Tarsila do Amaral para a construção de um portfólio profissional desta modernista paulista à frente de seu tempo. A ideia é uma pequena homenagem do Labfor para Tarsila.

SUPER TRUNFO

Da esq. para dir.: Felipe Dorini, Julia Candiani, Gustavo Mengar, Paulo Ranieri, Eduardo Sant’Anna. Não está na foto: Marcelo Firpo.

O clássico jogo de cartas Super Trunfo foi a inspiração deste projeto. A ideia é, em primeiro lugar, homenagear algumas das escritoras feministas mais conhecidas e importantes. Num segundo momento, apresentar as informações, de maneira lúdica, relembrando o objetivo principal do jogo. Pesquisamos as informações e separamos numa planilha todos os dados obtidos: número de obras, prêmios, idade e época em que viveram. As cartas podem ser acessadas pelo QRCode acima. Imprima, jogue, informe-se e divirta-se!

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EXPOSIÇÃO TROUXE VIDA E OBRA DE FRIDA KAHLO

Frida Kahlo: a vida de um ícone capitalizou a imagem da artista latino-americana

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AS INTEGRANTES DA REVISTA PLURAL VISITARAM A EXPOSIÇÃO IMERSIVA SOBRE A VIDA DA ARTISTA MEXICANA FRIDA KAHLO

Última sala da exposição trazia desenhos e potes com giz de cera para os visitantes colorirem

Foto: Luiza Vezzá

>>> Quase sete décadas após seu falecimento, Frida Kahlo (1907-1954) ainda se destaca como uma das figuras mais reverenciadas no contexto da expressão artística latino-americana do século XX. A renomada artista mexicana não apenas se posicionou como um ícone do movimento feminista, mas também exerceu influência no universo da moda. Sua identidade singular continua a se fortalecer com o passar do tempo,

tornando-a uma das maiores referências culturais do México.

A Plural visitou a exposição imersiva Frida Kahlo - A vida de um ícone para saber mais sobre a artista. A exibição terminou em 30 de abril em São Paulo. O evento foi criado originalmente pela Frida Kahlo Corporation, em parceria com a empresa Layers of Reality. A apresentação da exposição em solo brasileiro foi realizada em São Paulo pelo Bradesco, contando com o patrocínio do Shopping Eldorado e sendo concretizada pela Blast Entertainment, uma empresa pertencen-

te ao grupo DC SET, reconhecido pelo sucesso de outras experiências imersivas. Essa parceria também envolveu a participação da Hit Makers e da empresa norte-americana Primo Entertainment. A mostra ocupou uma área de 2 mil m² e a visita durava cerca de 90 minutos.

Composta por vários ambientes, a exposição proporcionou aos visitantes uma experiência interativa na vida e obra de Frida Kahlo. Por meio de projeções em 360 graus e realidade virtual, foi possível vivenciar uma imersão cativante. A socióloga Tatiana Fefer-

EXPOSIÇÃO

DA IMAGEM DA ARTISTA PASSA PELA QUEBRA DE PADRÕES

CONSERVADORES CONTRA OS QUAIS ELA LUTOU

baum visitou a exposição com os netos Lara e Leonardo. Conforme as salas se sucediam, ela acrescentava comentários à narrativa que se apresentava às crianças. Deu destaque a questões históricas, explicou sobre assuntos delicados abordados, como o aborto, enquanto seus netos acompanhavam de olhos e ouvidos atentos, desfrutando das experiências imersivas que a mostra ofereceu.

Na exposição, a interatividade esteve presente na experiência Cadrave Exquis, em realidade virtual, inspirada nas obras de Frida e que exploram seu imaginário particular. Outra atração foi a Cabine Fotográfica, com tecnologia capaz de identificar os rostos e, a partir das características de cada

um, criar retratos únicos, com técnicas de colagem.

Quem quis soltar a imaginação e fazer desenhos para deixar sua marca, a sala La Rosita reproduziu o ambiente em que a artista dava aulas de pintura, com oferta de papel mimeografado com a imagem de Frida para que os visitantes colorissem as imagens com giz de cera.

