Plural #12

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DEZEMBRO DE 2017 // ANO 6 // NÚMERO 12

CULTURA FESTIVAIS DE MPB, QUE LANÇARAM NOMES COMO O DE ELIS REGINA, MUDARAM A CARA DA MÚSICA

REVISTA-LABORATÓRIO DOS ALUNOS DO CURSO DE JORNALISMO DA ESPM

MOVIMENTO ESTUDANTIL TANTO NA FRANÇA COMO NO BRASIL, MARCHAS DE ESTUDANTES MUDARAM OS RUMOS DA HISTÓRIA

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Foto: Reprodução de cartaz elaborado pelo LabFor na gráfica Carimbo Letterpress

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ENTREVISTA JOSÉ HAMILTON RIBEIRO, O “REPÓRTER DO SÉCULO”, COMPARA O JORNALISMO DE HOJE AO DO PASSADO

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REVISTA-LABORATÓRIO DO CURSO DE JORNALISMO DA ESPM-SP Nº12 - 2º SEMESTRE DE 2017

Presidente Dalton Pastore Jr. Vice-presidente Acadêmico Alexandre Gracioso Vice-presidente AdministrativoFinanceira Elisabeth Dau Corrêa Diretor de Graduação-SP Luiz Fernando Garcia Coordenadora do curso de Jornalismo-SP Maria Elisabete Antonioli

EDITORIAL

1968: UM ANO PARA FICAR NA HISTÓRIA Revisitar um dos anos mais importantes – e polêmicos – do século 20, tendo à frente uma turma de jovens alunos-repórteres que nem em sonho viveram aquela data, foi o desafio desta edição da Plural. Em 2018, o icôni-

Revista Plural revistaplural-sp@espm.br Editor - Revista Prof. Renato Essenfelder Editor - LabFor Prof. André Deak Revisão Prof. Antonio da Rocha Filho Profa. Maria Elisabete Antonioli

co ano de 1968 fará 50 anos. Farão 50 anos, portanto, a tenebrosa promulgação do AI-5 no Brasil, e, com ela, o acirramento da ditadura militar; o assassinato do líder do movimento negro Martin Luther King; a passeata dos cem mil, no Rio de Janeiro, contra a ditadura; a violenta “Batalha da Maria Antônia”, que opôs estudantes da USP e do Mackenzie; o assassinato de Robert Kennedy na Califórnia; a morte do cosmonauta soviético Yuri Gagarin, primeiro homem a ir ao espaço, em um acidente aéreo; o fim da Primavera de Praga, com a invasão de tropas russas à então Tchecoslováquia. No Vietnã, foi também o ano da Ofensiva Tet, em que a guerrilha vietnamita invadiu a embaixada dos Estados Unidos em Saigon, elevando o tom do sangrento conflito iniciado em 1955.

Reportagem - Revista Plural Ana Teresa Guida Bruno Reis Catarina Bruggemann Fernanda Baddini Gabriela Soares Marcella Stewers Stephanie Frasson Equipe LabFor Franciellen Rosa Luana Matsuda Lucas de Abreu Palma Luíza Colloca Nathalia Oliva Peter Frontini Clara de Castro CeJor, Centro Experimental de Jornalismo da ESPM-SP agenciadejornalismo-sp@espm.br Rua Dr. Álvaro Alvim, 123, Vila Mariana São Paulo, SP Tel. (11) 5085-6713

1968 foi um ano violento. Mas em 2018 farão também 50 anos o histórico e libertário Maio de 1968, que mudou a França e inspirou o mundo; o início do movimento Tropicália, na música brasileira; o lançamento do icônico filme “2001, Uma Odisséia no Espaço”, que fez escola no cinema; o primeiro transplante de coração realizado no Brasil; a eleição da brasileira Martha Vasconcellos à inédita coroa de Miss Universo; lutas e conquistas nos direitos das mulheres e dos negros; a explosão dos festivais de música na TV brasileira. 1968 foi um ano inspirador. Por essas e outras, é impossível apresentar uma resposta simples para a questão complexa que move esta edição: qual foi o legado de 1968, 50 anos depois? Para mergulhar nessa discussão, esta Plural mobilizou, além de seus repórteres, integrantes do Laboratório de Formatos Híbridos (LabFor) da ESPM, que produziram uma linha do tempo interativa (veja à pág. 26), vídeos de realidade aumentada e ainda um vídeo em 360 graus no Memorial da Resistência de São Paulo. Tivemos também o apoio da oficina de podcast do nosso Centro Experimental de Jornalismo, onde alunos gravaram a série “Mulheres que Resistiram: Memórias da Ditadura”, com entre-

Projeto gráfico Márcio Freitas A fonte Arauto, utilizada nesta publicação, foi gentilmente cedida pelo tipógrafo Fernando Caro.

vistas com sobreviventes torturadas no período. Papel, web, rádio. Sob várias angulações e perspectivas, o ano de 1968 (re)aparece nas próximas páginas de forma multifacetada e complexa. Impossível resumir o turbilhão de acontecimentos sob uma única etiqueta. Mas uma conclusão, contudo, é unânime (para o bem ou para o mal): 1968 foi um ano histórico. | RENATO ESSENFELDER, EDITOR DA PLURAL

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ÍNDICE

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página 14

Foto: Agência Brasil

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O MELHOR E O PIOR DE 1968 Guerra do Vietnã, ditadura militar, Maio de 68, AI-5, assassinato de Martin Luther King e de Robert Kennedy, Primavera de Praga, Passeata dos Cem Mil, efervescência cultural e liberdade feminina. Esses foram apenas alguns dos acontecimentos importantes que ajudaram a compor o histórico ano de 1968. A interpretação do legado do período é polêmica. De um lado há os que enxergam a época sob uma perspectiva otimista. Do outro, os que consideram necessária a desconstrução dessa herança.

página 10 NOVOS HIPPIES Movimento da contracultura, que eclodiu nos anos 1960, ainda inspira os jovens com ideias como a de desconstruir a ordem instituída, pregar a liberdade, ir contra o capitalismo e promover a paz e o amor.

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página 26 LINHA DO TEMPO Acompanhe, na versão impressa e na versão digital, uma linha do tempo com os fatos mais marcantes do ano de 1968, que entrou para a história do século 20 como um de seus períodos mais ricos – e turbulentos.

página 28 PERFIL: O PASQUIM Formado por time de craques no humor e no jornalismo, o Pasquim marcou história com intelectuais do quilate de Ziraldo, Helfil, Paulo Francis, Millôr Fernandes, Ivan Lessa, Luís Carlos Maciel, entre outros.

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página 30

Foto: Creative Commons

Foto: Renato Essenfelder

página 38

página 6

Foto: George Garrigues/Creative Commons

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AULA DE CIDADANIA

FESTIVAIS

ENTREVISTA

Importante opositor à ditadura militar, o movimento estudantil brasileiro fez história nos anos 1960, com protestos violentamente reprimidos; enquanto isso, na França, o Maio de 1968 marcou várias gerações.

A efervescência da cena cultural brasileira, mesmo sob censura, inspirou o estrondoso sucesso dos festivais de MPB; inaugurados pela TV Excelsior em 1965, eles mudaram a cara da Música Popular Brasileira.

Considerado o “repórter do século”, José Hamilton Ribeiro, ganhador de diversos prêmios nacionais e internacionais, relembra suas matérias mais importantes e fala da importância da formação do jornalista.

página 36 REVOLUÇÃO NO CINEMA Filmes produzidos no final dos anos 1960 refletem o espírito indomável da época, com mudanças tanto no plano estético quando nos temas levados às telonas. No Brasil, é a época de clássicos como “Terra em Transe”

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página 46 BASTIDORES Ao fazer um balanço do ano de 1968, a equipe da revista Plural se deparou com incríveis histórias de dor e de perseverança; entre elas, a de Rosemeire Nogueira, presa e torturada durante a ditadura militar.

página 48 ARTIGO O coordenador da graduação em Publicidade e Propaganda da ESPM, professor Paulo Roberto Ferreira da Cunha, escreve sobre a propaganda brasileira na década de 1960, marcada por transformações importantes.

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REVOLTA ESTUDANTIL Forte opositor à ditadura militar, o movimento estudantil brasileiro fez história nos anos 1960 com reivindicações e protestos que acabaram em prisões e até em mortes

formação tecnológica, social e políti-

Hoje orientador pedagógico na rede

ca. Era o auge da Guerra Fria e havia a

municipal de ensino de Campinas, pro-

bipolarização política, com dois mode-

fessor de história e pesquisador da Uni-

»»»O ano de 1968 foi marcado por

los antagonistas. “Devido ao desenvolvi-

camp, Moraes diz que é interessante

uma série de protestos estudantis ao

mento tecnológico acelerado, uma série

pensar quem eram esses estudantes e

redor do mundo, com jovens estudan-

de paradigmas são quebrados. Há um

de que maneira o movimento estudantil

tes se revoltando contra a repressão

maior acesso à informação. Os meios de

se articulou. O ensino superior no Brasil

e o autoritarismo de seus governos.

comunicação se tornam mais ágeis. Uma

começa ainda no final da época colonial

O Brasil não foi exceção.

nova cultura industrial é criada”, resu-

e era exclusivo para os filhos da oligar-

LUCAS DE ABREU

Para entender o movimento é necessá-

me Robson Alexandre de Moraes, que

quia. As escolas para a massa de filhos

rio conhecer o contexto não só do Brasil

foi presidente da União Municipal dos

de operários e de grupos mais popula-

como do mundo à época. Na passagem

Estudantes Secundaristas de São Paulo

res são recentes, surgiram só no século

da década de 1950 para 1960, o mundo

(UMES-SP) nos anos 1980, quando a enti-

19. “Estudante não é classe social, é con-

se encontrava em um processo de trans-

dade voltou à legalidade.

dição. Acontece que muitas vezes essas

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UMA DAS PRIMEIRAS MEDIDAS TOMADAS PELA DITADURA FOI A DE FECHAR OS CENTROS ACADÊMICOS E ENTIDADES ESTUDANTIS DEVIDO À SUA OPOSIÇÃO AO REGIME

de mobilização em oposição ao regime. No dia primeiro de abril de 1964, houve um incêndio na sede da UNE, na Barra, no Rio de Janeiro, que posteriormente foi fechada. A União Nacional dos Estudantes era uma forte aliada do anterior governo de João Goulart e fazia oposição aos militares. Nesse momento, professores foram

Imagens de época, recortes de jornal e arquivo policial mostram protestos estudantis e a violenta repressão sofrida pelos estudantes contrários ao regime militar no congresso de Ibiúna | FOTOS: REPRODUÇÃO DE INTERNET

cassados, acusados de conspirarem com comunistas, e militares foram introduzidos dentro dos colégios e universidades para monitorar as atividades dos estudantes. Entretanto, mesmo de maneira ilegal, a UNE continuaria como símbolo do movimento estudantil brasileiro. Entre 1964 e 1968, a atividade estudantil no Brasil foi intensa, mas clandestina, já que os centros acadêmicos oficiais estavam sob o controle dos militares. O ano de 1966 foi marcado por tumultos. O episódio mais notório foi o chamado “massacre da Praia Vermelha”, no Rio de Janeiro, onde estudantes cariocas protestavam contra o pagamento de

lutas pela aquisição ou manutenção de

taxas à universidade e sofreram forte

direitos acabam tendo um recorte de

repressão policial. Após violento confli-

classes, principalmente com os grupos

to, o mês seguinte ficou conhecido como

mais populares”, pondera ele.

“Setembrada”, e foi marcado por manifestações espontâneas em todo o país.

