JUNHO DE 2022 // ANO 11 // NÚMERO 21 REVISTA-LABORATÓRIO DOS ALUNOS DO CURSO DE JORNALISMO DA ESPM
ENTREVISTA JOÃO CÂNDIDO PORTINARI COMENTA SOBRE A OBRA DO PAI E A RELAÇÃO DELE COM OS MODERNISTAS ARTE PERIFÉRICA ARTISTAS DA PERIFERIA ATUALIZAM A PERSPECTIVA DE QUEBRA DE PARADIGMA PROPOSTA NA SEMANA NEGROS E INDÍGENAS GRUPOS FORAM ALVO DE DISCUSSÃO, MAS TIVERAM POUCA PARTICIPAÇÃO NO MOVIMENTO
100 ANOS DE MODERNISMO
Foto: Reprodução/Site Tarsila do Amaral
Semana de Arte Moderna de 1922 marcou mudanças na arte e na sociedade brasileiras
Abaporu, de Tarsila do Amaral, um dos expoentes do início do modernismo
REVISTA-LABORATÓRIO DO CURSO DE JORNALISMO DA ESPM-SP Nº21 - 1º SEMESTRE DE 2022
e
EDITORIAL
Presidente Dalton Pastore Vice-presidente Acadêmico Alexandre Gracioso Vice-presidente AdministrativoFinanceira Elisabeth Dau Corrêa Diretora Nacional de Operações Acadêmicas Flávia Flamínio Coordenadora do curso de Jornalismo-SP Maria Elisabete Antonioli Responsável pelo Centro Experimental de Jornalismo Antonio Rocha Filho
100 ANOS DE 1922: COMEMORAÇÃO OU REFLEXÃO? »»»Há quem a venere – pelo seu caráter de ruptura e pela proposta que trouxe de imprimir um novo olhar sobre o Brasil – e há quem a critique – pela perspectiva elitista do movimento. Mas o fato é que a Semana de Arte
Editora - Revista Plural Profa. Cláudia Bredarioli Editor - Labfor Prof. Andre Deak Alunos colaboradores PLURAL: Eduardo Fabricio,
Fernanda Delgado, Gabriela Figueiredo, Gloria Machado (Design), Isabelle Vita Gregorini, Manuela Margini, Milena da Silva LABFOR ESPM: Bianca Iazigi, Gabriel
Abib Dias, Giovanna Massaro do Carmo, Laura Galvão Alves, Laura Tiemi Okuma Dutra da Silva (Design), Márcia Carla Moura Magalhães Andrade, Marina Brandão João de Almeida Pires, Stefani Pacheco Pereira (Design)
Moderna de 1922 ainda suscita diversas discussões e inspira novas gerações neste ano em que completa 100 anos. Nesta 21ª. edição da Plural, exploramos essas nuances do evento que marcou o início do modernismo brasileiro, bem como seu legado. Para isso, visitamos exposições, entrevistamos artistas, especialistas e diretores de museus, seguimos os passos dos modernistas pelo centro de São Paulo, conforme contamos por meio do guia produzido pelo Labfor ESPM, que começa na página 20. Ao longo das próximas páginas, há possibilidade de voltar no tempo, por exemplo, com a reportagem que começa na página 6 e reconstrói o panorama da Semana, ou com o texto sobre o Theatro Municipal – palco do evento – que está na página 32. Ambos mostram o pano de fundo dos acontecimentos que ocorreram 100 anos após a Independência do Brasil, 34 anos após a abolição da escravidão e quatro anos após o fim da Primeira Guerra Mundial. A perspectiva crítica sobre a Semana está exposta nas páginas 12 e 13,
CEJor, Centro Experimental de Jornalismo da ESPM-SP portaljornalismo-sp@espm.br Rua Dr. Álvaro Alvim, 123, Vila Mariana São Paulo, SP Tel. (11) 5085-6713 Projeto gráfico Marcio Freitas A fonte Arauto, utilizada nesta publicação, foi gentilmente cedida pelo tipógrafo Fernando Caro.
que tratam da falta de participação de negros e indígenas no evento, e na página 29, que traz um panorama sobre a exígua presença das mulheres. Segundo o professor João Carlos Gonçalves, dos cursos de Design e de Comunicação da ESPM-SP, apenas Anita Malfatti (que tem um perfil na página 28) e Tarsila do Amaral – autora da obra Abapuru, o quadro mais valioso da arte brasileira, que ilustra nossa capa – se tornaram expoentes. A partir da página 24, o repórter Eduardo Fabricio apresenta um retrato da arte periférica que hoje assume o papel de propor uma nova ruptura do olhar da sociedade sobre as artes. Trouxemos também, na página 14, uma entrevista com João Cândido Portinari, filho de Cândido Portinari, que conta sobre a relação de seu pai com os modernistas. Todo esse cenário nos faz perceber que é inegável a influência que o modernismo exerceu e continua exercendo nas artes, como mostra a reportagem na página 10, expondo um rompimento de barreiras, por meio do qual podemos ver artistas engajados e vozes plurais reivindicando o espaço que lhes é devido. Boa leitura! CLÁUDIA BREDARIOLI, EDITORA DA PLURAL
ÍNDICE
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página 24
Foto: Reprodução/Instagram
página24
NOVO OLHAR SOBRE A ARTE VEM DA PERIFERIA Se na Semana de Arte Moderna de 1922 partiu de um grupo de artistas de elite a proposta de quebra de paradigma sobre a arte - desvelando-se questões que propunham um olhar para o Brasil menos conectado à perspectiva europeia -, hoje essa proposta de revolucionar a maneira como percebemos nossa sociedade vem da periferia. Artistas periféricos como Mano Lima (foto) têm conseguido romper bolhas e apresentar seus trabalhos em espaços centrais, além de explorarem a divulgação pelas redes sociais.
página 12
página 14
página 19
EXCLUÍDOS
ENTREVISTA
PINACOTECA
Apesar de terem sido alvos de discussões entre os modernistas, minorias como negros e indígenas tiveram pouca participação na Semana. O modernismo decidia o que queria desses povos.
João Cândido Portinari, filho de Cândido Portinari, conta sobre a relação de seu pai com os modernistas e destaca a importância do Projeto Portinari na preservação e divulgação da obra do artista.
Em comemoração aos 100 anos da Semana de Arte Moderna, a Pinacoteca está com a exposição Modernismo: destaques do acervo em cartaz até dezembro de 2022. A Plural visitou o local e trouxe algumas percepções.
página 6
página 32
Foto: Reprodução/Instagram
Foto: Wikimedia Commons
página 10
Foto: Reprodução/Instagram
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A SEMANA
100 ANOS DEPOIS
O MUNICIPAL
Relembre o evento que marcou o início do modernismo, quais foram os artistas que se destacaram no movimento e como a sociedade paulista de 1922 recebeu as mudanças propostas ao longo daqueles dias.
Após um século, o legado deixado pela Semana de Arte Moderna de 1922 ainda rende frutos na compreensão social sobre o Brasil que desenvolvemos nos dias de hoje, expondo fortes heranças culturais.
Palco do evento que marcou o início do modernismo, o Theatro Municipal de São Paulo é resultado de um projeto da elite paulista para construir um centro cultural para assistir a concertos e óperas.
página 20 LABFOR Alunos do Labfor ESPM visitaram o centro de São Paulo para desenvolver um guia afetivo sobre a Semana, expondo os principais prédios e atrações que fizeram parte do cotidiano dos modernistas. nos dias do evento.
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página 30
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PERFIL
PATRIMÔNIO
VOLPI
Anita Malfatti foi pioneira contra o olhar conservador que permeava a sociedade brasileira antes do movimento modernista. A artista, com suas pinceladas largas, conseguiu levar a brasilidade para o mundo.
A preservação do patrimônio da arte moderna sob a ótica de sua importância para o entendimento de seu tempo, seu lugar e seu legado. E a discussão sobre o fato de grandes obras estarem fora do Brasil.
A Plural também visitou a exposição de Alfredo Volpi no Museu de Arte de São Paulo (Masp). Um dos artistas de destaque da segunda fase do modernismo, tornou-se conhecido por suas famosas bandeirinhas.
UM NOVO OLHAR PARA O BRASIL Relembre a Semana de Arte Moderna de 1922,
6/7
que mudou o rumo da arte brasileira
Foto: Reprodução/Instagram Le Monde Diplomatique
EDUARDO FABRÍCIO
“O sapo-tanoeiro, Parnasiano aguado, Diz: – “Meu cancioneiro É bem martelado. Vede como primo Em comer os hiatos! Que arte! E nunca rimo Os termos cognatos. (...) Que soluças tu, Transido de frio, Sapo-cururu Da beira do rio…”
»»»Com esses e mais alguns versos, Manuel Bandeira, autor do que depois seria considerado o hino do modernismo no Brasil, por Sergio Buarque de Holanda, conseguiu que críticos da época desenvolvessem ranidafobia, nome dado a quem tem medo de sapos. A rivalidade entre sapos cururus, os modernistas, e sapos tanoeiros, os parnasianos, estava instaurada. Essa guerra ideológica e artística, que Darwin classificaria como seleção natural, mudou os rumos da arte brasileira dali em diante, para surpresa dos pró-
CARTAZ DA SEMANA DE ARTE MODERNA Desenho assinado por Di Cavalcanti
“O que esse grupo fez foi lutar por uma experiência artística mais aberta. Pela possibilidade de o artista expressar aquilo que ele pensa e sente, sem esses vínculos mais marcados em uma tradição que diz que tem que fazer dessa forma ou de outra, ou seja, a experiência da liberdade expressiva e de criação”
“A semana de Arte Moderna é um evento que acabou se tornando algo muito maior do que na verdade ela foi pensada para ser.” Donny Correia, crítico de arte ABCA
Marcos Antônio de Moraes, doutor e mestre em Literatura Brasileira pela USP
prios idealizadores, como conta Donny
engessada e estética padronizada, que
composta dos que veem normalmente
Correia, doutor em Estética e História da
tinha “certo” e “errado”, não esta-
as coisas e em consequência disso fazem
Arte da USP e crítico de arte ABCA (Asso-
va agradando os artistas da época. Foi
arte pura, guardando os eternos rirmos
ciação Brasileira de Críticos de Arte). “A
então que eles, burgueses, membros da
da vida, e adotados para a concretização
Semana de Arte Moderna é um even-
elite do país, decidiram ir buscar inspi-
das emoções estéticas, os processos clás-
to que acabou se tornando algo muito
ração no exterior, tiveram contato com
sicos dos grandes mestres (…) A outra
maior do que na verdade ela foi pensa-
essas produções inovadoras do velho
espécie é formada pelos que veem anor-
da para ser.”
continente e decidiram trazer essa liber-
malmente a natureza, e interpretam-na
dade artística para cá.
à luz de teorias efêmeras, sob a sugestão
Esta Plural fará uma reconstrução da maior revolução artística que este País
“O que esse grupo fez nesse momen-
estrábica de escolas rebeldes, surgidas
já viu. Relembraremos acontecimen-
to foi lutar por uma experiência artísti-
cá e lá como furúnculos da cultura exces-
tos que levaram os maiores expoentes
ca mais aberta. Pela possibilidade de o
siva. São produtos de cansaço e do sadis-
da arte do Brasil, que até então pouco
artista expressar aquilo que ele pensa e
mo de todos os períodos de decadência:
representavam sua cultura, a se unirem
sente, sem esses vínculos mais marca-
são frutos de fins de estação, bichados ao
e lutarem pelo que acreditavam ser uma
dos em uma tradição que diz que tem
nascedouro. Estrelas cadentes, brilham
arte com a nossa cara. Para isso, organi-
que fazer dessa forma ou de outra, ou
um instante, as mais das vezes com a luz
zaram em São Paulo a Semana de Arte
seja, a experiência da liberdade expres-
de escândalo, e somem-se logo nas tre-
Moderna de 1922.
siva e de criação”, conta Marcos Antônio
vas do esquecimento”, escreveu Loba-
de Moraes, doutor e mestre em Literatu-
to à época.
Durante as primeiras décadas de 1900, pessoas que fossem a exposições artísti-
ra Brasileira pela USP.
Antes de continuar a viagem ao passa-
cas ao redor do mundo encontrariam lá
A pioneira desse movimento foi Anita
do, vamos dar nome aos bois, ou melhor,
o parnasianismo e o academicismo, for-
Malfatti, ainda em 1917. Ela fez uma
aos sapos modernistas. Anita Malfatti,
mas de arte que poderiam ser aprendi-
exposição de suas obras, totalmente
Tarsila do Amaral, Menotti Del Picchia,
das em escolas e academias. Foi nesse
diferentes do que se via aqui até aquele
Oswald e Mário de Andrade formaram o
contexto que artistas europeus iniciaram
momento. Porém, as coisas não aconte-
Grupo dos Cinco, considerados os princi-
o movimento das vanguardas europeias,
ceram do jeito esperado (como o leitor
pais nomes do modernismo e da Semana.
que pregava uma produção contrária a
poderá ler mais a fundo no perfil dedi-
Mário de Andrade foi escritor e estu-
essa arte padronizada. Expressionismo,
cado à pintora, que está nas páginas 28
dante da música. Sua obra escrita, que
fauvismo, cubismo, futurismo, dadaís-
e 29). A exposição recebeu duras críti-
valorizava a cultura brasileira, marcou a
mo e surrealismo são algumas das van-
cas. As mais famosas foram de Monteiro
primeira fase do modernismo. Publicado
guardas. Todas elas colocavam o senti-
Lobato, no artigo Paranoia ou mistifica-
em 1922, o livro Pauliceia desvairada foi
mento do autor, a espontaneidade e a
ção, publicado em dezembro do mesmo
uma de suas obras de maior destaque.
liberdade em primeiro lugar.
ano no jornal O Estado de S. Paulo.