O México, exuberante em costumes e folclore tão presentes na obra de Kahlo, foi lembrado em ambientes cenográficos, com decoração inspirada nas plantações de agave, roupas e quadros tradicionais da cultura mexicana. A conexão de todos esses elementos culminou em uma sala que reproduzia um altar dedicado ao dia dos mor-

tos, com fotos e objetos de Frida, num espaço que explorou a cor vermelha. Outra experiência semelhante foi a sessão que apresentou a criação de vestidos e outras peças de vestuário inspirados no estilo de Kahlo.

Uma sala escura, com sons de vidros quebrando e a exibição de folhas de raio-x com flores e desenhos bonitos em volta trouxe um texto sobre o acidente de ônibus que aprisionou Frida à cama por muito tempo. A narrativa da sala girou em torno do fato de que o acidente poderia ter sido evitado. Se ela não tivesse voltado para buscar seu guarda-chuva, se ela não estivesse exatamente no lugar errado na hora errada, a grande artista com um futuro brilhante não teria passado o resto de sua

Altar reproduziu fotos de Frida em conexão com objetos da cultura mexicana Foto: Gabriela Trevisol
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ELA FOI REVOLUCIONÁRIA E É UM SÍMBOLO

MUITO IMPORTANTE PARA AS MULHERES QUANDO SE FALA EM LIBERDADE

vida como uma pessoa com deficiência.

Outro destaque foi “O Sonho”, uma instalação que tentou reproduzir a imaginação e sentimentos de Frida durante a sua recuperação após o acidente na cama, lugar onde criou grande parte de suas obras. A arte faz referência ao ciclo da vida da artista, nascimento e morte, saúde e doença.

O grande destaque da exposição ficou por conta do salão principal, uma espetacular viagem sensorial em 1 mil m² de telas projetáveis pelo “Universo de Frida”, onde o expectador se misturava às obras enquanto se entregava à profusão de cores e movimento. Em outro salão, o público terá contato com imagens da infância e da adolescência da pintora, entendendo o contexto histó -

rico e biográfico que moldou a personalidade da mulher que se transformou em ícone global.

Magdalena Carmen Frida Kahlo y Calderón nasceu na Vila de Coyoacán, no México, em 6 de julho de 1907, filha de pai alemão e mãe espanhola e, desde pequena, teve saúde debilitada. Com seis anos contraiu poliomielite, que lhe deixou uma sequela no pé. Com 18 anos, sofreu um grave acidente de ônibus que a deixou um longo período no hospital.

Apesar de deprimida e incapacitada de andar, Frida passou a pintar sua imagem, com um espelho pendurado na sua frente e um cavalete adaptado para que pudesse trabalhar deitada. Sua obra ganhou enorme notoriedade

sendo aclamada mundialmente como uma das mais ricas expressões artísticas da América Latina.

É neste contexto que muitas das questões mostradas na exposição trouxeram à tona a complexidade de construção de qualquer narrativa que trate sobre a artista. Sua imagem passa pela defesa do socialismo e pela quebra de padrões conservadores contra os quais a artista lutou durante sua vida. Ela foi revolucionária e é um símbolo muito importante para as mulheres. A mostra destacou que existem muitas interpretações e formas de enxergar a vida e a obra de Kahlo, muitas das quais incluem a releitura e a adição de novos símbolos que nunca foram relacionados à artista em vida.

Tatiana Feferbaun com os netos Foto: Gabriela Trevisol Cena da exposição Foto: Gabriela Trevisol

PERFIL: GLÓRIA MARIA p

OS PIONEIRISMOS DE GLÓRIA

Uma vida impossível de biografar e as aventuras da maior jornalista do Brasil

»»»Primeira jornalista a aparecer numa transmissão ao vivo e em cores no Jornal Nacional. Única jornalista no Brasil que entrevistou Michael Jackson. Primeira mulher negra a apresentar um jornal na televisão brasileira. Primeira repórter a aparecer em HD na televisão do país. Primeira pessoa a acionar a lei contra o racismo no Brasil. Parte da dupla que apresentou o programa Fantástico por mais tempo. Essas são algumas das muitas glórias de Glória Maria, jornalista pioneira em tudo que fez. Em sua participação no podcast de Mano Brown, o Mano a Mano, em dezembro de 2021, ela disse: “Eu nunca pensei que estava sendo a primeira”.