Estudantes contra a ditadura Segundo Moraes, com o golpe em 1964,

Reforma

tudo mudou. “Houve uma grande que-

Durante toda a década de 1960, os estu-

bra de direitos e condições, e é claro

dantes lutaram por uma reforma univer-

que a estudantada foi se mobilizar for-

sitária. “Uma das grandes bandeiras que

temente.” De acordo com o pesquisador,

os estudantes tinham naquela época era

a mobilização imediata de denúncia e de

a mudança do sistema de vestibular, o

resistência ao golpe não foi só com par-

acesso à universidade para todos e o fim

tidos políticos e sindicatos. “Logo após

do que se chamava de funil educacional”,

os miliares assumirem, muitos estudan-

conta Moraes.

tes ocupam a sede da União Nacional dos Estudantes [UNE] no Rio para fazer de lá um grande bastião da resistência”, diz. Como resposta, uma das primeiras medidas tomadas pela ditadura foi a de fechar os centros acadêmicos e entidades estudantis devido à sua capacidade

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“[Com o golpe] houve uma grande quebra de direitos e condições, e é claro que a estudantada foi se mobilizar fortemente” Robson de Moraes, ex-presidente da UMES

Neste contexto, uma medida adotada pelo regime militar foi o acordo MEC-USAID que tinha o intuito de reformar o sistema educacional brasileiro, introduzindo o sistema norte-americano de ensino. Entretanto, a parceria entre o Ministério da Educação e a United Sta-

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tes Agency for International Development não foi bem vista pelos estudantes. Eles entenderam essa proposta como uma mudança que representava o grau de influência dos Estados Unidos sobre o Brasil. Como resposta, nas universi-

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dades, os estudantes organizaram uma aliança de oposição à mudança. Mesmo com protestos, diversos pontos da reforma foram implantados. De acordo com Luis Groppo, sociólogo e professor de ciências sociais pela Universidade Federal de Alfenas-MG, era inegável a influência das revoluções do terceiro mundo e de seus respectivos líderes, como Che Guevara e Mao Tse-Tung, dentro dos movimentos estudantis. Havia jovens que participavam das organizações de estudantes e, ao mesmo tempo, eram militantes do Partido Comunista Brasileiro, o PCB. Porém, a partir de um momento, esses jovens estudantes questionam a esquerda tradicional e acabam se afastando do partido. “Eles se aproximam de ideologias de esquerda que pregavam a ideia de revolução imediata, influenciados pelas revoluções e pela política operária”, formava-se assim o que se chamaria de Nova Esquerda. A morte de Edson Luís O momento que marcou a radicalização política no Brasil durante os primeiros anos de ditadura foi a morte do estu-

O jovem não era líder de movimento

dante secundarista Edson Luís no Rio de

algum, era apenas mais um estudante

Janeiro, no dia 28 de março de 1968. O

adepto às reivindicações. Para Luis Grop-

jovem, que saiu de Belém do Pará e che-

po, a morte do estudante desmascarou a

gou à cidade para tentar vaga na Facul-

face sombria do regime civil-militar bra-

dade do Rio de Janeiro, frequentava um

te, Edson foi baleado no peito e morto

“[A Passeata dos Cem Mil] foi o grande momento da mobilização estudantil antes que o regime ficasse mais violento e autoritário”

pela polícia.

Robson de Moraes

restaurante estudantil popular chamado Calabouço, um ponto de encontro entre os estudantes. Os militares perceberam e decidiram fechá-lo. Em uma das manifestações que defendia o restauran-

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sileiro. “A ditadura completou seus primeiros quatro anos matando um estudante, e isso desencadeou uma série de consequências”, conta. De acordo com o professor da Unifal-MG, após a morte do secundarista aconteceram 26 grandes passeatas em 15 capitais, o que demonstrou o desconten-

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foi um conflito entre estudantes da Universidade Presbiteriana Mackenzie e da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. A rua, localizada no centro de São Paulo, abrigava os prédios das duas universidades e, durante a ditadura, o convívio entre os estudantes das diferentes universidades era tenso. De um lado, o Mackenzie, marcado por um posicionamento mais à direita, e, de outro, a USP, conhecida pela militância de esquerda. Estudavam no Mackenzie membros de grupos paramilitares, como o Comando de Caça aos Comunistas, ator central no conflito de 2 de outubro de 1968. “A intenção dos integrantes do CCC do Mackenzie era ocupar e fechar a unidade da USP e acabar com o movimento estudantil no centro de São Paulo”, lembra o professor de história Robson de Moraes. Quando a polícia chegou ao local, agiu de maneira violenta, agredindo muitos estudantes, a maioria uspianos. Como resultado, os cursos de Filosofia, Ciências Sociais, Psicologia e Letras foram transferidos para a Cidade Universitária da USP, no Butantã. Ainda em 1968, em outubro, aconteceu o Congresso de Ibiúna, que mobilizou cerca de mil estudantes para a pequena

tamento da população com a ditadura. A maior manifestação ocorreu no dia 26 de junho, conhecida como a Passeata dos Cem Mil, e conseguiu reunir diver-

Sala de aula de universidade francesa pichada durante o Maio de de 1968 em Paris FOTO: GEORGE GARRIGUES/CREATIVE COMMONS

cidade do interior de São Paulo. Embora o encontro clandestino entre líderes estudantis fosse para discutir o futuro do movimento frente à ditadura, o Congresso de Ibiúna significou o ponto final de uma importante fase do movimento estudantil brasileiro.

sas camadas da sociedade brasileira.

“O que deu errado foi que chamou as

“Foi, sem dúvidas, o grande momento

atenções das autoridades por conta de

da mobilização estudantil antes que o

um grande número de pessoas em um

regime ficasse cada vez mais violento e

lugar quase no meio do mato”, disse.

autoritário”, diz Moraes.

Todos os líderes estudantis e grande parte dos estudantes foram identifica-

Batalha da Maria Antônia

dos, fichados e presos. Só em 1977, quase

A Guerra ou Batalha da Maria Antônia

dez anos depois, voltaria a ser discutido

aconteceu no dia 2 de outubro de 1968 e

o movimento estudantil. n

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Montagem de imagens de apresentação de Janis Joplin na Tv americana

NOVOS HIPPIES Movimento da contracultura, que eclodiu nos anos 1960, inspira até hoje jovens do mundo inteiro

estados de consciência), pinturas psicodélicas e pensamento ecológico. Apesar de surgir em um contexto particular, esse ideário deixou heranças até hoje perceptíveis. “Eu acho que não há mais um grande movimento como houve em 1960, mas acredito que existam pequenas agitações que carregam ideais daquele período”, diz a pesquisado-

GABRIELA SOARES STEPHANIE FRASSON

»»» Desconstruir a ordem, ousar, tra-

iniciativa social formada predominan-

ra Caroline Thibes, que analisou em sua

temente por jovens que tinham como

dissertação de mestrado o legado dei-

proposta se opor e questionar o padrão

xado pelo lendário festival de música de

sociocultural do período.

Woodstock, celebrado em 1969.

zer à tona discussões a respeito de

A contracultura foi uma ruptura com

A geração da contracultura assumiu

liberdade, ir contra o padrão capitalis-

os modelos instituídos pela sociedade

uma postura crítica ativa. “O movimento

ta predominante nos Estados Unidos e

da época. Tratou-se de um período no

trouxe um debate ecológico e uma refle-

pregar como lema a paz e o amor. Isso

qual se passou a explorar novas expe-

xão sobre o consumismo exacerbado”,

tudo em meio a um cenário conturba-

riências, novos estados de consciência,

denota a designer de moda Carla Pereira.

do pela Guerra Fria. Os movimentos

trabalhos artesanais, transportes alter-

Ela também acredita que a contracultura

de contracultura, ou movimentos hip-

nativos, liberdade sexual, uso de enteó-

rompeu paradigmas, principalmente no

pies, surgem em 1960 a partir de uma

genos (substâncias usadas para alterar

universo da moda, pois passou a explo-

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Na página ao lado, imagens de Janis Joplin, que tocou no mítico festival de Woodstock em 1969; abaixo, músicos da banda Guaribas, que mantêm os ideais hippies e evitam uso de computadores nas suas composições | FOTO STEPHANIE FRASSON

rar o encontro entre Oriente e Ocidente

já adotam os padrões dominantes.

ideologia passaram a usar roupas unis-

por meio de combinações tidas até então

A ideologia hippie de liberdade se

sex e a adotar cabelos longos como forma

como excêntricas. “ A moda foi um meio

manifesta em vários comportamentos

de manifestação e trouxe uma varieda-

dos neohippies de hoje. Um deles é o

de de estilos”, completa.

naturismo, vertente que explora o nudis-

Música

mo de forma cotidiana e sem apelo sexu-

E não foi só no naturismo que deixaram

Hippies do século 21

al. Pedro Ribeiro é naturista há mais de

sua marca. Características hippies per-

Segundo o antropólogo Eduardo Benzat-

20 anos e ex-presidente da Associação

manecem em hábitos e na forma como

ti, professor da ESPM, não há mais um

Naturista da Praia do Abricó (RJ).

se produz cultura. Na música, os refle-

de protesto ao padrão da época.

“movimento hippie” claro hoje, mas são

Ribeiro explica que é muito interes-

xos da contracultura se manifestam na

notáveis os reflexos daquela onda. “Mui-

sante o modo como as pessoas do local se

oposição à grande indústria. “O próprio

tos novos hippies vivem em comunida-

comportam. “Famílias inteiras vão até lá

movimento tropicalista foi uma das for-

de e ainda utilizam o trabalho manual

e interagem normalmente, idosos, adul-

mas do movimento contracultural che-

como fonte de renda, porém seus filhos

tos e crianças aproveitam o espaço sem

gar no Brasil. Essa ideia de você produzir

estudam em colégios particulares”, diz.

qualquer constrangimento.” Ele com-

fora das grandes gravadoras seria impos-

Nesse sentido, esse movimento ainda

plementa falando a respeito da liberda-

sível antes”, explica Benzatti.

busca fugir do padrão sociocultural, des-

de que era incentivada naquele período,

prezando o capitalismo, negando tra-

principalmente a liberdade da mulher.

O compositor e filósofo Samuel Braga concorda com o antropólogo e diz que

balhos mais massificados e mantendo

Na década de 1960, os movimentos de

a tropicália representa a arte pela arte,

a característica do trabalho artesanal

contracultura defenderam fortemente a

conceito defendido pelo movimento hip-

como fonte de renda. Porém, seus filhos

igualdade de gênero, e os adeptos a essa

pie. Braga também explica que essa gera-

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ção abriu caminho para que as demais

local de resistência. “Às vezes a gente

explorassem ao máximo suas particula-

vê que essa cidade transformou os cida-

ridades. Isto é, antes o modo de produ-

dãos em pessoas apressadas, frias, irri-

zir conteúdo era quadrado e dominado

tadas, nervosas, preocupadas, insegu-

pelas grandes indústrias, agora há mais

ras.” Por isso, a criação da casa era mais

liberdade de criação e certa independên-

que necessária.

cia. “A importância primordial, não só no

No começo, os fundadores tiveram

cenário musical, foi ter como mote abo-

suas dificuldades. “A gente não sabia

lir conceitos arraigados em nossa cultu-

como ia ser, como a gente ia dar conta,

ra há séculos”, explica.

nem imaginava que ia chegar a ser como

A banda alternativa Guaribas é her-

é hoje, que está superestruturada e reco-

deira do movimento hippie. Segundo o

nhecida. É fruto de muita devoção: nin-

grupo, a intenção é “manter a música o

guém tinha nenhuma intenção comer-

mais orgânica possível”. Ou seja, evitar

cial com a casa no começo, não ganhava

computadores na composição.

nem um real, era todo mundo voluntário.

O grupo também se identifica com o

A gente investia o nosso tempo e tam-

movimento hippie por fugir do meio tra-

bém dinheiro para estar aqui, para fazer

dicional de produção capitalista. Théo

essa casa acontecer”, revela.

Silveira, que é vocalista e baterista da banda, explica que eles acreditam ser

Histórico

importante manter a produção longe

Para entender a Jaya, é preciso entender

de gravadoras, para criar sem interfe-

um pouco mais a história da contracul-

rências. Todos os integrantes acreditam

tura. Após o boom de Woodstock, com

que o mais importante é explorar novas

tanta gente aderindo a esse novo pen-

formas musicais e não necessariamente

samento, sentiu-se a necessidade de

ganhar dinheiro e tocar nas rádios.

promover novos encontros para debater aquele modo de vida. Assim foi cria-

Convivência

do o Rainbow Gathering. “Uns brasilei-

No coração da Vila Madalena, um oásis

ros conheceram e trouxeram pra cá esse

em meio ao concreto. Com rede, árvo-

encontro, mas de uma maneira diferen-

res frutíferas, práticas espirituais e

ciada. Era um encontro pra fortalecer

até mesmo um sistema de captação de

quem queria se instalar na terra, montar

água das chuvas, a Casa Jaya condensa na capital paulista todo o legado que o movimento hippie deixou. Caio Ramos, ou Céu Azul, como gosta de ser chamado, é um dos fundadores do local. Ele explica: “Acho que essa casa é

uma comunidade rural, criar uma comu-

Detalhes da Casa Jaya, na Vila Madalena, que atualiza princípios da contracultura dos anos 1960 e busca aplicá-los à resolução de problemas do mundo atual | FOTOS STEPHANIE FRASSON

nidade alternativa. E eles chamaram de ENCA, Encontro Nacional das Comunidades Alternativas”, completa Céu Azul. Hoje o evento mais importante do movimento alternativo no Brasil, o ENCA

fruto de tudo o que foi deixado para a

foi um impulso para a criação da Casa

gente, dos nossos pais, dos nossos avós,

Jaya: “Eu conheci esse encontro em 2006

que criaram esse movimento. Não só os

e mudou muito a minha vida, completa-

hippies, todos os movimentos de con-

mente. É como se eu estivesse procuran-

tracultura, de libertação. E a gente com

do isso a vida inteira e nem sabia assim,

certeza se inspira mesmo nesses princí-

dessa família, sabe?”, relata Céu Azul.

pios, que não mudaram muito, que são de paz e amor”. Para ele, o espaço é um verdadeiro

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“Durante esse encontro a gente busca experimentar viver da maneira que a gente acha que pode viver, diferente de

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O ALTERNATIVO HOJE NÃO QUER FICAR À MARGEM, ELE BUSCA SER UMA SOLUÇÃO PARA PROBLEMAS ATUAIS E BUSCA COMBATER A CULTURA DO CONSUMISMO

A fachada da Casa Jaya, inaugurada em 2008

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| FOTOS STEPHANIE FRASSON

como estão impondo para a gente. No

englobar do que para separar. Está mais

ENCA tudo é compartilhado, tudo é cola-

para absorver diversos movimentos.

borativo, voluntário.”