Nele há uma série de poemas, incluindo
No Brasil não era diferente, a forma
“Há duas espécies de artistas. Uma
Ode ao burguês, lido na Semana.
Foto: Eduardo Fabricio
“Morte ao burguês-mensal! ao burguês-cinema! ao burguês-tílburi! Padaria Suissa! Morte viva ao Adriano! – Ai, filha, que te darei pelos teus anos? – Um colar… – Conto e quinhentos!!! Mas nós morremos de fome!”
Oswald de Andrade foi escritor e dra-
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maturgo, famoso pela sua irreverência, ironia, espírito polêmico e combativo. Foi um grande personagem cultural do século XX. Sua obra promove um nacionalismo focado nas origens, mas com críticas à realidade. Trechos de Os condenados foram lidos no evento. “O velho e o cãozinho foram andando na sombra enjoada da tarde. Tinham passeado muito. Dobraram a esquina da Rua dos Clérigos. Os vizinhos saudavam-nos. Eram ambos antigos no bairro e na cidade”. Menotti Del Picchia foi, entre suas várias ocupações, poeta e romancista. Uma de suas obras mais famosas é Juca Mulato, um caboclo que se apaixona pela filha da patroa. Ainda em 1917, o poema já tinha traços de modernismo. “Vai! Esquece a emoção que na alma tumultua. Juca Mulato! Volta outra vez para a terra. Procura o teu amor numa alma irmã da tua”. Tarsila do Amaral foi revolucionária entre os revolucionários. Operários,
MUSA IMPASSÍVEL Escultura de 1923, feita por Victor Brecheret, em homenagem à poetisa parnasiana Francisca Júlia
e do cartaz do evento. Além disso, expôs 11 pinturas e ilustrações publicitárias.
Antropofagia e Abaporu são algumas
A Semana
de suas obras mais conhecidas. O últi-
A repercussão e crítica negativa à expo-
mo inclusive serviu de inspiração para o
sição de Anita motivaram os outros artis-
Manifesto Antropofágico, escrito por seu
tas modernistas a se juntarem para for-
marido Oswald de Andrade.
talecer e legitimar a nova arte. Mário e
Donny Correia conta que o movimento
te brasileira. Temos que nos servir da cul-
Oswald de Andrade julgaram que o cen-
antropofágico surge de um ritual vivencia-
tura, da metrópole. Por isso que se você
tenário da Independência do Brasil, em
do pelo aventureiro alemão Hans Staden,
olhar por exemplo a obra da Tarsila do
1922, era ideal para propagar o modernis-
no livro Duas viagens ao Brasil. Ele relata
Amaral, as pinturas dela dos anos 1920
mo. Além de propor uma reflexão sobre o
a experiência de quase ter sido comido vi-
são muito influenciadas pelo cubismo de
futuro da própria arte brasileira.
vo em um ritual de índios brasileiros. Pau-
Pablo Picasso”, concluiu o crítico de arte.
O dinheiro e a influência política do
lo Prado presenteia Oswald e Tarsila com
Di Cavalcanti, apesar de não fazer parte
investidor Paulo Prado, que pagou o alu-
uma tradução da obra, que ao lerem en-
do Grupo dos Cinco, também merece des-
guel do teatro, combinados com a par-
tendem aquilo como uma metáfora.
taque. O desenhista, ilustrador e cartu-
ticipação de Graça Aranha, responsável
“Nós temos que comer essa cultura e
nista participou da organização da Sema-
pela organização do evento, ajudaram
devolvê-la de uma maneira genuinamen-
na e ainda assinou o desenho do catálogo
a legitimar a Semana perante os críti-
“FOI COMO SE ESPERAVA, UM NOTÁVEL FRACASSO A RÉCITA DE ONTEM NA POMPOSA SEMANA DE ARTE MODERNA, QUE MELHOR E MAIS ACERTADAMENTE DEVERIA CHAMAR-SE SEMANA DE MAL - ÀS ARTES” Folha da Noite, fev. 1922
Foto: Eduardo Fabricio
cos. Washington Luis, na época gover-
na, defendam o nosso patrimônio artístico”. - O Estado de S.Paulo, fev. 1922
nador de São Paulo e futuro presidente anos depois, influenciado pela burgue-
“É preciso que se saiba que nos mani-
sia industrial paulista, apoiou a realiza-
cômios se produzem poemas, partituras,
ção do evento.
quadros e estátuas, e que essa arte de doi-
Graça Aranha foi o primeiro a se apre-
dos tem o mesmo característico da arte
sentar, com a palestra A emoção estética
dos futuristas e cubistas que andam sol-
da Arte Moderna. Anita Malfati e Victor
tos por aí”. - Jornal do Comércio, fev. 1922
Brecheret tiveram suas obras expostas
Essas foram algumas das manchetes
no saguão do teatro. O público, que nos
dos jornais da época. A crítica foi severa
dias seguintes se tornaria protagonista
e chegou a comparar os artistas da Sema-
da Semana, esteve presente em grande
na com doentes mentais. Mas a Semana
número, com ânimos tranquilos.
de Arte Moderna alcançou seu objetivo, chamar a atenção, abalar e reformar as
A pianista Guiomar Novaes abriu o segundo dia tocando compositores modernos como Claude Debussy e Heitor Villa-Lobos. Menotti Del Picchia apresentou sua palestra em seguida. Ainda nesse
CARNAVAL EM MADUREIRA Obra inovadora pelo uso da técnica cubista em uma paisagagem bem brasileira
estruturas da arte brasileira. Também houve quem gostou do evento e foi inspirado por ele. A revista modernista Klaxon foi um dos principais pro-
dia, o poeta Ronald de Carvalho recitou
dutos que surgiram a partir da Semana.
o poema Os sapos, do início deste texto.
Movimentos foram criados, como o Ver-
O autor do poema, Manuel Bandeira, não
de-Amarelo, Pau-Brasil, ambos de 1924
pôde comparecer porque estava doente.
e o próprio Movimento Antropofágico.
A reação do público foi de indignação,
Até a Bossa Nova e o Tropicalismo, com a
com vaias, sons de latidos e até relinchos. Donny Correia conta que essa resposta do público, por mais que pareça nega-
guitarra sendo usada na música brasileiceu? O que tem de diferente que o pes-
ra, são exemplos da influência da Sema-
soal está vaiando?”.
na na arte.
tiva, pode ter sido intencional, desejada
No terceiro dia, o maestro carioca Hei-
Sobretudo, a Semana deixou um lega-
e até mesmo encomendada pelos pró-
tor Villa-Lobos regeu uma apresentação
do de como interpretar, absorver e res-
prios artistas.
musical com mistura de instrumentos. O
significar o passado. “Eles deixaram para
“A gente nunca vai saber exatamente
que chamou a atenção do público foi sua
a gente uma coisa que talvez a gente não
se a reação negativa do público se deu
roupa: ele vestia uma casaca, um sapato
tenha pensado muito. Uma compreensão
somente porque não entenderam direi-
em um pé e um chinelo no outro. Mais
do passado. O que houve, na verdade, nos
to o que estava acontecendo. É bem pos-
uma vez o público respondeu com vaias,
principais modernistas, foi uma incorpo-
sível que houvesse pessoas ali no meio
achando que se tratava de uma afronta
ração do passado como uma experiên-
que foram infiltradas, principalmente
do músico, mas o motivo era, na verda-
cia do presente, ou seja, não foi preciso
pelo Oswald de Andrade, para xingar,
de, um simples calo no pé.
apagar o passado. O passado é um legado
para tacar fruta, para vaiar. Porque isso
também. É nesse sentido. Olhar o passa-
era muito comum nos dadaístas e nos
A repercussão
do criticamente também é o legado dos
futuristas na Europa. Quando os grupos
“Foi como se esperava, um notável fra-
modernistas”, afirma Correa.
dadaístas e os grupos futuristas se apre-
casso a récita de ontem na pomposa
Ao decorrer dessa edição da Plural,
sentavam em público, esses artistas com-
Semana de Arte Moderna, que melhor
vamos continuar contando mais sobre
binavam com amigos para ficarem lá na
e mais acertadamente deveria chamar-
esse marco da arte e da história brasilei-
plateia vaiando. Quando surge alguma
-se Semana de Mal - às Artes”. - Folha da
ras, que incorporou, criticou e revolucio-
coisa nova, o que vai chamar atenção pri-
Noite, fev. 1922
nou, que pintou a arte de verde e amarelo.
meiro é a vaia e não o aplauso. Quando é
“As colunas da secção livre deste jor-
Além disso, vamos apresentar as manifes-
muito vaiado o pessoal vai querer saber
nal estão à disposição de todos aqueles
tações de hoje, tão revolucionárias quanto
por que que está vaiando? O que aconte-
que, atacando a Semana de Arte Moder-
a Semana de Arte Moderna de 1922.
10/11
Foto: Reprodução/Instagram Plano Crítico
Colagem dos artistas da Música Popular Brasileira (MPB) na obra Os Operários de Tarsila do Amaral
FERNANDA DELGADO ISABELLE VITA GREGORINI
»»»O movimento modernista fundou e desenvolveu a ideia do moderno no Brasil. Desde a Semana da Arte Moderna de 1922, 100 anos atrás, a forma como o país se vê, nos âmbitos cultural e artístico, foi fundada pelo modernismo, que fez com que a his-
O LEGADO DO MODERNISMO O desenvolvimento do movimento artístico no Brasil e suas heranças culturais e sociais nos dias de hoje
tória brasileira fosse revisitada, e suas heranças coloniais, de uma sociedade patriarcal, escravocrata e racista, fosse
uma ascensão das classes marginaliza-
nos dias de hoje. Foi a partir dele que
relembrada.
das, que expõem suas próprias questões.
se criou o direito eterno da liberdade
A grande diferença do Brasil de 100
Mesmo após a Semana, a democra-
da pesquisa estética e se desenvolveu a
anos atrás e do Brasil de hoje está justa-
tização do acesso à arte, em especial a
temática que discute a consciência nacio-
mente na questão social do próprio país
modernista, era escassa. No início, ape-
nal e a brasilidade. Macunaíma, de Mário
de cada período e no movimento artístico
nas a elite tinha alcance às obras, vendo
de Andrade, é um exemplo de uma obra
que acabou por deixar um legado incon-
que as compravam e deixavam em seus
que exalta a cultura e cria um retrato do
testável do que se tem hoje. Os modernis-
acervos pessoais. Logo, o acesso era limi-
brasileiro. O álbum Meu Coco, de Caeta-
tas de 1922 embarcaram em um proces-
tado a esse grupo social. Com o tempo,
no Veloso,, lançado em 2021, é uma obra
so de redescobrimento do Brasil, visando
foi ocorrendo uma certa democratização
atual que também trata sobre a identi-
colocar de lado as visões oitocentistas.
do acesso às artes modernistas, possibili-
dade brasileira, característica e grande
Eram intelectuais brancos que usavam da
tando que hoje muitos tenham a chance
herança do movimento moderno, que
sua influência para romper com a visão
de ver e entender sobre o tema na inter-
valoriza as raízes nacionais, explorando
do passado. Hoje, mesmo que o lugar de
net e em museus, por exemplo.
correntes como o regionalismo.
fala na sociedade brasileira ainda seja
O modernismo é um movimento artís-
Outro grande legado do modernismo
essencialmente do homem branco, há
tico que ainda possui muita influência
nos dias atuais é a liberdade na escri-
ta, principalmente no quesito da liber-
representatividade. E daí surgem ques-
dade de expressão, em que os intelectu-
tões estéticas, éticas, políticas, artísticas
ais passaram a utilizar uma linguagem
e poéticas fortíssimas. É importante per-
coloquial (simples), criar versos livres e
ceber atualmente quem está rompendo
valorizar os acontecimentos e fatos do
estas barreiras, e como isso é necessário
cotidiano.
nas artes”, explica.
A liberdade é direito de todo cidadão, mas nem sempre foi assim. Antes de grandes rupturas de paradigmas acontecerem, artistas das mais diversas áreas sofriam censuras, tanto de forma direta quanto indireta. Conforme o tempo foi passando, vários movimentos, em especial a Semana de Arte Moderna, colaboraram para que ocorresse tal quebra de conceitos pré-estabelecidos em uma sociedade extremamente exclusivista e preconceituosa, fazendo com que, atualmente, os artistas possam se expressar da forma que quiserem.
