Plural #10

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DEZEMBRO DE 2016 // ANO 5 // NÚMERO 10

VIDA DE REFUGIADO APÓS DEIXAR O PASSADO PARA TRÁS, IMIGRANTES ENFRENTAM BUROCRACIA E PRECONCEITO

REVISTA-LABORATÓRIO DOS ALUNOS DO CURSO DE JORNALISMO DA ESPM

RECOMEÇO CONGOLESA, COLOMBIANO E SÍRIO CONTAM COMO E POR QUE DECIDIRAM FUGIR PARA O BRASIL

Pela primeira vez na história, mundo soma mais de 65 milhões de refugiados

CRISE SEM FRONTEIRAS

edição comemorativa de 5 anos

ENTREVISTA REPRESENTANTE DA AGÊNCIA DA ONU PARA REFUGIADOS DIZ QUE SITUAÇÃO É “SEM PRECEDENTES”

Foto Anouk Delafortrie/EU/ECHO

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REVISTA-LABORATÓRIO DO CURSO DE JORNALISMO DA ESPM-SP Nº10 - 2º SEMESTRE DE 2016

Presidente J. Roberto Whitaker Penteado Vice-presidente Acadêmico Alexandre Gracioso Vice-presidente AdministrativoFinanceira Elisabeth Dau Corrêa Vice-presidente Corporativo Emmanuel Publio Dias Vice-presidente de Marketing e Comunicação José Francisco Queiroz Diretor de Graduação-SP Luiz Fernando Garcia Diretor Acadêmico-SP Ismael Rocha Júnior Coordenadora do curso de Jornalismo-SP Maria Elisabete Antonioli

EDITORIAL

CINCO ANOS DE INQUIETAÇÕES Plural comemora, nesta sua décima edição, cinco anos de fértil e vigorosa existência. Como editor da publicação e professor de jornalismo, insisto sempre com os meus alunos para que persigam implacavelmente os clichês e os fulminem. Como um dos “pais”, contudo, desta criança, secretamente nutro o mesmo sentimento de todos os pais diante dos filhos que teimam em crescer e, com isso, mudar. Então peço licença poética. É inevitável dizê-lo: parece que foi ontem. Parece que foi ontem que, em uma sala de aula comum, um seleto grupo de alunos se reunia comigo para discutir não só a pauta da primeira edição da Plural, mas sim a própria revista. Que cara queremos para ela? E que

Revista Plural revistaplural-sp@espm.br

alma? O briefing da coordenação do curso e da própria direção da ESPM era

Editor Prof. Renato Essenfelder Revisão Prof. Daniel Ladeira Profa. Maria Elisabete Antonioli

rio”, nada que fosse apenas “para constar”. Nossa revista deveria represen-

claro: não deveríamos produzir nada com cara de “jornalzinho laboratótar plenamente os valores do curso de Jornalismo, ser um espaço de debate aprofundado e plural, ético, criativo. Pertinente. Sem falsa modéstia podemos dizer: conseguimos. Após essas dez primeiras edições, o conteúdo da revista fala por si. Abordamos uma grande

Reportagem André de Sena, Bianca Alves, Bianca Kachani, Gabriella Kirsten, Juliana Aguiar, Julia Gianesi, Júlia Sicoli, Letícia Vilar, Mariana Kotait, Nathália Matos, Rachel Schmalb, Victória Faragó. CeJor, Centro Experimental de Jornalismo da ESPM-SP agenciadejornalismo-sp@espm.br Rua Dr. Álvaro Alvim, 123, Vila Mariana São Paulo, SP Tel. (11) 5085-6713 Projeto gráfico Márcio Freitas

variedade de temas, com uma enorme variedade de olhares – pois, a cada semestre, a equipe inteira de reportagem da revista se renova –, sempre a serviço dos fundamentos do bom jornalismo: encontrar boas histórias, apurá-las em profundidade e narrá-las da melhor maneira possível. Por isso, quando o aluno André de Sena, que assina o texto sobre os cinco anos da Plural (leia na pág. 50), perguntou-me sobre “uma edição favorita”, titubeei. Não se trata de correção política. Minha edição favorita são muitas, são todas, porque em todas colocamos o mesmo empenho e preocupação – o mesmo número de madrugadas, fins de semana e feriados. Como todo filho que cresce, é claro que a Plural também passou por mudanças nos últimos anos. Esse é, aliás, o espírito de uma revista-laboratório: experimentar. Esta edição, por isso, conta com uma grande quantidade de conteúdo na internet, sinalizado pelos QR Codes ao longo das pró-

A fonte Arauto, utilizada nesta publicação, foi gentilmente cedida pelo tipógrafo Fernando Caro.

» HOTSITE: CINCO ANOS DE PLURAL

ximas páginas. Hoje, além de reportar para o meio impresso, gravamos vídeos, construímos sites e planejamos a incorporação de tecnologias de realidade aumentada para os próximos números. A tecnologia, contudo, jamais ofusca nossa missão pública. Por isso esta edição trata de um dos temas mais importantes do século: a crise de refugiados, cuja escala já é sem precedentes. Além da opinião de especialistas sobre o tema, nas reportagens a seguir trazemos histórias de vida arrepiantes de quem teve de, do dia para a noite, fugir de casa, migrar para um país estranho, recomeçar. Estamos permanentemente inquietos. Quais são as mais urgentes histórias para contar, hoje, e como podemos narrá-las da melhor forma são duas questões que nos afligem cotidianamente. Continuaremos inquietos, com mais perguntas do que respostas a ofertar. Afinal, somos jornalistas. E temos apenas cinco anos de idade. | RENATO ESSENFELDER, EDITOR DA PLURAL

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ÍNDICE

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FOTO FERNANDO FRAZÃO/AGÊNCIA BRASIL

página 16

página 16

VIDA DE REFUGIADO O Brasil recebe cada vez mais refugiados de regiões da Ásia, da África e de países latino-americanos, mas, apesar das condições difíceis em que vivem, em constante luta contra o desemprego e morando nas periferias, poucos brasileiros têm empatia pelos que chegam ao país para recomeçar suas vidas. Entenda como os refugiados vivem por aqui e quais são as principais dificuldades que enfrentam nessa nova vida.

página 6 CONCEITO Você sabia que os haitianos que fugiram do terremoto no país e vieram ao Brasil não são refugiados? Entenda o conceito legal de “refugiado” e sua diferença para outras condições, como a de “exilado” e a de “asilado”.

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página 8 CRISE DO SÉCULO Atualmente, 65 milhões de pessoas vivem fora de suas casas, expulsas por conflitos ou perseguições de várias naturezas. O número representa mais do que toda a população inteira do Reino Unido, por exemplo.

página 10 EXTREMA DIREITA A combinação entre o aumento de refugiados no mundo inteiro, em especial nos Estados Unidos e na Europa, e crises econômicas têm alimentado o discurso xenófobo e preconceituoso da extrema direita.

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FOTO DIVULGAÇÃO

página 36

FOTO JULIANA AGUIAR

página 26

FOTO BENJAMIN LOYSEAU/ACNUR

página 42

página 26

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página 36

FUGA DAS FARC

ESPÍRITO OLÍMPICO

ENTREVISTA

O colombiano Cristiano Streeter é um dos 1.100 refugiados daquele país que moram no Brasil. Após ser extorquido, sequestrado e ameaçado de morte por guerrilheiros das Farc, sua única opção era fugir.

Pela primeira vez na história os Jogos Olímpicos, que neste ano aconteceram no Rio de Janeiro, tiveram uma equipe composta somente por refugiados, sob a bandeira do Comitê Olímpico Internacional.

A nova representante no Brasil da Agência da ONU para Refugiados, o Acnur, concede entrevista exclusiva à Plural e comenta que o volume de deslocamentos forçados no mundo é sem precedentes.

página 12 DALAI LAMA Dalai Lama, o refugiado mais famoso do mundo, há cinco décadas viaja pelo mundo todo para promover a paz e a compaixão, mas está proibido de pisar em sua própria terra natal, o Tibete.

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página 24 SÍRIA O sírio Talal Al-Tinawi saiu de seu país após ser confundido com um rebelde. O diploma de engenheiro não foi reconhecido no Brasil e, para sobreviver, dedica-se hoje à gastronomia em seu próprio restaurante.

página 30 CONGO A congolesa Janine Mbuyangandu viveu o horror em seu país até conseguir fugir para o Brasil, onde formou uma nova família. Hoje, o desafio dela é conseguir esquecer o passado de abusos.

página 50 5 ANOS DE PLURAL A revista Plural completa cinco anos de vida nesta edição, de número 10. Confira o que alunos e ex-alunos do curso de Jornalismo da ESPM-SP têm a dizer sobre a sua participação nessa história.

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AOS OLHOS DA LEI Nem todo deslocamento forçado configura uma situação de refúgio. Entenda o conceito legal de "refugiado" e sua diferença para as noções de "asilado" e de "exilado"

VICTÓRIA FARAGÓ

»»»Apesar do crescimento exponencial de pessoas refugiadas ao redor do mundo, a sociedade em geral demonstra ainda pouco conhecimento sobre o que de fato caracteriza uma situação de refúgio. Nem todo emigrante de nações em crise é refugiado. A legislação internacional estabelece uma diferença entre

O campo de refugiados palestinos de Yarmouk, próximo a Damasco, na Síria, é m

refugiados, exilados e asilados. Entenda os termos a seguir. Refúgio O refúgio é uma forma de proteção jurídica concedida àqueles que estão sofrendo perseguição por causa de sua religião, nacionalidade, raça, opinião política ou por vínculo a determinado grupo social. No Brasil, essa condição é estendida a vítimas de violações dos direitos huma-

SEGUNDO A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA, CATÁSTROFES NATURAIS NÃO CONFEREM O STATUS DE REFUGIADO, O QUE DIFICULTA A SITUAÇÃO DOS HAITIANOS

nos consideradas graves e generalizadas. O processo consiste de quatro etapas, sendo a última delas a aprovação ou não do pedido. Antes, é necessário preencher um formulário e se submeter a um cadastramento biométrico e a uma entrevista na qual o solicitante deve esclare-

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“asilo diplomático”. Um dos exemplos mais conhecidos de asilo é o do americano Edward Snowden, que provocou um escândalo internacional ao divulgar programas secretos de espionagem da Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos. Ele foi recebido pela Rússia e tem permissão para permanecer no país até 2017 além de ter recebido permissão para fazer viagens internacionais. Para que seja concedido asilo no Brasil é necessário fazer uma solicitação à Polícia Federal, justificando os motivos do pedido. Em seguida, o processo é avaliado pelo ministro das Relações Exteriores e pelo ministro da Justiça, que decidem sobre o pedido. Por ser de caráter estritamente político e individual, é possível que o asilo seja concedido diretamente pelo Presidente da República, sem que haja necessidade de justificação com base jurídica. Foi o que ocorreu com o ex-ativista italiano Cesare Battisti, que recebeu asilo no último dia do mandato do então presidente Lula.

co, na Síria, é marcado por confrontos e bombardeios desde 2014 | FOTO: UNWRA

Exílio O exílio pode ou não ser voluntário. Em sua forma involuntária, consiste no bani-

cer os riscos que enfrenta em seu país.

citante deve ser deportado. Entretanto,

mento ou expatriação de uma pessoa,

A duração do processo varia de acordo

muitos permanecem no Brasil mesmo

obrigando-a a se mudar para outro país

com a dificuldade de verificação dos fatos

assim, na condição de imigrantes ilegais.

permanentemente. É uma decisão associada a governos autoritários. No Brasil,

e costuma levar pelo menos seis meses. Dados do Conare (Comitê Nacional para

Asilo

vários casos de exílio ficaram célebres

os Refugiados) apontam que atualmen-

Enquanto o refúgio é em geral solicita-

durante a ditadura militar, por exemplo,

te, o Brasil tem quase nove mil refugidos

do por uma grande quantidade de pesso-

quando o governo vigente mandava para

registrados e só em 2015, foram feitas 28.

as de uma mesma nacionalidade, já que

fora do país intelectuais, artistas e políti-

670 novas solicitações.

está relacionado a conflitos nacionais, o

cos considerados “subversivos”.

Uma vez que seu processo é deferido,

asilo é concedido a uma pessoa que este-

Já no chamado autoexílio o indivíduo

o refugiado é regularizado legalmente e

ja sendo efetivamente perseguida, de

que se sente ameaçado opta por sair do

pode fazer uma carteira de trabalho bra-

forma individualizada, por razões políti-

país antes que seja impedido de fazê-lo

sileira, mas fica impedido de viajar para

cas. Além disso, o asilo pode ser solicita-

ou severamente prejudicado por razões

outros países sem autorização prévia,

do tanto em um país estrangeiro quanto

ideológicas. Foi o que ocorreu, por exem-

podendo perder a proteção caso o faça.

em uma embaixada desse país no exte-

plo, com Gilberto Gil e Chico Buarque

rior, sendo nesse caso conhecido como

durante a ditadura militar brasileira.

Em casos de solicitação negada, o soli-

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8/9 Marinha italiana resgata imigrantes amontoados em balsa entre Lampedusa e a Líbia, em maio deste ano| FOTO: MARINA MILITARE ITALIANA

MARIANA KOTAIT

»»»O mundo vive a maior crise humanitária desde a Segunda Guerra Mundial. São 65 milhões de homens, mulheres e crianças que já deixaram suas casas por diferentes motivos. Conflitos armados, perseguições, desastres naturais e desertificação do campo são algumas das razões que tiram famílias inteiras de suas casas, especialmente em países do Oriente Médio e da África.

UM PAÍS DE DESLOCADOS Atualmente, 65 milhões de pessoas vivem fora de suas casas, expulsas por conflitos ou perseguições de várias naturezas; é mais do que toda a população do Reino Unido

Uma nação inteira de refugiados perambula hoje pelo mundo. O número de pessoas que deixaram forçosamen-

das são hoje Síria, Colômbia, Iraque, Afe-

de asilo no país. Depois da Alemanha, as

te seus países representa a população

ganistão e Sudão.

nações que mais acolheram refugiados

inteira do Reino Unido (64 milhões), por

Por outro lado, a Alemanha foi o país

exemplo. De acordo com o Acnur (Alto

que mais recebeu refugiados no ano pas-

Comissariado das Nações Unidas para

sado. Foram 441.900 mil novos registros,

Mais de um milhão de pessoas chega-

Refugiados), conhecido como a agência

mais que o dobro do ano anterior. Nos

ram à Europa de barco pelo mar Medi-

da ONU para refugiados, os países que

últimos anos, aliás, houve um crescimen-

terrâneo no ano passado. Segundo o

apresentam maiores emigrações força-

to problemático em relação aos pedidos

Acnur, 3.770 morreram ou desaparece-

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foram Estados Unidos, Suíça, Rússia, Turquia e Áustria.

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LIANA

Fotos Yasin Akgúl/Parlamento Europeu

OS PAÍSES QUE MAIS GERAM REFUGIADOS AFEGANISTÃO O Afeganistão era o principal país de origem dos refugiados do mundo desde o fim dos anos 1970 até o início da Guerra da Síria, em 2011. Foram quatro momentos, praticamente um seguido do outro, que fizeram com que a população afegã deixasse o país: invasão soviética (1978-1989), guerra civil (1992-1996), regime fundamentalista do Taleban (1996-2001) e conflitos pós-intervenção militar americana na esteira dos atentados de 11 de setembro de 2001. De 1981 a 2013, o país esteve no topo do ranking de origem de refugiados. Ainda há instabilidade e a falta de segurança no país, e muitos afegãos buscam asilo na Europa.