No começo daquele movimento hippie,

Pensando em trazer esse espírito para

acho que era mais separado, segrega-

a capital paulista, os amigos decidiram

do, e agora está cada vez mais integra-

achar um lugar para se reunir, sem per-

do. Então, tudo o que for cultural, o que

der aquela essência. De dança africana

for da paz, o que trabalhar o corpo, o

a meditação, de “pizzadas” a ioga para

movimento, o que trouxer alegria, está

gestantes e aulas de astrologia, a Casa

dentro desse movimento, e não neces-

Jaya é um reduto dos hippies brasileiros.

sariamente uma aula de ioga ou uma

Para Céu Azul, essa é justamente uma

meditação”, conta. Para ele, o alterna-

das características que os diferenciam

tivo hoje não quer ficar à margem: ele

dos jovens de 1968: “Uma coisa impor-

busca ser uma solução para problemas

tante que eu sinto desse novo movimen-

atuais, para combater a cultura do con-

to alternativo é que ele está mais para

sumismo e do descarte. n

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1968: 50 AN O

Manifestação no Rio de Janeiro em 2014, repudiando o golpe militar de 1964 | FOTO: AGÊNCIA BRASIL

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N OS DEPOIS O melhor e o pior de um ano que marcou a história Guerra do Vietnã, ditadura militar, Maio de 68, AI-5, assassinato de Martin Luther King e de Robert Kennedy, Primavera de Praga, Passeata dos Cem Mil, efervescência cultural e liberdade feminina. Esses foram apenas alguns dos acontecimentos importantes que ajudaram a compor o histórico ano de 1968. A interpretação do legado do período é polêmica. De um lado há os que enxergam a época sob uma perspectiva otimista.Do outro, os que consideram necessária a desconstrução dessa herança. Sob alguns aspectos, 1968 foi o melhor ano do século. Sob outros, o pior. Nas páginas a seguir, a reportagem da Plural revisita aquele ano e debate seu legado.

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O pior de 1968

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Argentina, Peru, Chile, Uruguai, Paraguai e FERNANDA BADDINI

Guatemala viviam ou estavam prestes a enfrentar a instauração de regimes ditatoriais repres-

»»»“Linda, terrorista linda, vem cá me dar

sivos em períodos próximos a 1968. Em sete

um abraço! Terrorista, por que você está

anos de governo militar, cerca de 30 mil argen-

aqui? Você é linda”. Essa foi a recepção que

tinos foram mortos no país; no Chile o número

a jornalista Rosemeire Nogueira, 71, ex-

sobe para cerca de 40 mil.

-presa política, recebeu das detentas ao

Nada foi por acaso. Houve, em 1959, a vitó-

chegar no presídio de Tiradentes, duran-

ria de um movimento guerrilheiro armado em

te a ditadura militar. A abordagem mar-

Cuba, liderado por Fidel Castro – a chamada

cou um período de alívio para quem havia

Revolução Cubana. A derrubada do governo e

ficado mais de um mês sob o domínio do

a instalação de um regime socialista surpreen-

Dops (Departamento de Ordem Política e

deu e preocupou fortemente os Estados Uni-

Social). Ceder o apartamento para sediar

dos, que viam o capitalismo sendo ameaçado.

reuniões de grupos de oposição ao gover-

“Os norte-americanos temeram que aque-

no foi o motivo da prisão.

le modelo vitorioso se espalhasse para outros

A Por volta da meia noite do dia 4 de novem-

países da América Latina. Então não é por acaso

bro de 1969 Rose se dirigiu à cozinha para beber

que em 1959 acontece a revolução em Cuba e

um copo de água quando foi surpreendida pela

nos anos seguintes surgem ditaduras militares

campainha. “Levei um susto. A hora que eu abri

apoiadas pelos EUA”, comenta a historiadora.

a porta veio aquele monte de cara com revól-

O receio veio também, segundo Cássia, pelo

ver dizendo que eu e meu marido estávamos

contexto de Guerra Fria que o mundo enfren-

presos”, conta. A denúncia veio de um homem

tava na época. “Naquele momento de Guerra

que, de tanto ser torturado, entregou o casal de

Fria, quando os ânimos estavam exaltados, as

jornalistas e acompanhou os policiais na noite

ideias foram finalmente experimentadas. Por-

da prisão.

que até então só se tinha pensado o socialismo,

O desespero começou quando ameaçaram

e a partir dali passou-se a vivê-lo. Essa bipola-

levar o filho da jornalista, com 33 dias de vida

rização nada mais foi do que isso: a constata-

na época, a um abrigo. “Me ameaçaram dizen-

ção de que o socialismo não estava mais preso à

do que usariam de violência”, lembra. Ela conta

URSS, ele podia se espalhar pelo mundo, como

que depois de enfrentar os militares, levaram

de fato fez”, conta.

seu marido ao Dops e a mantiveram amarra-

Além de golpes violentos, o contexto que

da por toda a noite a uma cadeira na sala de

permeia o ano de 1968 é marcado por repres-

casa. Na manhã seguinte ela entregou o bebê

são e conflitos armados em outras partes do

à sogra e foi presa.

mundo, e não só na América Latina. No Viet-

O acontecimento fez parte da forte repressão

nã, a guerra que durou 16 anos e matou mais

política que se instalou no Brasil com o decre-

de um milhão de pessoas passava pela sua fase

to do Ato Institucional no 5, um ano antes, em

mais sangrenta naquele ano; nos Estados Uni-

1968. Mas a onda de violência e censura não

dos morria assassinado o pastor e ativista pelos

fazia parte apenas da vida dos brasileiros. Os

direitos dos negros, Martin Luther King, em um

anos 1960 foram marcados pelo surgimento

atentado movido por supostas razões racistas.

de uma série de ditaduras militares em vários

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países da América Latina. Segundo a historia-

Tortura

dora Cássia Maria Baddini, além da repressão,

Violações de direitos humanos também fazem

da violência e da perseguição política, os regi-

parte da história do golpe militar brasileiro,

mes tiveram um elemento em comum, que foi

especialmente após o decreto do AI 5. Tais atos

o apoio do governo norte americano.

de violência eram usados, principalmente, em

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O CONTEXTO QUE PERMEIA O ANO DE 1968 É MARCADO POR VIOLÊNCIA, REPRESSÃO E CONFLITOS ARMADOS EM VÁRIAS PARTES DO MUNDO, ALÉM DA AMÉRICA LATINA

Foto em 360 graus mostra equipe do LabFor da ESPM em visita ao Memorial da Resistência; para ver o vídeo completo, aponte um leitor de QR Code para o código ao lado | FOTO: ANDRÉ DEAK/LABFOR locais de detenção, divididos em dois departa-

Houve um dia em que um enfermeiro chegou

mentos: Dops, comandado pela polícia civil; e

em sua cela com uma seringa. “Era uma injeção

DOI-CODI, sob liderança militar.

para cortar meu leite, porque o cheiro azedo

Rose ficou detida no Dops por aproximada-

tirava o tesão do cara que me estuprava”, relata.

mente 40 dias, e conta que o terror começou no

A falta de higiene e os abusos fizeram com

momento em que pediu um absorvente a um

que ela contraísse uma infecção no útero que a

guarda. O pedido despertou revolta nos poli-

deixou estéril. “Eu sentia que tinha muita febre

ciais. “Ele ficou bravo e me levou ao superior

e um dia disse que achava que estava doen-

dele. Quando cheguei começaram a me chamar

te. O guarda respondeu que ali ninguém ficava

de vaca leiteira e de terrorista. Abriram o jor-

doente e que se eu reclamasse muito iria virar

nal daquele dia e uma vaca havia ganhado um

presunto”. Na tortura as ameaças se estende-

concurso, ela se chamava Miss Brasil. Daquele

ram duas vezes a seu filho também. “Ele me

dia em diante fiquei apelidada assim, e vocês

dizia assim ‘o chefe é ruim, ele queima, ele vai

podem imaginar o que isso significava”, fala.

queimar o moleque; ele quebra a perna’, ima-

Rose relata que era abusada por um homem

ginem o meu medo”.

específico, enquanto outros assistiam rindo e

Criméia de Almeida, formada em enferma-

dando tapas. “Um dia ele me beliscou tanto,

gem, participou da Guerrilha do Araguaia e

mas tanto, que eu fiquei preta. Eu gritava e

também foi torturada na ditadura. “A tortu-

eles riam. A pior coisa para mim era a risada –

ra não visa matar o indivíduo, ela visa humi-

porque eu estava sangrando, porque eu estava

lhar, tirar a vontade da pessoa, tanto que chega

cheirando, porque eu era magra e tinha parido”.

uma hora que você não liga mais. Eu queria morrer.” Mesmo grávida de sete

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18/19 Pichações contra a ditadura se multiplicaram nas ruas das grandes cidades brasileiras depois do AI-5

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| FOTOS: REPRODUÇÃO

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Ouça o podcast Mulheres que Resistiram: Memórias da Ditadura.

meses, Criméia passou por horas de interrogatório e, consequentemente, de torturas físicas e psicológicas, até mesmo no momento de dar à luz ao seu primeiro filho, no Hospital Militar de Brasília. A entrevista de Criméia de Almeida pode ser ouvida na íntegra no podcast “Mulheres que Resistiram: Memórias da Ditadura”, uma produção do núcleo de rádio do Centro Experimental de Jornalismo da ESPM-SP. O projeto traz três relatos em áudio de mulheres que sobreviveram à tortura na ditadura. Para ouvir a série, que reuniu oito alunos sob supervisão da professora Patrícia Rangel, aponte um leitor de QR Code para o código acima ou acesse o link http://jornalismosp.espm.br/especiais/ podcast-mulheres-na-ditadura. Mas Rose e Criméia não foram as únicas a sofrer com a ação militar. Segundo a Comissão Nacional da Verdade (leia texto ao lado), 434 pessoas foram mortas durante o período de ditadura militar e outras 210 são tidas como desaparecidas. As torturas do período foram realizadas por 377 agentes do Estado (policiais e militares) que foram anistiados anos depois.