É inegável a influência que o modernismo exerceu e continua exercendo nas artes. Vejo principalmente esta presença no rompimento de barreiras que a arte contemporânea realiza. Cada vez mais, vemos artistas engajados e vozes plurais reivindicando um espaço que lhes é devido.” Lucas Tolotti, Mestre em Teoria e Crítica de Arte
O modernismo desencadeou a reflexão crítica do Brasil, importante legado do movimento para os dias de hoje, vendo que vivemos em uma sociedade muito engajada em políticas e projetos sociais. É perceptível que a Semana de Arte Moderna de 1922 não influenciou somente na visão, expressão, criação e divulgação das obras e dos artistas envolvidos, mas também em um viés social, de aceitação e representatividade. Percebe-se que o processo de desconstrução dos paradigmas não ocorreu rapidamente, foi um processo longo e árduo. Tal
Iara Rennó, cantora, produtora e com-
processo, que teve como grande influ-
positora brasileira falou um pouco sobre
ência a Semana, culminou para que hoje
como é esse sentimento de liberdade
artistas como Iara possam se expressar
para ela no meio musical: “’Hoje não há
e desenvolvendo a consciência crítica,
e serem livres dentro da música, da arte
limites para a música. A música, inclusi-
intelectual e social do público. A litera-
ou da literatura.
ve, é infinita, continuam fazendo músicas
tura foi a principal área a tratar de tais
Tolotti percebe que, hoje, a Semana é
novas, milhares de músicas sendo lança-
questões. Vidas Secas, obra de Gracilia-
tida como uma importante ferramenta
das todos os dias. Então a música já mos-
no Ramos publicada em 1938, é um sím-
para o desdobramento das produções
trou essa característica que é ilimitada.
bolo de tal transformação causada pelo
e dos pensamentos do período, encon-
Eu me sinto livre na minha música, livre
modernismo, na qual é retratada a bata-
trando novas poéticas e leituras: “Algo
para trafegar. Em diferentes expressões,
lha de uma família que sofre com a seca
que apareceu muito nas comemorações
eu gosto de trafegar pra uma coisa mais
do Nordeste, fazendo parte da corrente
do centenário da Semana foi uma críti-
experimental, por uma coisa mais livre.
do regionalismo.
ca ao seu caráter elitista. Hoje, vejo que
Posso andar pelo improviso, eu posso
Para Lucas Tolotti, mestre em Teoria
artistas pensam não só sobre a Semana
brincar com a minha voz, com meu ins-
e Crítica de Arte e professor de Histó-
e não são apenas influenciados por ela,
trumento, posso também fazer uma can-
ria da Arte, é inegável a influência que
mas pensam e produzem a partir de seus
ção supersimples e uma canção inspira-
o modernismo exerce nas artes, princi-
questionamentos sobre a Semana de 22.
da em cantigas tradicionais. Eu acho que
palmente na questão de romper barreiras
Um exemplo que faz bem essa ponte é
a liberdade é isso, é a gente sentir que
pré-existentes na arte contemporânea. O
o documentário AmarElo, de Emicida.
não é obrigado a fazer isso ou aquilo.”
professor enxerga, cada vez mais, a pre-
Existe ali um diálogo muito importan-
Questões sociais também passaram
sença de artistas engajados e vozes plu-
te sobre a ocupação dos espaços. Quem
a ser exploradas durante este período,
rais que reivindicam um espaço que lhes
pode ocupar o espaço do Theatro Muni-
ganhando cada vez mais valor ao longo
é devido. “O que vejo como uma herança
cipal, por exemplo? Quem o ocupou na
do tempo. A desigualdade, a escravi-
do modernismo é, em resumo, justamen-
Semana de 22 – e o ocupa até hoje? Aí
dão e a vida dos retirantes são apenas
te esta questão do romper das barreiras.
nós voltamos para a história e percebe-
algumas das temáticas que passaram
Mas agora não é apenas uma barreira
mos de fato um caráter elitista de todo
a ser discutidas na época, estimulando
estética. Estamos falando de visibilidade,
este movimento.”
12/13
Foto: Rildo Coelha/Reprodução/Acervo Cultural do INSS, Brasília
Obra (sem título) de Tomás Santa Rosa, negro e um dos grandes nomes do modernismo
A REPRESENTATIVIDADE NEGRA E INDÍGENA Falta de participação desses grupos na Semana de 22 expõe o elitismo do movimento
indígenas ou negros. Mesmo que suas
vinha da cultura não branca, como a
FERNANDA DELGADO GABRIELLA FIGUEIREDO
culturas fossem o objeto de arte e cria-
das populações negras e indígenas, era
ção de uma elite intelectual de origem
considerado inferior, de outra ordem
»»» A Semana de Arte Moderna de
europeia e branca, que não tinha cone-
mais rebaixada, ‘incivilizada’ e ‘pri-
1922, além de representar uma rup-
xão com tais povos e os representava de
mitiva’”. “O modernismo decidia o que
tura com o tradicionalismo, marca o
maneira romântica, equivocada e pre-
queria das culturas desses povos, assi-
início do movimento modernista no
conceituosa, a partir de lugares sociais
milando só o que lhes convinha, para
Brasil, que visava a independência e
privilegiados. O movimento modernista
o conceito de povo, arte e cultura bra-
a valorização da cultura e da raça bra-
era avanço, progresso e prosperidade,
sileira criada por uma elite cultural”,
sileiras. Com tais objetivos, torna-se
e os negros e indígenas ficaram de fora
afirma Da Silva.
quase impossível não discutir temá-
desse processo. Segundo Beethoven
Entretanto, negros e indígenas são
ticas ligadas ao universo indígena e
Da Silva, artista visual e pesquisador
partes indispensáveis quando se trata
afro-brasileiro, mesmo que a ques-
sobre a história da arte no campo étni-
da construção do Brasil e de sua cultu-
tão racial, como se conhece hoje, não
co-racial do negro, o motivo pelo qual
ra, as quais herdaram costumes desses
fosse uma discussão dos modernistas.
esses grupos foram excluídos funda-
povos na língua, alimentação, religião
O importante marco de início do
menta-se na questão de que “no sécu-
e nas mais diversas manifestações cul-
movimento modernista no Brasil não
lo XX, o racismo é direcionado para o
turais do país. De acordo com Da Silva,
contou com a participação de artistas
campo cultural, sendo assim, o que
“os negros fazem parte primordial da
ONDE ESTAVAM AS MANIFESTAÇÕES ARTÍSTICAS E A PRESENÇA DOS NEGROS E DOS INDÍGENAS NA SEMANA DE ARTE MODERNA DE 1922? Foto: Arquivo Pessoal
construção desse país, não só com o
moderna brasileira, depois da primei-
elemento força física de forma braçal,
ra fase, vemos a entrada de negros no
como foi construído no imaginário cole-
movimento artístico, como o paraiba-
tivo, existem personalidades negras
no Santa Rosa, um dos grandes nomes
importantes em várias áreas e setores
do modernismo brasileiro, o cearense
da sociedade desde a colônia até os dias
Antônio Bandeira, ou até mesmo influ-
atuais”. Além disso, esses grupos étni-
ência negra pré-modernista, por volta
co-raciais são de extrema significância
do século XX, em outras linguagens
ao retratarem a história de um Brasil de
artísticas, como Pixinguinha e Chiqui-
outro ponto de vista. Denilson Baniwa,
nha Gonzaga na música, dentre outros
artista visual nascido na região do rio
exemplos.” A participação de indígenas
Negro, no Amazonas, em terras da etnia
no período, entretanto, ficou para trás.
Baniwa, afirma que eles “são grupos de
Hoje, a situação é diferente. Como
pessoas que viviam o Brasil, antes da
conta Baniwa, “todo o movimento dos
chegada do europeu, e que construí-
indígenas procurando conhecimen-
ram tudo que a gente tem do território,
tos para manter sua cultura viva, fez
influenciando desde a nossa língua, ali-
com que muitos fossem para a arte”. O
mentação, nossos hábitos, até a arte”.
maior envolvimento de negros e indí-
Ademais, o movimento modernista
genas nas lutas por reparação histórica,
desenvolvia a ideia de uma raça brasi-
equidade racial e social, e apoio público
leira mestiça, que envolvia negros, indí-
tem resultado em um incentivo a artis-
genas e brancos para criar a verdadei-
tas de tais culturas étnico-raciais, e um
ra persona que representaria o Brasil.
maior envolvimento desses grupos na
Isso pode ser observado, por exemplo, na obra de Mário de Andrade, Macunaíma, na qual a família do “herói sem nenhum caráter” é constituída por um negro, um mulato e um branco, sintetizando o caráter brasileiro. Beethoven Da Silva discute que “embora o Brasil realmente tenha altos índices de miscigenação, essa ideia modernista é desenvolvida posteriormente para a criação
“O modernismo decidia o que queria das culturas desses povos (negros), assimilando só o que lhes convinha, para o conceito de povo, arte e cultura brasileira criada por uma elite cultural”
arte de hoje.
Beethoven da Silva, Artista e pesquisador
des mudanças. Um levantamento sobre
Contudo, atualmente, apesar de alguns avanços, a situação sócio racial continua praticamente a mesma. Se naquela época eram os brancos que frequentavam os mais importantes centros culturais e intelectuais do país, hoje o cenário não retrata grano comportamento cultural dos brasi-
mal-intencionada de uma grande falá-
leiros feito pela consultoria J.Leiva
cia, que é o mito da ‘democracia racial’”,
em 2019 explicitou que brancos (38%)
conceito que nega o racismo no Brasil.
acessam mais museus e teatros do que
Com o passar do tempo, é possível
pessoas negras (29%) e indígenas (28%).
observar uma maior participação dire-
Espaços que são vistos, na maioria das
ta de negros na arte moderna. Mário
vezes, como elitistas e caros, e que ini-
de Andrade, por exemplo, era mulato,
bem, querendo ou não, a entrada de tais
mesmo que não assumisse tal cor, e uma
grupos étnico-raciais. Como eviden-
das mais importantes figuras do movi-
cia o estudo, também de 2019, de ten-
mento modernista brasileiro, segundo a
dências Narrativas para o Futuro dos
reportagem Museu Afro Brasil faz mer-
Museus, feito pela Oi Futuro, em par-
gulho em obra e influências de Mário
ceria com a Consumoteca, no qual 50%
de Andrade, publicada no site Agen-
dos respondentes indicam tais lugares
da Tarsila. Da Silva diz que “na arte
como elitizados.
p&r ENTREVISTA: JOÃO CÂNDIDO PORTINARI FUNDADOR E DIRETOR-GERAL DO PROJETO PORTINARI
14/15
OS MODERNISTAS FREQUENTAVAM A MINHA CASA JOÃO CANDIDO PORTINARI RELEMBRA A EXPERIÊNCIA DE SEU PAI COM OS ARTISTAS QUE PARTICIPARAM DA SEMANA DE ARTE MODERNA DE 1922
to por Cândido, e se impressionou com
to para o público, principalmente para
MANUELA MARGINI
a obra. Mário ainda dizia que foi ele que
crianças e adolescentes, para aproximá-
»»»João Cândido Portinari, filho de
descobriu o artista.
-los ainda mais do artista.
Cândido Portinari, tem 83 anos e é
A história e o legado de Cândido Por-
João ainda contou à Plural algo iné-
professor, escritor, fundador e diretor-
tinari são lembrados até os dias de hoje
dito: os painéis Guerra e Paz foram em-
-geral do Projeto Portinari, criado em
devido ao esforço de seu filho para que o
prestados, novamente, para o Proje-
1979, que tem como missão não deixar
artista não caia em esquecimento, como
to Portinari, para serem levados para
o legado de Portinari cair em esqueci-
os outros de sua época. Para isso, João
a Itália e a China, com o mesmo intui-
mento. Ele nos contou sobre a história
Cândido decidiu criar o Projeto Porti-
to do ateliê:mostrar ao público o legado
profissional e pessoal de seu pai.
nari após saber que 95% de suas obras
de Portinari.
Cândido Portinari nasceu no ano de
eram inacessíveis para o público. Além
1903 em Brodowski, São Paulo. Ele foi
de reunir todas as obras, João também
um pintor e poeta brasileiro que tinha
resolveu ressaltar a brasilidade presen-
como principal tema o ser humano.Em
te nelas e trazê-las para mais perto das
suas obras, as pautas sociais e as mino-
crianças e adolescentes, mostrando uma
rias eram sempre representadas. Falan-
face sociocultural do Projeto.