Campo de refugiados na Turquia

ram somente nessa travessia com destino a Grécia, Itália ou Espanha. É uma catástrofe sob todos os pontos de vista. Vale lembrar ainda que imigrantes motivados por razões climáticas (tsunamis, furacões, terremotos, secas etc.) não são protegidos pelo direito internacional, diferentemente dos refugiados de guerra e por violação dos direitos humanos. Sendo assim, podem ser obrigados pelas autoridades dos países de destino a voltarem para o seu local de origem, tornando a situação ainda mais dramática. Embora a questão dos refugiados não seja nova, tornou-se mais evidente nos últimos anos. Os motivos para os refugiados deixarem seus países variam muito. Ao lado, confira uma lista das principais causas de refúgio entre as nações que lideram o ranking mundial de emigrações forçadas.

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SÍRIA No início de 2011, na Síria, uma sucessão de grandes protestos levou a uma escalada da violência no país. Logo os protestos se transformaram em rebeliões armadas, influenciadas por diferentes revoltas ao mesmo tempo em todo o Oriente Médio, conhecidas hoje como Primavera Árabe. O motivo das revoltas na Síria era – e ainda é – a permanência do ditador Bashar al-Assad no poder. A família Assad governa a nação desde o final da década de 1960. Hoje, o país está dividido entre as forças leais ao presidente e grupos rebeldes como o Exército Livre da Síria e os frentes Al-Nusra, ligados à Al-Qaeda. Em meio a tamanha confusão, o Estado Islâmico controla atualmente mais de 50% do território sírio. A Rússia é aliada de Bashar e todos os dias ocorrem dezenas de ataques aéreos no país. Desde 2014, a Síria lidera o ranking global de origem de refugiados. SOMÁLIA Solos castigados por secas esporádicas deixam os somalis em situação de insegurança

alimentar; conflitos violentos ganham força com a instabilidade política e a milícia radical islâmica Al-Shabaab, filiada à Al-Qaeda, proíbe qualquer ajuda estrangeira, dificultando o trabalho humanitário para a população da Somália. A violência paira sob a região desde 1991, quando o ditador Siad Barre caiu e a milícia radical ganhou espaço. Mais de um milhão de somalis saíram desde então em busca de refúgio na Quênia, Etiópia e Iêmen. SUDÃO E SUDÃO DO SUL O Sudão esteve em guerra civil nos períodos de 1955-1972 e 1983-2005, gerada pela instabilidade política no país, assim como na maioria dos casos. Foi em 2011 que o Sudão do Sul passou a viver na mesma maneira, com os conflitos armados entre duas facções opostas: a do Presidente, Salva Kiir, e do ex-vice Presidente, Riek Machar. Até 2014, o número de refugiados que haviam deixado o Sudão eram de quase 650 mil. Já os sul-sudaneses, no final de 2013, já chegavam a 114.400 mil refugiados, número que, em um ano, cresceu quase seis vezes (616.200). Sem muitos recursos, a maioria vai para os países vizinhos, como Etiópia, Uganda e Quênia.

+ PLURAL NA INTERNET

Trecho do documentário “Fogo no Mar”, que mostra a vida na ilha italiana de Lampedusa, principal porto da crise de refugiados europeia.

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10/11 Donald Trump, eleito nos Estados Unidos com um discurso com elementos de apelo à extrema-direita | FOTO GAGE SKIDMORE

GUINADA À (EXTREMA) DIREITA Discurso xenófobo cresce no mundo em meio a crises econômicas e à insegurança

é o principal destino de refugiados do NATHÁLIA MATOS

Oriente Médio e da África.

Para o professor de geoeconomia internacional da ESPM-SP Leonardo Trevi-

Para o historiador Luiz Carlos Rodri-

san, a extrema-direita vem crescendo

»»»No encontro de crises econômi-

gues, a extrema-direita “se estabelece a

desde 2008, com a crise financeira que

cas com o aumento exponencial do

partir do nacionalismo e da xenofobia,

jogou EUA e Europa em recessão. “Com a

volume de refugiados mundo afora,

condições essenciais à sua existência. Em

crise, as pessoas começaram a enxergar,

a extrema-direita avança. Pregando

geral, se resume à defesa de determina-

mesmo nos países ricos, os imigrantes e

ideias ultranacionalistas, xenófobas e

dos aspectos morais, religiosos ou étni-

os refugiados como concorrência na dis-

discriminatórias, partidos alinhados

cos que, segundo seus partidários, são

puta de empregos. Esse comportamento

a essa ideologia ganham espaço nos

inalteráveis e os diferenciam dos demais

provocou uma situação nova. A extrema-

parlamentos nacionais, especialmen-

grupos. Acreditam que esses aspectos os

-direita usa principalmente o refugiado

te nos Estados Unidos e na Europa, que

tornam superiores aos demais”.

neste momento como uma espécie de ini-

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A DESINFORMAÇÃO AJUDA A ATRELAR A QUESTÃO DOS REFUGIADOS A UM DOS MAIS GRAVES PROBLEMAS GLOBAIS DO SÉCULO 21: O TERRORISMO. migo”, afirma o professor.

do parlamento austríaco e 70% da hún-

Trevisan compara a situação à cam-

garo, por exemplo.

panha do regime nazista alemão contra

Fausto Godoy, embaixador que ser-

os judeus. “Esta é uma realidade que se

viu em 11 postos na Ásia e hoje coorde-

repete na história”, conclui.

na o Núcleo de Estudos e Negócios Asi-

Nos EUA, a vitória do recém-eleito can-

áticos da ESPM-SP, vê com preocupação

didato republicano à Presidência, Donald

a ascensão da xenofobia na Europa. “A

Trump, ilustra o fenômeno. Trevisan

Europa está vivendo uma transição para

sugere que a popularidade do empresá-

uma sociedade de velhos e ainda não

rio se justifica precisamente pelo discur-

consegue entender e absorver os imi-

so focado em culpar imigrantes pela falta

grantes e refugiados.”

de emprego no país. Terror e conscientização

Na Europa esse movimento é mais nítido. Na Alemanha, o partido de extrema-

Se é verdade que o fator econômico

-direita Alternative for Germany (AFD)

incentiva o florescimento da extrema-

ganhou força com o sentimento de nacio-

-direita, também é preciso lembrar que

nalismo e de conservadorismo que tem

a falta de conscientização sobre os con-

se instaurado após a entrada de mais de

flitos que originam os pedidos de refúgio

1 milhão de imigrantes que pediram asilo

só contribui para o problema. “Os políti-

em 2015. Atualmente o partido está pre-

cos tradicionais pouco fizeram para cons-

sente em 8 das 16 assembleias estaduais

cientizar a população sobre a questão,

do país e se caracteriza por sua concep-

bem como para trazer elementos para

ção nacionalista, populista, anti-imigração, anti-islã e euroceticista, ou seja, cético quanto à integração alemã à União Europeia.

o debate, o que acabou por deixar esse

Marine Le Pen, líder do partido de extrema-direita Frente Nacional, que está em ascensão na França | FOTO

DIVULGAÇÃO/FRENTE NACIONAL

vácuo preenchido pela extrema-direita”, afirmou Alexander Betts, diretor do Centro de Estudos de Refugiados de Oxford, em entrevista ao jornal americano “The

Esse mesmo sentimento, aliás, levou

New York Times”.

o Reino Unido a promover um plebiscito em junho deste ano para delibe-

A desinformação também ajuda a atre-

rar sobre uma possível saída do país da

lar a questão dos refugiados a um dos

União Europeia. Para a surpresa da esma-

mais graves problemas globais do sécu-

gadora maioria dos analistas, o chamado

lo 21: o terrorismo. E a extrema-direi-

Brexit (neologismo gerado pela fusão de

ta sabe explorar essa associação. “Nós

“Britain” e “exit”, ou seja, saída da Grã-

temos as notícias dos atentados terroris-

-Bretanha) levou 51,9% dos votos, contra

tas, mas não temos as notícias dos ata-

48,1% dos adeptos da permanência na

ques no Oriente Médio, que são muito

União Europeia.

fortes“, acrescenta o professor Trevisan.

Outros partidos europeus de extre-

A falta de informação sobre as raízes dos

ma-direita como o Partido da Liberdade (Holanda) e o Aurora Dourada (Grécia) defendem a proibição da imigração vinda de países islâmicos e exaltam os valores e a iconografia do nazismo, respectivamente. Nos últimos anos, ambos cresceram. Há 30 anos a maior parte dos partidos xenófobos não conseguia entrar no Poder Legislativo, mas hoje formam 28%

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pedidos de refúgio prejudica o debate.

“Com a crise, as pessoas começaram a enxergar, mesmo nos países ricos, os imigrantes e os refugiados como concorrência na disputa de empregos” Leonardo Trevisan, professor de geoeconomia internacional na ESPM

Aproveitando-se disso, o discurso do combate ao terror coloca imigrantes e refugiados como ameaças em potencial. A estratégia é simples e eficaz: colocam-se todos os imigrantes, refugiados inclusos, no mesmo grupo sem rosto dos terroristas, o grupo do “outro”, o desconhecido, o estrangeiro.

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PERFIL: DALAI LAMA

O REFUGIADO MAIS FAMOSO DO MUNDO Há cinco décadas sem pisar em sua terra natal, ele dedica a vida à promoção da paz

anos de idade foi descoberto por monges

O monge tem uma rotina rígida: acor-

tibetanos e anunciado como o 14o Dalai

da às 4h e se recolhe às 16h. De postura

Lama, Tenzin Gyatso. Hoje com 81 anos

firme, mas descontraída, por onde passa

de idade, é, segundo sua religião, a mais

gosta de fazer piadas e de refletir sobre a

»»»Lhamo Dhondup é o nome que

recente reencarnação de uma linhagem

vida. Ganhou, em 1989, o Prêmio Nobel

seus pais lhe deram, mas esse nome

de líderes religiosos que vem desde 1351.

da Paz por sua campanha não violenta

BIANCA ALVES LETÍCIA VILAR MARIANA KOTAIT

durou apenas dois anos e quase nin-

Os Dalai Lama são os maiores símbo-

guém o conhece assim hoje em dia.

los budistas que existem, considerados

Filho de camponeses, nasceu em 1935,

reencarnações do príncipe Cherezig, o

Infância

no leste do Tibete. Há quase meio sécu-

Avalokitesvara, representante da com-

Graças ao reconhecimento ainda na

lo, vive exilado na Índia. Quem é ele?

contra a invasão chinesa.

paixão. A despeito de sua importância,

infância, a juventude de Dalai Lama

Sempre sorrindo, simpático com todos

contudo, as pessoas que convivem com

foge totalmente do comum. Aos quatro

ao redor e bem humorado, ele se descre-

o atual Dalai Lama afirmam que para ele

anos, foi obrigado a separar-se da famí-

ve como “um simples monge budista”,

não existe luxo, e quanto mais simples

lia e a ir para o Palácio de Potala, na mon-

mas é muito mais do que isso. Aos dois

for a vida, melhor.

tanha Hongsham, assumindo a posição

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ATUALMENTE, O LÍDER TIBETANO SEGUE PEREGRINANDO POR VÁRIOS PAÍSES. O ÚNICO EM QUE NÃO PODE PISAR É AQUELE EM QUE NASCEU

Tenzin Gyatzo, o 14° Dalai Lama, desde os dois anos de idade foi treinado para ser o líder espiritual do Tibete e representante da compaixão na Terra. É conhecido por liderar uma resistência pacífica ao domínio político chinês | FOTOS ERIC BRIDIERS/U.S. MISSION PHOTO

de líder espiritual do Tibete. Durante o

do Tibete. Depois de se refugiar na Índia,

inverno, residia no palácio; no verão, ia

permaneceu quase dez anos sem sair de

para a morada de Norbulingka, na capi-

lá. Foi só em 1967 que deu início à sua jor-

tal Lhasa. Aos seis iniciou uma rotina de

nada pelo mundo. A primeira viagem foi

estudos diferente das outras crianças.

ao Japão e à Tailândia e desde então não

Aplicou-se a aprender filosofia, arte e

parou de rodar o mundo. Ele segue pre-

cultura tibetanas, gramática, inglês,

gando seus ensinamentos, defendendo

astrologia, medicina, música, entre

a tolerância, a compreensão, a paciência

outras matérias.

e um amor profundo.

Ao completar 15 anos, o jovem mestre

Atualmente, o líder tibetano segue

passou a assumir a liderança política do

peregrinando por diversos países, o

país, onde religião e política se confun-

único em que não pode pisar é aquele em

dem em um estado teocrático.

que nasceu. Além disso, qualquer ima-

Em 1950, porém, os chineses invadi-

gem ou fotografia de Dalai Lama, o “refu-

ram o Tibete para anexá-lo à República

giado mais famoso do mundo”, são proi-

Popular da China. No ano seguinte, para

bidas na região dominada pela China.

cessar o conflito, Dalai Lama assinou o

O Brasil foi cenário de quatro visitas

“Acordo de Dezessete Pontos”, cedendo

do monge. Em 1992, prestigiou a Eco-

soberania chinesa sobre o Tibete.

92, conferência das Nações Unidas para

Contudo, o tibetano não desistiu de

o meio ambiente. Em 1996, retornou ao

buscar soluções pacíficas para o proble-

país, onde recebeu o título de doutor

ma. Viajou para Pequim, em 1954, a fim

honoris causa pela PUC-SP. Uma déca-

de se encontrar com o líder do partido

da depois, retornou para a capital paulis-

comunista chinês, Mao Tse-Tung. As ten-

ta, quando houve a inauguração do espa-

tativas de negociação foram frustradas.

ço Ghandi, na Praça Túlio Fontoura, em

Durante anos, a população tibetana

Em sua última visita ao Brasil, em 2011,

tra os chineses. Em 1959, Dalai Lama se

ele fez uma série de palestras com o tema

disfarçou de soldado e fugiu para a Índia,

“Nova Consciência dos Negócios – valo-

em busca de asilo. Com apoio dos india-

res para um mundo sustentável”.

nos, o governo tibetano foi montado no

“Claro que temos diferenças de língua, raça e fé religiosa, mas tudo isso é secundário” Em visita ao Brasil no ano de 2011

“A instituição Dalai Lama acabará um dia. Todas as instituições criadas pelo homem um dia acabarão” Em entrevista à BBC, dezembro de 2014

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frente ao parque do Ibirapuera.

organizou inúmeras manifestações con-

Tenzin Gyasto, “um simples monge

país e exercido na localidade de Dhara-

budista”, como se apresenta, diz ter

msala, norte da Índia, país que abriga

como objetivo principal promover valo-

cerca de 100 mil refugiados provenien-

res humanos. A questão da independên-

tes do Tibete.

cia do Tibete não é mais o foco do líder.

O líder tentou manter a cultura nati-

Para ele, o importante é que a área consi-

va viva, fundando escolas que ensinas-

ga ser autônoma da China, com leis pró-

sem a língua, a história e a religião tibe-

prias, e que seus habitantes possam pra-

tanas. O segundo país que mais acomoda

ticar suas crenças religiosas, que hoje em

os seus refugiados é o Nepal, com 60 mil

dia são proibidas.

imigrantes.

Embora sinta saudades de seu país de origem e pretenda conseguir retornar a

Peregrinação pelo mundo

ele, o Dalai Lama diz acreditar que o ver-

Até então, Dalai Lama nunca havia saído

dadeiro lar é onde a pessoa se sente bem.

23/11/16 11:27


REFUGIADOS AO REDOR DO MUNDO Perseguições, conflitos,violência generalizada e violações aos direitos humanos são os principais motivos que fazem com que pessoas se desloquem ao redor do mundo em busca de refúgio. Alguns conseguem abrigo no próprio país de origem, mas outros são obrigados a cruzar fronteiras em busca de uma vida melhor.