»»» A Comissão Nacional da Verdade foi criada pela Lei 12.528, de 2011, e implantada em 16 de maio de 2012, quase 30 anos depois do fim da ditadura militar. COMISSÃO Seu objetivo principal é examinar e esclarecer as graDA VERDADE ves violações aos direitos humanos praticadas no períAPURA CASOS odo, com o propósito de preservar a memória e a verDE TORTURA E DE MORTE dade histórica e promover a reconciliação nacional. A CNV é o resultado de anos de luta de familiares de pessoas morsão. “A gente ouvia vários comentários de coletas ou desaparecidas no período e de grugas dizendo que a coisa ia pegar no Brasil, mas pos de defesa dos dinão imaginávamos que seria da maneira que reitos humanos. O refoi. A realidade foi muito pior do que pensálatório final da Covamos”, conta. missão, de 2014, tem mais de 1.300 páginas e confirma 224 mortes Transferência e 210 desaparecimenPassados 40 dias no Dops, houve um inquétos durante a ditadurito e o juiz decretou prisão preventiva. “Eles ra. O relatório ajudou decretavam a prisão por lote. Todos que foram a mudar o atestado de óbito de algumas despresos aquele dia receberam a mesma sentensas pessoas que foça. Fomos presos pela Lei de Segurança Nacioram mortas, entre nal, acusados de tentar derrubar o governo”, elas o jornalista Vladiconta Rose. A medida implicava na transfemir Herzog e o esturência ao presídio de Tiradentes, onde perdante Alexandre Vannucchi Leme. A vermaneceu por mais nove meses. “Ir para lá era são dos militares dizia um alívio, porque não tinha tortura”. Chegou a que ambos haviam se ficar presa com aproximadamente 60 mulhesuicidado. Agora, amres, grupo chamado de “Donzelas da Torre”. bos tiveram seus atestados mudados para A liberdade chegou de surpresa. Passados os morte por “lesões denove meses, ela conta que estava em sua cela correntes de torturas com uma colega quando foi chamada à auditoe maus-tratos”. n ria. Pensaram que assinariam papéis e quando (ANA TERESA GUIDA) entraram o juiz civil perguntou se aceitariam a condição de liberdade vigiada. Aceitaram. “Saímos em uma sexta-feira, 23h. A gente não acre-

Passeata

ditava, era muito emocionante, porque para

Um ano antes, em 1968, a jornalista fazia a

cada pessoa que saía o presidio inteiro cantava

cobertura da Passeata dos Cem Mil, ação con-

‘minha jangada vai sair pro mar, vou trabalhar,

tra a repressão que vinha crescendo desde que

meu bem querer. Se Deus quiser quando eu vol-

o regime militar havia se instalado no Brasil,

tar do mar, um peixe bom eu vou trazer. Meus

quatro anos antes. Os protestos começaram

companheiros também vão voltar e a Deus do

com a morte do estudante Edson Luís, assas-

céu vamos agradecer’. Sair ouvindo isso foi uma

sinado pela Polícia Militar do Rio de Janeiro. A

emoção muito grande, principalmente quan-

partir daí revoltas populares organizadas por

do vimos a família na calçada esperando”, rela-

estudantes tomavam as ruas, deixando o gover-

ta emocionada.

no, como diz Rose, “com medo”. A Passeata foi

A jornalista foi morar com a sogra e com o

o estopim, segundo a jornalista, para a insta-

filho, enquanto seu marido permaneceu preso

lação do AI 5. “Os militares não agiram duran-

por mais um ano. “Foi aí que pude conhecer

te o evento porque se sentiram em desvanta-

meu filho, dormir com o bercinho do lado, vê-lo

gem. Aí para não ficar feio, esperaram a rainha

pular de manhã para a cama”. Nos dois anos

Elisabeth deixar o Brasil para decretar o Ato

e meio seguintes ela precisava, semanalmen-

mais desumano que o Brasil já experimentou”.

te, comparecer à auditoria militar para assinar

Rose lembra que durante a cobertura que fez

o livro. “Meu dia era toda sexta-feira às 13h,

para a Folha da Tarde sobre a visita da rainha

se chegasse às 13h30 já estava presa”, relata.

da Inglaterra, corriam rumores sobre a possível

Mesmo proibida de sair à noite, viajar e traba-

instauração de uma lei mais pesada de repres-

lhar, a necessidade exigiu a procura por um emprego, que encontrou em uma

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20/21 Exposição em Porto Alegre lembrou vítimas da ditadura militar no Brasil | FOTO: GUILHERME TESTA/CREATIVE COMMONS

revista técnica sobre construção. “Pensei que ali ninguém iria me achar. Anos mais tarde, quando peguei o dossiê que faziam

Rose classifica o ano de 1968 como o perí-

no SNI (Serviço Nacional de Informações), vi

odo em que todo o questionamento sobre a

que tinha espião dizendo que eu trabalhava lá,

velha ordem começou a ser feito. A mudança

mas que aparentemente não oferecia perigo”,

de comportamento que permeava os anos ante-

conta indignada. “Tinha ditadura, mas a gente

riores ao Ato Institucional no 5 foi muito forte.

tinha que viver. A vida é mais forte e tem que

As pessoas começaram a morar sozinhas ou a

continuar, eu tinha que criar meu filho”.

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demitiam. As empresas tinham medo”, conta.

se juntarem com parceiros sem casar. “A pala-

Mesmo depois de ser absolvida no julgamen-

vra liberdade valia para o regime, mas valia

to que durou dois dias, Rose enfrentou uma

para tudo, para roupa, para atitude. Tinha-se

série de desafios para seguir em frente. Sem

a ditadura, mas tinha-se uma juventude cria-

contar aos chefes o processo pelo qual respon-

tiva”, defende.

dia, porque “se falasse iria para a rua direto”,

Quando questionada sobre a herança deixa-

chegou ao trabalho e foi barrada na entrada.

da pelo ano 1968 ao Brasil, Rose é clara: “O ano

“O porteiro falou que sentia muito, mas que

deixou de legado a certeza de que a resistência

não podia me deixar entrar porque haviam dito

à tirania é um dos direitos do homem”. Segun-

que eu era terrorista e que não sabiam do peri-

do ela, o período de opressão trouxe o desejo

go que estavam correndo comigo ali dentro.

de liberdade. “A liberdade era possível através

Fui demitida pelo porteiro na calçada”, lamen-

da música, da poesia, do amor livre”, relembra.

ta. Depois foi chamada a trabalhar sob registro

Apesar dos traumas e da demora em con-

na Editora Abril, empresa que já trabalhara, e

seguir falar sobre o sofrimento que viven-

recomeçou a carreira. “Você não encontrava

ciou durante o período, ela é otimista. “Eu sou

emprego, os caras iam aonde você trabalha-

sobrevivente, por isso que eu confio na vida,

va dizendo que você tinha de ser demitido. E

por isso que eu acredito na juventude.” n

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“O ANO DE 1968 DEIXOU DE LEGADO A CERTEZA DE QUE A RESISTÊNCIA À TIRANIA É UM DOS DIREITOS DO HOMEM”

Ditaduras marcaram toda a América Latina nos anos 1960 »»» A jornalista de cultura Elisabeth Loren-

espalhados nos países vizinhos. Em segundo

zotti, 67, estava no último ano do ensino médio

lugar, porque o modelo de revolução era, em

do Colégio Estadual de Santana quando foi

tese, muito simples. Montar uma guerrilha é

decretado o AI-5. Ela conta que mesmo antes

muito mais fácil do que um exército revolu-

da medida, com uns 13 anos, já participava de

cionário”, explica.

movimentos estudantis por meio da escola.

O medo veio também, segundo Cássia, pelo

“Era um dos colégios com maior participação

contexto de Guerra Fria que o mundo enfren-

em movimentos estudantis. Quando eu entrei

tava na época. “Naquele momento de Guerra

tinha 12 anos e já nos distribuíam panfletos.

Fria, quando os ânimos estavam exaltados, as

Lá conhecemos tudo, desde questões compor-

ideias foram finalmente experimentadas. Por-

tamentais que estavam sendo revolucionadas

que até então só se tinha pensado o socialismo,

até questões políticas”, conta.

a partir dali passou-se a vivê-lo. Essa bipolari-

Ela relembra do conflito armado que pre-

zação nada mais foi do que isso: a constatação

senciou entre alunos da Universidade Pres-

de que o socialismo não estava mais preso à

biteriana Mackenzie e da Universidade de

URSS, ele podia se espalhar pelo mundo, como

São Paulo, a chamada Guerra da Maria Antô-

de fato fez”, conta. n

nia (leia mais sobre isso à pág. 30). “Foi muito violento, tinha gente armada.” Ela também tem más recordações da época de censura aos jornais. “Quando havia militares na redação escolhendo o que ia ou não ser publicado, começaram a colocar nas manchetes poemas

ENTENDA O AI-5 »»» O Ato Institucional núme-

com manifestações contra o regi-

A historiadora Cássia Maria Baddini lembra

ro cinco foi decretado no dia 13 de

me militar. Assim, os militares ado-

que, nos anos 1960, a América Latina era refém

dezembro de 1968, no governo de

taram uma atitude cada vez mais

de diversas ditaduras militares – e todas com

Arthur da Costa e Silva, e durou dez

autoritária. Faltava apenas um

apoio do governo norte americano. “Não foi

anos. O AI-5 é o decreto mais duro

incentivo para decretar o AI-5: o

nada por acaso”, explica. O apoio norte-ameri-

do golpe, e por meio dele os gover-

discurso do deputado federal Már-

cano às ditaduras era uma reação à Revolução

nantes tinham poderes excepcio-

cio Moreira Alves, pronunciado na

Cubana. “Os norte-americanos temeram que

nais para perseguir e punir os “ini-

Câmara em setembro de 1968.

aquele modelo vitorioso se espalhasse para

migos do regime”. O AI-5 inaugura

outros países da América Latina. Então não é

os “anos de chumbo” da ditadura.

de Camões e receitas de bolo”, conta.

por acaso que em 1959 acontece a revolução

O decreto garantiu ao presiden-

O deputado fez duras críticas ao regime e pediu à população que boicotasse as festividades de Sete

em Cuba e nos anos seguintes surgem dita-

te que deliberasse o recesso do

de Setembro. Com isso, uma enor-

duras militares apoiadas pelos EUA”, reflete.

Congresso; o poder de intervir nos

me tensão foi criada entre milita-

Estados e municípios; de suspen-

res e parlamentares e foi envia-

modava. “Havia uma definição muito clara

der os direitos políticos de qual-

do ao Congresso um pedido para

para os EUA, de que, até aquele momento, o

quer cidadão; de cassar mandatos

processar o deputado. O pedido foi

continente americano era o seu reduto, sua

de deputados federais, estaduais

negado. Com o pretexto, os milita-

área de dominação. Com a Revolução Cuba-

e de vereadores; de proibir mani-

res decretaram o AI-5 – e o ato só

na isso cai, e cai gravemente. Porque, primei-

festações populares. Além disso,

foi revogado em 1978, em meio ao

ro, uma revolução socialista no quintal dos

impunha a censura à imprensa.

processo de abertura política. n

EUA necessariamente iria inspirar comunistas

O ano de 1968 foi conturbado,

Não só a revolução, mas seu modelo inco-

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(ANA TERESA GUIDA)

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O melhor de 1968

22/23

e da biblioteca de Astrojildo Pereira – escriMARCELLA STEWERS

1965 e especializado nas obras de Machado de »»» “1968 foi o ano da rebelião pela igual-

Assis. “Fiz isso porque a ditadura tinha inte-

dade.” É assim que o político, ativista

resse em liquidar tudo o que tivesse envolvi-

social e radialista José Luís Del Roio des-

mento com os opressores, então montei um

creve o emblemático ano – mas a frase

arquivo muito grande da história da resistên-

poderia ser aplicada para descrever seu

cia operária desde o fim de 1800”.

jeito de encarar a vida. Um dos criadores

Para conseguir manter esse material intac-

da ALN (Aliança Libertadora Nacional),

to, Del Roio o retirou do Brasil, no auge da dita-

organização revolucionária contrária ao

dura, e o despachou para a Europa em dois

golpe militar, e colecionador de um acervo

contêineres. “Foram duas viagens tumultu-

extenso de documentos censurados pela

adas, uma de saída, e, anos depois, uma de

ditadura, Del Roio sonha com o ideal de

entrada no país. Alguns documentos estavam

igualdade até hoje, 50 anos depois.

guardados em um porão que inundou. Eu lem-

Participante de movimentos civis desde os

bro que o que mais doeu foi perder um jornal

17 anos, Del Roio defende que a questão do

escrito à mão por Graciliano Ramos, na cadeia,

engajamento político depende do contexto

em 1935. Eu peguei e ele virou poeira.”

social do país. “Eu vivia em um contexto em que as revoluções estavam gritando”, diz.