Seu pai viveu a adolescência na época da Semana de Arte Moderna, você acredita que o seu estilo teve influência dos artistas que participaram da semana de 22?
do de seu lado pessoal, Portinari sem-
O Projeto Portinari realizou a restau-
As coisas naquela época levavam mui-
pre conviveu com diversos modernistas.
ração da principal obra de Portinari, os
to tempo, as distâncias eram muito maio-
Um deles era Mário de Andrade, o qual
painéis Guerra e Paz, presentes na sede
res. São Paulo ao Rio era como hoje do
foi ao Salão Lucio Costa, em 1931, e viu a
da ONU nos Estados Unidos. A restaura-
Rio até a China. Alguma coisa que acon-
tela do retrato de Manuel Bandeira, fei-
ção foi feita no Brasil, em um ateliê aber-
tecesse em São Paulo ia demorar algum
Foto: Arquivo Pessoal
RAIO-X Nome João Cândido Portinari Nascimento: 23 de janeiro de 1939, em Rio de Janeiro. Formação Graduado em Engenharia na École Nationale Supérieure des Télécommunications, Paris. Também é doutor em Filosofia no Masschusetts Institute of Technology (MIT) e doutor em Engenharia Elétrica e Eletrônica também pelo MIT. Carreira Professor do Instituto de Matemática da Pontificia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) de 1967 a 1979. Desde de 1979 é fundador e diretor-geral do Projeto Portinari.
tempo para ter uma repercussão no Rio
to. Um era o retrato de Manuel Bandei-
Portinari também teve uma relação, por
de Janeiro. O Centro Cultural do Brasil na
ra, feito por Portinari. E o outro era um
exemplo, com Di Cavalcanti. Os dois mo-
época era o Rio de Janeiro, que era capi-
violinista chamado Oscar Nordeste, que
ravam no Rio de Janeiro e eram moder-
tal. São Paulo ainda era muito provincia-
era amigo de meu pai, que também é um
nos. Mas não eram tão próximos. Talvez
no. Havia uma elite, formada pelo Oswald
retrato de Portinari. E aí o Mário diz que
o pintor que ele se sentisse mais próxi-
de Andrade, pela Tarsila, pelo próprio Má-
ele ficou tão fascinado que ele pergun-
mo e que ele mais admirava era o Alber-
rio de Andrade e Graça Aranha. Era uma
tou quem é que pintou isso. Ele contan-
to da Veiga Guignard.
elite basicamente paulista, que tinha pou-
do, com aquela linguagem dele, que ele
ca entrada no Rio de Janeiro, muito pou-
tinha orgulho de ter sido o primeiro a
co contato naquela época.
descobrir o talento daquele jovem e des-
Na verdade, em 1931, no Rio de Janei-
conhecido artista.
ro, a Escola Nacional de Belas Artes promoveu o salão revolucionário também
Sobre os painéis de Guerra e Paz que foram feitos para a sede da Organização das Nações Unidas em Nova York, ele teve essa ideia de fazer um painel com cada tema?
chamado de Salão Lúcio Costa. E foi nes-
Como era a relação do seu pai com os modernistas?
se momento que Portinari se encontrou
Tem um depoimento do Carlos Drum-
Guerra e Paz. Quando acabou a Segunda
com Mário de Andrade. Tem um texto
mond de Andrade em que ele diz que
Guerra Mundial, 50 países se reuniram
belíssimo do Mário de Andrade que ele
Portinari era muito mais amigo dos poe-
e criaram a ONU, a Organização das Na-
conta que ele pegou os quinhentos qui-
tas do que dos outros artistas. Basta dizer
ções Unidas. O primeiro secretário-geral
lômetros de São Paulo ao Rio e foi para o
que ele fez o retrato de Manuel Bandeira,
da ONU era um norueguês, e a Noruega
salão revolucionário. Chegando lá ele viu
de Felipe de Oliveira, de Adalgisa Neris,
é um país tradicionalmente voltado para
duas telas que o impressionaram mui-
de Dante Milanos, de Jorge de Lima. Mas
paz. Ele fez um apelo a todas as nações
Nada poderia estar mais atual do que o
“TEM UM DEPOIMENTO DO CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE EM QUE ELE DIZ QUE PORTINARI ERA MUITO MAIS AMIGO DOS POETAS DO QUE OS OUTROS ARTISTAS” membros para que cada uma doasse uma obra de arte para nova sede da ONU, em Nova York, uma obra de arte que pudesse testemunhar a cultura e a arte daquele país. Cada país foi escolhendo o seu artista. O Brasil escolheu Portinari e deu a ele o elenco de temas, entre esses temas
16/17
estavam guerra e paz, que é o tema da
“A RELAÇÃO ERA UMA RELAÇÃO DE UMA IMENSA TERNURA. EU QUANDO VEJO AS FOTOS, ESTOU SEMPRE NO OMBRO, NAS COSTAS, NO COLO, NA CABEÇA DELE”
vida dele. Ele passou quatro anos fazendo só estudos preparatórios. Fez mais de 200 estudos. E em nove meses ele pintou aqueles dois gigantes. Ele considerava a obra definitiva, a obra máxima. Aquilo que faz a síntese de tudo que ele quis expressar durante a vida dele.
barcados para os Estados Unidos, hou-
Como isso se consolidou?
ve um grande clamor no Brasil para que
Eu tive conhecimento que a ONU iria
Ele se frustrou ao saber que não poderia ver o painel instalado na sede, devido ao fato de o visto ter sido negado?
fosse dada uma chance para que os bra-
passar por uma reforma muito profunda,
sileiros pudessem vê-los, então o presi-
que ia durar vários anos e que as obras de
dente Juscelino Kubitschek fez com que
artes teriam que ser retiradas. Falei, olha,
Claro, com certeza. A ONU é um ter-
eles fossem expostos no Theatro Munici-
está aí a chance que eu venho esperan-
ritório internacional, mas acontece que
pal. Carlos Drummond de Andrade tem
do todos esses anos. E aí começou o que
ela está dentro dos Estados Unidos. En-
uma crônica sobre isso. Ele se inspirou
nós chamamos de projeto Guerra e Paz.
tão para você ir até lá, você tem que ter
em uma matéria que dizia: “Agora eles
o visto americano. E os americanos na-
irão irremediavelmente para a ONU.”
quela época estavam na guerra fria,
A ONU nos deu a guarda de Guerra e Paz por seis anos e uma das condições era o restauro. A condição era restaurar no Brasil. Aí nós formamos uma equipe
da ou qualquer coisa que pudesse lem-
Como começaram as negociações para trazer os painéis ao Brasil?
brar dela. Portinari era um artista de es-
O ano de 2002 marcou a véspera do
dos por dois professores da UFRJ. Nós
querda. Então o que que aconteceu? Para
ano do centenário de nascimento de
fizemos um ateliê aberto. A gente rece-
dar o visto, eles exigiram que Portinari
meu pai. Ele nasceu em 1903. Em 2002
bia crianças todos os dias durante quatro
declarasse que não era comunista. Ele
eu fui para os Estados Unidos tentar
meses e montamos umas oficinas de físi-
naturalmente disse que não declarava
ver como é que a gente poderia cele-
co-química para mostrar como é que se
coisa nenhuma e não teve o visto. Mor-
brar isso. Eu tinha a ideia de fazer junto
restaurava uma grande obra de arte. To-
reu sem a emoção de ver os seus painéis
aos painéis, colocar os estudos prepara-
dos os recursos tecnológicos. E foi uma
instalados lá.
tórios, só que eu não contava com uma
coisa impressionante.
numa perseguição tremenda à esquer-
de 18 brasileiros restauradores, chefia-
coisa. Com a tragédia que tinha ocorri-
Como foi para você essa restauração do painel e o seu retorno para a sede? Você já tinha visto antes lá na sede? O que você sentiu? Por que realizar a restauração em um ateliê aberto? O Projeto Portinari acompanhou esse processo?
do um ano antes, em 2001, nas torres gê-
Essa foi uma das maiores emoções da
meas, em Nova York. Então, as normas
O Projeto Portinari acompanhou todo esse trabalho?
de segurança da ONU eram tão severas
Sim, fomos nós que fizemos. Nós que
que você não podia nem pensar em co-
promovemos tudo isso. A inauguração
locar um grão de arroz na parede. E foi
foi no Palácio Gustavo Capanema, que
uma viagem absolutamente frustrante,
é um lugar também dramático. Da arte
que eu tive que voltar de mãos abanan-
moderna, é o marco da arte da arquite-
do, não consegui nada. Foram passan-
tura moderna do Rio de Janeiro. Ali tra-
minha vida. Quando eu vi Guerra e Paz
do os anos, quando chegou 2007, era o
balharam Oscar Niemeyer, Lúcio Costa e
pela primeira vez, eu tinha 16 anos. Foi
cinquentenário da instalação dos pai-
Burle Marx. Você tinha escultores, pin-
no Theatro Municipal do Rio de Janeiro.
néis. Aí eu fui convidado pelo presiden-
tores, arquitetos, paisagistas trabalhan-
Porque antes de os painéis serem em-
te Lula para ir com ele.
do juntos ali.
Painel Paz exposto na ONU, em Nova York
qualquer lugar que ele estivesse, sempre junto dele. É claro que quando eu fiquei adolescente, eu bati de frente com ele algumas vezes e acabei saindo de casa com 18 anos, nunca mais voltei. Eu fui para a Europa estudar, mas isso não interferiu no amor que havia entre nós. Eu tenho as cartas que a gente trocava depois das visitas que ele me fazia lá ou que eu fazia para ele aqui. Esse grande amor, essa grande admiração recíproca. Eu não entendia muito bem o que ele significava, o que ele era e aquelas pessoas que frequentavam a minha casa. Mário de Andrade, Manuel Bandeira, essa gente.
Como foi a experiência com essa exposição virtual, sobre o Portinari, feita pelo Google? Isso aí é uma coisa também que é um outro sonho. Que é você fazer a coisa interdisciplinar. O Projeto Portinari na PUC, devido à minha origem, virou uma espécie de ponte entre as atividades de arte e cultura e as atividades de ciência e tecnologia. Você pode fazer por exemplo essa parceria com o Google que mencionou em primeiro lugar e você pode ter esse museu virtual que a gente criou lá dentro. O site deles é uma coisa deslumbrante.
Foto: Arquivo Pessoal Joâo Cândido Portinari
E com relação à exposição multimídia no MIS Experience? Essa exposição no MIS mostrou pela primeira vez o Portinari total. O Portinari de todos os temas. Dos temas sociais,
Brasil estava saindo da ditadura mili-
Como era a sua relação com o seu pai? Você se interessava pelas pinturas dele? Você teve vontade de seguir no ramo artístico?
tar. Começava a surgir um movimento
Era uma relação de uma imensa ternu-
do folclore, da fauna da flora e da paisa-
em todas as áreas no sentido de recon-
ra. Eu quando vejo as fotos, estou sempre
gem, quer dizer, esse grande Brasil. Não
tar a nossa história, de resgatar um pou-
no ombro, nas costas, no colo, na cabe-
só Brasil, mas você tem também Guerra
co para onde é mesmo que a gente ia an-
ça dele. Impressionante quando ele foi
e Paz, que são coisas que não são brasi-
tes de entrar nesse período. E o Projeto
fazer a exposição no MoMa (Museu de
leiras, são internacionais. Neste formato
Portinari surge no bojo desse grande mo-
Arte Moderna), em Nova York, em 1940,
imersivo, você vê a obra do pintor, você
vimento.
eu tinha um ano, e estava ali presente em
está dentro dela.
Qual foi o motivo da criação do Projeto Portinari? Qual o seu objetivo? Em 1979, quando nós começamos, o
históricos, religiosos, da infância, do trabalho no campo e na cidade, dos tipos populares, da festa popular, dos mitos e
Foto: Manuela Margini
Início da exposição: uma imersão no cotidiano do artista
aquelas figuras de malandro ou do chorinho.” Logo depois, ampliava-se a interação com o público. Os visitantes conseguiam montar quebra-cabeças de algumas obras do Portinari e havia um painel interativo que funcionava com a lanterna
18/19
do celular que, ao ser aproximada da tela, revelava suas obras. Além disso, a sala incluia uma grande maquete que representava os lugares de onde as principais obras do artista estão expostas. No final, eram apresentadas frases de impacto ditas por ele. O setor seguinte provocava nos visitantes um misto de sensações que estão ligadas aos cinco sentidos humano. A sala estava cercada de telões que apresentavam inúmeras obras de Portinari, e junto a elas, músicas atreladas aos temas das
A HERANÇA DE PORTINARI
pinturas expostas nos vídeos. Para que o
Arte, cultura e seu legado no Brasil
de visitar o museu. A influencer Ariela
público pudesse ter uma melhor experiência, o espaço estava repleto de sacos de café que serviam como bancos, e ainda, exalavam o cheiro em todo o ambiente. Lívia Almeida, de 25 anos, contou que se sentiu imersa e amou a experiência Abrao, de 23 anos, também contou que sua experiência foi incrível. “Há tecno-
cores da sala te auxiliavam a compreen-
logias novas e foi emocionante a forma
MANUELA MARGINI MILENA DA SILVA
der melhor sobre as cores usadas na arte
como deram vida às obras”.
do pintor. Em seguida, havia uma sala
O último setor era focado no Projeto
»»»A Plural visitou a exposição Por-
com pinturas de diversos artistas, com
Portinari e sua missão, que além de mos-
tinari para todos, que mostrou a vida
destaque para os modernistas Oswald
trar seu legado para a arte do Brasil, tam-
e as obras de Cândido Portinari, no
de Andrade, Mario de Andrade, Pagu e
bém apresentou a relação do artista com
MIS Experience. Sua principal carac-
Manuel Bandeira. Continha também tes-
a cultura e história do país, e sua vida
terística foi a imersão no mundo do
temunhos de Maria Portinari, esposa do
fora dos quadros. Para ajudar o públi-
pintor e estava dividida em três seto-
artista, que foi o apoio que ele precisa-
co a entender essa relação, havia uma
res. O primeiro e o segundo foram
va para realizar suas obras. Os relatos
linha do tempo com textos e imagens,
focados nas obras do autor e o seu
eram em forma de áudio com a imagem
contando em ordem cronológica a pas-
patrimônio histórico, já o terceiro,
de Maria em movimento. Neles, ela conta
sagem do pintor pelo país. Além da linha
teve como objetivo mostrar a impor-
sobre a vida privada e pública do marido.
do tempo, o espaço também contou com
tância do artista para a sociedade.