14/15

BIANCA ALVES

65.300.000

ONDE ESTÃO OS REFUGIADOS NO BRASIL

de pessoas estão refugiadas ou pedindo refúgio no mundo

25% 25%

1 em cada 113

1% 1%

pessoas no planeta são solicitantes de refúgio, deslocadas internas ou refugiadas

2014

7%

2015

+ 5.8 milhões

24

PESSOAS SÃO DESLOCADAS POR MINUTO

8 7 8 7

7% 35% 35% Norte Nordeste Centro-Oeste Norte Sudeste Nordeste Sul Centro-Oeste

MENORES DE 18 ANOS

31% 31%

Sudeste Sul

PANORAMA DOS DESLOCADOS À FORÇA ATÉ O FIM DE 2015

98.400 aplicações de crianças separadas ou desacompanhadas

V14_15_info VALE.indd 2

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8.863 refugiados reconhecidos 79 nacionalidades distintas 8.863 refugiados reconhecidos 79 nacionalidades distintas 2.701

2.298

Outros

Síria

2.298

1.420

1.100

Colômbia Congo

Palestina

Outros

Síria

Angola

Colômbia Congo

Palestina

2.701

1.420 Angola

1.100

968 968

RETORNOS EM 2015

23,1% 30,5%

376 376

SOLICITAÇÕES DE REFÚGIO NO BRASIL

Afeganistão (61.400) Sudão (39.500) Somália (32.300)

10,7%

África Central (21.600)

19,6%

Outros (46.600)

16%

V14_15_info VALE.indd 3

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16/17

Família de refugiados sírios que vive hoje no Rio de Janeiro – a Síria é o principal país de origem de refugiados no Brasil | FOTO FERNANDO FRAZÃO/ AGÊNCIA BRASIL

O Brasil recebe cada vez mais refugiados de regiões da Ásia, da África e de países latino-americanos. Entenda como eles vivem por aqui e quais são as principais dificuldades que enfrentam nessa nova vida

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79 diferentes nacionalidades. Sírios e angolaBIANCA KACHANI JULIA GIANESI LETÍCIA VILAR

nos lideram a lista. Embora não seja recente, a crise de refugia-

18/19

dos se agrava. Para a professora das Faculda»»»Um pai de família com estabilidade

des Integradas Rio Branco e especialista em

financeira. Uma vida comum e agradável.

relações internacionais Martha Mercado Pare-

Então, de repente, estoura uma guerra.

de, isso se deve à globalização. “Ela acirra e

A estabilidade vai pelos ares. Todos são

cria a percepção de que é possível se deslocar.”

afetados, dos mais pobres aos mais ricos.

Só no Brasil, os pedidos de refúgio aumen-

Não há dinheiro, comida, água nem mesmo

taram 2.800% entre 2010 e 2015, de acordo com

segurança. Em questão de dias, a família

os dados da professora Martha Parede. Só no

reúne seus pertences, agarra as crianças

ano passado foram feitos 28.670 novos pedi-

e se enfia em uma embarcação qualquer –

dos de refúgio ao Brasil.

tão cheia que mal dá para se mexer. Para onde vai o navio? Ninguém sabe.

Quando um estrangeiro chega ao Brasil para fugir de uma situação de violação dos direi-

A vida dessa família nunca mais será a

tos humanos, deve solicitar refúgio ao Conare,

mesma. Quando chegarem ao novo país, terão

que avalia o pedido de acordo com a Lei 9474,

que buscar uma casa e que se adaptarem à nova

de 1997. “O problema é que com o aumento

cultura, à alimentação, à língua e ao clima.

de pedidos recebidos pelo Brasil, o prazo para

Tudo o que conhecem está prestes a mudar.

a resposta definitiva costuma demorar mais

Essa narrativa não causaria espanto em um

de um ano”, explica a jornalista especializada

livro de história, no capítulo sobre a imigra-

em assuntos internacionais Géssica Brandino.

ção europeia para o Brasil. No entanto, o cená-

Enquanto aguardam essa resposta, os

rio é recente. E crescente. Em pleno século 21,

estrangeiros recebem um Protocolo de Per-

virou rotina para milhares de sírios, colombia-

manência Provisória, que, em teoria, permi-

nos, angolanos e tantos outros que chegam ao

te ao solicitante emitir a carteira de trabalho

Brasil ou a outros países em busca de refúgio.

e o CPF. Na prática, isso é um pouco diferen-

No Brasil, o Conare (Comitê Nacional para

te: pela aparência informal do Protocolo, que

os Refugiados) é responsável por analisar os

é um pequeno pedaço de papel sulfite carim-

pedidos e declarar o reconhecimento da con-

bado pela Polícia Federal, e a falta de informa-

dição de refugiado, além de orientar e coor-

ção da sociedade com relação a esse documen-

denar as ações necessárias para a proteção,

to, ele é muitas vezes rejeitado. O resultado

assistência e apoio jurídico a essas pessoas.

são centenas de pessoas sem trabalho e viven-

Segundo pesquisa feita em abril deste ano, o

do em moradias precárias até conseguirem

Brasil possui atualmente mais de 8.860 refu-

o Registro Nacional de Estrangeiro. Algumas

giados reconhecidos oficialmente. Eles têm

vezes, o pedido é negado e o refugiado pode

O BRASIL RECONHECE ATUALMENTE MAIS DE 8.860 REFUGIADOS DE 79 NACIONALIDADES; SÍRIOS E ANGOLANOS LIDERAM A LISTA

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ONU PROMOVE REUNIÃO SOBRE REFUGIADOS

» Diante dos níveis crescentes de deslocamentos de pessoas ao redor do mundo, a ONU organizou no dia 19 de setembro deste ano, dia anterior à tradicional sessão de abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas em Nova York, a Reunião de Alto Nível sobre Grandes Movimentos de Refugiados e Migrantes. Governantes de 193 países, assim como líderes da ONU e representantes da sociedade civil, assumiram compromissos e responsabilidades com relação aos direitos de refugiados e imigrantes em escala global. Esses acordos ficaram conhecidos como a Declaração de Nova York. O presidente Michel Temer discursou na reunião e afirmou que o objetivo brasileiro é garantir direitos e facilitar a inclusão. “No centro de nossas políticas está o reconhecimento inescapável da dignidade de todos os migrantes”, disse.

Reunião especial da ONU sobre refugiados | FOTO BETO BARATA/PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA ser mandado de volta ao país de origem. turas que devem fazer políticas de inclusão”, Obstáculos

ela explica. Rocha completa dizendo que, no

As dificuldades de um refugiado no Brasil

Brasil, ainda dependemos muito de organiza-

não param por aí. Além de terem de enfren-

ções religiosas e não governamentais para tra-

tar um emaranhado burocrático, os imigran-

tar dessas questões.

tes desembarcam no país com muito pouco,

Viver a centenas de quilômetros de casa

sem saber falar o idioma local e muitas vezes

também é um desafio a enfrentar, principal-

enfrentando o preconceito e desconhecimen-

mente se isso significa que você se viu obri-

to da sociedade. A partir daí, todo o resto se

gado a fugir do local em que construiu uma

torna impraticável: é difícil de conseguir um

vida. “A pessoa que solicita refúgio não deve

emprego, alugar uma casa e até mesmo fre-

ser vista como um problema ou peso social”,

quentar locais de lazer.

diz Géssica Brandino a respeito do preconcei-

Raquel Rocha, professora de relações inter-

to que a falta de informações alimenta. Além

nacionais na ESPM-SP e atuante na área de

disso, segundo ela, o primeiro passo é compre-

pesquisa sobre segurança e direitos huma-

ender que os refugiados tiveram seus sonhos

nos, argumenta que existe um ruído gran-

interrompidos por guerras ou perseguições.

“A pessoa que solicita refúgio não deve ser vista como um problema ou peso social” Géssica Brandino, jornalista especializada em relações internacionais

de de comunicação entre quem vai pensar e

Martha Parede concorda e também acredita

lidar diretamente com o indivíduo deslocado

que o governo e os próprios cidadãos tendem

e o governo federal, que basicamente trabalha

a ver esses imigrantes como um problema,

com números. “A decisão de receber refugia-

principalmente no que diz respeito a vagas

dos vem do governo federal, mas são as prefei-

de emprego. “Eles utilizam um discurso do senso comum, é um mecanismo

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pra culpar o mais frágil, que é o imigrante ou refugiado” (leia mais sobre essa questão à página 10). Para ela, seria necessário reavaliar a forma como as políticas públicas são feitas nessa área e entender melhor como a economia global funciona. As minorias devem estar incluídas nas ideias do governo, que tem por obrigação

20/21

oferecer oportunidades. “Se você der o mínimo de condição, as pessoas conseguem”, justifica. Hospitalidade “O Brasil não é um país tão acolhedor como a gente gosta de dizer que é”, conclui Viviane Rodrigues, economista e consultora do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados(Acnur). Do ponto de vista econômico, Rodrigues acredita que o apoio financeiro é fundamental para quem chega em um país em que não domina o idioma local e onde seu diploma universitário não tem validade – fora o fato de ter recém-deixado seus amigos, familiares e toda a vida que havia construído até então. “A integração local, numa visão reducionista, com o aprendizado do português, a validação do diploma e a inserção econômica, é o que permitiria que um refugiado tivesse condições econômicas para sua autonomia”, explica. A autonomia é um fator muito importante

“O Brasil não é um país tão acolhedor como a gente gosta de dizer que é” Viviane Rodrigues, economista e consultora do Acnur

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para que essas pessoas possam se estabele-

comum gosta de dizer, não concorrem com os

cer na sociedade e criar suas novas vidas aqui.

empregos dos nacionais”, explica. Ela exem-

É, também, um objetivo que o refugiado não

plifica citando o Sine, plataforma que anuncia

consegue alcançar ou acaba alcançando de

vagas de empregos, onde a maioria das ofer-

forma bastante precária, por conta dos moti-

tas são para operadores de call center – fun-

vos já mencionados. É muito comum ver esses

ção inviável para um refugiado que não domi-

estrangeiros morando em periferias, pois não

na o português.

possuem poder financeiro para comprar ou

Além disso, a economista acrescenta que

alugar uma casa, assim como é comum vê-

o impacto econômico pode ser positivo até

-los exercendo trabalhos que não exigem for-

mesmo no que diz respeito a novas formas

mação acadêmica, mesmo que eles possu-

de empreender, já que a inserção social é um

am diplomas.

aspecto que ainda precisa de maior atenção do governo brasileiro. “A inclusão em programas

Economia

sociais é burocrática e morosa, o que prolonga

Ao contrário do que muitos pensam, receber

o tempo para a integração local. Quanto mais

refugiados é extremamente positivo para a

rápida for a integração local, mais rápida será

economia brasileira, de acordo com Rodrigues.

a capacidade desse migrante contribuir para

“Os refugiados, diferentemente do que o senso

a economia do país”, afirma.

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É COMUM VER REFUGIADOS MORANDO NAS PERIFERIAS E EXERCENDO TRABALHOS QUE NÃO EXIGEM FORMAÇÃO SUPERIOR, MESMO QUE POSSUAM DIPLOMAS.

São Paulo é a primeira cidade brasileira com política para refugiados »»»Centro econômico do país, São Paulo tem sido um dos destinos mais frequentes de sírios, nigerianos, libaneses e angolanos, entre outras populações deslocadas. De acordo com dados do Acnur, em 2016 a região Sudeste recebeu 31% do total de indivíduos que procuram o Brasil em busca de refúgio, perdendo apenas para a região Sul, que recebeu 35%. Diante do grande número de refugiados recebidos pela capital paulista, a prefeitura tem adotado algumas medidas de apoio nos últimos anos. Entre elas está a criação de dois Centros de Referência e Acolhimento de Migrantes e Refugiados (CRAI), que oferecem ajuda a esses indivíduos. Em junho de 2016, São Paulo aprovou também sua própria lei para refugia-

“Ainda temos muitos desafios à frente para um maior acolhimento daqueles que buscam

Atendimento a refugiados sírios oferecido pela Prefeitura de São Paulo | FOTO EDUARDO OGATA/SÃO PAULO CARINHOSA

dos e imigrantes, tornando-se a primeira cidade brasileira a contar com uma política pública sobre imigrantes. A lei garante os direitos e o acesso de todo

refúgio em nosso país”, completa. Para ela, fal-

estrangeiro imigrado (e não só aos refu-

tam campanhas esclarecedoras, que desmisti-

giados) aos serviços públicos e à prote-

fiquem o que é um refugiado e chamem aten-

ção contra xenofobia, racismo e discri-

ção para a questão da xenofobia. Além disso,

minação em relação aos brasileiros.

Rodrigues acredita que programas governa-

Além disso, a capital conta com uma

mentais mais inclusivos também poderiam

série de projetos e instituições que tra-

ajudar a mudar este cenário.

balham para a inclusão de refugiados

Anelise Zanoni, jornalista que já trabalhou

na capital. A Abraço Cultural, por exem-

com refugiados e temas que envolvem direi-

plo, é uma instituição que oferece aulas

tos humanos em geral, reflete sobre um dos

de línguas estrangeiras e de cultura

aspectos dessa crise que atinge o mundo todo.

para brasileiros, ministradas por refu-

“Acredito que o mundo é feito de diferenças

giados. O Al Janiah, restaurante intitu-

e devemos ser tolerantes com elas se quiser-

lado com o nome de um vilarejo que faz

mos evoluir e viver em paz. Os refugiados são

parte dos Territórios Palestinos Ocu-

reflexos de um mundo em conflito, intoleran-

pados, no centro da Cisjordânia, pro-

te e sem paz”. Para a jornalista, a inserção dessas pessoas no país representa-

põe um espaço cultural palestino para

16_23_capa M.indd 17

o Ce dos

árab

riên

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ria para eles uma esperança e a possibilidade de mudar de vida. “Temos muito a aprender com eles e a ensinar também”, diz. Para isso, porém, ela acredita que o Brasil precisa estar mais preparado para recebê-los e garantir recursos básicos de sobrevivência. Raquel Rocha, da ESPM-SP, também vê falhas nas políticas públicas de acolhimento

22/23

– o que inclui os âmbitos do sistema educacional, da saúde e de como o refugiado poderia viver como um nacional. Empatia Embora a questão dos refugiados seja delicada, nem todos os brasileiros desenvolvem empatia pelos estrangeiros que chegam aqui. “Nesta semana mesmo me deparei com uma senhora que dizia que os refugiados tinham que permanecer em seus países e lutar”, conta a jornalista Géssica Brandino. De acordo com ela, a gravidade da situação passa despercebida devido à “solidariedade seletiva”. A cobertura midiática não apenas é sensacionalista como também superficial

Haitianos recebem visto humanitário e não são considerados refugiados »»»A distância entre o mundo burocrá-

acrescenta em sua categoria aque-

da alta demanda, o governo federal ini-

tico de carimbos e permissões e a difícil

les que fogem de crises econômicas ou

ciou a distribuição de vistos humanitá-

vida de quem fugiu de seu país de ori-

de desastres naturais, já que, de acor-

rios aos haitianos em 2012.

gem é visível na rotina dos milhares de

do com a legislação brasileira de 1951,

refugiados e solicitantes de refúgio no

essas situações não se encaixam na

haitianos no Brasil é o preconceito.

Brasil. Embora não sejam tecnicamente

denominação de refúgio. Esse é o visto

Segundo informações de dezembro do

refugiados, pois deixam seu país devi-

dado aos haitianos no Brasil. A profes-

ano passado da Organização de Suporte

do a catástrofes climáticas e à pobreza,

sora Rocha explica que quem recebe

das Atividades dos Haitianos no Brasil,

e não à perseguição política ou religio-

esses vistos acaba por conseguir uma

entre as 2.500 pessoas daquele país que

sa, os haitianos que vivem em São Paulo

carteira de trabalho e, dessa forma,

vivem em Cuiabá, 25% delas já sofre-

são um bom exemplo das dificuldades

encontra mais benefícios.

ram racismo. Não há dados específicos

de integração a um país estranho.