A coleção contém desde cartas e panfletos de militantes, até um livro inédito escrito à

O ano é marcado por revoluções em várias

mão por Astrojildo e que será publicado em

frentes. Alemanha, França e Itália realizaram

breve, além de um cartaz original da Revo-

grandes conquistas de direitos civis, como a

lução Russa. Esse vasto material fica arqui-

democratização do acesso ao ensino superior.

vado no Centro de Documentação e Memória

Nos Estados Unidos, os Panteras Negras balan-

da Universidade Estadual Paulista (Unesp), na

çavam o país, pregando a luta armada con-

praça da Sé, no centro de São Paulo.

tra a violência racial. Paralelamente, o pastor e líder pacifista do movimento negro Martin

Direitos femininos

Luther King mobilizava milhões de afroame-

Um dos legados mais positivos da década de

ricanos em passeatas históricas. Assassinado

1960 está ligado a conquistas de movimentos

em 1968 por disparos de arma de fogo, Luther

civis. Nessa época vários movimentos de con-

King deixou um legado até hoje lembrado pelo

tracultura gestados nos anos 1950 ganharam

movimento negro.

força, como, o movimento gay, o movimento

Del Roio viu nesses movimentos estrangei-

negro, o movimento hippie e o próprio femi-

ros uma inspiração para reescrever a histó-

nismo. As mulheres conquistaram novas fren-

ria no próprio país. “Assim como Tiradentes

tes de trabalho e mais espaço na vida pública.

fez história lutando pela libertação do domí-

Para a historiadora e socióloga Rosana

nio colonial”, conta. “Se você não tivesse um

Schwartz, nesse período as mulheres come-

ponto de referência na história do Brasil, o que

çaram a discutir o direito de casar e de divor-

você faria? Você não teria passado, você não

ciar, de ter quantos filhos quisessem e de lutar

teria futuro. A gente fez a história do Brasil.”

contra o machismo. “A violência doméstica e o divórcio começaram a ser discutidos por-

Acervo

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tor e crítico literário fluminense falecido em

que as leis eram totalmente machistas. Antes

Del Roio é responsável pela criação de um

a mulher perdia praticamente tudo se ela se

enorme arquivo da história brasileira dos opri-

separasse. Se fosse vista em outro relaciona-

midos. Ele retirou importantes documentos

mento, ela era considerada uma mulher fora

do acervo do Partido Comunista Brasileiro

das regras. Todas essas discussões vêm à tona

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NESSA ÉPOCA, MOVIMENTOS DE CONTRACULTURA DOS ANOS 1950 GANHARAM FORÇA, COMO O MOVIMENTO GAY, O NEGRO, O HIPPIE E O PRÓPRIO FEMINISMO

Cena do documentário “She’s Beautiful When She’s Angry” (Ela Fica Linda Quando Está Zangada), sobre movimentos pelos direitos das mulheres nos EUA nos anos 1960 e 1970 | FOTO: DIANA DAVIES/INTERNATIONAL FILM CIRCUIT

nos anos 1960”, diz. Conhecido por se tornar um marco da luta feminista, o Bra-Burning é o famoso protesto

mundo porque foi grande e forte. Elas tinham ideias bem pontuadas: nós vamos agir dessa maneira e pronto”, diz Rosana.

de queima de sutiãs –que, embora não tenha

Outro marco para a emancipação feminina

terminado na incineração propriamente dita,

foi a criação da pílula anticoncepcional. Com

incendiou o imaginário da época.

o controle da fertilidade, a mulher iniciava a

O protesto parou a cidade de Atlantic City

longa jornada rumo à liberdade sexual, à pos-

em setembro de 1968, por ocasião do concur-

sibilidade de, como o homem, ter uma vida

so “Miss America” daquele ano. Contou com a

sexual ativa sem a preocupação de engravidar.

presença de mais de 400 ativistas da Women’s

No mundo do trabalho, o fortalecimento da

Liberation Movement para protestar contra

participação feminina gerava, contudo, pre-

a ditatura da beleza imposta às mulheres.

conceito. “Quando faltava trabalho era mais

Foram empilhados no chão sapatos de salto

ou menos assim: olha, a mulher está no campo

alto, cílios postiços, espartilhos, cintas e suti-

de trabalho e eu não tenho emprego porque

ãs, símbolos de um modelo de beleza opres-

ela está lá. Era assim que pensava o mundo

sor para as mulheres. O objetivo era quei-

machista”, resume Rosana, que, ao comentar

má-los, o que acabou não ocorrendo, mas a

as batalhas ainda em curso, é direta: “Preci-

intensa cobertura midiática do evento eterni-

samos consolidar o fim da violência, porque

zou a ação. “A Queima dos Sutiãs impactou o

ela ainda está aí. Tanto a doméstica como a da rua e do trabalho”. Nesse ponto,

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24/25 O pastor e líder do movimento negro Martin Luther King mudou os EUA com protestos pacíficos

avançou-se pouco. Mesmo com a Lei Maria da Penha, ainda hoje é comum as mulheres não denunciarem casos de assédio sexual ou moral, ou mesmo de agressão física.

| FOTO: REPRODUÇÃO

depois o mundo estava voltando a crescer, a riqueza e prosperidade eram fortes. Nesse clima de otimismo, fartura e liberdade – ao menos nas grandes democracias –,

Criatividade

o mundo vivia episódios marcantes. Maio de

É inegável o fato de que 1968 foi um ano de

1968 entrou para a história com protestos de

efervescência criativa. Leonardo Trevisan, jor-

estudantes parisienses lutando, inicialmente,

nalista e historiador, mestre em história eco-

contra a divisão dos dormitórios da Universi-

nômica e doutor em ciência política, cita uma

dade de Nanterre entre homens e mulheres.

frase do crítico literário Roberto Schwarz para

Disso, o movimento avançou para uma reivin-

definir o momento: “O Brasil em 1968 esta-

dicação mais ampla e profunda pelo fim de

va inacreditavelmente inteligente”. Ou seja:

certas posturas conservadoras da sociedade

o país começava a discutir ideias como nunca

francesa - culminando com o pedido de afasta-

antes. E não era só no Brasil que isso ocorria,

mento do presidente Charles de Gaulle, iden-

esse fenômeno atingiu o mundo inteiro.

tificado com o conservadorismo.

“Temos que fazer uma reflexão sobre o que

De Gaulle conseguiu contornar a situa-

estava acontecendo no mundo para entender-

ção, prometendo aumentos aos trabalhado-

mos o que Caetano Veloso viu em um muro de

res e convocando eleições legislativas, mas o

Paris e eternizou no verso: é proibido proi-

movimento dos estudantes inspirou uma onda

bir”, completa o professor. Para Trevisan, o

libertária na França e ao redor do mundo, pre-

que estava agitando o mundo era uma espécie

gando slogans como “sejam realistas, exijam

de bonança econômica, proveniente do pós-

o impossível”.

-Segunda Guerra Mundial. Vinte e três anos

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Não muito longe dali, na então Tchecos-

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Havia fartura de empregos e renda. O Milagre Econômico é exemplo disso. O termo designa a rápida ascensão econômica que o Brasil passou em 1968, período marcado por um forte crescimento e desenvolvimento da indústria e do Produto Interno Bruto (PIB)

“O mundo estava em grande transformação, e 1968 é uma data que vai permanecer na história” José Luís Del Roio, político e ativista social

do país. Houve também aumento da empregabilidade, baixo nível de inflação e melhorias na infraestrutura geral do país. Enquanto a política ia mal, a economia ia bem – ao menos aparentemente, porque o lado B do Milagre Econômico seria a hiperinflação que assolou o país nas duas décadas seguintes. No mundo das artes, a efervescência de 1968 também se manifestava. Del Roio lembra de um dos maiores diretores de teatro da época: Augusto Boal. Ele criou o Teatro dos Oprimidos, método que virou referência internacio-

“Sejam realistas, exijam o impossível” lováquia, começava a chamada Primavera de Praga, que durou de janeiro a agosto daquele ano. Foi um movimento político que tinha

Pichações libertárias, com dizeres como esse, se popularizaram na França durante o Maio de 1968

como objetivo estabelecer reformas também

nal por unir arte e ação social. Para Del Roio, ele construiu um conceito revolucionário de teatro. Cecília Boal, atriz, psicanalista, mulher do dramaturgo e criadora do Instituto Augusto Boal, defende a ideia de que 1968 é o compilado de tudo o que vinha antes. Não foi um ano bom, é claro, considerando o contexto ditatorial. Mas foi de intensa criação artística, e isso era ótimo. Para Cecília, havia um movimento intenso

mais libertárias, contra a rigidez do regime

de compositores, músicos e do próprio Tea-

mãos de ferro.

“De certa forma, a geração de 1968 foi a primeira no mundo que teve uma vida melhor do que a dos seus pais” Leonardo Trevisan, jornalista e historiador

desobediência civil. Apresentamos a peça e foi

Economia e cultura

soviético, reestabelecendo a liberdade de imprensa e de culto e também de formação de partidos políticos. Uma boa parcela da população, principalmente os jovens, apoiavam essas transformações, no entanto, a União Soviética e seus aliados se opuseram às mudanças e em agosto de 1968 intervieram no país, que passaria mais duas décadas governado com

tro de Arena - companhia dirigida por Boal no Brasil e em toda a América Latina. O Arena promoveu, por exemplo, a Primeira Feira Paulista de Opinião –reunião de textos curtos de diversos autores. Do trabalho resultou uma peça, que sofreu censura em 84 cenas. “Toda a classe teatral se reuniu para defender o espetáculo da Feira e decretaram, então, um ato de lindo”, relembra Cecília.

“De certa forma, a geração de 1968 foi a pri-

Ditadura e criação artística, repressão e

meira no mundo que teve uma vida melhor

libertarismo, bonança econômica e trevas

do que a dos seus pais”, observa Trevisan,

políticas: 1968 foi um ano de contrastes inten-

citando o historiador Eric Hobsbawn. Com

sos. Havia de tudo, menos apatia. “O mundo

um mundo em processo de desenvolvimen-

estava em grande transformação, e 1968 é uma

to e rico, a geração jovem não tinha compro-

data que vai permanecer na história”, conclui

missos sérios com uma estrutura produtiva.

Del Roio. n

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1968 na história Um ano cheio, com acontecimentos que tiveram reflexos durante muitas décadas - alguns deles que ecoam até hoje. O Laboratório de Formatos Híbridos produziu uma linha do tempo para esta edição, com uma versão interativa online.

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CLARA GUIMARÃES, FRANCIELLEN ROSA, LUANA MATSUDA, NATHALIA OLIVA

MAIO DE 68 Estudantes de Paris iniciam revolução que toma conta da Europa

4 DE ABRIL Morte de Martin Luther King Reverendo afro-americano, pacifista e ativista da luta pelos direitos humanos, foi assassinado

O Tropicalismo foi um movimento de ruptura que mexeu com o ambiente da música popular e da cultura brasileira

16 DE MARÇO Massacre de My Lai Exército norte-americano executa 504 civis vietnamitas no conhecido Massacre de My Lai durante a Guerra do Vietnã

junho

maio

abril

março

fevereiro

janeiro M28_29_timeline.indd 28

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AI-5 ENTRA EM VIGOR EM DEZEMBRO

11 DE SETEMBRO Primeira edição da revista Veja

29 DE AGOSTO Honestino Guimarães Líder estudantil da UNB, é preso dentro da universidade, após invasão das polícias militar e federal

2 DE OUTUBRO Batalha da Maria Antônia Confronto entre estudantes do Mackenzie e da USP. Morre o estudante José Guimarães

26 DE JUNHO Passeata dos 100 mil no Rio de Janeiro, contra a violência e a repressão do governo.

7 DE NOVEMBRO Inauguração do MASP, com a presença da rainha Elizabeth II, do Reino Unido

22 DE NOVEMBRO White Album, Beatles

29 DE OUTUBRO Festival Internacional da Canção Popular, marcado pelo conteúdo político explícito nas canções, pelas vaias contundentes do público contra a apresentação de Caetano Veloso e a revolta com a decisão do júri de dar a segunda colocação para a música Caminhando (ou Para Não Dizer que Não Falei das Flores), de Geraldo Vandré.