Um dos relatos de Maria é: “Gostava de
um vídeo sobre a restauração do quadro
Ao entrar na exposição, você já se sen-
pintar criança. E gostava muito de pintar
Guerra e Paz, a obra mais importante de
tia dentro do universo do Portinari, com
operários trabalhando, gente do campo
Portinari, e de entrevistas que falam um
vários pincéis pendurados no teto e as
trabalhando. O morro, por exemplo, com
pouco mais sobre a vida do artista.
‘‘
É importante aprender de onde vêm as imagens que estão na nossa imaginação” Jochen Volz, diretor-geral da Pinacoteca
PINACOTECA EXPÕE ARTE DA SEMANA DE 1922 Modernismo: destaques do acervo estará em cartaz ate dia 31 de dezembro de 2022 Foto: Reprodução/Instagram Luciano Gonçalves
MILENA DA SILVA
»»»Fundada em 1905, na Estação da Luz, no centro, a Pinacoteca é o museu de artes visuais mais antigo da cidade de São Paulo. Foi projetada pelos arquitetos Domiziano Rossi e Ramos de Azevedo, com o intuito de ser a sede do Liceu de Artes e Ofícios. Atualmente, seu acervo conta com cerca de 11 mil peças, dentre elas estão as obras de artistas modernistas como Anita Malfatti, Di Cavalcanti, Cândido Portinari e muito mais. Em comemoração aos 100 anos da Semana de Arte Moderna, a Pinacoteca está com a exposição Modernismo: desta-
Luciano Goncalves em frente ao quadro Antropofagia, de Tarsila do Amaral
ques do acervo em cartaz. Lá, há 134 obras expostas de autores associados ao modernismo. Uma em especial é a pintura
70% do público. O diretor disse que o con-
Esse é o caso da Eliane Regina, de 56 anos.
Amigos, de Di Cavalcanti, que foi exibida
tato com arte e com o pensamento de ar-
Ela é de Porto Alegre, Rio Grande do Sul,
quando a Semana de 22 ocorreu.
tistas sempre alimenta nossa própria
e essa foi a primeira vez que veio para
O diretor-geral da Pinacoteca, Jochen
imaginação, fundamental para inclusi-
São Paulo, para visitar seu filho. Quando
Volz, frisou a importância de as pesso-
ve pensar em outros caminhos ao futu-
soube que a exposição que está tendo é
as visitarem essa mostra no museu. ``A
ro, e que tem percebido que as pessoas
sobre o modernismo, logo correu para
mostra coloca as obras de arte do moder-
estão cada vez mais buscando este estí-
olhar as obras e se informar ainda mais
nismo em direto diálogo com produções
mulo no museu.
sobre o que foi a Semana de 22, e quais são os trabalhos.
artísticas anteriores e posteriores, inclusive muitas feitas por artistas contem-
VISITANTES
porâneos. Isso permite um olhar a estas
Em visita à Pinacoteca, Luciano Gonçal-
tância da Semana de Arte Moderna, Jo-
obras a partir dos dias de hoje. Obras co-
ves, de 26 anos, contou que a Semana de
chen Volz disse que a mesma deixou co-
mo a da Tarsila do Amaral, por exemplo,
22 foi um momento importante. Segun-
mo um dos principais legados a questão:
ou do Di Cavalcante, formam um ima-
do ele, ver que o que antes era consumi-
“O que é a arte e a cultura brasileira”. Ele
ginário coletivo sobre um certo período
do como belo - ou a visão perfeita do eu -
finalizou com algumas indagações: “Qual
no passado.”
se transformou em visões mais abstratas.
história da arte brasileira queremos con-
“O impacto social vem através do aces-
tar? Quem conta? Quais histórias devem
so à arte.”
ganhar visibilidade? É esta questão que
Ele ainda afirmou que o museu recebe um público muito diverso, de todas as faixas etárias. A visita à Pina é o primeiro
Na Pina, há também aqueles que esti-
contato com a arte de aproximadamente
veram lá para relembrar o que aconteceu.
Ao ser questionado sobre qual a impor-
é importante para todos nós como sociedade brasileira.
20/21
SEMANA DE 22: UM GUIA AFETIVO Alunos apresentam a arquitetura modernista de São Paulo em um mapa feito de suas impressões após algumas visitas ao centro histórico
� Edifício Esther
LABORATÓRIO DE FORMATOS HÍBRIDOS
»»» O lugar do repórter é a rua, dizia Marcos Faerman, importante nome do jornalismo literário brasileiro. Para fazer jus a esta afirmação, os estudantes organizaram um roteiro turístico para fazer a pé, em homenagem ao centenário da Semana de Arte Moderna de 1922. Foram três saídas ao centro que cobriram cada um dos lugares destacados no mapa ao lado. Ponto Chic e Galeria do Rock na primeira vez, Galeria Metró-
2
3
pole e Biblioteca Mário de Andrade da segunda, e na última a exposição sobre a Semana de Arte Moderna no próprio Theatro Municipal, justamente o lugar onde aconteceu a primeira, em 1922, cem anos antes. O guia é baseado nas experiências e
Av.
em depoimentos que surgiram após as
São
visitas dos estudantes ao centro. Muitas vezes era a primeira vez que cada
Design Stefani Pereira, tornando ainda mais sensível e afetivo este roteiro. A
� Edifício Copan
edição das páginas é da estudante Laura
� Galeria Metrópole
Okuma, também do curso de Design.
Conso
s
R. da
bém desenhado à mão pela estudante de
Luí
um caminhava por ali. O mapa foi tam-
lação
� Galeria do Rock � Largo do Paissandu Ponto Chic
Av.
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� Theatro Municipal
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n ira
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� Biblioteca Mário de Andrade
Foto: Andre Deak
LEVE ESTA PÁGINA NO SEU PASSEIO
22/23
GUIA AFETIVO
Estudantes contam em primeira pessoa como foi a experiência de visitar cada um dos locais relacionados à Semana de Arte Moderna de 1922
1: EDIFÍCIO ESTHER
que reuniria residências, centros comer-
Idealizado por Álvaro Vital Brazil e Adhe-
ciais, teatro e um hotel, mas somente os
mar Marinho, o edifício Esther é um
apartamentos e o térreo comercial saí-
ícone da verticalização da Praça da Repú-
ram do papel. Essa forma sinuosa de
blica e pioneiro em fazer uso comercial
Copan ficou conhecida como uma das
juntamente com o residencial, um dos
principais características do seu cria-
marcos do modernismo na arquitetura,
dor, que escreveu: “Não é o ângulo reto
chamado de uso misto. Foi frequentado
que me atrai, nem a linha reta, dura,
por artistas da semana de 1922, moder-
inflexível... O que me atrai é uma curva
nistas que se encontravam no clube
livre e sensual”. Quando visitei o Copan
Clube dos Artistas e Amigos da Arte, pre-
pela primeira vez em 2019 foi uma das
sidido por Tarsila do Amaral.
experiências mais gratificantes que já
(GIOVANNA MASSARO)
tive. Fiquei impressionada não apenas
Endereço: R. Basílio da Gama, 29. Dica: Esther Rooftop, restaurante feito onde era o apartamento dos chefs Olivier Anquier e Benoit Mathurin.
com sua grandiosidade e a sua curvatura peculiar, mas com a sua história e a vida das lojas e cafés do térreo. (MARINA PIRES)
Endereço: Av. Ipiranga, 200. Dica: Visite a Livraria Megafauna.
2: EDIFÍCIO COPAN O edifício Copan é um projeto da década de 1950 do arquiteto Oscar Niemeyer.
3: GALERIA METRÓPOLE
A ideia era um complexo urbanístico no
Os arquitetos Gian Carlo Gasperini e
modelo Rockefeller Center de Nova York,
Salvador Candi buscaram integrar área
No terraço da biblioteca municipal Mário de Andrade, alunos observam fachada da hemeroteca com a imagem do escritor. Idealizado em 2008 pela artista visual Raquel Brust, o projeto Giganto expõe fotografias hiperdimensionadas utilizando a arquitetura urbana como suporte
de uma antiga chácara e, portanto, com
- estúdios de tatuagem, lojas de discos
ambientes diversos, tais como amplas
de vinil, bazares de parafernália roquei-
áreas disponíveis para leitura, tanto
ra e homenagens às grandes lendas do
cobertas quanto ao ar livre. Estar em
rock’n’ roll. O edifício é lindo e cumpre
espaços abertos e arborizados em São
seu papel de transmitir aos visitantes o
Paulo é como um afago. E é o que tam-
espírito da música, agregando à própria
bém se sente no terraço que se localiza
estrutura elementos que dão um toque
no terceiro e último andar, de onde se
especial, como as notas musicais que
aprecia a vista da praça Dom José Gaspar
transformam a fachada em uma gran-
e é possível fazer leituras enquanto se vê
de partitura. No entanto, por mais que
a curiosa instalação Giganto – Mário de
os amantes do rock discordem, a melhor
Andrade. (MARCIA MAGALHÃES)
parte da galeria foi, sem dúvida, a vista
Endereço: R. da Consolação, 94. Dica: Faça como na foto ao lado: vá na torre ver a obra do prédio em frente.
privilegiada para o largo do Paissandu.
5: THEATRO MUNICIPAL
(BIANCA IAZIGI)
Endereço: Av. São João, 439. Dica: Separe um tempo e visite com calma todos os andares, vale a pena.
Inaugurado em 1911, foi construído a partir interna e externa, bem ao gosto dos
de inspirações na arquitetura européia da
modernistas. Construída no início dos
época, tornando um grande atrativo para
7: LARGO DO PAISSANDU PONTO CHIC
anos 1960, em 1969 já começou a apre-
a elite paulistana. Após a Semana de Arte
Inaugurado em 1922, durante a Semana de
sentar sinais de decadência. Como é
de 1922 que aconteceu ali, tornou-se um
Arte Moderna, o restaurante Ponto Chic, no
pouco movimentada e por receio da cri-
marco para a valorização da arte nacional.
largo do Paissandu, tornou-se um ponto de
minalidade, fiquei com medo, mas che-
A aparência de um monumento europeu
encontro dos artistas e intelectuais moder-
gando lá não me senti em perigo. Per-
e de arquitetura luxuosa no centro de São
nistas por sua proximidade com o Thea-
cebi como é maravilhosa a arquitetura
Paulo causa diversas reflexões sobre a his-
tro Municipal. Grandes personalidades,
modernista e como as escadas rolantes
tória da arte, do Brasil e da cidade. A bele-
possuem um conceito estético incrível.
za do local deixa qualquer um entusias-
como Mário e Oswald de Andrade e Anita
Infelizmente, é notável a falta de preser-
mado, assim como me deixou. Estar lá me
vação do local. Como seria frequentar lá
permitiu aprender sobre a Semana de Arte
no seu auge? (LAURA GALVÃO)
Moderna de maneira que tornou possível
Endereço: Av. São Luís, 187 Dica: A vista do terraço.
se sentir, de certa forma, dentro daquele momento. Eu nunca tinha ido e não imaginava que seria tão bonito quanto é.
4: BIBLIOTECA MÁRIO DE ANDRADE Fundada em 1925, é um marco da arqui-
Malfatti, frequentavam o local e fortaleciam os ideais do movimento modernista. Mas também seus críticos, como Monteiro Lobato, passavam lá para um lanchinho. Foi nossa primeira visita, que ainda nos garantiu uma experiência gastronômica única com o carro-chefe da casa, o
(GIOVANNA MASSARO)
Bauru. Logo em frente, a praça é ocupa-
Endereço: Pça Ramos de Azevedo, s/n. Dica: A exposição sobre a Semana de Arte Moderna, revisitada.
da pela Igreja Nossa Senhora do Rosário
tetura moderna e a segunda maior biblioteca pública do país. O próprio
6: GALERIA DO ROCK
Mário de Andrade foi o primeiro dire-
Inaugurado em 1963, o projeto do arqui-
tor do departamento de cultura de São
teto Alfredo Mathias se transformou
Paulo. Visitar a biblioteca vai muito além
ao longo dos anos em uma referência
de entrar em contato com o seu gran-
da arquitetura modernista. A minha
de e variado acervo de livros. O local me
impressão ao explorar a Galeria do Rock
chamou especialmente atenção por sua
foi de um ambiente divertido e inclusivo,
estrutura física, construída no terreno
já que cada andar é uma visita diferente
dos Homens Pretos e pela Escultura da Mãe Preta, elementos cheios de história que, no entanto, estão muito degradados - pichações e sujeira por todo lado, poluindo a riqueza cultural diante de nós. (BIANCA IAZIGI)
Endereço: Largo do Paissandu, 27. Dica: Peça, claro, o Bauru. Depois é só atravessar a rua e entrar na galeria do Rock, e dali está pertinho do Sesc 24 de maio. Tarde garantida.