Devido ao terremoto que ocorreu no

Outro problema enfrentado pelos

sobre o preconceito a essa comunida-

Haiti em 2010 e às graves consequên-

de em São Paulo, mas sobram queixas.

do a pessoas que fogem de persegui-

cias econômicas para o país, seus cida-

A ONG Repórter Brasil, por exemplo,

ções ou egressas de países com con-

dãos passaram a procurar melhores

entrevistou dois haitianos que cria-

flitos armados. O visto humanitário

condições de vida no Brasil. Por conta

ram uma associação para defender seus

O refúgio está diretamente associa-

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EMBORA A QUESTÃO DOS REFUGIADOS SEJA DELICADA, NEM TODOS OS BRASILEIROS TÊM EMPATIA PELOS QUE CHEGAM AO PAÍS PARA RECOMEÇAR SUAS VIDAS.

e seleciona o que mostrar. “Há o conflito na Síria, mas há também na Nigéria, na República Democrática do Congo e em outros países, mas sobre essas outras realidades pouco ou nada se fala.”, completa (leia o perfil de uma refugiada congolesa à página 30). A seleção dos fatos mais importantes ou comoventes pode ser percebida diariamente nas redes sociais, por exemplo. Algumas tragédias são consideradas dignas de hashtags e compartilhamentos, enquanto outras com mesmo nível de gravidade mal são noticiadas. Muito se sabe sobre a série de ataques terroristas à França em novembro de 2015, mas quem se lembra dos ataques aéreos que atingiram hospitais na Síria em agosto do mesmo ano? Reintegração e xenofobia O processo de adaptação ao novo território é complicado, mas pode se tornar menos doloroso quando há ferramentas capazes de fazer o imigrante se lembrar de casa. O quesito cultural é crucial nessa etapa.

direitos, a União Social dos Imigrantes Haitianos (Usih). Fedo Bacourt e Laurie

Refugiados do Congo participam de atividade com voluntários na sede da Cruz Vermelha para comemorar o Dia das Crianças | FOTO FERNANDO FRAZÃO/AGÊNCIA BRASIL

Alguns dos refugiados vindos do Oriente, por exemplo, são ajudados pelas comunidades árabes que existem aqui. Segundos dados do governo federal, em 2010, a comunidade libanesa no Brasil era maior que a população do Líbano. Os números registraram quase 10

Jant denunciaram situações de abuso

milhões em nosso território contra 3,5 milhões

a que os imigrantes que trabalham na

que viviam no país do Oriente Médio.

construção civil são submetidos. “Os

Também temos o Dia Nacional da Comuni-

haitianos precisam fazer hora extra

dade Árabe, celebrado em 25 de março. A data

porque ajudam as famílias lá no Haiti,

é reconhecida pela Lei 11.764, sancionada em

aí algumas pessoas aproveitam disso.

2008 pelo então vice-presidente José Alencar.

Não seguem a lei e fazem trabalhar até

Os refugiados de tais regiões recebem apoio

a meia-noite”, contou Febo.

dessas comunidades.

Na rua Cubatão, na região da Vila

Tais medidas, contudo, não livram o refu-

Mariana, uma casa antiga de tamanho

giado do preconceito. De 2014 para 2015, as

médio abriga quase 50 haitianos. Lá, a

denúncias de xenofobia no Brasil cresceram

reportagem da Plural encontrou deze-

600%. Os dados são da Secretaria Especial de

nas de homens, mulheres e crianças

Direitos Humanos, que recebeu 45 denúncias

vivendo em condição precária, já que o

no primeiro ano e registrou 330 casos no perí-

local não suporta tantas pessoas. Ainda

odo seguinte. Existe também um portal online

assim, segundo os moradores, a vida no

para denunciar casos de xenofobia, o Huma-

Brasil é melhor e tem mais oportunida-

niza Redes, que recebeu mais de 260 depoi-

des do que em seu país de origem.

mentos em 2015.

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24/25 O sírio Talal Al-Tinawi, que, apesar de ser engenheiro, recorreu à culinária para conseguir viver no Brasil | FOTO DIVULGAÇÃO

O ENGENHEIRO QUE VIROU COZINHEIRO Para sobreviver, Talal mudou não só de país, mas também de profissão dos pelo estado. Não era criminoso nem BIANCA ALVES LETÍCIA VILAR MARIANA KOTAIT

locar a vida em ordem e partir.

rebelde, mas por trágica coincidência

Sem outra opção, arrumou as malas o

tinha o mesmo nome de um persegui-

mais rápido que pôde e foi para a capital

do pelo governo.

do Líbano, Beirute, onde viveu por dez

»»»Arrumou as malas, pegou a família

O ano era 2012. De setembro a dezem-

meses. A escolha foi simples: era um dos

e partiu para Beirute. Sabia que a qual-

bro, passou preso. Deixou os dois filhos,

únicos locais que não lhe pediriam docu-

quer hora poderia ser preso. Preso por

Mateus* e Ingrid* (os nomes foram alte-

mentos para entrar. Ainda assim, a cida-

um crime que não cometeu.

rados a pedido do entrevistado), de 14 e

de não era propícia para a segurança de

de 11 anos, e a esposa, Ghazal.

sua família.

Foi assim que Talal Al-Tinawi, de 43 anos, passou à condição de refugiado.

No fim do mesmo ano ele foi coloca-

Em uma corrida contra o tempo, Talal

De origem Síria, mais precisamente da

do em liberdade e aconselhado a sair do

precisava encontrar um país que acei-

capital Damasco, ele foi pego de surpresa

país, sob a ameaça de que o governo o

tasse os sírios, e essa condição não era

ao tentar cruzar a fronteira para o Líba-

prenderia novamente – ainda que não

tão simples. De embaixada a embaixa-

no e descobrir que o seu nome consta-

tivesse feito nada. O tempo era escasso:

da, ligações e tentativas para conseguir

va de uma lista de indivíduos procura-

Talal teve exatas duas semanas para reco-

vistos, encontrou a representação bra-

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JÁ ESTABILIZADO NO BRASIL, TALAL NÃO PRETENDE VOLTAR A MORAR NA SÍRIA. “DEPOIS DA GUERRA, TUDO MUDOU” sileira em Beirute, que lhe mostrou uma

A família hoje possui um restauran-

alternativa: um projeto do governo fede-

te sírio na região do Brooklin. O cami-

ral para receber refugiados. O país não

nho não foi fácil, mas com o auxílio de

era a primeira opção, porém, o importan-

uma campanha de financiamento cole-

te era retirar a família da zona de perigo.

tivo pela internet, na plataforma de cro-

Passagens compradas, o “passe para

wdfunding Kicakante, ele e sua família conquistaram o espaço.

a terra desconhecida”, como ele conta, durou 27 horas dentro de um avião. Eram

Sua vida na Síria era materialmente

culturas e costumes diferentes, um idio-

mais confortável, já que Talal tinha auto-

ma que desconhecia e uma vida incerta

móvel e imóveis, mas hoje ele conseguiu

a encarar. Não tinha onde ir, não havia

superar as dificuldades e se instalar pró-

cama para os próprios filhos. A única

ximo do restaurante que abriu, na zona

opção era contar com a sorte. Na véspera de partir, conseguiu o tele-

Fachada do restaurante de culinária síria Talal, no Brooklin | FOTO BIANCA ALVES

Sul. Sua história repercutiu em grandes veículos brasileiros.

fone de uma mesquita no Brasil, que

O recinto é bem simples e não chama

designou um sírio brasileiro para abri-

muita atenção. A decoração síria vem de

gar Talal e a família na própria casa.

adornos bordados colocados nas paredes e outras referências à cultura. Para

Chegada ao Brasil

o atendimento dos clientes, Talal conta

Era 10 de dezembro de 2013 quando

com funcionários brasileiros e com a

aterrissaram em “terra verde e amare-

ajuda do filho mais velho e da esposa.

la”, como ele gosta de chamar o Brasil.

“Eu estudei cinco anos para ser enge-

Sem conhecer o tal homem que o ajuda-

nheiro, e não cozinheiro”, conta Talal. Por

ria, encontrou-o no Aeroporto Interna-

conta disso, não está totalmente conten-

cional de São Paulo, em Guarulhos.

te com o novo trabalho, mas ainda pre-

Foram três meses para adaptar-se aos

cisa esperar mais de dois anos para que

novos costumes. O português foi apren-

seu diploma seja reconhecido. O sírio

dido na prática. A família precisava de

ainda pretende atuar como engenheiro

uma fonte de renda para viver. “Esse

e quer conciliar a carreira antiga com a

tempo foi muito importante para mim.

nova profissão.

Aprendi e conheci mais sobre o Brasil e

não era aceito no Brasil. Segundo ele, há

Já estabilizado no Brasil, Talal não pre-

comecei a estudar português na Mesqui-

muita burocracia para o reconhecimen-

tende voltar a morar na Síria. “Depois da

ta do Brás”, conta o refugiado.

to de seus estudos.

guerra, tudo mudou”, desabafa. O regres-

O idioma não foi a única dificuldade.

A única saída era, portanto, colocar

so seria muito complicado, uma vez que

Para estabilizar-se, Talal também con-

em prática os aprendizados maternos.

teve sua filha mais nova, Lilah*, de um

tou com a ajuda da ONG Adus – Institu-

Talal conta que desde pequeno apren-

ano e oito meses, no país. Os outros filhos

to de Reintegração do Refugiado. Foram

dia as receitas de família com a mãe e

também já estão adaptados e teriam difi-

os integrantes da instituição que o auxi-

que, com o passar dos anos, habituou-

culdade para estudar e aprender a lín-

liaram a achar um apartamento, colocar

-se a cozinhar para os filhos.

gua árabe.

seus filhos na escola pública e começar o seu primeiro negócio no país.

Após uma festa realizada na casa de

Uma das dificuldades encaradas com

Talal, um dos voluntários da Adus pro-

a mudança é a dispersão de sua família.

Aproveitando a comunidade árabe pre-

vou a comida feita pela família e teve uma

Um dos irmãos de Talal vive na Alema-

sente na região do Brás, Talal agarrou a

ideia. “Ele sugeriu para que eu vendes-

nha, também como refugiado; a outra

oportunidade de se instalar no centro e

se comida”, lembra. Com o apoio de sua

irmã, nos Estados Unidos.

passou a vender roupas infantis na Feira

esposa, ambos passaram a aceitar enco-

Além disso, o pai e o terceiro irmão

“Tsh sjsjsj sjsjsj

da Madrugada para sustentar sua família.

mendas de salgados que eram feitos em

moram na Síria, em Damasco. Talal pre-

Fabíola

sua residência, no Brás.

tende visitá-los assim que possível.

O diploma de engenheiro mecânico

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26/27

Foto Juliana Aguiar

A VIDA APÓS AS FARC Atualmente mais de 1.100 refugiados colombianos moram no Brasil; conheça a história de um deles, Cristiano, que foi sequestrado e quase morreu nas mãos da guerrilha

bastante para o porto de Cartagena,

e pagam um “imposto” ilegal de acor-

cidade ao norte do país, também ia ao

do com sua renda particular. “Os sócios

exterior com frequência para encon-

eram minha esposa e eu e nós faturáva-

trar com seus parceiros de negócios.

mos US$ 450 mil por mês”, conta. Sem

»»»Cristiano Streeter, 40 anos, casa-

Passava pouco tempo com a família.

escolha, pagou a taxa. Começou desem-

do e pai de duas filhas, nunca imagi-

Até se tornar refugiado.

bolsando US$ 5.000 por mês (cerca de R$

GABRIELLA KIRSTEN JÚLIA MATTOS JULIANA AGUIAR

nou que um dia se tornaria um refu-

Os negócios iam bem até que as Forças

16 mil). Pouco depois, o valor foi dobra-

giado. Streeter é de Pastos, cidade

Armadas Revolucionárias da Colômbia

do. E as Farc passaram a extorquir mais

no sul da Colômbia, e era empresá-

(Farc) começaram a exigir o pagamen-

e mais da exportadora até quase que-

rio de uma empresa bem-sucedida

to de uma taxa para que a empresa de

brar a empresa.

de exportação de madeiras nobres

Cristiano pudesse operar normalmen-

Dois anos depois do início da cobran-

chamada Mãos Aliadas. Viajava fre-

te. Segundo Cristiano, muitos colom-

ça, após muita conversa com sua espo-

quentemente a trabalho. Além de ir

bianos são extorquidos pela guerrilha

sa, Cristiano fez sua última exportação

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23/11/16 11:50


OS NEGÓCIOS IAM BEM ATÉ QUE AS FARC COMEÇARAM A EXIGIR O PAGAMENTO DE UMA TAXA PARA QUE A EMPRESA DE CRISTIANO PUDESSE OPERAR

instalaram dentro de sua casa, reforçando a tortura psicológica sobre o ex-empresário. Sua esposa e suas duas filhas, uma com apenas 25 dias de vida, conviveram com armas, drogas e prostitutas em casa ao longo de 20 intermináveis dias. “Foram na minha casa, minha esposa estava com minha filha recém-nascida, e mesmo assim eles levavam prostitutas, cocaína, fumavam maconha, tudo lá.” O grupo esperava que a esposa de Cristiano pagasse US$ 500 mil (cerca de R$ 1,6 milhão) pela libertação dele. Desesperada, a mulher reuniu todo o patrimônio da família, US$ 350 mil, e entregou aos criminosos. Como condição adicional, os membros das Farc também solicitaram que Cristiano se tornasse sócio deles. “Pediram uma quantia superior ao que eu podia pagar.” Sem escolha, o colombiano aceitou. A partir daquele momento, Cristiano teria que fazer tudo o que eles

Na página ao lado, o refugiado Cristiano Streeter, que fugiu das Farc; acima, manifestação contra a guerrilha na Colômbia

pediam – como por exemplo, não procurar a polícia. Cumpriu com sua tarefa, mas não se livrou dos perigos.

e saiu do negócio, esperando não preci-

Foi após um jantar com integran-

sar pagar mais nada ao grupo. Fechou

tes das Farc que Cristiano e sua família

as portas no auge. “Quando deixei a

decidiram fugir do país. No restaurante,

empresa, ela já estava completando

membros disfarçados da polícia colom-

quatro anos e tínhamos muitas opera-

biana avistaram Cristiano e, sabendo

ções comerciais com a Arábia Saudita, o

que ele não fazia realmente parte das

Japão e os Estados Unidos”. No entanto, seu pior pesadelo se tornou realidade. Foi sequestrado pelas Farc como represália por ter deixado o negócio – e, consequentemente, as taxas mensais. Mantido em cativeiro no meio da mata por 29 dias, sofreu intensamente. “Eu

“Eu quase fui enterrado vivo mais de uma vez” Cristiano Streeter

Farc, deram a ele uma chance de fugir. Enquanto sacavam suas armas para capturar um dos chefes da organização, em uma operação especial, deixaram que Cristiano escapasse. Foi em pleno tiroteio no restaurante que ele, desesperado, decidiu deixar o país com sua família.

quase fui enterrado vivo mais de uma vez.” Fez greve de fome (recebia um

A FUGA

prato de comida por dia, que recusava),

Com US$ 5.000 emprestados de amigos,

e vivia à base da água de um rio próxi-

Cristiano foi para Caracas, capital da

mo ao cativeiro.