21 DE AGOSTO Fim da Primavera de Praga Tropas da União Soviética invadem a Tchecoslováquia

dezembro

novembro

outubro

setembro

agosto

julho M28_29_timeline.indd 29

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ANA TERESA GUIDA

»»»O Pasquim foi um jornal de periodicidade semanal fundado em junho de 1969 e foi o modo que um grupo de

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jornalistas encontrou de responder ao Ato Institucional nº 5 que havia sido instaurado no ano anterior. Seus principais fundadores foram Jaguar, Tarso de Castro, Sérgio Cabral, Carlos Prosperi, Claudius, Carlos Magaldi e Murilo Reis. Fez parte da chamada Imprensa Alternativa e misturava política, crítica social e comportamento, e tinha como principais alvos a ditadura militar, o moralismo da classe média e a grande imprensa. Desde a sua criação contou com a colaboração e a participação de humoristas, jornalistas e intelectuais do quilate de Ziraldo, Helfil, Paulo Francis, Millôr Fernandes, Ivan Lessa, Luís Carlos Maciel, entre outros. Uma das figuras mais importantes do Pasquim era Henfil. O cartunista utilizava ironia e sarcasmo em suas charges

p

PERFIL: O PASQUIM

para driblar a censura da época. Seus famosos personagens Baixinho e Cumprido, os Fradinhos, eram completamente opostos. O primeiro era conservador e careta, enquanto o segundo era revolucionário e anarquista. Henfil foi também o criador do polêmico Cemitério dos Mortos-Vivos, onde ele “enterrava” personalidades e celebridades que, segundo ele, eram simpatizantes ou haviam colaborado de alguma forma com a ditadura, não se envolviam com a política do país ou eram porta-vozes do conservadorismo. “Enterrou” em suas charges artistas famosos, como Elis Regina, Roberto Carlos, Clarice Lispector, Hebe Camargo, entre muitos

JORNAL COMBATEU A DITADURA COM HUMOR

outros. De todos, só dizia se arrepender de ter “enterrado” Elis e Clarice. O Pasquim revolucionou pelo uso do

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Formado por time de craques no humor e no jornalismo, o Pasquim marcou história

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A EQUIPE DO PASQUIM CONSEGUIA, COM HUMOR E INTELIGÊNCIA, CONTORNAR OS CENSORES DA DITADURA E APROVAR MATÉRIAS POLÊMICAS

o Pasquim com a ajuda de outros jornalistas, artistas e intelectuais. A primeira edição após a prisão maciça de sua equipe recebeu a manchete “Enfim um Pasquim totalmente automático: sem o Ziraldo, sem o Jaguar, sem o Tarso, sem o Francis, sem o Millôr, sem o Flávio, sem o Sérgio, sem o Fortuna, sem o Garcez, sem a redação, sem a contabilidade, sem a gerência e sem caixa.” Apesar do esforço, as vendas caíram. Os jornalistas foram soltos em janeiro de 1971 e voltaram ao trabalho. No dia 24 de março de 1975 foi extinta a censura prévia ao jornal e até o fim dessa década as principais temáticas do Pasquim eram campanhas pela anistia aos condenados por crimes políticos, o que permitiria o

Na página ao lado, fac-símile da primeira capa do Pasquim; ao lado, editorial informa o fim da censura no jornal | FOTOS: REPRODUÇÃO

retorno dos exilados em outros países, a libertação dos presos políticos e a livre circulação dos clandestinos. Com a abertura política e a redemocratização no início da década de 1980, a ditadura militar deixou de ser o único alvo do jornal. Houve então uma divergência a respeito da linha editorial que deveria ser privilegiada: se uma maior radicalização política ou uma linha humorística mais descompromissada.

humor como forma de contestar o cená-

Brasil produziu e lançou uma série cha-

O Pasquim foi vendido para o empre-

rio político da época e pelo uso de uma

mada “As Grandes Entrevistas do Pas-

sário João Carlos Rabelo em agosto de

linguagem coloquial. Palavrões e gírias

quim”. Na série, são reencenadas 13 das

1988, quando a tiragem estava em torno

estavam estampados por todo o Pas-

1.072 matérias do semanário.

de três mil exemplares em edições quin-

quim, o que agradava ao grande públi-

Em 1970, o Pasquim foi submetido a

zenais. Com a nova direção, no mesmo

co. Logo nas primeiras edições, atingiu

censura prévia e passou a abrigar um

ano chegou aos 80 mil exemplares. Man-

vendas de 40 mil exemplares. Devido ao

censor do regime militar dentro da reda-

tiveram a veia humorística enquanto se

seu sucesso, principalmente entre uni-

ção. Mesmo assim, a equipe conseguia,

posicionaram contra a corrupção, o capi-

versitários, subiu até chegar a 200 mil

com muita inteligência, contornar os

talismo neoliberal e, após as primeiras

exemplares vendidos semanalmente.

censores e aprovar algumas matérias.

eleições diretas presidenciais de 1989,

Outra característica importante do jor-

Mas sua constante oposição, aliada ao

contra Fernando Collor de Melo e tudo

nal eram as entrevistas, que eram trans-

sucesso de público, incomodava os mili-

ligado ao novo governo.

critas como uma longa conversa, inovan-

tares. Por isso, grande parte da equipe

do esse formato no jornalismo brasileiro.

do jornal foi presa durante a ditadura.

Durante a gestão Collor, o jornal sofreu com a instabilidade econômica,

Nas entrevistas, a equipe do jornal

Entre os que haviam sido poupa-

e não resistiu ao cenário turbulento que

dava espaço para personalidades con-

dos, num primeiro momento, da pri-

já vinha desde o governo Sarney, com a

trárias ao regime militar. O legado desses

são, estavam Marta Alencar, Henfil e

hiperinflação. O Pasquim deixou de cir-

textos é tão grande que, em 2016, o Canal

Miguel Paiva, que continuaram a editar

cular em janeiro de 1991. n

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A ERA DOS FESTIVAIS 30/31

A efervescência cultural dos festivais nos anos 1960 mudou a cara da MPB para sempre

CATARINA BRUGGEMANN

»»»Na década de 1960, o Brasil viveu eventos que mudaram drasticamente a direção da música popular brasileira, revelando compositores que moldaram a cara do que hoje conhecemos como MPB. Foram os festivais de canção que popularizaram e consolidaram figuras como Caetano Veloso, Chico Buarque, Edu Lobo, Geraldo Vandré, Elis Regina, Nara Leão, Jair Rodrigues, entre outros. O próprio conceito de Música Popular Brasileira (MPB) surge e se firma nesse contexto, em uma espécie de brincadeira com a sigla MDB, já que os artistas viam na música, assim como na política, uma oposição ao partido Arena e à própria ditadura militar.

Elis Regina, que se consagrou como uma das maiores intérpretes da MPB durante os festivais

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| FOTO: REPRODUÇÃO

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POR CONTA DO IMENSO SUCESSO DO FESTIVAL DE 1967, CONSIDERADO O MAIS MARCANTE DA RECORD, O ANO DE 1968 VIU UMA MULTIPLICAÇÃO DE FESTIVAIS DE MPB PELO PAÍS

A forma do festival era muito caracterís-

Amilton Godói. O evento revelou os can-

jovem, foi lançado o “Bossaudade”, que

tica: um show em um auditório, com pla-

tores Elis Regina e Jair Rodrigues, que

tinha os mesmos moldes, mas era apre-

teia, transmissão para outras emissoras

interpretaram a música vencedora do

sentado por Elizeth Cardoso. Além disso,

ao redor do Brasil, jurados que avaliavam

primeiro lugar daquele ano: “Arrastão”,

surgiu uma demanda para um público

e selecionavam as canções que eram ins-

uma composição de Edu Lobo e Vinicius

ainda mais jovem, os adolescentes que

critas pelos compositores, e um corpo de

de Moraes. O segundo lugar ficou com

estavam tomados pelo fenômeno pop

cantores contratados pelas emissoras

“Valsa do Amor que Não Vem”, composi-

daquele momento: os Beatles.

para interpretar essas músicas.

ção da recém-formada aliança entre Vini-

Quem iniciou o evento no Brasil foi o produtor musical Solano Ribeiro, que em

cius de Moraes e Baden Powell, interpre-

Iê-iê-iê

tada por Elizeth Cardoso.

O programa de domingo era o “Jovem Guarda”, representando a expressão bra-

1965 trabalhava na TV Excelsior, coordenando sua programação. Zuza Homem

Sucesso

sileira do rock de grupos como os Beach

de Mello, escritor, jornalista e produtor

O evento foi um sucesso absoluto, e a

Boys, Beatles e Rolling Stones. Era apre-

musical, conta em seu livro “Era dos Fes-

Excelsior abriu dianteira sobre a concor-

sentado por Roberto Carlos (o Brasa),

tivais: Uma Parábola”, que a TV Excelsior

rente TV Record. Em reação, a vice-líder

Erasmo Carlos (Tremendão), Wanderléa

percebeu que os grandes intervalos na

de audiência se movimentou para reto-

(Ternurinha), Wanderley Cardoso (Bom

programação das demais emissoras satu-

mar o posto perdido contratando a estre-

Rapaz) e Martinha (Queijinho de Minas).

ravam o público, então passou a veicular

la descoberta no Festival: Elis Regina.

O grupo recebia convidados como Ronnie

A cantora, dirigida pelo bailarino e

Von, Eduardo Araújo, Sérgio Reis, Leno e

“Valorizando os artistas brasileiros,

coreógrafo Lennie Dale, com seus movi-

Lilian, The Fevers, entre outros artistas

apenas três minutos de anúncio. inclusive com vinhetas exclusivamen-

mentos expansivos, com braços que

que seguiam esse estilo de composição.

te de música nacional, em menos de

lembravam hélices, foi completamen-

O pesquisador musical Dilmar Miranda

seis meses a Excelsior já era conside-

te contra a tendência intimista pauta-

diz em seu livro “Nós, a Música Popular

rada líder”, escreve Zuza. O feito gerou

da pela bossa nova. “Sem saber direito

Brasileira” que “adeptos do iê-iê-iê tra-

ao canal uma receita que permitia que

o que fazer com a artista que eles acaba-

ziam para o interior do país e da nossa

pagasse salários desproporcionais aos

ram de contratar, pensaram em um pro-

música popular uma nova temática, que

valores do mercado.

grama que já tinha dado certo no teatro

passa a povoar o imaginário fantasio-

Com esses recursos, foi realizado o pri-

Paramount: Elis Regina, Jair Rodrigues,

so da juventude, com carrões, garotas,

meiro Festival da Música Popular Brasi-

e um trio”, conta Zuza. Assim nasceu “O

festas de arromba, conflito de gerações

leira, em que 36 músicas concorreram ao

Fino da Bossa”, programa gravado em um

etc., com melodias, harmonias, rítmicas

prêmio de melhor canção. O júri daque-

auditório, com público pagante.

e instrumentos como a guitarra elétrica, totalmente estranhos à tradição da cul-

le ano era formado pelos grandes nomes

O programa também foi um suces-

da poesia concreta Augusto de Campos e

so de audiência e ampliou a programa-

Décio Pignatari, pelo compositor e arran-

ção musical da Record. Como “O Fino

O programa era exibido ao vivo para

jador Damiano Cozzella, e pelo pianista

da Bossa” capturava um público mais

São Paulo e retransmitido alguns dias

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tura musical brasileira”.

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depois para as demais cidades brasilei-

O ex-diretor da Record Paulinho

ras. Todos esses programas foram ao ar

Machado de Carvalho conta no docu-

em 1965, como u ma resposta da TV Record

mentário “Uma Noite em 1967” que os

ao sucesso do festival, e em 1966 a emis-

festivais eram organizados como um

sora já era novamente líder de audiência.

espetáculo de luta livre, “com um moci-

Nesse momento, a Excelsior dispensa

nho, um vilão...” para despertar o inte-

Solano Ribeiro, “pai” do primeiro Festi-

resse do público, e Chico Buarque era o

val na TV, que então procura a direção

grande mocinho. Se os espectadores sou-

da Record e sugere que esta realize uma

bessem que a emissora forçou a mão para

nova edição do evento de 1965. A par-

dividir seu prêmio com outro, seria um

tir disso, o Festival da Música Brasilei-

escândalo.

ra passa a ser realizado pela TV Record.

Chico foi uma exceção: não era comum

“A Record teve na mão o maior elenco

que os compositores apresentassem as

de compositores da história da música

próprias canções, afinal, a Record tinha

brasileira. Toda noite lotava de gente para

um grande elenco que interpretava as

assistir os programas, então nada mais

músicas. No entanto, os compositores

natural que fazer um festival. Aí surge o

começaram a ficar descontentes com

Festival de 1966”, relembra o jornalista e

isso, pois o público acabava não associan-

produtor Zuza Homem de Mello.

do o compositor às músicas, e os intérpretes levavam toda a fama. Do festival

Novos astros

de 1966 para o de 1967, aconteceu uma

Em 1966 as duas primeiras colocadas da

mudança substancial nesse sentido. Os

disputa foram “A Banda”, de Chico Buar-

compositores se tornaram intérpretes de

que, cantada por Chico e Nara Leão, e

suas próprias músicas.

“Disparada”, de Geraldo Vandré e Teo de Barros, cantada por Jair Rodrigues, Trio

“Uma noite em 1967”

Maraiá e Trio Novo. Literalmente foram

Pairando acima de toda a efervescên-

duas vencedoras, pois, apesar de nas

cia daquele momento, existia a ditadu-

enquetes “A Banda” ter mais que o dobro

ra – e a censura. Essa situação política

de votos de “Disparada”, no momen-

deu à música daquele momento um dire-

to final houve uma imensa polarização

cionamento lírico engajado com ques-

entre as duas músicas, então por uma

tões sociais e de protesto contra o regi-

sugestão (e pressão) de Chico, os jura-

me ditatorial.

dos premiaram ambas as canções.