Estamos de volta aos anos 1970. Duas amigas conversam sobre carreira. Uma das duas trabalha na tesouraria da Rede Globo, a outra, estuda no científico, o equivalente do ensino médio na época. Uma das meninas chama-se Glória, gosta muito de escrever e sonha em se tornar jornalista. Por acaso, a menina que trabalha na tesouraria sabe de uma vaga de estágio na emissora, e convida Glória para tentar, mas sem acaso, essa menina que mandou o currículo para o departamento de Recursos Humanos da Rede Globo cresceu, e foi uma mulher que nunca mais teve seu nome esquecido.

Glória Maria da Silva foi uma jornalista de referência para todas as próximas gerações que a seguiram. Ela abriu portas para a atuação de mulheres e para a diversidade na televisão. Disse no pod-

cast Mano a Mano, que muitas vezes ela era a única mulher nos lugares, e a única negra também. Costumava dizer que foi educada para ser livre, ela nunca permitiu que nada nem ninguém a prendesse, seu lema era “seguir sem estacionar”, enxergando a vida como algo contínuo, também disse em entrevista para a Vogue Brasil em 2018 que não se sentia completamente realizada. “Eu estou antes da metade do meu caminho. Eu tenho muitos sonhos para realizar”.

Nunca gostou de revelar sua idade, mas não por uma questão de medo do envelhecimento, mas sim porque, de acordo com ela, não havia sentido em viver a partir da contagem de anos. Não gostava de marcações de tempo de “quando viveu o quê”, pois ela mesma nunca contou desse jeito. Como disse à jornalista

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Amabile Reis, do site Garotas Estúpidas, em dezembro de 2021: “Número nunca fez parte do meu show. Eu nunca fui boa em matemática. Por que seria boa com idade? Eu não quero ficar jovem eternamente. Eu quero ficar eternamente bem. É isso que me interessa”.

Contou muito sobre sua infância e vida pessoal no podcast Mano a Mano. Aluna da rede pública do Rio de Janeiro, matriculou-se no ensino fundamental por conta própria. Sua paixão pela leitura e pelo jornalismo a levaram à Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, onde estudou como bolsista nos anos 1960. Glória estreou como repórter na TV Globo em 1971 na cobertura do desabamento do Elevado Paulo de Frontin, no Rio de Janeiro. Apresentou o Fantástico de 1998 a 2007, e, desde 2010, integrava

a equipe do Globo Repórter. Em toda a glória de sua liberdade, a jornalista atuava como repórter nos anos da ditadura militar brasileira.

Em sua última participação no Roda Viva, em 2022, disse que nunca teve tempo para ser censurada. Ela não reestruturava suas perguntas para agradar aos militares, isso fez com que a jornalista se tornasse um desafeto do general João Baptista Figueiredo, último militar que ocupou a cadeira da presidência na ditadura, de 1979 a 1985. “Não me suportava. Quando ele foi indicado, a gente foi fazer a famosa fala dele na Vila Militar, em que ele dizia: ‘Para defender a democracia, eu bato, prendo e arrebento’”, contou em uma entrevista ao programa Conversa com Bial em 2020. “Isso que o senhor citou não existe mais”, rebateu a

jornalista, ao vivo, questionando o presidente. No fim, acabou sendo expulsa pelo general: “Tira essa mulher daqui, tira essa mulher daqui”. Glória contou que a partir daquele episódio, o militar passou a odiá-la e tratá-la com desprezo. “Aonde eu chegava, dizia para a segurança: ‘Não deixa aquela neguinha chegar perto de mim’”, relatou ao Projeto Memória Globo. No Globo Repórter, a jornalista mostrou mais de 100 países em suas reportagens. Ela viajava a trabalho, mas nunca ia para conhecer lugares, e sim pessoas. Glória Maria era apaixonada pelas culturas do mundo. “Eu gosto de conhecer alma, e alma faz a gente crescer”. Ao longo de cinco décadas de carreira, e protagonizou momentos históricos. Entrevistou chefes de Estado e celebridades como Madonna, Michael Jack-