Venezuela. O colombiano ainda manti-

Mas o terror não estava confinado à

nha contato com um amigo na Colômbia.

mata. Enquanto Cristiano estava ren-

Ele fazia funções básicas para Cristiano,

dido, membros das Farc invadiram e se

como cuidar de sua casa em Pastos. Mas

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NO

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dez meses depois da fuga para Caracas, as Farc descobriram a localização de Cristiano na Venezuela e mataram o filho do amigo como represália à fuga. Emocionado, Cristiano conta da ligação do amigo. “Meu amigo disse ‘olha, não me liga mais porque acaba-

28/29

ram de matar o meu filho’.” Ameaçado, Cristiano decidiu cortar contato com todos, incluindo o restante de sua família que ficou na Colômbia, e fugir de novo. Ainda em Caracas, contou sua história a um padre jesuíta, que o apoiou e abrigou por uma semana. Logo, o padre orientou Cristiano a vir para o Brasil, via Manaus. No fim de 2014 ele desembarcou em Boa Vista e de lá para Manaus, onde se encontrou com outro padre jesuíta. Cristiano ficou um mês com os padres antes de o mandarem para São Paulo, onde vive até hoje. Vida em São Paulo Em São Paulo, Cristiano passou seus primeiros meses na casa Terra Nova, que recebe refugiados. O local tem capacidade para até 50 pessoas e dá preferência para famílias refugiadas com filhos de até 18 anos. O abrigo é uma casa de passagem, mantida pelo Ministério de Desenvolvimento Social com apoio da Caritas Arquidiocesana de São Paulo (CASP), do Alto Comissariado da ONU

Cristiano mora na capital há quase

para Refugiados (Acnur) e de outras

dois anos e deixou tudo para trás. Ainda

entidades parceiras. Por ser uma casa

tem sua casa em Pastos, mas, com medo

de passagem, o refugiado tem o direito

das Farc descobrirem sua localização no

de passar 45 dias no local.

Brasil, nem tentou vendê-la. Desde que

Na Terra Nova vivem refugiados nige-

foi orientado a fugir para a Venezuela,

rianos, sírios, angolanos, entre outros,

nenhum de seus familiares ou amigos

cada um com sua própria cultura. Cris-

sabem onde vive.

tiano não teve problemas com isso, mas

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se queixa do atendimento de um moni-

DESAFIOS

tor, que julgava hostil a ele. Depois de

A jornada para encontrar uma vaga de

conversar com um dos diretores do local,

trabalho está difícil para Cristiano. Isso

foi colocado em outra casa no centro da

é o que mais o preocupa hoje. Quando

cidade, onde a família toda divide ape-

chegou a São Paulo, o refugiado, que fala

nas um quarto.

espanhol, inglês e francês (seu portu-

23/11/16 11:51


6 milhões 1.100

de colombianos estão refugiados ao redor do mundo, diz o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados.

colombianos têm status oficial de refugiados reconhecido no Brasil.

na aos refugiados proteção jurídica e física, incluindo acesso a direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais sob as mesmas bases dos seus cidadãos nacionais”, como explica o Acnur. Atualmente, faz curso de confecção de moda no Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) e vende bolsas de couro. Sua mulher o acompanha no curso, mas, doente, falta muito. Ela tem lúpus, uma doença autoimune, crônica, que pode danificar qualquer órgão do corpo. “Olho para um lado e vejo minha mulher doente; do outro, minhas meninas sem leite.’’ Como refugiado, diz que é difícil achar emprego. “Na hora que olham meu currículo e veem que sou refugiado, já me olham de outro jeito.” O pesadelo do Colombiano poderia acabar, diz, se houvesse um real acordo de paz com as Farc e o governo colombiano, para que voltasse para casa. Plebiscito Depois de mais de cinquenta anos de conflito armado entre o governo colombiano e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, um plebiscito neste

O presidente colombiano, Juan Manuel Santos, durante assinatura de acordo de paz com as Farc – que depois foi rejeitado em plebiscito | FOTO JUAN PABLO BELLO/SIG

ano perguntou à população se aprovaria um acordo de paz. O resultado, surpreendente, foi “não”. Cristiano compre-

“Na hora que olham meu currículo e veem que sou refugiado, já me olham de outro jeito” Cristiano Streeter

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guês é apenas mediano) procurou ser

ende, e, apesar de sua situação, apóia o

tradutor na casa Arsenal de Esperança,

“não”. Ele quer paz, mas quer que os cri-

que também acolhe refugiados estran-

minosos que o aterrorizaram não saiam

geiros, e trabalhou no local por oito

impunes. “Não é uma paz, é uma impu-

meses.

nidade. Se há paz não há impunidade.’’

Hoje, Cristiano, que já fez vários cur-

Os colombianos são o terceiro maior

sos na cidade, está tentando voltar a tra-

grupo de refugiados no Brasil devido à

balhar como empreendedor. “Eu já fui

fronteira seca com o Estado do Amazo-

procurar emprego no Poupatempo, fiz

nas. Colombianos estão buscando refú-

curso de marcenaria, de tapeçaria, e não

gio em outros países para fugir da vio-

consigo trabalho”, lamenta.

lência, principalmente causada por

Se não tiver sucesso nem conseguir

guerrilhas. De acordo com o Acnur, há

um emprego até o ano que vem, vai pro-

cerca de 6 milhões de refugiados colom-

curar fazer um reassentamento, que

bianos no mundo. No Brasil, eles somam

acontece quando um país “proporcio-

1.100 pessoas.

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30/31 A congolesa Janine Mbuyangandu, que se refugiou no Brasil em 2013 e hoje busca trabalho | FOTO RACHEL SCHMALB

APRENDER A ESQUECER A congolesa Janine Mbuyangandu viveu o horror em seu país até conseguir fugir para o Brasil, onde formou uma nova família; hoje, o desafio é esquecer o passado de abusos

RACHEL SCHMALB

Ela completa que “ser refugiado” é o

pessoas que realmente precisavam.

tipo de coisa de que as pessoas só escu-

Quando alguém era preso e não tinha

tam falar, que acham muito distante.

dinheiro para um advogado, a polícia

»»»“Eles acham que eu estou

“Eu sei do que estou falando. Nunca na

deixava a pessoa envelhecer na prisão

morta.” É com essa frase que a con-

minha vida eu imaginei que isso aconte-

e o papel dele era ajudar os outros a se

golesa Janine Mbuyangandu, 31

ceria comigo. Até hoje é duro aceitar, não

defenderem com um advogado de graça,

anos, atualmente refugiada no Bra-

existe um jeito fácil de se conformar com

para evitar injustiças.”

sil, começa a contar a sua história.

tudo o que aconteceu”, conta.

Chebeya tinha muitos inimigos na

Aproximadamente três anos após

É com muita clareza que Janine se

polícia. Até que no primeiro dia de junho

ter sido obrigada a deixar o seu país e

lembra de como tudo isso começou. Ela

de 2010, o presidente da VSV foi convi-

a sua família para trás, Janine relem-

diz que, se não fosse pela morte de um

dado para uma reunião com o chefe da

bra, com um sorriso melancólico, a

homem, o Congo ainda seria a sua casa.

polícia congolesa, um general, e nunca

sua história. “Eu sou uma mulher que

O caso ao qual se refere foi a morte do ati-

mais voltou.

estudou a vida inteira, tenho diploma

vista humanitário e presidente da ONG

Na madrugada do dia seguinte, o cadá-

de faculdade nas áreas de tecnologia

“Voz dos sem voz” (VSV), Floribert Che-

ver de Floribert Chebeya foi encontrado

e programação, vivi o auge da minha

beya, assassinado no dia primeiro de

em uma rua deserta. Então começaram

carreira profissional, ajudava os meus

junho de 2010.

a surgir teorias de quem o teria matado.

pais em casa. Apesar de tudo isso, acabei sendo forçada a fugir do Congo.”

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Foi o começo de tudo para ela. “Chebeya era um homem bom e ajudava as

As principais suspeitas recaíam sobre a própria polícia.

23/11/16 11:57


É COM MUITA CLAREZA QUE JANINE SE LEMBRA DE COMO TUDO COMEÇOU. ELA DIZ QUE, SE NÃO FOSSE PELA MORTE DE UM HOMEM, O CONGO AINDA SERIA A SUA CASA Janine nunca se conformou com a tra-

eu resolvi não voltar para casa.”

gédia. “Até hoje ninguém sabe com cer-

Ela revela que daquela vez o homem

teza o que aconteceu. Eu acredito na

que a importunava havia revelado saber

mesma coisa em que a maioria das pes-

as suas informações pessoais como por

soas acredita, que quem matou ele foi

exemplo o nome dos seus pais, endere-

a polícia. Por ter essa certeza é que eu

ço, local de trabalho, entre outros dados.

estou refugiada no Brasil”, diz.

A partir dessa ligação a principal pre-

Ela diz que o seu erro foi ter feito uma

ocupação da congolesa era se esconder.

declaração forte durante uma entrevis-

Depois de algumas horas, ela decidiu que

ta. “Sabe aqueles programas em que os

iria para a casa de uma amiga que tam-

repórteres vão às ruas para saber a opi-

bém morava em Kinshasa e conta que o

nião das pessoas sobre um assunto? Foi

medo era tanto que ela ficava apavora-

isso. Nesse dia estavam fazendo um pro-

da até de andar na rua.

grama sobre o Chebeya, e o nó na minha

Ao se mudar para a casa da sua amiga,

garganta era tão agonizante que eu não

Janine se demitiu do seu trabalho e pas-

pude evitar”, lembra.

sou a viver trancada, com medo. Não

Durante a sua resposta, a hoje refu-

demorou muito para que ela começasse

giada comentou a sua indignação com

a ficar preocupada em viver muito tempo

a falta de investigações para que fosse

em um lugar só, pois tinha certeza de que

descoberta a verdade. Colocou para fora

a polícia iria achá-la.

tudo o que a atormentava.

Pouco depois, resolveu tomar uma ati-

“Eu olhei para a câmera e disse que

tude drástica. “Decidi que seria melhor

todos nós já sabíamos quem havia mata-

me mudar para outra cidade, no inte-

do Chebeya. Que era Numbi [general

rior, onde a polícia não me procuraria.

chefe da polícia congolesa]. Falei que

Mas infelizmente as coisas não seguiram

ele não merecia ter sido vítima dessa

como eu esperava”, conta.

covardia, que era um homem bom e que só queria o bem das pessoas”, comenta.

Cárcere e violência

“Nunca na minha vida eu imaginei que isso aconteceria comigo. Até hoje é duro aceitar, não existe um jeito fácil de se conformar com tudo o que aconteceu” “Os policiais gritavam muito comigo. Eu fui muito humilhada naquele lugar, eu era xingada e escutava coisas ofensivas o dia inteiro”

Ao sair da casa, ela foi até uma rua moviAmeaças

mentada para pegar um táxi. Janine até

Não se passou nem um dia para que

hoje se questiona sobre essa decisão de

ela recebesse uma ameaçadora ligação

sair da casa da amiga, mas ressalta que o

anônima. “Eu não sei quem era aquele

confinamento era insuportável.

homem nem como ele teria conseguido

“Quando eu estava na rua um táxi

o meu contato. Eu só sei que ele me liga-

parou na minha frente e perguntou

va e era muito agressivo falando coisas

para onde eu estava indo. Eu falei e ele

como: ‘O que passa na sua cabeça? Você

me disse que o outro passageiro tam-

é só uma mulher, uma fraca, você não

bém estava indo nessa direção e que eu

sabe de nada, você por acaso tem ideia

poderia entrar. Sabe, no Congo é muito

do que eu posso fazer com a sua vida?’ e

comum dividir o carro porque fica mais

desligava”, conta.

barato”, lembra.

Essa foi uma das inúmeras ligações

Ao entrar no táxi ela percebeu que

que Janine viria a receber. Ela afirma que

o motorista havia trancado as portas,

em todas quem ligava era a mesma pes-

fechado todas as janelas e em seguida

soa, uma mesma voz grossa e masculina.

acelerou muito. Nesse momento o pas-

“No meu aniversário, dia 13 de outubro,

sageiro que já se encontrava no carro

devia ser a décima ligação e a partir dai

olhou para ela e disse com um riso irô-

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“Para mim era o fim. A única coisa que eu conseguia pensar era que eu ia morrer naquele dia” Janine Mbuyangandu, congolesa refugiada no Brasil desde 2013

23/11/16 11:57


nico: “Você achou que nós não íamos te encontrar?”. Desesperou-se. “Para mim era o fim. A única coisa que eu conseguia pensar era que eu ia morrer naquele dia”, comenta, com os olhos cheios de lágrimas.

32/33

Dentro do veículo, ela foi vendada e levada para um local que até hoje permanece um mistério. Janine conta que a viagem levou algumas horas. “Eu não fazia ideia de onde estávamos. Quando o carro parou eles tiraram o pano dos meus olhos e eu pude ver que o lugar onde me deixariam era uma casa bem pequena no meio do nada”, conta. Segundo a descrição de Janine, a casa para a qual ela foi levada não tinha luz e quase nenhum móvel. Lá ela foi colocada em um quarto muito pequeno, sem mobílias ou janelas, cuja característica que mais lhe marcou foi o chão de cimento que serviu de cama pelos dois dias em que ficou presa. Ela também conta que lá dentro não lhe serviram comida alguma, e que a

te, e que por isso ninguém devia perder

naquele dia”, comenta aos prantos. Ela

única coisa que lhe ofereceram foram

tempo me matando.”

ressalta que, muito além da dor física, o

dois copos de leite por dia. Apesar da

Surpreendendo-a, o homem encarre-

fator psicológico tornou essa a pior lem-

fome, nem isso ela bebia, com medo de

gado de acabar com a sua vida lhe deu

brança da sua vida. “Ele fez tudo o que

envenenamento.

uma segunda opção. Para sair daquela

quis comigo, eu não tinha voz nem von-

“Os policiais gritavam muito comigo,

casa com vida Janine teria que comprar

tades naquele momento”.

e por mais que eu tentasse já não tinha

a liberdade com o seu corpo: ela devia

Após o ato o homem voltou ao quar-

mais como negar o que eu tinha dito. Eu

ter relações sexuais com ele sem recla-

to e contou-lhe que uma caminhonete

fui muito humilhada naquele lugar, eu

mar e dando-lhe total liberdade para que

estava a caminho para levá-la para fora

era xingada e escutava coisas ofensivas

ele fizesse o que tivesse vontade. O cho-

daquela casa. Quando o carro chegou já

o dia inteiro”, diz. E acrescenta: “Eles

que. Nunca havia ficado tão assustada

era muito tarde e ela ainda não sabia se

se divertiam com a minha fome, com a

em toda a sua vida, mas, com a vida em

iria realmente para casa. “Eu só sabia de

minha dor e o meu medo. Era uma sensa-

jogo, aceitou a proposta mais terrível que

duas coisas, a primeira era que o lugar

ção horrível de impotência. Eu sabia que

já ouvira.

onde estava presa ficava bem longe, e a

estava esperando para morrer lá dentro”.