Zuza fala sobre as expectativas do

No livro “Histórias de Canções – Chico

público em torno das músicas. “Havia

Buarque”, Wagner Homem revela o que

uma tendência de que, nas entrelinhas,

fez com que os jurados tomassem tal

toda canção deveria ter um conteúdo

decisão: “O que gerava tensão nos orga-

contrário à ditadura militar.” E lembra do

nizadores era a ameaça que acompanha-

caráter de “torcida organizada” do públi-

va a inusitada proposta: ele se recusaria

co, que vaiava o adversário. “As músicas

publicamente a receber o prêmio sozi-

que não tinham conteúdo político eram

nho. Uma festa como aquela, transmiti-

vaiadas, independentemente de quem

da pela TV, não podia terminar em con-

fosse o compositor.”

fusão”. E complementa: “O resultado

Zuza Homem de Mello, jornalista, escritor e produtor musical

No III Festival da Música Popular

da votação (sete a cinco em favor de A

Brasileira, o cantor e compositor Sér-

Banda) foi mantido em sigilo por quase

gio Ricardo recebeu uma grande vaia

quatro décadas”.

simplesmente por ter mudado o arran-

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“As músicas que não tinham conteúdo político eram vaiadas, independentemente de quem fosse o compositor”

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Gilberto Gil se apresenta com Os Mutantes |

FOTO: REPRODUÇÃO

jo da canção. Não conseguiu cantar sua

Por exemplo, a citação a Brigitte Bardot

“1968 – O Ano que não Terminou”

música “Beto Bom de Bola” até o final.

e, conforme revela Miranda, “a alusão ao

Por conta do imenso sucesso do festi-

O cantor perdeu o controle, quebrou seu

uso de alucinógenos, camuflada no dia-

val de 1967, que foi considerado o mais

violão e o atirou ao público. Foi desclas-

grama do verso sem Lenço e Sem Docu-

marcante da TV Record, o ano de 1968 viu

sificado.

mento (LSD), inspirado na canção Lucy

uma multiplicação de festivais no Brasil

in the Sky with Diamonds, dos Beatles”.

inteiro. “Se deu festival adoidado”, afirma

do grupo da Jovem Guarda Beat Boys com

A música de Gilberto Gil “Domingo no

Zuza. A própria Record realizou dois fes-

a polêmica “Alegria, Alegria”. Segun-

Parque” trazia referências eruditas mes-

tivais naquele ano, o Festival da Música

do Miranda, usou “procedimentos nar-

cladas ao baião e à capoeira nordestina,

Popular Brasileira, que já vinha aconte-

rativos e musicais estranhos à tradição

e foi apresentada ao lado do conjunto

cendo desde 1966, e um especial de sam-

da MPB”. “A canção descreve problemas

de rock Os Mutantes. Ela, assim como

bistas cariocas. O ano foi marcado ainda

sociais e políticos, nacionais/internacio-

“Alegria, Alegria”, sinalizava a antropo-

por composições fortemente contrárias

nais, misturando-os ao dia a dia vivencia-

fagia tropicalista que se consolidaria em

à ditadura militar.

do por jovens de classe média.”

1968. As duas ficaram respectivamente

Caetano Veloso se apresentou ao lado

Além disso, estava se consolidando

Ela foi veementemente criticada por

em segundo e quarto lugar naquele ano.

efetivamente a Tropicália, um movi-

uma grande parcela dos artistas, que

As canções “Ponteio”, de Edu Lobo e

mento “neo-antropofágico” liderado por

rejeitavam a ideia de usar guitarras elé-

José Carlos Capinan, e “Roda-Viva”, de

Caetano Veloso e Gilberto Gil, que ao lado

tricas na MPB, da mesma forma que cri-

Chico Buarque, ficaram respectivamente

de Maria Bethânia e Gal Costa eram os

ticava as referências implícitas a aquela

em primeiro e terceiro lugar e eram mais

“Doces Bárbaros”, contando com a par-

cultura pop que vigorava fora do país e

afeitas aos moldes que se estabeleceram

ticipação de Os Mutantes, e de Tom Zé.

que era vista como símbolo de opressão.

na MPB dos festivais.

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A questão antropofágica foi um resga-

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te da proposta modernista de Oswald de Andrade de utilizar elementos externos integrados à cultura nacional. No caso do Tropicalismo, integrados à música. O Festival de 1967 já havia sido uma amostra disso, com a integração das guitar-

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ras elétricas, o grande símbolo do rock, a músicas com ritmos brasileiros. Em 1968, o festival mais marcante não foi o da Record, mas sim o Festival Internacional da Canção Popular (FIC), da TV Globo, de que participavam músicas nacionais e estrangeiras. Nele, se mantinha a regra da vaia contra músicas sem conteúdo político explícito. Dois eventos repercutiram por esse mesmo motivo. Um deles foi a discussão entre Caetano Veloso e o público que o vaiava durante a interpretação de “É Proibido Proibir”, em que ele criticou agressivamente a rejeição do público à estética experimental da canção com frases como “é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder? Vocês estão querendo policiar a música brasileira. Se vocês, em política, forem como são em estética, estamos feitos”, entre outras. Assim como aconteceu com Sergio Ricardo no ano anterior, a canção foi desclassificada do festival. “O público estava agindo como um exército, qualquer música sem conteúdo político era vaiada, ninguém pensava mais”, avalia Zuza. Outro evento marcante foi a decepção do público quando a música tida como favorita naquele ano, “Pra Não Dizer que Não Falei das Flores”, composta e interpretada por Geraldo Vandré, com crítica explícita à ditadura, não venceu. O maestro e doutor em comunicação social Kléber Mazziero de Souza explica a colocação. “É uma canção bastante pobre do ponto de vista musical, e, apesar da mensagem contundente, também pobre poeticamente”. A música vencedora, “Sabiá”, de Chico Buarque e Tom Jobim, também tinha um forte conteúdo político, mas

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No alto, apresentação de Caetano Veloso em festival de MPB, acima, Sérgio Ricardo, que quebrou o violão após vaias | FOTOS: REPRODUÇÃO

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PLAYLIST Veja (e ouça) canções finalistas dos festivais de 1965 a 1968

velado, de maneira que não despertasse a atenção do regime, mas não foi compreendida pelo público naquele momento. A revolta despertou a atenção dos mili-

1965  1° lugar: Arrastão (Edu Lobo e Vinícius de Moraes). Intérprete: Elis Regina

1965 2° lugar: Valsa do Amor que Não Vem (Baden Powell e Vinícius de Moraes). Intérprete: Elizeth Cardoso

tares para aqueles grandes eventos. “Os militares achavam aquilo tudo uma coisa boba, sem relevância, até quando eles começaram a perceber que não era bem assim”, comenta Zuza. O fim dos festivais O FIC aconteceu em outubro, e em dezembro foi decretado o AI-5. Com isso, grande parte dos compositores foram exilados. Caetano e Gil foram para Inglaterra, Chico Buarque foi para a Itá-

1966 1° lugar (empate): A Banda (Chico Buarque) e Disparada (Geraldo Vandré e Teo de Barros). Intérpretes: Nara Leão e Chico Buarque (A Banda); Jair Rodrigues, Trio Maraiá e Trio Novo (Disparada)

1967 1° lugar: Ponteio (Edu Lobo e Capinan). Intérpretes: Edu Lobo, Marília Medalha e Quarteto Novo

lia, Geraldo Vandré foi preso. Conforme comenta Mazziero, “o problema não era só que eles estavam longe, era também que os discos não chegavam mais aqui”. Além disso, dentro do Brasil a censura ficou muito mais rígida, prejudicando inclusive aqueles que permaneceram no país, como Milton Nascimento. Para o regente, esse grande vácuo foi preenchido por Elis Regina, que, embora não fosse compositora, sabia garimpar canções para interpretar. Assim se popularizaram compositores mais jovens, como Milton Nascimento, João Bosco, Ivan Lins, Belchior, entre outros.

1967 2º Lugar: Domingo no Parque (Gilberto Gil). Intérpretes: Gilberto Gil e Os Mutantes

1967 3º Lugar: Roda Viva (Chico Buarque). Intérpretes: Chico Buarque e MPB-4

Por conta desse vazio, os festivais gradualmente esmaeceram. Em 1972 aconteceu o último FIC com estrutura de programa televisivo. Existem até hoje competições do tipo, mas não têm audiência como na década de 1960. Zuza e Mazziero comparam aquele momento com a atualidade e concluem que houve uma inversão de valores da indústria musical, que em um primeiro momento procurava bons compositores para torná-los famosos e hoje procura astros sem se preocupar com sua

1968 1º Lugar: Sabiá (Chico Buarque e Tom Jobim). Intérpretes: Cynara e Cybele

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1968 2º Lugar: Pra Não Dizer Que Não Falei de Flores (Geraldo Vandré). Intérprete: Geraldo Vandré

qualidade, favorecendo programas como “X-Factor”, ou o “The Voice”, que priorizam a interpretação. n

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REVOLUÇÃO NAS TELAS O ideal libertário do Maio de 1968 também contaminou o cinema, provocando inovações tanto estéticas como temáticas

desencadeada em Paris. BRUNO REIS LUIZA COLLOCA

Convém lembrar, contudo, que os fil-

Crítico de cinema e professor de filo-

mes lançados em 1968 não necessaria-

sofia, ética e crítica da FAAP, Humber-

mente foram realizados no ano. Sér-

»»»Com os vários acontecimentos,

to Pereira da Silva concorda que o movi-

gio Rizzo, mestre em cinema pela USP e

protestos e reviravoltas no Brasil e em

mento de 1968 mudou os rumos do

professor da Academia Internacional de

outros países no ano de 1968, o cine-

cinema. "A rebeldia da juventude dei-

Cinema, explica: “A convenção ‘ano’ no

ma não poderia ter se mantido estáti-

xou em todos os âmbitos da cultura e do

cinema diz respeito à data de lançamen-

co. Os filmes produzidos no final dos

comportamento marcas indiscutíveis.

to, que ocorre algum tempo depois da

anos 1960 refletiam toda a efervescên-

Só para ficar num exemplo: o Blaxploi-

escrita, da filmagem e da finalização do

cia das ruas, com mudanças tanto no

tation, movimento cinematográfico com

filme. Ou seja: os filmes mais importan-

plano estético quando nos temas leva-

a temática da exploração dos negros nos

tes lançados em 1968 foram feitos antes

dos às telonas.

Estados Unidos na década de 1970, seria

– alguns deles, anos antes – dos eventos

impensável sem a atmosfera de Maio de

de maio; e aqueles feitos sob o impacto

1968."

de maio, por sua vez, foram lançados em

O movimento estudantil do Maio de 1968 na França, por exemplo, marcou uma importante transformação no cine-

O cinema francês, então, coincide com

ma do país – então considerado dos mais

as ideias das revoltas e protestos das

Talvez por isso, é na virada da década

inovadores do planeta. Três dos mais

ruas. O movimento se chamava Nou-

de 1960 para 1970 que houve uma radi-

importantes cineastas da época, Jean-

velle Vague. Movimento jovem, marca-

calização dos filmes por parte de alguns

-Luc Godard, François Truffaut e Clau-

do pela criação de filmes com a “assina-

cineastas franceses. Godard, por exem-

de Lelouch, iniciaram um movimento

tura” dos diretores, pela transgressão

plo, criou outros movimentos, como o

cinematográfico correspondente ao que

moral e estética, assim como os movi-

Estados Gerais do Cinema Francês, em

ocorria nas ruas e aderiram à greve geral

mentos populares.

que eram promovidos debates perma-

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1969, em 1970”.