24/25
Foto: Reprodução/Instragram
A ARTE PERIFÉRICA HOJE Conheça o crialismo, movimento que transforma a realidade da periferia em arte
EDUARDO FABRÍCIO
»»»O movimento modernista abriu a cabeça das pessoas para novas manifestações artísticas. Isso influenciou para que hoje a arte da periferia venha conquistando seu espaço. Mas o cenário atual ainda apresenta seus percalços, como diz Marcelino Melo, o Nenê, também conhecido como Quebradinha, que produz esculturas baseadas em casas de favelas. “Nada mudou, no final das contas, continua igual. Lá em 1922
Nenê e suas obras em exposição no MIS
existia esse grupo de jovens ricos, que tinham os pais donos do café, donos de São Paulo. Não estou tirando esses caras, mas naquela semana também não existia gente preta, de periferia,
»»» “No Nordeste, eu já fazia casinhas
que fazia arte e que era muito bom naquilo? Também existia.
na arquitetura de lá, com pedaços de
Foram colocados no lugar que deveriam? Não! E hoje, os artis-
telhas, blocos e uma massa de água e
tas periféricos estão sendo colocados nos lugares que deve-
areia. Percebi há pouco tempo que essa
riam? Também não. A verdade é que nada mudou.”
pode ser uma conexão entre a minha
Todos esses privilégios permitiam que os modernistas viajassem e se inspirassem nas produções europeias. “Em 1922, quando teve a Semana de Arte Moderna, eles se considera-
infância e hoje. Eu me reconheço. Tenho certeza que não é por acaso”. O que antes era brincadeira, hoje
vam modernistas, falando sobre a nossa ‘brasilidade’, porém,
virou peça de exposição e mais do
eram todos burgueses, não tinha um preto, um pardo, eram
que isso, uma representação da reali-
todos brancos da elite”, acrescenta Guilherme Lima, também
dade periférica. O artista teve sete de
artista periférico. Os artistas da periferia não viajam para buscar referências.
suas Quebradinhas na exposição Carolina Maria de Jesus: um Brasil para os
A vivência deles, o lugar onde moram, os inspiram. É o seu dia
brasileiros, que aconteceu no Insti-
a dia que vira arte.
tuto Moreira Salles (IMS), na avenida
Nesta Plural, apresentaremos artistas do movimento artís-
Paulista, centro de São Paulo. Também
tico crialismo, que tem esse nome em referência à gíria “cria”
participou da primeira edição da Expo-
que nomeia os que vêm da quebrada. Eles buscam conquistar
Favela, com a obra Colher de pedreiro.
espaço e visibilidade, não só para eles e para a arte de perife-
Ele também tem uma produtora de
ria, mas para toda a sua realidade.
vídeo, a Fluxo Imagens, e o Menino do
A GENTE ESTÁ AQUI PARA DECOLONIZAR ESSES MOVIMENTOS ELITISTAS. ESTAMOS CHEGANDO CADA VEZ MAIS, MUDANDO ESSES PADRÕES ESTÉTICOS E ESSAS REGRAS QUE EXISTEM NO MUNDO DA ARTE” Foto: Reprodução/Instargram
Janaina Vieira
intencional. “Eu não vim com essa vontade de ser artista. Na real, a última coisa que você quer ser na vida é ser artista. Porque o artista não tem valor nenhum”. “Quase ninguém exerce a arte como ela deveria ser exercida”. Para ele, o ideal seria que o artista tivesse um espaço para produzir, em que seu processo criativo fosse respeitado, além de uma equipe encarregada das burocracias da carreira, para que o trabalho também gere dinheiro. “Quando você não tem nada disso e tem que criar, responder e-mail, oferecer seu trampo, disputar edital público… não dá.” A visão preconceituosa que a sociedade tem da periferia foi o que influenciou as quebradinhas a terem, ou melhor, não terem uma característica: marcas de tiros. “Não vai ter marca de balas”.
Janaina Vieira @jnavieira @colamesmo
A forma com que Nenê retrata
Marcelino Melo, Nenê
as casinhas tem um objetivo: fazer
@quebradinha_ @menino_do_drone
com que as pessoas se sintam
»»»Janaína começou na arte foto-
pertencentes a essa realidade.
grafando cotidiano urbano. Em
“Quando isso acontece, é porque
2016 passou a experimentar cola-
deu certo representar a quebrada.
gens e em 2018 iniciou o projeto Cola
Já não é mais meu, é do mundo”.
Mesmo, que oferece oficinas cultu-
Ele também destaca que é impor-
rais de Colagem e Lambe-lambe no
tante levar sua arte para lugares
Vale do Paraíba e região. “Tenho 24
mais privilegiados. Para que a peri-
anos e estou nesse corre desde os 16.”
Drone, projeto em que faz fotogra-
feria seja apresentada por seus
fias aéreas de favelas com um drone.
próprios olhos, por seus pró-
uma forma de expressão. “Quando
prios artistas. “O mundo precisa
eu retrato a quebrada, eu estou
para São Paulo aos 14 anos com a
conhecer a nossa visão e a nossa
falando de mim mesma, porque
família, e foi aqui que se desen-
narrativa sobre o território”.
eu venho desse contexto, da peri-
Nascido em Alagoas, Nenê veio
volveu como artista. “Tem coisas
Expor na Paulista tem um sig-
Segundo a colagista, sua arte é
feria, da quebrada, da favela, barraco
que eu só descobri sobre mim,
nificado especial para quem já
de madeira. Então eu só queria
sobre meu povo, minha origem,
trabalhou como entregador e mecâ-
expressar o que via no meu dia a dia.”
quando cheguei aqui e conheci o
nico na mesma avenida. Mas isso
hip hop e mais uma pá de coisa”.
marca apenas o começo. “Quero
de que mais pessoas dessa reali-
estar no mundo, no Masp, no
dade sintam orgulho de onde vêm,
Museu Internacional, no Louvre.”
de sua origem. A artista também
Mas a descoberta como artista não foi rápida, muito menos
Para além de si, ela tem o objetivo
»
ponsabilidade. “Preciso estudar antes de fazer uma obra, como eu falo de quebrada, eu não falo só de
26/27
mim, sobre minhas vivências. Eu
Foto: Reprodução/Instagram
» entende que isso carrega uma res-
Me deixava triste, mas eu continuava desenhando, não podia deixar isso entrar na minha cabeça”. Para ele, isso era reflexo da incerta carreira de artista. “Nem todo
falo sobre a realidade de uma galera
mundo tem oportunidades, ainda
que faz parte desse recorte social”.
mais quando você vem de uma famí-
Janaína é natural de Macam-
lia que não tem muito recurso. Na
bira, Sergipe, e atualmente mora
maioria das vezes é preocupação”. A persistência rendeu frutos desde
em Jacareí, São Paulo. Ela conta que por mais que consiga viver só
cedo, logo aos 14 anos, recebeu pro-
de arte hoje em dia, a maior dificul-
posta para fazer as artes do livro do
dade de um artista de quebrada é
rapper Gabriel Pensador. Ferreirart
em relação ao sustento financeiro.
também já desenhou para a revista
“Eu me desdobro em várias funções
Mundo Estranho e para o jornal Folha
para levantar uma renda de fato.”
de S.Paulo, além de já ter feito trabalhos para artistas como MC Cabeli-
Ainda assim, a arte de Janaína rompeu a fronteira e chegou até espaços tradicionalmente de elite, como o IMS Paulista. A obra Conhecimento é a única coisa que ninguém tira de nóis também fez parte da exposição Carolina Maria de Jesus: um Brasil para os brasileiros. Porém, a artista diz que expor nesses lugares
“O garoto representa um sonhador, qualquer um pode se ver ali”
nho, Yunk Vino e Rennan da Penha.
Lucas Ferreira, Ferreirart
com que desenvolvesse ansiedade,
@lucasferreirart
sobre si, o que não impede que repre-
Porém, o acúmulo de tarefas fez e foi a própria arte que serviu como solução. “Eu liberava minha ansiedade ali, eu sinto prazer em produzir arte”. As obras de Ferreirart são sente outras pessoas. “Muitas pes-
não tem só pontos positivos. “A arte
soas vão se identificar porque todos
é muito elitista. O preço de ocupar esses espaços é caro demais, custa
»»»Aos 4 anos de idade, Lucas
um pouco de saúde mental”.
mudou do Rio de Janeiro para o Ama-
nós viemos do mesmo lugar.” “Quando a gente acredita que
zonas, onde morou até a adolescên-
a gente vai conseguir uma coisa,
conceito e do meio elitista que a
cia. Durante esse período, criou uma
a gente consegue”. A busca pelo
arte brasileira se desenvolveu, na
conexão com a natureza, presente até
crescimento é constante, o cuida-
figura dos próprios modernistas,
hoje em sua arte. Com 12 anos já tinha
do financeiro e a base para traba-
e a exemplo deles, a arte da peri-
um canal no YouTube em que ensi-
lhar são essenciais e definir metas
feria vem para quebrar barreiras.
nava a pintar com mouse e a dese-
é necessário. “Eu quero traba-
“A gente está aqui para decolonizar
nhar personagens. “Desde novinho
lhar com uma coisa muito grande
esses movimentos elitistas. Estamos
eu já sabia que queria ser artista.”
um dia, maior até do que eu consi-
Esse preço entra na conta do pre-
chegando cada vez mais, mudando
Foi essa certeza que o fez resistir à
go imaginar”. Para ele, todo mundo
esses padrões estéticos e essas regras
falta de apoio familiar, incluindo sua
nasce artista, só que uns continu-
que existem no mundo da arte.”
mãe, que trabalhava com artesanato.
am e outros param, porque acham
“Minha família falava que era erra-
que é coisa de criança. “Muitas das
ela, uma maneira de se expressar e
do, e isso era um grande problema,
vezes nosso corpo e alma só ficam
trazer representatividade. “Ainda
porque eu não me via fazendo outra
felizes quando estamos fazendo uma
mais por eu ser uma mulher não
coisa. Isso me fazia muito mal, por-
coisa que amamos mesmo. E isso
branca, fazendo arte de quebrada.”
que falavam que eu era vagabundo.
pode ter acontecido lá na infância.”
Tem surgido, então, segundo
“SE EU NÃO ME SINTO REPRESENTADO, VOU FAZER COM QUE PESSOAS IGUAIS A MIM SE SINTAM. ESSA É MINHA META, TRAZER REPRESENTATIVIDADE PARA TODO MENOR, PARA TODA MINA DE QUEBRADA” Foto: Reprodução/Instagram
Guilherme Lima, Mano Lima
responsabilidade de levar a periferia para esses lugares. “Já comecei a trazer para mim. Se eu não me sinto representado, vou fazer com que pessoas iguais a mim se sintam. Essa é minha meta, trazer representatividade para todo menor, para toda mina de quebrada”. “Tem muitos iguais a mim que estão fazendo virar, se eles conseguem, eu consigo também ” Lima fez sua primeira exposição neste ano, com três obras. Mas por ainda não conseguir viver só de arte, precisou de outro trabalho. “Tive que fazer sorvete para poder estar nessa exposição.” A convite da Perifacon, fez sua segunda participação em uma exposição, a Contramemória, uma homenagem ao centenário da Semana de Arte Moderna, no Theatro Municipal de São Paulo.
Mlk “moleque” sonhador, 2022
Para ele, o nome “pós-modernismo” não é ideal. “Acho que a gente tem que ser chamado uma coisa que represente mais a gente, nós somos outra para-
»»»Guilherme Lima, também chamado de Mano Lima, é de Jacareí, interior de São Paulo. Desde novo, já gostava muito de arte e de desenhar. Sua mãe teve papel determinante no seu início de carreira. “Minha mãe é professora e sempre me incen-
Guilherme Lima, Mano Lima
da”. Também comenta as diferenças
@manolimaa
mas é graças à gente de hoje que mui-
entre estilos e contribuições de cada geração. “Eles fizeram obras baseados no conhecimento eurocêntrico, a gente faz do nosso jeito, valorizando o nosso. O que eles fizeram foi ótimo, graças a eles a gente está aqui hoje, tos da mesma realidade estão poden-
tivou nessa parada.” Também foi ela
do conhecer e entrar nesse caminho.”
que o levou a desenhar digitalmente.