Ela acrescenta que ter escolhido fazer

segunda era que eu teria que ir escondi-

A congolesa conta que o pior momen-

sexo com aquele homem em vez de mor-

da, pois caso me encontrassem eu seria

to que viveu dentro daquela casa foi no

rer se tornou para ela um fardo, uma

morta imediatamente.”

dia em que um homem entrou em seu

culpa que carrega até hoje. “Isso acabou

Ela foi colocada dentro do carro e ficou

quarto informando-a de que ele havia

comigo. Fez com que eu sentisse vergo-

escondida entre pilhas de mercadorias.

recebido uma ordem de matá-la. “Ele me

nha de mim, que eu me enxergasse como

Mais uma vez Janine estava no carro de

disse que ia me jogar em qualquer bura-

um objeto velho e usado. Às vezes eu me

um estranho sem saber para onde esta-

co para que eu morresse sozinha, pois eu

questiono sobre a minha decisão e me

va sendo levada. “Levou um bom tempo

não passava de uma mulher insignifican-

culpo por não ter enfrentado a morte

até chegarmos ao lugar. Acho que fomos

30_33_congo.indd 28

23/11/16 11:57


Janine comenta rindo que não imaginou que no Brasil houvesse tantos ladrões. “Eu lembro que deixei a minha mala no chão para trocar o dinheiro e que quando voltei ela não estava mais lá. Levaram tudo. Meus documentos, meu dinheiro, minhas roupas… eu não tinha mais nada.” Sem dinheiro, roupas nem documentos, andando por um país desconhecido, Janine não tinha muita opção. Sua primeira atitude foi procurar por alguém que pudesse ajudá-la a dar um primeiro passo em alguma direção. Seu critério de escolha: a pele negra. Ela chegou à conclusão que se falasse com uma pessoa com a mesma cor de pele seria mais provável que esta soubesse falar francês,

Ao lado, forças de paz da ONU no Congo; acima, campo de refugiados no país | FOTOS SYLVAIN LIECHTI/ONU

a língua oficial do Congo. Felizmente ela encontrou um homem disposto a ajudá-la, e depois de contar-lhe a sua história ele a ajudou levando-a para o centro de São Paulo, onde disse que seria mais fácil para Janine encon-

para outra cidade.”

uma delegação que viria até o Brasil, e

trar outros africanos. Ele a levou até a Sé,

Quando chegaram, o motorista pediu

então combinaram que Janine ficaria

onde ela conheceu outra africana que a

que a congolesa saísse do carro e mos-

escondida no convento até o dia da via-

encaminhou até o Caritas.

trou-lhe a igreja onde ela deveria buscar

gem. Então ela acompanharia o grupo

A congolesa conta que com essa ajuda

ajuda. Janine conta que em toda sua vida

para fora do país. O tempo de espera

ela logo começou a aprender o português

nunca tinha sentido tanta vergonha. “Lá

durou aproximadamente dois meses.

e que em uma das aulas acabou conhe-

no meu país quando acontece uma coisa

Antes da viagem, foi avisada de que a

cendo o homem que hoje é o seu mari-

dessas ou você se cala e não fala o que

partir do momento em que chegassem ao

do. “Um dia ele chegou na aula e veio me

pensa ou você fala e passa pelo que eu

Brasil a igreja não teria mais como ajudá-

perguntar por que eu estava tão triste. Eu

passei, ou pior, morre… é uma ditadura.”

-la. Janine conta que devido a essa via-

não queria contar porque tinha vergo-

Janine conta ter corrido em direção ao

gem o seu país de refúgio não foi uma

nha. Ele era muito educado e simpático,

convento e que batia com muita força na

escolha, mas que, apesar disso, ela con-

então depois de um tempo começamos

porta esperando que alguém a ajudasse.

sidera que vir para o Brasil foi uma gran-

a ficar amigos até o dia em que nos casa-

Não demorou para que uma pessoa fosse

de sorte.

mos.” Ela acrescenta que não demorou

ver o que estava acontecendo. Uma irmã

No dia 18 de dezembro de 2013, Janine

muito para que tivessem o seu primei-

do convento autorizou a sua entrada.

pousou no Aeroporto Internacional de

ro filho, um menino chamado Craig, que

Todavia, resolvido o problema de onde

Guarulhos, em São Paulo. Sentiu muito

nasceu logo após o casamento.

se esconder, o motorista foi até a porta e

medo por estar sozinha em um país des-

Apesar de estar feliz no Brasil, Jani-

lhe recomendou que saísse do país, pois

conhecido, de língua também desconhe-

ne tem planos de voltar para o Congo,

a polícia logo voltaria a procurá-la.

cida. Sem saber o que fazer, a primeira

mas precisa esperar que as autoridades

atitude dela foi ir até uma casa de câm-

de sua época saiam do poder, pois acre-

Fuga ao Brasil

bio para que pudesse converter os seus

ditam que ela está morta. “Eu só posso

Por sorte, a igreja estava organizando

poucos dólares em reais.

voltar se as coisas mudarem.”

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23/11/16 11:57


UM OLHAR SOBRE O PROCESSO DE REPORTAGEM

34/35

BASTIDORES

TOCADOS PELA CRISE Contato com refugiados traz experiências marcantes e muito fora da realidade dos alunos que fizeram a Plural

JULIA GIANESI

impacto grande. Tentar conversar com pessoas que têm dificuldades com a língua, que não entendem as nossas per-

34_35_bastidores M.indd 22

»»»ESPM. Centro Experimental de

guntas e não conseguem se fazer enten-

Jornalismo. Todas as segundas-fei-

der, foi outro obstáculo.

ras, às 14h30, um grupo de 12 alunos se

Além disso, os alunos tiveram de lidar

encontra em uma sala de redação para

com pedidos inusitados. Depois do con-

tentar materializar um plano ambicio-

tato com um jovem refugiado de 20 anos,

so: produzir uma revista com o tema

o aluno-repórter André de Sena recebeu

refugiados.

mensagens dele por semanas, pedindo

Foram cerca de 15 semanas de traba-

um emprego. “Ele disse que precisava

lho coletivo entre alunos do terceiro e do

de um trabalho, e eu falei que podia aju-

quarto semestres do curso de jornalis-

dá-lo a aprender português. Mas, no dia

mo da ESPM-SP, todos com o objetivo de

que combinamos de nos encontrar para

encontrar grandes histórias.

as aulas, ele não apareceu.” Outra cena

Algumas experiências foram inéditas

inesquecível foi quando, na visita a essa

na história da Plural. Entrar em uma

mesma casa, uma criança de cerca de 3

casa com cerca de 50 haitianos foi um

anos pegou nas mãos das alunas Julia

23/11/16 18:28


De costas, as alunas Julia Gianesi e Bianca Kachani em entrevista para a Plural | FOTO MARIANA KOTAIT

tendo algumas disciplinas que eu não

que também clicou a foto de capa. Para

tive antes, eu me senti muito mais segu-

a fotógrafa, a revista Plural trouxe diver-

ra para escrever”, comemora.

sos aprendizados. “Pesquisar e entender

Bianca não é a única que sentiu dife-

os motivos por trás de uma grande crise,

rença entre as edições de que partici-

conhecer histórias de pessoas que vieram

pou. Além de ter se interessado mais pelo

para o Brasil sem perspectivas, poder

tema dos refugiados, Bianca Alves, que

contar essas histórias. Tudo isso moti-

veio de Araraquara para estudar jorna-

va os estudantes de jornalismo”, conclui.

lismo em São Paulo, conta que cursar o quarto semestre ao mesmo tempo que produzia a Plural foi um desafio. “No quarto semestre é mais difícil de conciliar as coisas, pois temos uma carga maior de conteúdo e trabalhos, então a gente teve que correr mais atrás”, ela explica. Perfis Grande parte desta edição é composGianesi e Bianca Kachani e ficou agarra-

ta por perfis de refugiados de diferentes

da a elas durante toda a visita.

países. Gabriella Kirsten, Juliana Aguiar

O semestre trouxe mudanças no for-

e Julia Mattos estão cursando o tercei-

mato de produção da revista, que voltou

ro semestre e pretendem seguir carrei-

a ser executada em uma oficina no perío-

ra no jornalismo impresso, preferen-

do da tarde depois de duas edições sendo

cialmente em revistas de moda. As três

realizada em sala de aula, na disciplina

foram responsáveis pela produção do

Grande Reportagem, do professor e edi-

perfil do colombiano Cristiano Streeter

tor Renato Essenfelder. Além disso, esta

e dizem que a experiência as fez refletir

edição é especial por marcar os cinco

sobre seus privilégios. “Foi bom poder

anos da publicação.

ver um mundo sobre o qual a gente nunca

“A Plural me mostrou que não basta conseguir uma boa história. É preciso saber contá-la”

pensa muito. Conhecer a cultura de pes-

André de Sena

Para a aluna Nathalia Matos, do terceiro semestre, que sonha em ser jornalis-

soas muito diferentes de nós”, contam.

ta investigativa e sugeriu o tema da edi-

Outra aluna que teve foco na produ-

ção, até mesmo a reunião de pauta foi

ção de perfis foi Rachel Schmalb, baiana

marcante. “Eu tinha duas ideias para a

que se interessa por jornalismo político

revista, e concluímos que falar sobre os

e que se emocionou ao ouvir a história

refugiados renderia mais, pois teríamos

da congolesa que sofreu inúmeros abu-

grandes histórias de vida para contar.”

sos até chegar ao Brasil.

André ressalta a oportunidade de exer-

A matéria de capa ficou nas mãos de

citar um texto mais autoral. “A Plural me

Bianca Kachani, Julia Gianesi e Letícia

mostrou que não basta conseguir uma

Vilar, três veteranas da Plural. Para o trio,

boa história. É preciso saber contá-la. Por

produzir uma matéria de cunho humani-

isso que o texto é tão importante”, diz.

tário foi uma realização importante, pois

Bianca Kachani, paulistana que se interessa por direitos humanos, participou

confirmaram sua vontade de se aprofundar nesse tema futuramente.

da revista pelo segundo semestre segui-

A pesquisa de imagens coube a Victó-

do. Para ela, estar no quarto semestre

ria Faragó, que também se interessa por

de jornalismo fez diferença. “Por estar

jornalismo opinativo, e Mariana Kotait,

34_35_bastidores M.indd 23

+ PLURAL NA INTERNET

O aluno Guilherme Machado, da Plural número 5, fala sobre a revista.

23/11/16 18:28


36/37 Foto divulgação

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23/11/16 17:43


p&r

ENTREVISTA: ISABEL MARQUEZ REPRESENTANTE DO ACNUR NO BRASIL

COMO VOCÊ SE SENTIRIA SE TIVESSE QUE FUGIR POR CAUSA DE UMA GUERRA? NOVA REPRESENTANTE DO ACNUR NO BRASIL DIZ EM ENTREVISTA À PLURAL QUE A CRISE DE REFUGIADOS NO MUNDO É A MAIS GRAVE DESDE A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL E ENFATIZA IMPORTÂNCIA DO RESPEITO AOS DIREITOS HUMANOS

do Congo, África do Sul e MoçambiBIANCA KACHANI JULIA GIANESI

que, onde foi por quatro anos representante da agência da ONU. No começo deste ano, veio para o

36_41_pingue.indd 43

»»»Isabel Marquez é espanhola, com

Brasil, onde assumiu a representação

graduação e mestrado em direito

do Acnur no país. Seu trabalho exige

em Barcelona, e recém-empossada

que ela atue em todas as áreas: tem

representante do Alto Comissariado

reuniões com o governo, faz visitas

das Nações Unidas para Refugiados

de campo, coordena equipes, supervi-

(Acnur) no Brasil. Começou sua car-

siona orçamentos, faz a comunicação

reira como voluntária no escritório

com o setor privado e com os meios de

do Acnur em Londres, em 1994. De lá,

comunicação para ampliar a rede de

foi transferida para Saravejo, na Bós-

apoio aos refugiados a fim de garantir

nia, em meados de 1996. Construiu a

que os direitos dessas pessoas sejam

maior parte da sua carreira no con-

resguardados no Brasil.

tinente africano, onde ficou de 1997

A seguir, leia trechos da entrevis-

até o início de 2016. Lá, trabalhou em

ta que Isabel Marquez concedeu, com

países como República Democrática

exclusividade, à revista Plural.

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“A SENSAÇÃO DE PODER AJUDAR, DE PODER ALIVIAR O SOFRIMENTO DAS PESSOAS, É UMA COISA QUE EU NÃO CONSIGO EXPLICAR”

“É FRUSTRANTE QUANDO A MAGNITUDE DO PROBLEMA É TAL QUE NÃO PODEMOS ATENDER ÀS NECESSIDADES DE TODOS: TEMOS QUE ESCOLHER QUEM É O MAIS VULNERÁVEL ENTRE OS VULNERÁVEIS E POR QUE ELE VAI SER ASSISTIDO EM VEZ DE OUTRO”

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O que motivou a sra. a trabalhar na área de direitos humanos e como foi sua experiência com isso na África?

de 1997, fui para a África e fiquei lá até

Sempre me interessei por ajuda humabalhar com qualquer tipo de contri-

Qual foi o momento mais frustrante e o mais gratificante do seu trabalho com refugiados até hoje?

buição que pudesse mudar a vida das

Escolher um momento mais gratifi-

pessoas e para que houvesse menos

cante do meu trabalho é difícil, porque

sofrimento no mundo tinha tudo a ver

tenho muitos. A sensação de poder aju-

comigo.

dar, de poder aliviar o sofrimento das

nitária, desde pequena. Achava que tra-

2016.

Meu mestrado foi em direito inter-

pessoas, é uma coisa que eu não consi-

nacional penal, mas também fiz muitas

go explicar, mas posso dar alguns exem-

matérias em direitos humanos. Come-

plos. Receber as pessoas que fugiam da

cei a me interessar muito pelo tema, fiz

República do Congo durante os eventos

algumas colaborações com a Anistia

que aconteceram lá nos anos 1990 foi

Internacional e também alguns traba-

muito gratificante. Fazer parte de uma

lhos voluntários. Minha tese foi sobre

organização parceira da sociedade civil,

refugiados – haitianos, por acaso – e,

que ajudava a aliviar o sofrimento dos

pouco a pouco, fui me aproximando do

refugiados, receber, providenciar saúde e

trabalho do refúgio e do Acnur. Em 1994

proteção, para mim é muito gratificante.

fui fazer trabalho voluntário no escritó-

É frustrante quando a magnitude do

rio do Acnur em Londres e, em meados

problema é tal que não podemos aten-

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“ACHO QUE A SOLIDARIEDADE AFRICANA NEM SEMPRE É RECONHECIDA SUFICIENTEMENTE”

Foto divulgação

RAIO-X Nome: Isabel Marquez Nacionalidade: Espanhola Formação: Direito na Universidad Central de Barcelona Atuação: como oficial do Acnur, trabalhou no Congo (1997-2001), no sul da África (20012006), na sede em Genebra (20062012) e em Moçambique (2012-2016) antes de assumir o cargo de representante do Acnur no Brasil neste ano.

der às necessidades de todos: temos

renças é que, nos países de acolhida

No Brasil e na Argentina, que são os

que escolher quem é o mais vulnerável

nas Américas, os refugiados são inte-

únicos países que conheci até agora na

entre os vulneráveis e por que ele vai ser

grados na comunidade, não há campos

região, também vejo bastante essa von-

assistido em vez de outro. Também são

de refugiados. Isso inclusive facilita a

tade de providenciar ao refugiado e até

frustrantes situações em que fazemos

integração do ponto de vista jurídico e

ao solicitante de refúgio, que ainda não

o retorno de refugiados para seus paí-

sócio-econômico, contribui para que os

teve resposta ao seu pedido, o acesso a

ses de origem, mas os conflitos voltam

refugiados consigam nacionalidade bra-

direitos básicos. Isso não acontece em

a acontecer e eles são forçados a deixar

sileira e possam se sustentar por conta

todos os países.

suas casas mais uma vez. Por exemplo,

própria.

quase conseguimos completar o retor-

Uma das semelhanças é a solidarie-

no voluntário de burundeses, porque a

dade. Acho que a solidariedade africa-

situação no Burundi tinha se estabiliza-

na nem sempre é reconhecida suficien-

Na minha opinião, realmente estamos

do. Em 2015, porém, a situação piorou

temente. Nas Américas falamos muito

frente a uma situação sem precedentes.

novamente e pelo menos 280 mil burun-

de grandes doações financeiras. Sem

Estamos vendo movimentos migrató-

deses tiveram que fugir mais uma vez.

elas não poderíamos ajudar as pessoas

rios forçados e também espontâneos em

Como a senhora avalia o cenário mundial em relação à crise dos refugiados?

que fogem dos seus países por causa da

um nível que não vemos desde a Segun-

Como o panorama dos refugiados nas Américas é diferente do africano?

guerra, ou até imigrantes, mas esquece-

da Guerra Mundial, em que milhões de

mos da solidariedade dos países africa-

pessoas foram deslocadas por guerras

Eu estou nas Américas há apenas três

nos, que mesmo em situação de pobreza

e conflitos.

meses, então é um pouco cedo para que

extrema e catástrofes naturais, continu-

Em 2015, 24 pessoas por minuto eram

eu possa dar uma opinião, mas já pude

am recebendo milhares de refugiados e

forçadas a se deslocar de seu país, de seus

perceber algumas coisas. Uma das dife-

de imigrantes.

lares, de suas casas. Isso tem aconteci-

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do por conta de guerras que perduram por muitos anos e que não são resolvidas. Temos pessoas refugiadas, forçadas a fugir de suas casas, por causa de perseguições, mas também milhares de imigrantes que, por outros motivos, estão se

“É IMPORTANTE PENSAR QUE OS REFUGIADOS SÃO COMO TODOS NÓS: SÃO HOMENS, MULHERES, CRIANÇAS, QUE VIVIAM BEM, ESTAVAM EM SUAS CASAS, ESTUDAVAM, TRABALHAVAM, E UM DIA TIVERAM QUE FUGIR”

bro] é um bom exemplo. O fato de termos 193 países que se reuniram e debateram sobre a importância de aderir aos princípios de proteção internacional é algo muito significativo. Os pontos discutidos reafirmaram a importância de aderir ao

movimentando e utilizando rotas muito

regime de proteção internacional e de

perigosas. Nos últimos dois anos, 3.600

trabalhar em conjunto para ver qual é a

vidas foram perdidas no mar Mediter-

melhor forma para que os refugiados e

râneo para chegar à Europa. Como um

imigrantes sejam recebidos de modo que

país faz para receber números tão eleva-

respeite os direitos humanos.

dos de refugiados e imigrantes? É uma situação realmente bastante complicada.