Ilustração: Victoria Maria , estudante do 3º semestre de Design da ESPM

son, Fred Mercury, Fernando Pessoa e Roberto Carlos. Cobriu a Guerra das Malvinas, em 1982; a invasão da embaixada brasileira do Peru por um grupo terrorista, em 1996; os Jogos Olímpicos de Atlanta, também em 1996; e a Copa do Mundo de 1998, na França.

Em 2009, como sempre “pronta para o próximo”, Glória Maria mudou-se para um apartamento no Morro do Gato, que fica no bairro da Barra, na Bahia. Foi lá que ela começou sua jornada na maternidade. Adotou duas meninas, Maria e Laura. Irmãs biológicas. A mudança aconteceu para que ela pudesse ficar perto das meninas.

“Eu nunca quis ser mãe. O trabalho me preenchia, minha vida era perfeita. Elas surgiram por acaso. Eu nunca tinha pensado em ter filhos até que vi as duas pela primeira vez e tive certeza de que elas eram minhas filhas. Isso é uma coisa que não sei explicar”, contou durante uma entrevista ao Conversa com Bial.

Glória Maria foi a “mamãe coruja” que acompanhou suas filhas em todos os momentos, mas também mantinha uma relação de igualdade, em entrevista ao Fantástico. A filha mais velha Laura relembrou momentos com a mãe: “Ela conversava com a gente sobre tudo”. Glória conversava com as meninas sobre sua vida, a trajetória e as coisas importantes que fez. No podcast Mano a Mano disse que, como ela, as filhas são livres. Disse também que queria que as meninas crescessem com a ideia de que a vida delas era “intransferível” e que elas deveriam fazer dela o que quisessem.

Em 2019, foi diagnosticada câncer de pulmão.A doença respondeu bem ao tratamento inicial, realizado com imunoterapia. Posteriormente, a jornalista evoluiu com metástases cerebrais, foi tratada então com cirurgia, que teve sucesso. Porém, nos últimos dias, o tratamento deixou de fazer efeito. Depois

Na adolescência, via TV e ficava fascinada ao ver Glória Maria percorrendo o mundo. Assim, decidi que queria ser como ela: uma mulher negra livre e contadora de histórias!”

Valéria Almeida, apresentadora do Bem Estar

de resistir muito, Glória Maria faleceu em fevereiro de 2023. Deixando um legado incomparável, uma grande marca na história do Jornalismo, duas filhas e sua marca no coração de todos que cruzaram seu caminho. Livre, pioneira, exemplar. Dois dias a pós sua morte, as filhas de Glória Maria participaram de uma entrevista ao Fantástico. Em um texto emocionante, a filha mais velha Laura afirmou: “A minha mãe sempre foi uma mulher maravilhosa, ela é a pessoa mais corajosa que eu conheço. As matérias e aventuras que ela fez, com certeza não são para qualquer um. Além de ter sido a melhor mãe do mundo, sempre nos ajudou e sempre fez de tudo para ver eu e a minha irmã felizes, ela é a pessoa mais forte que eu conheço. Ela lutou muito, e podem ter certeza que vou ficar aqui lutando como ela lutou. Mamãe agora está nos vendo do céu, junto com a nossa vó. Eu queria dizer que amo vocês duas muito, e que vocês ensinaram muito a nós.”

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Glória com as filhas Maria e Laura Imagem: @gloriamariareal via instagram

COLABORADORAS DESTA EDIÇÃO

REVISTA PLURAL

• Bruna Bonato

•Márcia Magalhães Andrade

• Gabriela Trevisol

• Bianca Iazigi

•Julia Dal Bello

• Luiza Vezzá

• Nina Von Söhstein

JUNHO DE 2023 ANO 12 // NÚMERO 23
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Foto:
Willian Tadeu Ambrosio

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