Segundo Lima, da mesma forma
Porém, para seguir a indicação da
periférico, meninos “dando grau”
mãe, Guilherme teve que achar uma
de bicicleta e “batendo” cartas são
que a gente aprende sobre Tarsi-
solução para conseguir os equipa-
algumas das cenas representadas
la do Amaral nos livros, falando que
mentos. “Sempre trabalhei como
em suas obras. Ele conta que deci-
é uma grande artista brasileira, nós
vendedor ambulante, vendia sorve-
diu retratar isso porque nunca se sen-
vamos estudar no futuro sobre os artis-
te na rua, eu mesmo fazia. Aí con-
tiu representado, principalmen-
tas de hoje. “São pessoas que mos-
segui comprar uma mesa digitali-
te em exposições. “Na internet até
tram para gente que é muito possí-
zadora, usava um notebook velho
via, mas nas exposições nunca vi
vel. A arte na minha vida representa
e com essas paradas eu comecei”.
nada relacionado às quebradas.”
minha vivência, minha caminhada,
Mano Lima desenha o seu cotidiano
A partir disso, assumiu para si a
os sufocos que passei até aqui.”
O Homem Amarelo, de 1917. Reprodução fotográfica Romulo Fialdini
MANUELA MARGINI
»»»“(...) De há muito já que a estudam os psiquiatras em seus tratados, documentando-se nos inúmeros desenhos que ornam as paredes internas dos
28/29
manicômios. A única diferença reside em que nos manicômios esta arte é sincera, produto ilógico de cérebros transtornados pelas mais estranhas psicoses; e fora deles, nas exposições públicas, zabumbadas pela imprensa e absorvidas por americanos malucos, não há sinceridade nenhuma, nem nenhuma lógica, sendo mistificação pura.” A citação acima foi escrita por Monteiro Lobato, publicada em uma coluna no jornal O Estado de S. Paulo em 20 de dezembro de 1917, sobre a exposição de Anita Malfatti, no mesmo ano. Além dessa dura crítica, o autor também elogiou Anita e reconheceu seu talento como pintora. “Essa artista possui talento vigoroso, fora do comum. Poucas vezes, através de uma obra torcida para a má direção, se notam tantas e tão preciosas qualidades latentes.” Após a publicação da coluna, a pintora, desenhista, ilustradora e professora ficou ainda mais reconhecida pelas
p
PERFIL: ANITA MALFATTI
PIONEIRA CONTRA O OLHAR CONSERVADOR Com pinceladas largas, levou a brasilidade para o mundo
suas obras. Anita foi uma das principais artistas que tiveram suas obras expostas no The-
Segundo Roberta Fuks, do site Cultura
Univesp, para que Anita fosse reconhe-
atro Municipal durante a Semana de Arte
Genial, uma de suas principais obras é A
cida por suas obras, ela teve que estudar
Moderna. Sua participação foi incenti-
Boba, feita por Anita entre os anos de 1915
e entender as principais mudanças que
vada pelos amigos, e ela integrou-se ao
e 1916. A pintura tem a presença de diver-
estavam acontecendo na Europa e nos
Grupo dos Cinco, junto a Tarsila do Ama-
sas cores vibrantes, além de elementos
Estados Unidos. Os seus estudos come-
ral, Mário de Andrade, Menotti Del Pic-
cubistas. Ao fundo da obra, no segundo
çaram na Alemanha, em 1910. Ela ingres-
chia e Oswald de Andrade. A obra que teve
plano, é possível perceber os traços gros-
sou na Academia Real de Belas Artes, em
maior prestígio, dentro das 20 expostas
sos dos pincéis que a artista utilizou. No
Berlim, e estudou pintura expressionis-
por Anita, foi O Homem Amarelo (1917).
primeiro plano tem-se a mulher cuja
ta. Ao voltar para o Brasil, em 1914, Anita
As obras de Anita têm uma forte rela-
forma foge do real, outra característica
realizou a sua primeira exposição solo,
ção com o expressionismo, principalmen-
bastante presente nos quadros de Anita.
na Casa Mappin.
te o alemão. Suas principais caracterís-
Segundo Regina Teixeira de Barros,
Já em 1915, Anita tinha o objetivo de
ticas são: cores vibrantes, traços fortes,
curadora independente e historiadora
conseguir uma bolsa de estudos e voltar
pinceladas bem marcadas, temas cotidia-
da arte especializada em arte brasileira
a viajar, mas devido ao período da Primei-
nos e destaque nas expressões.
moderna, em reportagem para o canal da
ra Guerra Mundial, ela não conseguiu. Seu
ANITA FOI UMA DAS PRINCIPAIS ARTISTAS QUE TIVERAM SUAS OBRAS EXPOSTAS NO THEATRO MUNICIPAL
tio financiou sua viagem até os Estados Unidos, mais precisamente para Nova York, para que assim a pintora aprimorasse seus estudos. Durante essa época no país americano fervilhavam artistas
O silêncio das vozes femininas na Semana de Arte Moderna
que tinham fugido da guerra, principalmente alemães e franceses.
»»»“A comemoração dos cem anos da
além de outros artistas que buscavam
Anita nasceu em 2 de dezembro de
Semana de Arte Moderna, felizmente,
renovar as artes no Brasil”, afirma o pro-
1889, em São Paulo. Seu pai, Samuele
tem trazido à tona certas discussões
fessor. Em 1920, ela realizou importan-
Malfatti, era italiano. Já a sua mãe, Betty
importantíssimas para fazermos uma
te exposição no Liceu de Artes e Ofícios
Krug, era norte-americana.
revisão da origem e evolução da Arte
de São Paulo que, segundo a crítica da
Desde seu nascimento, Anita tinha uma
Moderna no Brasil. Uma destas ques-
época, teve um caráter inovador que
atrofia no braço e na mão direita, que car-
tões, talvez a mais potente, seja a páli-
dialogava com as vanguardas históri-
regou pelo resto de sua vida. Segundo a
da participação de artistas mulheres
cas do momento.
professora Daniela Diana, em publicação
no referido evento, o que aponta para
Gonçalves lembra de outro nome
no site Toda Matéria, Anita aos 13 anos
o conservadorismo na percepção da
importante: Regina Gomide Graz, que
tentou suicidar-se num trilho de trem, na
escritura-obra feminina e feminista no
cursou a Escola de Belas Artes de Gene-
estação Barra Funda, perto de sua casa.
espaço cultural e social brasileiro.”
bra. “Alguns historiadores da época
Esse momento foi quando ela decidiu seguir a sua carreira como artista.
A reflexão é de João Carlos Gonçalves,
afirmam que a artista não obteve o devi-
doutor em Linguagem e Educação pela
do reconhecimento, pois vivia à som-
“Eu tinha 13 anos, e sofria porque não
USP e professor de História da Arte, no
bra de seu marido, o já renomado pintor
sabia que rumo tomar na vida. Nada ainda
curso de Design, e de Fundamentos da
John Graz. O casal participou de exposi-
me revelara o fundo da minha sensibili-
Comunicação, no curso de Comunica-
ções, além da Semana de Arte Moderna,
dade. Resolvi, então, me submeter a uma
ção e Publicidade da ESPM-SP.
que se tornaram referência na legitima-
estranha experiência: sofrer a sensação
Segundo ele, historicamente, quando
absorvente da morte. Achava que uma
falamos na produção artística feminina
Ele destaca ainda que, para além
forte emoção, que me aproximasse vio-
no momento heroico do modernismo
das artes plásticas, também na litera-
lentamente do perigo, me daria a decifra-
brasileiro, pensamos, lamentavelmen-
tura brasileira várias vozes femininas
ção definitiva da minha personalidade.
te, somente em duas personalidades:
foram silenciadas por um sistema cul-
E veja o que fiz. Nossa casa ficava próxi-
Anita Malfatti e Tarsila do Amaral. Na
tural regido e dominado por homens.
ma da estação da Barra Funda. Um dia saí
música Guiomar Novaes amplia, sutil-
“Tais vozes merecem e esperam por
de casa, amarrei fortemente as minhas
mente, esta pequena lista.
estudos que reconheçam suas impor-
tranças de menina, deitei-me debaixo
Para Gonçalves, essas duas figuras
dos dormentes e esperei o trem passar
são indiscutivelmente personas cen-
por cima de mim. Foi uma coisa horrível,
trais para o entendimento das propostas
indescritível. O barulho ensurdecedor, a
do modernismo, porém outros nomes
deslocação de ar, a temperatura asfixian-
tiveram relevância no movimento, tal-
te deram-me uma impressão de delírio e
vez ofuscados por um sistema artísti-
de loucura. E eu via cores, cores e cores
co explicitamente machista (basta ver a
riscando o espaço, cores que eu desejaria
antológica foto tirada nas escadarias do
fixar para sempre na retina assombrada.
Theatro Municipal, poucos anos após a
Foi a revelação: voltei decidida a me dedi-
semana: só homens engravatados, em
car à pintura.”
simbólica postura narcisista).
Poucos anos antes de sua morte, ela
“Podemos citar aqui Tereza Aita,
resolveu se isolar em um sítio. Faleceu
que manteve cordiais relações de ami-
em São Paulo, no dia 6 de novembro de
zade com Anita Malfatti, Di Cavalcanti,
1964, com 74 anos.
Manuel Bandeira e Ronald de Carvalho,
ção da arte moderna no Brasil”.
tâncias na formação da arte moderna no Brasil.”
“Quando falamos na produção artística feminina no momento heroico do modernismo brasileiro, pensamos, lamentavelmente, somente em duas personalidades: Anita Malfatti e Tarsila do Amaral.”
30/31
PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO DA ARTE MODERNA A importância da conservação e consciência social acerca das obras modernistas
linguagens se impõem e propõem gran-
está presente aqui no Brasil para que o
GABRIELLA FIGUEIREDO ISABELLE VITA GREGORINI
des transformações’’.
próprio povo brasileiro tenha acesso a
Tal absorção e acolhimento pela arte
ele. A historiadora de arte, especializa-
»»»Após a Semana de Arte Moderna
apontada por Evaristo é muito significa-
da na arte moderna brasileira Regina de
de 1922, um viés mais interessado com
tiva para o avanço e aumento da preocu-
Barros comentou sobre essa questão e os
o movimento modernista se instau-
pação relacionada à preservação da arte
seus pontos positivos para o reconheci-
rou na sociedade. Tal motivação foi
moderna, vendo que, além da ação de
mento internacional da cultura nacio-
intensificada na década de 1930 quan-
órgãos competentes, a movimentação
nal: “Eu acho que as obras que estão
do decisões passaram a ser tomadas
da população é extremamente neces-
fora, por exemplo que estão na Tate, no
por governantes.
sária para o desenvolvimento e a disse-
Moma, no Reina Sofia em Madri ou no
minação de conhecimento sobre a arte
Malba, como o caso da Abaporu, ou no
moderna.
MoMa como a A Lua, é algo muito legal
Essa preocupação e respeito pelas artes modernas possuem extrema importância atualmente. Vendo que
Contudo, em certos casos, vemos que
porque a gente consegue contextuali-
além de representar e homenagear os
o patrimônio histórico brasileiro não
zar a produção brasileira dentro de um
artistas do movimento, simboliza as
panorama mais abrangente da arte oci-
rupturas com tradições já estabeleci-
dental. É importante que elas tenham
das socialmente antes da Semana.
uma visibilidade fora do Brasil e, em
O advogado, militante em Direito às
geral, essas obras que estão fora do Bra-
Artes e Leis de Incentivo à Cultura e
sil são mostradas, quer dizer, elas não
crítico de arte Evaristo Martins de Aze-
ficam dentro das reservas técnicas dos
vedo falou sobre a necessidade da pre-
grandes museus, elas ficam expostas.
servação das artes modernas nos dias
Isso é muito bacana porque, obviamen-
atuais: ‘’A preservação da arte moder-
te, não estão acessíveis aos brasileiros
na é de extraordinária importância para
que não podem viajar, mas estão aces-
o entendimento de seu tempo, de seu lugar e de seu legado. Não só para salvaguardar a memória de seus autores, mas, em especial, para identificar com mais clareza o respectivo movimento em que períodos de rupturas sociais e políticas são propostas, absorvidas e acolhidas, manifestadas por meio da arte, quando novas
“A preservação da arte moderna é de extraodinária importância para o entendimento de seu tempo, de seu lugar e de seu legado’’.
síveis a milhões de pessoas mundo afora
Evaristo de Azevedo, Advogado e crítico de arte
de verba para eles comprarem as mes-
que passam a ter um certo conhecimento sobre a arte no Brasil”. Além disso, o que também faz com que os museus e galerias de arte brasileiros não tenham obras modernistas nacionais em suas coleções é a falta mas, tendo em vista que não existem
OS REFLEXOS DA SEMANA DE ARTE MODERNA DE 22 PERMEIAM A SOCIEDADE ATUALMENTE, MAS SERÁ QUE HÁ DE FATO UMA PREOCUPAÇÃO PELAS ARTES MODERNAS NOS DIAS DE HOJE? Foto: Reprodução / Instagram @themuseumofmodernart
de arquitetura isso não anda tão eficaz hoje porque não tem políticas públicas de preservação de sítios históricos e de arquitetura histórica, quer dizer, não tem verbas específicas para isso, então é muito difícil conseguir restaurar edifícios”. Entretanto, a historiadora acredita que a conservação do patrimônio artístico em parte é sim eficiente: “Se você estiver falando sobre arte mesmo, digo, pinturas, esculturas e tal, eu acho que a preservação hoje é muito eficaz. Há uma preocupação cada vez maior com a conservação de obras e existem mais pessoas especializadas, mais pessoas formadas em restauro e conservação de obras”. Fica evidente a importância de preservar as obras modernistas, vendo que além de representar a cultura e história brasileira, leva as artes nacionais para patamares internacionais, fazendo com que o reconhecimento não fique somente no Brasil, mas também atinja o exterior. A responsabilidade de preservar vai muito além de pessoas interessadas,
A Lua, de Tarsila do Amaral, exposta no MoMa em Nova York
tendo em vista que órgãos governamentais foram criados com o intuito de preservar todas as formas de artes,
políticas públicas do governo de incen-
A falta de verba não é o único proble-
inclusive a moderna. O Iphan (Institu-
tivo a compra dessas obras. Por isso, os
ma que afeta a obtenção de obras nacio-
to do Patrimônio Histórico e Artístico
museus acabam dependendo de Como-
nais por museus brasileiros. A carên-
Nacional), criado em 1937, é uma insti-
datos, os quais são empréstimos de
cia de vontade em conhecer, prestigiar
tuição federal responsável pela prote-
longa duração, como existem na Pina-
e conservar que está presente na socie-
ção do patrimônio histórico no Brasil.
coteca de São Paulo e no Masp. Regina
dade brasileira prejudica tal aquisição.