As Olimpíadas deste ano tiveram pela primeira vez uma equipe de refugiados competindo sob a bandeira do Comitê Olímpico Internacional. Qual a importância da participação dos refugiados nesse evento?

É importante pensar que eles são como todos nós: são homens, mulheres, crianças, que viviam bem, estavam em suas casas, estudavam, trabalhavam, e um dia tiveram que fugir. A pergunta que eu faço sempre é:

Eu tinha chegado ao Brasil há algumas

como é que você se sentiria se amanhã,

semanas e tive a grande sorte de parti-

ou daqui a uma hora, tivesse que fugir

cipar e de conhecer os atletas que com-

por causa de uma bomba, ou de uma

petiram nos Jogos. Eles são uma ins-

guerra, que você não esperava? Como

piração para todos os refugiados. Os

você gostaria de ser recebido?

compromissos e o respeito aos direitos

refugiados de Moçambique, do Quênia,

humanos, há o Direito Internacional dos

estavam muito felizes ao ver seus irmãos

Como o Acnur se posiciona frente a isso e quais medidas podem ser tomadas para minimizar o sofrimento dessas populações?

Refugiados e também dos imigrantes.

e irmãs competirem nos Jogos Olímpi-

O Acnur trabalha para evitar que as

cos. Eu fiquei com a ideia de que, se eles

situações que forçam as pessoas a dei-

podem, todos nós podemos. Isso signi-

xarem seus países aconteçam e também

fica que, se eu fugir da minha casa, não

Uma das coisas que eu acho importan-

para ajudar a minimizar o sofrimen-

há nada que vai me impedir de seguir

te é que continuemos a trabalhar com os

to das populações e encontrar soluções

os meus sonhos. Eles são um modelo de

estados, para que eles reafirmem seus

através da integração.

esperança para o mundo e para a popu-

compromissos a respeito dos direitos humanos. Não interessa se você fugiu

lação em geral. Não conseguiram meda-

Na sua opinião, qual é a melhor estratégia para garantir isso?

lhas, mas isso é o menos importante. O

grante: são pessoas que são deslocadas e,

Eu acho que a reunião dos 193 paí-

motivação deles próprios e a motivação

portanto, têm direitos humanos porque

ses que aconteceu agora em Nova York

que deram a milhões de jovens e refu-

são seres humanos. Obviamente, o refu-

a Reunião de Alto Nível sobre Grandes

giados que hoje em dia veem o espor-

giado também tem o direito à proteção

Movimentos de Refugiados e Migran-

te como uma saída, uma solução, uma

internacional, então para firmar esses

tes, ocorrida na sede da ONU em setem-

esperança.

por razão de guerra ou se você é um imi-

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mais importante foi a participação, a

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WW Qualquer um pode ajudar na acolhida aos refugiados O Acnur é a agência da ONU para refugiados, que tem como função coordenar a resposta internacional ao problema dos refugiados e de outras populações forçadas a se deslocar por guerras, conflitos e por outros tipos de violações e perseguições. Segundo Luiz Fernando Godinho, porta-voz da agência da ONU para refugiados, a equipe brasileira ainda é pequena. “Ao contrário de uma operação de emergência ou de uma grande crise humanitária, em que atuam centenas de funcionários da Acnur, no Bra-

“A PERGUNTA QUE EU FAÇO SEMPRE É: COMO É QUE VOCÊ SE SENTIRIA SE AMANHÃ TIVESSE QUE FUGIR POR CAUSA DE UMA GUERRA? COMO VOCÊ GOSTARIA DE SER RECEBIDO?”

sil muito do trabalho é feito por meio de ONGs e instituições da sociedade civil”, explica. Em relação à contribuição que um cidadão brasileiro comum pode fazer para mitigar o problema,Luiz Fernando Godinho explica que o primeiro passo é fazer com que essas pessoas entendam o que é de fato um refugiado. Segundo ele, é muito importante que os cidadãos tenham clareza de que essas pessoas não estão aqui porque querem, para “roubar empregos” ou vagas em hospitais e escolas. Estão aqui porque foram forçadas a deixar seus países de origem. “A partir do momen-

Número de refugiados chega a 65 milhões

to em que a pessoa entende isso, ela

Atualmente há 65 milhões de pessoas deslocadas por causa

soa”, afirma.

de conflitos, perseguições ou outros motivos, no mundo

passa a ter uma visão mais esclarecida do que é o problema do refugiado e com isso passa a ter uma relação mais positiva e construtiva com aquela pesFeito isso, Godinho acredita que o

todo. Pela primeira vez esse número ultrapassou a barreira

segundo passo seria trabalhar pela

dos 60 milhões de pessoas. Vive-se hoje a maior crise huma-

causa. “Isso pode ser feito se volunta-

nitária desde a Segunda Guerra Mundial. Do total, mais de 21

riando para trabalhar nessas organiza-

milhões tiveram de deixar seus países, enquanto outros 40

ções de apoio ao refugiado ou por meio

milhões foram forçados a fugir de suas casas, mas continu-

de doações de dinheiro, comida, roupa,

am dentro das fronteiras de suas nações. O restante é com-

ou qualquer outro tipo de demanda”,

posto por solicitantes de refúgio.

diz o porta-voz da agência.

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Foto Alexandre Saint-Denis/Acnur

A sul-sudanesa Rose Nathike Lokonyen corre nos 800 metros pela equipe de refugiados; acima, mural pintado no Rio com rostos dos “atletas sem nação” |

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FOTO BENJAMIN LOYSEAU/ACNUR

GLÓRIA SEM OURO Pela primeira vez na história, Olimpíadas contam com uma equipe de refugiados deixou claro como o esporte e a geopolí-

inexpressiva esportivamente – o desem-

tica se misturam em eventos da nature-

penho sem nenhuma medalha conquis-

za e da magnitude dos Jogos Olímpicos:

tada confirmaria isso. A real importân-

»»»Rio de Janeiro, noite de sexta-

a décima quarta delegação a se apresen-

cia daquela delegação não estava em sua

-feira, 5 de agosto de 2016. Mais de 70

tar não ostentava a bandeira de nenhu-

competitividade, mas sim no valor sim-

mil pessoas lotavam o Maracanã para

ma nação. Isso porque era composta por

bólico de sua participação nos Jogos e

receber os atletas que disputariam os

atletas de várias nações. Esportistas que

na propagação da causa daqueles que se

Jogos Olímpicos. Como todos os anos,

representavam mais de 21 milhões de

encontram em situação de refúgio.

a Grécia, berço histórico da Olimpía-

pessoas que foram obrigadas a abando-

Os próprios esportistas tinham consci-

da, abre o desfile. O restante das dele-

nar seus países de origem, fugindo de

ência desse papel. “Não podemos com-

gações entra em ordem alfabética de

conflitos armados, perseguições reli-

parar nossas performances às dos atletas

acordo com a língua do país-sede –

giosas, políticas e violações dos direitos

de alto nível, mas vamos tentar o nosso

que, por sua vez, é o último a desfilar.

humanos.

melhor resultado. Ser um refugiado não

ANDRÉ DE SENA

Para a maioria, um desfile sem nenhu-

Mesmo tendo sido calorosamen-

significa que você não é um ser huma-

ma grande mudança diante do realiza-

te aplaudida durante o desfile, a Equi-

no como os outros, ainda que tenha-

do na última Olimpíada. Exceto uma, que

pe de Atletas Olímpicos Refugiados era

mos passado por momentos difíceis.

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A REAL IMPORTÂNCIA DAQUELA DELEGAÇÃO NÃO ESTAVA EM SUA COMPETITIVIDADE, MAS SIM NO VALOR SIMBÓLICO DE SUA PARTICIPAÇÃO NOS JOGOS

Podemos fazer o que os outros podem

dos outros três sul-sudaneses da equipe

fazer”, declarou a corredora Rose Nathi-

olímpica de refugiados é a própria Tegla.

ke Lokonyen, de 23 anos, em entrevista

A campeã Olímpica esteve, inclusive, no

concedida à Agência da ONU para Refu-

Rio liderando a comitiva de atletas.

giados (Acnur) às vésperas das OlimpíTorcida

adas do Rio de Janeiro. Rose fugiu com sua família da guerra

A maior parte do público que compa-

civil que assolava o Sudão quando tinha

receu aos torneios recebeu os refugia-

apenas 8 anos de idade. Conseguiu abri-

dos calorosamente. A torcida brasileira

go no campo de refugiados de Kakuma,

demonstrou um carinho especial e con-

no norte do Quênia, e lá permaneceu por

tagiou os atletas com seu apoio. Assim

vários anos. Após mais de uma década

aconteceu com o judoca congolês de 24

longe de casa, os conflitos no país não

anos Popole Misenga, que ganhou sua

cessaram, mesmo com a divisão entre

primeira luta empurrado pelos brasi-

Sudão e Sudão do Sul. A corredora ainda

leiros e em seu segundo embate resis-

sonha em pisar novamente em sua terra

tiu de forma surpreendente aos golpes

natal quando a guerra acabar.

do atual campeão mundial, o sul-core-

A sul-sudanesa teve a responsabili-

ano Gwak Don-han. Foi derrotado por

dade de carregar a bandeira do Comitê

ippon (um golpe considerado perfeito

Olímpico Internacional (COI) durante o

no judô) a cerca de apenas um minuto

desfile de abertura dos Jogos. Além dela,

de o cronômetro zerar.

outros nove atletas integravam a equipe

Em entrevista concedida após a com-

de refugiados. Foram ao todo cinco cor-

petição, Popole, que vive no Rio desde

redores do Sudão do Sul, dois nadado-

2013, lembrou que, antes de entrar no

res da Síria, dois judocas do Congo e um

tatame, pensou não ter nenhum torce-

maratonista da Etiópia.

dor a seu favor, e conta como reagiu aos

Dias antes da Olimpíada, o corredor

gritos dos brasileiros: “Fiquei emocio-

Yiech Pur Biel, de 21 anos, reforçava a

nado. Senti que tenho que vencer essa

mensagem passada por sua compatrio-

primeira luta”.

ta Rose à imprensa: “Milhões de pessoas,

O destaque que esses atletas tiveram

e também de refugiados, estarão olhan-

ao longo dos Jogos Olímpicos reforçou o

do para nós. E vamos mostrar que pode-

lado humanitário do evento. Tanto é que

mos mudar nossas vidas.”

Thomas Bach, presidente do COI, agra-

Quando tinha apenas 10 anos, Biel foi convocado para lutar na guerra civil sudanesa. A fim de evitar que o filho fosse obrigado a virar soldado, sua mãe partiu com ele para fora do país e achou abrigo também no norte do Quênia. A grande chance surgiu em 2015, quan-

No alto, o atleta sul-sudanês James Nyang Chiengjiek; acima, desfile da equipe de refugiados no encerramento das Olimpíadas do Rio | FOTOS BENJAMIN LOYSEAU/ACNUR

deceu a participação deles em seu discurso no encerramento: “Obrigado, caros atletas refugiados. Vocês nos inspiraram com seu talento e espírito humano. Vocês são símbolo de esperança para milhões de refugiados no mundo e terão um lugar nos nossos corações para sempre”.

do a Fundação Tegla Loroupe, que leva

Devido ao sucesso da iniciativa, é pos-

o nome da queniana campeã Olímpica

sível que nas próximas Olimpíadas haja

e mundial da maratona, realizou testes

uma nova equipe de refugiados repre-

de atletismo no campo de refugiados. A

sentando o COI. Eles não perseguem

dupla participou das provas e foi selecio-

apenas uma medalha. Correm, lutam

nada para receber o apoio da instituição.

e suam também para deixar para trás

Hoje, a treinadora de Rose, de Biel e

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todos os horrores por que passaram.

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n.2 // novembro de 2012

O rádio morreu? Longa vida ao rádio!

número 1 // julho de 2012

n.3 // junho de 2013

Não é nada pessoal: a (cada vez menor) privacidade na era da internet

Sem cochilar: a madrugada de SP

NÚMERO 10! Plural desde o seu primeiro número aposta em temas complexos. Nesses cinco anos, percorreu mundos tão distantes quanto os da privacidade na internet, do rádio, da madrugada paulistana, das manifestações de 2013, dos direitos humanos, da televisão, das religiões, do amor, das celebridades e, agora, dos refugiados. Em comum, a curiosidade de futuros jornalistas por conhecer – e narrar – grandes histórias.

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números 4, 5, 6 e 7 // de novembro de 2013 a junho de 2015

Crise de representação (4); direitos humanos (5); televisão no novo século (6); e religiões no Brasil

PLURAL EM NÚMEROS

157

alunos passaram pela redação-laboratório de 2012 até hoje.

480 páginas

foram publicadas pela Plural desde o seu primeiro número.

5

anos de idade a revista completa agora, no final de 2016. n.8 // dezembro de 2015

n.9 // junho de 2016

Amar, verbo intransitivo: o afeto no século 21

Cultura do olhar: o fascínio pelas celebridades

5 // NÚMERO 10 DEZEMBRO DE 2016 // ANO ALUNOS DO CURSO REVISTA-LABORATÓRIO DOS ESPM DA LISMO DE JORNA

VIDA DE REFUGIADO PARA TRÁS, IMIGRANTES APÓS DEIXAR O PASSADO CRACIA E PRECONCEITO ENFRENTAM BURO RECOMEÇO E SÍRIO CONTAM COMO CONGOLESA, COLOMBIANO FUGIR PARA O BRASIL IRAM DECID QUE E POR

número 10 // dezembro de 2016

Em busca de um novo lar: a crise de refugiados

ENTREVISTA CIA DA ONU PARA REPRESENTANTE DA AGÊN PRECEDENTES” ÇÃO É “SEM REFUGIADOS DIZ QUE SITUA

ISE SEM FRONTEIRAS

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ões de refugiados do soma mais de 65 milh eira vez na história, mun

iva de 5 ano s ediç ão com emo rat

» LEIA TODAS AS EDIÇÕES

“Hoje a Plural se tornou mais do que uma revista laboratorial: é parte da identidade do curso de jornalismo” Renato Essenfelder, editor da Plural

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PRIMEIRA EDIÇÃO Bruno Gregório, Cacá Junqueira, Diogo Miranda, Gabriel Garcia, Giuliana Tenuta, Natalia Picanço, Paula Saviolli, Pedro Corrales, Thais Carbonell.

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SEGUNDA EDIÇÃO Ana Beatriz Resende, Antonio Carlos Castro, Bárbara Souza, Clésio Oliveira, Ezio Consonni Jemma, Giuliana Tenuta,Mariana Benvenido, Paula Drummond, Paula Saviolli, Taís Cavalcante de Godói, Giovanna Mazzeo, Thobias Marchesi.

PRATA DA CASA Plural começou pequena, com nove alunos e um professor-editor, mas, ao longo dos últimos cinco anos, já teve equipes que chegaram a 38 repórteres. Ao todo, 157 estudantes já passaram pela revista-laboratório – contando os desta edição. Muitos já estão formados e lembram da experiência com carinho. Outros, recém-chegados ao curso, esperam sua oportunidade. Todos têm seu espaço, pois a revista é Plural.

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TERCEIRA EDIÇÃO Beatriz Barros, Beatriz Branco, Carolina Petená, Daniel Rybak, Daniella Gemignani, Daphne Ruivo, Diego de Almeida, Fernanda Labate, Isabella Giugno Neves, Isabella Chiamulera, Isabella Giordano, Julia Arbex, Lara Junqueira, Mariana Saad, Marina Almeida, Murillo Grant, Talitha Adde, Thiago Montero, Thobias Marchesi.

QUARTA EDIÇÃO Alisson de Moraes, Beatriz Ramires, Carolina Carvalho, Catharina Obeid, Dora Bessa Giglio, Douglas Clementino, Giovanna Lupo , Giovanna Hueb, Henrique Martorelli, Lara de Oliveira Santos, Lucila Oliveira, Luiz Fernando Auricchio, Mariana Tegon, Mariane Tambelini, Paula Lerrer, Pedro Fonseca, Renato Bonfim.

SÉTIMA EDIÇÃO Beatriz Medaglini, Bianca Gomes de Carvalho, Fernando Turri, Juliana Marques, Laura Stabile, Lucas Negreiros, Mariana Cavalcanti, Marina Cassiolato, Marina Guazzelli, Uly Campos.

» O jornalista Thobias Marchesi, da Plural 2, fala sobre a revista

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QUINTA EDIÇÃO Anita Efraim, Bianca Giacomazzi, Carla Fernandes, Cintia Azuma, Cláudia Costa, David Frare, Débora Brotto, Fernanda Botteghin, Gabriela Beraldo Rodriguez, Guilherme Machado, Isabela Souza, Ivan Trimigliozzi, Luísa de Sena Gouvêa Almeida, Mariana Stocco, Marina Ayub, Pricilla Kury Comazzetto.

OITAVA EDIÇÃO Ana Clara Maksoud, Antônia Cavalheiro, Camila Câmara, Carolina Cunha, Chimene Araújo, Fábio Martin, Fernando Turri, Gabriel Ficoni, Gabriel Wainer, Gustavo Torniero, Isabella Sarafyan, Júlia Feresin, Juliana Cândido, Juliana Marques, Laura Stabile, Letícia Teixeira, Luiz Felipe Simões, Luiza Lourenço, Lydia Aguiar, Marco Caruso, Murillo Parolini, Marina Bianchi, Marina Cassiolato, Nadjine Hochleitner, Otávio Cintra, Pedro D’EI, Priscila Cukierkorn, Rafael Lemos, Renata Mendes, Rodrigo Tucci, Shelse Alves, Tainá Valadares, Thaisa Giannakopoulos, Thayane Matos, Thiago Morteira, Thomas Aoki, Uly Campos, Yuri Bonet.

SEXTA EDIÇÃO Alexa Rossatti, Alexandre Siviero, Ana Beatriz Queiroz, Bárbara Caram, Bruna Queiroz, Giulia Dias, Giulia Laseri, Mariana Castro, Mariana Oliveira, Naíla Almeida.

NONA EDIÇÃO Alex Shim, Beatriz Consolin, Bianca Alves, Bianca Kachani, Carolina Brandileone, Charles Campos, Eduardo Pascoal, Felipe Capano, Fernanda Giachini, Gabriela Oliveira, Giovanna Lunardelli, Izabela Monaco, Julia Gianesi, Julia Leite, Kelly Cilento, Larissa Kazumi, Letícia Vilar, Luiza Capella, Mariana Yole, Paola Bonoldi, Rafael Simões, Rafaela Andrade, Renata Carlini, Silvio Junior, Taísa Luna, Úrsula Nobre.

» Confira os alunos que fizeram a Plural 10 na última página desta revista.

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50/51 A revista Plural completa cinco anos nesta edição, de número 10; alunos e ex-alunos do curso de Jornalismo da ESPM-SP lembram de sua participação nessa história carinho. “Foi bastante importante, principalANDRÉ DE SENA

mente na época, porque era a minha primeira experiência em redação”, diz Paula Saviolli,

»»»O fim da privacidade na era da inter-

23 anos. Na edição de número 1, publicada em

net, a rotina dos trabalhadores noturnos de

2012, ela fez uma reportagem sobre pessoas

São Paulo, as minorias religiosas, os justi-

viciadas em internet – e o texto, aliás, é até

ceiros, os direitos humanos. O amor. Esses

hoje um dos mais acessados do Portal de Jor-

são alguns dos temas tratados pela Plural,

nalismo do curso. No semestre seguinte, Paula

revista-laboratório do curso de jornalismo

quis repetir a experiência na revista e escre-

da ESPM-SP, ao longo de seus cinco anos de

veu a matéria de capa, que falava sobre a his-

existência.

tória e as transformações do rádio no Brasil

A primeira turma de alunos-repórteres já está até formada. Hoje, olham para trás com

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contemporâneo. Depois de seu trabalho na publicação, Paula

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Foto Renato Bonfim

Foto Isabela Souza

Foto Cadu Padula

À esquerda, Mariana Stocco (de costas) e Anita Efraim na Plural 5; no alto, segurando a câmera, Douglas Clementino na edição 4; acima, Naíla Almeida com Washington Olivetto na Plural 6

foi para a redação do maior jornal do Brasil, a

cas, do que a um jornalzinho laboratório mais

Folha de S.Paulo, onde escreveu para as edi-

precário, em que o trabalho é visto só como

torias Cotidiano e Ilustrada. “Já tinha vivido

obrigação curricular”, diz Renato Essenfelder,

um pouco disso na Plural, então sabia mais

professor do curso de jornalismo e editor da

ou menos o que esperar da rotina”, celebra.

publicação desde o seu primeiro número.

Giovanna Hueb, 22, também tirou lições de

Giovanna participou da quarta edição da

sua participação nestas páginas. “Percebi a

Plural, que travava das manifestações de rua

importância da apuração”, reforça. Na Plural,

de 2013. Ela inclusive foi, junto com seu cole-

a proposta é de que os alunos tenham tempo

ga Douglas Clementino, 26, ao protesto do

para apurar e escrever reportagens mais apro-

dia 7 de setembro daquele ano. Foi uma das

fundadas. Há, portanto, um cuidado especial

edições mais “quentes” da revista até hoje,

com a pesquisa de informações. “Quando os

conforme lembram os participantes. Os dois

ex-alunos fazem essa referência à revista fico

acompanharam a manifestação para enten-

feliz, pois sei que estamos no caminho certo.

der o fenômeno de modo geral e, mais espe-

Nossa proposta sempre foi a de fazer uma

cificamente, travar contato com os chamados

publicação que se assemelhasse mais a um veí-

black blocs, avessos a entrevistas. “Eles esta-

culo profissional, digno de ser levado às ban-

vam muito fechados, não tinham um líder que falasse em seu nome e tinham

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NA PLURAL OS ALUNOS TÊM TEMPO PARA PESQUISAR E ESCREVER REPORTAGENS APROFUNDADAS, COM CUIDADO ESPECIAL COM A APURAÇÃO E O TEXTO uma matéria extensa, foi importante manter

“Conseguimos arranjar informações jogando

uma linha de raciocínio coesa e que prendes-

conversa fora e puxando conversa.”

se a atenção do leitor. Porém, para ele, o maior

52/53

medo que alguém tomasse a frente para falar pelo grupo”, lembra Giovanna.

Douglas também sentiu a dificuldade que é

desafio não dizia respeito às técnicas de escri-

se relacionar com fontes como os black blocs

ta, mas, sim, ao lado humano das histórias.

– o que também foi, sem dúvida, um valio-

“Mais do que a parte técnica, foi importan-

so aprendizado. “Fiquei meio decepcionado

te romper nossos próprios preconceitos para

quando falei com os moleques, pois eles têm

conversar com aquelas pessoas sem cair em

preconceito contra jornalistas.”

estereótipos”, ressalta.

Naquela ocasião, a manifestação terminou

A Plural número 8 inclusive rendeu elo-

em violência. “Perto da Sé começaram a ser

gios especiais da coordenadora do curso de

estouradas muitas bombas e aconteceram mui-

jornalismo, Maria Elisabete Antonioli. “Foi

tos assaltos”, conta Giovanna. Douglas regis-

um momento propício para a gente discutir

trou a confusão com uma câmera fotográfica.

preconceitos”, lembra. Ela é leitora assídua

A manifestação foi coberta na ocasião por

da revista e reconhece a qualidade presente

quase uma dezena de alunos da Plural, que

em todas as nove edições publicadas até aqui.

também aprenderam a importância de fazer

“Gosto de todas. Gosto do tratamento dado

um planejamento prévio, o valor de ver ao vivo

aos temas.”

a história se desenrolar e como preocupações com a própria segurança fazem parte do dia a

Gestação

dia dos jornalistas.

Quem deu o primeiro passo na idealização da

Douglas diz ter aprendido muito com a

Plural foi, justamente, Maria Elisabete, que

experiência: “O legal foi sair das paredes da

pensou numa publicação impressa desde o

faculdade, ter lições que você não aprende

planejamento do curso. Ela então apresen-

na sala da aula”. Para Essenfelder, esse é um

tou a proposta ao professor Essenfelder. “Eu

ponto fundamental na experiência dos alunos

precisava de uma pessoa para ser responsável

que fazem a Plural. “Procuramos fazer todas

por essa revista. Ai eu chamei o Renato, por-

as entrevistas ao vivo. É muito importante que

que achava e continuo achando que ele tem as

o aluno conheça as suas fontes cara a cara,

melhores condições para fazer esse trabalho.”

bata perna pela cidade, converse com as pes-

Na etapa seguinte, Essenfelder conta que

soas, amplie os seus horizontes. Uma revis-

procurou um parceiro seu dos tempos de

ta laboratório é o espaço perfeito para isso.”

Folha de S.Paulo (onde o professor trabalhou por sete anos), o experiente designer Márcio

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Amor e preconceito

Freitas, que já tinha mais de uma dúzia de prê-

Mais recentemente, para a oitava edição, que

mios nacionais e internacionais no currícu-

tratava do amor na pós-modernidade, Fer-

lo. O designer foi recebido pela coordenadora

nando Turri, 20, conversou pessoalmente

do curso. “Ele veio aqui, discutiu muito com

com dois casais – e diz que a experiência o

a gente, conheceu a ESPM. Então, quando ele

tocou profundamente. “Um deles era forma-

materializou a ideia, ela tinha tudo a ver com o

do por um cego e por uma deficiente motora;

que tínhamos pensado. Foi um trabalho muito

o outro, por um tetraplégico e uma não defi-

cuidadoso”, lembra a professora Bete, como é

ciente”, lembra.

conhecida no curso.

O aluno, que hoje está no sexto semestre do

Freitas afirma que o projeto gráfico da revis-

curso, conta que essa matéria buscava rom-

ta busca a valorização dos conceitos funda-

per estereótipos. “Quisemos desmistificar esse

mentais do jornalismo, em sintonia com a

lance de que pessoas deficientes não podem

“cara” da ESPM. “A revista tinha que ser jovial,

se relacionar”, explica. Segundo ele, por ser

com um espírito criativo, mas sem desprezar

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Foto Natalia Picanço

Foto Ana Beatriz Resende

“Procuramos fazer todas as entrevistas ao vivo. É muito importante que o aluno conheça as suas fontes cara a cara, bata perna pela cidade, converse com as pessoas, amplie os seus horizontes. Uma revista laboratório é o espaço perfeito para isso” Renato Essenfelder, professor de Jornalismo e editor da Plural

“Muitos profissionais, inclusive de fora da ESPM, que leem a revista elogiam a sua qualidade” Foto Daphne Ruivo

Maria Elisabete Antonioli, coordenadora do curso de Jornalismo da ESPM-SP

De cima para baixo: Gabriel Garcia e Pedro Corrales na Plural 1; Paula Drummond no estúdio da Band News FM para a edição 2; Daniel Rybak clica a Paulista de madrugada para o número 3

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Foto Fernando Turri

Foto Nadjine Hochleitner

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Foto Beatriz Direito

À esquerda, Uly Campos posa para a edição 7; à direita, no alto, Camila Câmara na Plural 8 e a oficina vespertina da Plural 9

a legibilidade clara e objetiva que é fundamental para a comunicação. Querí-

cada, partilha da opinião de Essenfelder: “A

amos transmitir também conceitos que estão

Plural é uma oficina que possibilita para o

presentes na ESPM”, como inovação, criativi-

aluno a construção de um portfólio e de um

dade e pluralidade, explica.

diferencial na hora de ele buscar a vaga e,

No terceiro semestre de existência do curso

especialmente, na hora de atuar no mercado”.

de jornalismo, após as diretrizes da revista

Os próprios alunos reconhecem o valor da

serem definidas e colocadas em prática pelos

Plural para a sua formação como jornalistas e

alunos-repórteres na produção das maté-

o diferencial que ela proporciona quando vão

rias, foi publicada a primeira edição da Plu-

ao mercado. A integrante da primeira equipe

ral. “Muitos profissionais, inclusive de fora da

de alunos-repórteres, Cacá Junqueira, 22, con-

ESPM, que leem a revista elogiam a sua quali-

firma: “Eu acho que é uma experiência super-

dade”, comemora Maria Elisabete. Qualidade

válida para os alunos, porque realmente é um

que é fruto de um cuidadoso processo, desde

portfólio importante”.

a reunião de pauta até o dia do fechamento.

Para o futuro, as novidades, segundo Essen-

“A Plural conquistou nesses cinco anos um

felder, devem vir do meio digital. “Esperem ver

padrão de qualidade muito alto, o que se per-

mais conteúdos multimídia e também equipes

cebe também pela qualidade de seus egres-

mais interdisciplinares, com colaborações de

sos”, ressalta Essenfelder.

outras entidades e de alunos de outras forma-

Daniel Ladeira, coordenador do CEJor (Cen-

ções na ESPM”, conta. As experimentações,

tro Experimental de Jornalismo), núcleo de

como a reportagem em quadrinhos publica-

jornalismo aplicado em que a revista está alo-

da na edição sobre direitos humanos, também devem continuar. A revista conta ainda com um importante espaço no Portal de Jornalismo da ESPM, onde suas matérias registram, inclusive, índices de

OS ALUNOS RECONHECEM O DIFERENCIAL QUE A PLURAL REPRESENTA NO MERCADO DE TRABALHO

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audiência muito superiores à média de notícias mais curtas, do dia a dia. “É uma prova de que há espaço sim para jornalismo de profundidade e para textos mais longos e reflexivos, seja no papel, seja na internet”, conclui Essenfelder.

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FOTO NATÁLIA OSIS/NIS-ESPM

DEZEMBRO DE 2016 // ANO 5 // NÚMERO 10

1 Renato Essenfelder (editor) 2 André de Sena 3 Juliana Aguiar 4 Rachel Schmalb 5 Gabriella Kirsten 6 Júlia Sicoli 7 Bianca Alves 8 Julia Gianesi 9 Letícia Vilar 10 Victória Faragó 11 Bianca Kachani 12 Mariana Kotait

COLABORADORES DESTA EDIÇÃO

1

2

3

4

7

5

8

6 12

e Nathália Matos

10

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9

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