Enquanto isso, o Condephaat (Conse-
apoia os comodatos e ainda afirma: “É
Evaristo Martins fala sobre tal proble-
lho de Defesa do Patrimônio Histórico,
muito bacana porque, se por um lado
mática: “A falta de interesse, a dificul-
Arqueológico, Artístico e Turístico),
os museus têm gastos altos com a con-
dade de acesso e de fruição plena são
criado em 1968, atua especificamente
servação dessas obras, por outro elas
exemplos de deficiências históricas no
no Estado de São Paulo.
estão sendo mostradas para o públi-
país no ambiente das artes, assim como
A conservação de tais obras é de suma
co e estão sendo pensadas. Quer dizer,
foram relativamente deficientes as fer-
relevância em todas as esferas nacio-
tem uma reflexão, uma produção crítica
ramentas de preservação do patrimônio
nais, tendo em vista que o conhecimen-
que acaba englobando essas obras que
histórico e cultural’’. Regina concorda
to e a disseminação de informação sobre
são de coleções particulares, mas estão
com o advogado sobre a deficiência da
o movimento modernista só consegui-
emprestadas em longa duração para os
preservação, mas no quesito arquite-
rá ser realizado tendo a arte modernis-
museus”.
tônico somente, ao dizer: “Em termos
ta preservada.
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Foto: Wikimedia Commons
Fachada do Theatro Municipal de São Paulo: última reforma, em 2011, deixou o prédio com novo visual
VIAGEM NO TEMPO Uma breve história do Theatro Municipal, palco da Semana de Arte Moderna de 1922 1 do documentário Theatro Municipal
a cidade passou a ser parte do itinerário
MILENA DA SILVA
- Memória Viva de São Paulo, disponí-
das grandes óperas internacionais.
»»»Para entender essa história é pre-
vel no Youtube, a arquiteta Lilian Jaha
Em 1922, o Theatro Municipal foi palco
ciso viajar no tempo. No ano de 1898,
relata que o teatro foi construído com
da Semana de Arte Moderna, um dos
em pleno Carnaval, o Teatro São José,
as técnicas mais modernas que existiam
maiores eventos da história da arte no
que ficava na praça João Mendes, no
na época. “As estruturas das fundações
Brasil. “A Semana de 22, objetivamente,
centro de São Paulo, pegou fogo e ficou
foram feitas em tijolos de barro e concre-
consistiu em três dias alternados, com lei-
completamente destruído. Esse era o
to, e a estrutura da cúpula, por exemplo,
tura de poesia, conferência, espetáculo de
lugar onde as companhias estrangeiras
foi feita em aço e veio da Europa”.
música e uma exposição de algumas pin-
eram recebidas. Por isso, o incidente foi
Só então, em 1911, oito anos depois, as
turas no saguão do teatro. Ela tem o tama-
motivo para a Câmara Municipal tirar
obras se encerraram. A inauguração do
nho que tem por causa da construção his-
do papel um projeto que a elite paulis-
Theatro aconteceu no morro do Chá, no
tórica que foi sendo feita em cima dela e
tana já planejava: a construção de um
dia 12 de setembro, e teve como aber-
que elevou a categoria de evento supe-
centro cultural para assistir concertos
tura a Ópera Hamlet, obra do composi-
rior. Na verdade, no momento foi uma
e óperas com influência europeia.
tor francês Ambrósio Thomas. De acor-
coisa bem restrita de alcance muito local,
No dia 26 de junho de 1903, iniciou-
do com Lilian Jaha, o evento era para ter
apenas para uma pequena elite culta da
-se a construção do Theatro Munici-
sido realizado no dia 11, porém houve um
cidade de São Paulo”, relata Luís Augus-
pal, que foi projetado pelos arquite-
atraso com a chegada dos cenários que
to Fischer, professor, escritor e ensaísta.
tos Ramos de Azevedo, Cláudio Rossi e
vinham da Argentina. É válido ressaltar
Ele completou dizendo que o teatro era
Domiziano Rossi. A estrutura foi pensa-
que São Paulo estava em um momento
o ambiente mais requintado da cidade
da a partir da Ópera de Paris, projeto do
de crescimento econômico com a cultu-
naquele ano, era o grande orgulho da elite
arquiteto Charles Garnier. No episódio
ra cafeeira, e após esse evento marcante,
e que o evento só podia ter sido feito ali.
O MUNICIPAL AO LONGO DA HISTÓRIA
“O teatro era o ambiente mais requintado da cidade naquele ano, era o grande orgulho da elite. O evento só podia ter sido feito ali.” Luís Augusto Fischer, Professor
Restauração
a reinauguração do Municipal, como
Na década de 1950 houve a primeira res-
forma de comemorar seus 80 anos.
tauração do Theatro Municipal, visando
O teatro foi tombado em 1981, ou seja,
aprimorar a bilheteria, camarim, sala de
teve reconhecimento e proteção por
espetáculos, o palco, entre outros espa-
ser o patrimônio cultural mais conhe-
ços. Algumas dessas mudanças foram:
cido, pelo órgão de preservação de São
a divisão da bilheteria em dois setores,
Paulo Condephaat (Conselho de Defe-
um para a plateia e camarote, e o outro
sa do Patrimônio Histórico). Por fim, em
para a galeria e a sala circular, conhe-
2008, o Theatro Municipal passou por
cida como anfiteatro (para isso, foram
sua última reforma, que durou 2 anos
construídos um elevador e uma esca-
e 8 meses. Novamente os equipamen-
da com acesso a esses locais); aumen-
tos foram substituídos por outros mais
to de espaço dos camarins, do palco e a
modernos, e os vitrais, pinturas, pisos,
reestruturação da sala de espetáculos;
o palco, iluminação, poltronas, o entor-
modernização de equipamentos cênicos;
no no geral, também foram modificados.
as poltronas também foram arrumadas
Em comemoração aos 100 anos da
para que a plateia não ficasse em pontos
Semana de Arte Moderna, nos dias 10 a
cegos e surdo da sala.
17 de fevereiro de 2022, o teatro preparou
Em 1986, sob responsabilidade do
uma programação especial com apresen-
Patrimônio Histórico do Município, o
tações da Orquestra Sinfônica Municipal,
teatro passou por outra restauração.
do Coral Paulistano, do Balé da cidade e
Dessa vez, toda a parte elétrica do espa-
do Quarteto de Cordas, além de óperas,
ço foi trocada, e um processo delicado foi
coral, shows, sarau, exposições, deba-
feito para que a obra de Oscar Pereira da
tes, mesa redonda, e outros movimentos
Silva não desabasse do teto. Alguns equi-
artísticos. Alguns deles estão disponíveis
pamentos também foram trocados por
no Youtube, no canal do Theatro Munici-
outros mais modernos, como os de som
pal. Artistas como Chris Tigra, Allan da
e luz. Além disso, a fachada do Theatro
Rosa, José Miguel Wisnik, Dona Onete e
foi renovada, e então, em 1991, aconteceu
DJ Ju Salty participaram desses eventos.
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Foto: Fernanda Delgado
Obras da sessão Santas e santos expostas no Masp
VOLPI POPULAR A exposição que estava em cartaz no Masp mostrou a trajetória artística de uma das figuras mais importantes da segunda fase do modernismo
nacionalismo e universalismo, além de sua comunicação direta com assuntos da realidade social, cultural e econômica, focando na cultura brasileira. Daniela Villela afirma que “Volpi foi importante para o modernismo pois, de uma forma muito original e única, ele rompeu com os padrões clássicos e valorizou a identidade brasileira nas artes. O artista tinha
da produção do artista, desde o começo
muito interesse por temas do imaginário
FERNANDA DELGADO
da produção, quando Volpi pintava obras
popular brasileiro, como festas popula-
»»»Volpi Popular foi uma exposição
figurativas, até o final, quando se aproxi-
res, temas religiosos e fachadas”.
realizada pelo Masp entre os dias 25
mou do abstracionismo.”
Hoje, o artista é um dos mais valoriza-
de fevereiro e 5 de junho de 2022. A
O trabalho de Volpi construiu uma
dos do país, mas nem sempre foi assim.
mostra englobou a partir de uma visão
ampla coleção de obras que permeiam
Seu reconhecimento foi tardio, por volta
geral as cinco décadas do trabalho de
complexamente a tradição moderna e as
dos anos 1930. Alfredo Volpi era só mais
Alfredo Volpi, expondo o gosto contí-
figuras da cultura popular, dialogam com
um dentre a massa de imigrantes de São
nuo do artista pelas imagens, narrati-
as tradicionais pinturas ocidentais, espe-
Paulo, motivo pelo qual ele não partici-
vas, paisagens e personagens da cultu-
cialmente as italianas da Idade Média e
pou da Semana de Arte Moderna de 1922:
ra popular brasileira, com 96 pinturas
do Renascimento, ao mesmo tempo que
enquanto os intelectuais e patronos rea-
selecionadas por Tomás Toledo, cura-
trazem aspectos do modernismo brasi-
lizavam o evento, Volpi trabalhava para
dor-chefe do Masp.
leiro, da cultura popular e do cotidiano.
conseguir seu sustento. Foi encanador,
As obras estavam divididas entre sete
Volpi popular faz parte de um conjunto
marceneiro, e então, pintor de paredes,
diferentes bases temáticas que não esta-
de mostras já realizadas pelo Masp com
exercendo o papel de preparo das super-
vam expostas de maneira cronológica:
linhas parecidas, como a Portinari popu-
fícies que outros pintores decoravam,
Santas e santos; Retratos; Marinhas;
lar (2016) e Tarsila popular (2019).
ganhando o apelido de “pintor-operário”.
Temas náuticos e lúdicos; Cenas urba-
O mestre das famosas bandeirinhas é
Essas experiências, segundo a diretora
nas e rurais; Fachadas; e Bandeirinhas e
figura importante da pintura brasileira
do MAM, “foram fundamentais para que
mastros. A diretora do Museu de Artes-
da segunda fase do modernismo. Pos-
ele desenvolvesse sua técnica de pintura,
Moderna de São Paulo (MAM SP), Danie-
suía grande influência do realismo e do
tão particular em sua produção artística.”
la Villela, comentou que “a seleção de
romantismo, com temas do cotidiano
Como ele se tornou nome central na arte
obras para a mostra estava bem comple-
com uma linguagem popular. As obras
moderna é uma questão que foi respon-
ta, o curador trouxe obras de várias fases
são caracterizadas pelo regionalismo,
dida na exposição Volpi Popular.
Foto: Donizete
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REVISTA PLURAL • Eduardo Fabricio [1] • Fernanda Delgado [2] • Gabriela Figueiredo [3] • Gloria Machado (Design) [4] • Isabelle Vita Gregorini [5] • Manuela Margini [6] • Milena da Silva [7] • Profa. Cláudia Bredarioli (Editora) [8]
LABFOR • Bianca Iazigi • Gabriel Abib Dias • Giovanna Massaro do Carmo • Laura Galvão Alves • Laura Tiemi Okuma Dutra da Silva (Design) • Márcia Carla Moura Magalhães Andrade • Marina Brandão João de Almeida Pires • Stefani Pacheco Pereira (Design)
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JUNHO DE 2022 ANO 11 // NÚMERO 21
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