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CINEGRAFIA Filmes marcantes da década de 1960

italianos. Nos anos 1960, a Itália também foi uma grande produtora de filmes, embalada pelo tradicional Festival de Cinema de Veneza. No Brasil Já o cinema brasileiro possui, desde as suas primeiras filmagens, uma ambição

2001: Uma Odisseia no Espaço (EUA, 1968)

por novas formas de produção. Mas foi ao final da década de 1960 apenas que o país se encontrou em uma situação favorável para a produção cinematográfica. Por conta da repressão da ditadura, os filmes conseguiam dialogar com boa parte da população, já que eles buscavam

Cena de "Antes da Revolução" (1964), de Bernardo Bertolucci

representar a realidade das ruas, e muitas vezes burlavam a censura. O movimento era chamado de Cinema Marginal, e foi caracterizado por mostrar cenas de baixa qualidade e sem pudor: críticas à ditadura militar, desobediên-

A Noite dos Mortos Vivos (EUA, 1968)

cia social e inconformismo. Os longas-metragens tinham como objetivo primário a resistência à censura imposta pelo regime militar, e, por esse mesmo motinentes sobre as estruturas do cinema

vo, ganhavam força popular no Brasil e

transformado em mercadoria.

fora do país.

O estudioso de cinema Marcos Aurélio

Mas o Brasil não foi o único país da

Teixeira ressalta a influência da política

América Latina a ter seus filmes com des-

na criação de vários grupos cinemato-

taque internacional. Cuba teve a sua obra

gráficos, como o Dziga Vertov, batiza-

cinematográfica de maior evidência rea-

do em homenagem ao cineasta soviéti-

lizada em 1968, o "Memórias do Subde-

co homônimo, de que Godard fez parte.

senvolvimento", do diretor Tomás Guti-

“Esse era um grupo com influência mar-

érrez Alea. "É o filme cubano de maior

xista e brechtiniana e de orientação mao-

expressão. Foi o filme que levou Cuba

ísta. Faziam filmes experimentais e de

para o cenário internacional", afirma

cunho comunista”, comenta.

Marcus Teixeira.

Para Rizzo, são destaques dessa época

Apesar de não apresentar uma gran-

alguns filmes que foram realizados antes

de revolução na linguagem, como outros

de 1968. “Gosto da ideia de que filmes

filmes da época, Teixeira explica o por-

anteriores ao Maio de 1968, como ‘Antes

quê dele ter se destacado internacional-

da Revolução’ (1964), de Bernardo Ber-

mente. "Ele foi feito pelo próprio cinema

tolucci, e ‘De Punhos Cerrados’ (1965),

estatal, mas fazia uma crítica, não só ao

de Marco Bellocchio, de alguma forma

capitalismo, mas uma crítica à Revolu-

se anteciparam ao caldeirão sociopolíti-

ção Cubana e aos rumos que o país esta-

co que explodiria anos depois”.

va tomando com uma possível ditadura

Não por acaso, Rizzo cita dois filmes

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de Fidel Castro". n

Terra em Transe (Brasil, 1967)

O Bandido da Luz Vermelha (Brasil, 1968)

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p&r

ENTREVISTA: JOSÉ HAMILTON RIBEIRO JORNALISTA

CONSIDERADO O “REPÓRTER DO SÉCULO”, O GANHADOR DE DIVERSOS PRÊMIOS

38/39

NACIONAIS E INTERNACIONAIS DE JORNALISMO É UMA MEMÓRIA VIVA DA IMPRENSA BRASILEIRA E UM ENTUSIASTA DAS NOVAS GERAÇÕES DE JORNALISTAS, QUE CONSIDERA BEM PREPARADAS

O JOVEM JORNALISTA DE HOJE É MELHOR DO QUE O DA MINHA ÉPOCA MF38_45_pingue.indd 44

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Foto: Renato Essenfelder

Como cidadão brasileiro e como jornalista, como foi o ano de 1968 para o sr.? O ano de 1968 foi o ano do AI-5. Os militares tinham tomado o poder em 1964, mas eles iam tocando o Brasil com o governo militar, sem ditadura. Não havia censura à imprensa, as pessoas que eram investigadas eram tratadas com respeito, com civilidade. Mas quando chega 1968 o regime endurece, vem o AI-5, a ditadura, e aí foram quase 20 de chamados “anos de chumbo”. Muita perseguição, muita cassação de políticos importantes e muitos Inquéritos Policiais Militares, que eram a novidade da época. Então, como cidadão, acho que foi uma coisa muito sombria, o Brasil entrou num tempo obscuro. Na minha vida pessoal também houve algo importante: eu fui mandado para cobrir a guerra do Vietnã, o que me resultou numa experiência muito grande e em um trauma razoável, inclusive porque eu perdi parte do corpo [leia mais sobre isso no box da página 47].

O que mudou no modo de fazer jornalismo daquela época para hoje? Em primeiro lugar havia a censura à imprensa, que começou em 1968. Os principais órgãos, os principais jornais e revistas tinham um censor presente o repórter conta sua experiência de

na redação. Uma figura tétrica, maca-

PETER FRONTINI

cobertura da Guerra do Vietnã, onde

bra e ridícula.

»»»Jornalista há mais de seis décadas,

pisou em uma mina terrestre e teve

José Hamilton Ribeiro escreveu mais

sua perna esquerda amputada.

Com isso a figura do repórter passou a ser insignificante, porque repór-

de 15 livros e fez carreira multimídia.

Em entrevista à Revista Plural,

ter faz reportagem. Reportagem ou é

Trabalhou na revista “Quatro Rodas”,

Ribeiro fala sobre como a censura

investigativa ou não é reportagem. E

no “Fantástico”, na Rádio Bandeiran-

implantada em 1968 afetou a “Reali-

ali houve um aplacamento do jorna-

tes, no “Globo Rural”, onde está atu-

dade”, sobre o que mudou no jorna-

lismo investigativo, tanto que repór-

almente, e em diversos outros gran-

lismo de lá para cá e sobre formação

teres tiveram que deixar as grandes

des veículos. Mas foi na mítica revista

de jornalistas. O repórter, considera-

redações. Alguns tentaram fazer uma

“Realidade” que ele realmente se des-

do um dos mais importantes da histó-

cooperativa, uma imprensa alternati-

tacou, vencendo a maior parte dos prê-

ria do Brasil, recebeu nossa equipe em

va. Outros foram para o interior, onde

mios Esso que recebeu em sua carreira

seu ensolarado apartamento no bairro

a censura seria menor, mesmo porque

– incluindo o que recebeu pela repor-

da Aclimação, em São Paulo. Confira a

os jornais do interior eram pequenos,

tagem “Eu estive na guerra”, na qual

seguir trechos da entrevista.

falavam de assuntos regionais e não

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“FUI SEMPRE CONTRA A RESISTÊNCIA ARMADA, PORQUE ACHAVA QUE NÃO ERA INTELIGENTE COMBATER A BRUTALIDADE QUE A GENTE SOFRIA [NA DITADURA] COM OUTRA VIOLÊNCIA, COM OUTRA BRUTALIDADE”

“QUANDO SURGIU A ‘REALIDADE’, O POVO A ACOLHEU MUITO RAPIDAMENTE, PRINCIPALMENTE A JUVENTUDE. NAS ESCOLAS E NAS UNIVERSIDADES, ELA ERA IMBATÍVEL.”

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mexeriam muito com a política nacio-

capeta solto no Brasil e que precisá-

nal, então era possível trabalhar.

vamos lutar contra ele.

Outros foram para a luta armada, para a resistência armada, que era uma das opções da época. Uma opção

Mas ainda assim na revista “Realidade” se faziam grandes matérias.

a qual eu não aderi, fui sempre con-

A Realidade teve dois momentos. O

tra ela, porque acho que não era inte-

primeiro momento, que vai de 1966

ligente combater a brutalidade que a

a 1969, em que existia no Brasil um

gente sofria com outra violência, com

governo militar, mas ainda não exis-

outra brutalidade.

tia ditadura. O Congresso funcionava,

Jornalismo investigativo não se

os partidos funcionavam, não exis-

fazia mais. Os jornais praticavam

tia censura à imprensa. A “Realida-

alguns recursos que hoje parecem até

de” navegou nesse período e a polí-

pitorescos. Alguns publicavam poesia

tica interna da revista era trabalhar

na página política, para mostrar que

sem nenhum tipo de autocensura: nós

não podiam publicar coisas sérias,

fazíamos a pauta que queríamos com

coisas de contestação, então davam

o enfoque que queríamos dar. Se eles

assim um recado para o leitor. Outros

quisessem censurar, eles que viessem,

jornais publicavam receitas de bolo;

mas nós não o faríamos. E a “Realida-

revistas publicavam fábulas antigas,

de” então pôde viver os anos de 1966

principalmente envolvendo o demô-

a 1968 com liberdade e pôde fazer as

nio, para dizer que estávamos com o

grandes reportagens que fez.

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Foto: Renato Essenfelder

RAIO-X Nome: José Hamilton Ribeiro Naturalidade: Santa Rosa de Viterbo (SP), 1935. Formação: jornalismo (não concluído) Livros: escreveu 15, entre eles “O Gosto da Guerra” (1969), “Jornalistas 37/97” (1998), e “Os Tropeiros” (2006) Prêmios: recebeu sete Prêmios Esso, um Prêmio Embratel de Jornalismo (2004), um Prêmio Internacional Maria Moors Cabot, entre vários outros.

Foto divulgação

Quando chegou o fim do ano de 1968,

por que que a “Piauí” não tem a reper-

vel. Essa circunstância de hoje mudou

no dia 13 de dezembro, é que se insta-

cussão que a “Realidade” tinha? Pri-

tanto que a revista “Piauí”, mesmo

lou a ditadura de fato. A edição seguin-

meiro que as circunstâncias são

muito bem-feita, muito bem pauta-

te da “Realidade” foi a última sem cen-

outras, o momento político é outro.

da e muito bem executada não tem a

sura direta. Em seguida a censura se

Hoje o Brasil vive numa democracia,

repercussão que a “Realidade” tinha.

instaurou na editora Abril [que publi-

as instituições estão funcionando, os

cava a revista]. Então, houve outras

partidos, o Congresso, o Judiciário está

circunstancias que acabaram levan-

funcionando, mesmo com seus defei-

do a revista ao seu fechamento.

tos, está tudo aberto e funcionando.

Não é culpa do jornalista, é culpa do contexto.

No lugar da “Realidade”, na mesma

Nesse meio tempo surgiu ainda a

Quais foram as matérias mais marcantes que o sr. já fez?

editora surgiu a “Veja”, que teve muita

internet, que criou um fato novo no

Há uns cinco anos eu precisei fazer

dificuldade de sobrevivência nos pri-

mundo das comunicações e na trans-

um currículo que precisava ser deta-

meiros dez anos, mas depois se trans-

missão de notícias.

lhado, então eu fiz um levantamento

formou no que é hoje, a quarta maior revista semanal do mundo.

Essa circunstância tirou um pouco

lá na redação para ver quantas repor-

aquela situação que a “Realidade”

tagens de televisão eu tinha feito até

vivia. Se dizia que a “Realidade” era

aquela época. E não são reportagens

No quesito de conteúdo, estilo jornalístico e espírito inovador, o sr. acha que hoje existe alguma revista que se assemelhe à “Realidade”?

a revista que faltava. Era uma coisa

pequenas, são grandes reportagens –

que o povo não tinha e gostaria de ter.

grandes porque demandam pesquisa

Então, quando surgiu a “Realidade” o

e que têm uma ambição literária, um

povo a acolheu muito rapidamente,

texto qualificado, para que a leitura

Existe a revista “Piauí”, que é uma

principalmente a juventude. Nas esco-

seja um prazer.

revista de grandes reportagens. Mas

las e nas universidades ela era imbatí-

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Nesse balanço de cinco anos atrás eu

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“A INTERNET É UMA FERRAMENTA VALIOSA, MAS É TRAIÇOEIRA. VOCÊ NÃO PODE ACREDITAR EM TUDO O QUE ELA DIZ”

tinha 800 reportagens no Globo Rural. Na “Realidade” eu não fiz as contas, mas ela durou cinco anos fazendo reportagens boas. Mesmo depois que acabou aquela primeira fase e já com a censura funcionando a revis-

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ta arrumou um jeito de publicar boas reportagens. Então, são 250 edições, das quais eu participei como repórter de umas 230. Era uma revista mensal exclusivamente de reportagens, cada uma de um repórter diferente com um estilo autoral diferente, de jornalistas que cuidavam do texto, que tinham a ambição literária. Essa ambição é tornar a leitura prazerosa e fazer a reportagem resistir ao tempo. Dizem que o jornal dura 24 horas, o tempo que está na banca, pois ele morre e vem outro. Na verdade, não é bem assim porque o jornal é um documento que fica para sempre. Mas de qualquer maneira ele tem o seu brilho de 24 horas e depois ele desaparece, pois já tem uma outra edição vindo atrás. O jornal tem esse traço de ser temporário e de durar pouco, enquanto o texto de qualidade literária resiste ao tempo, ele passa pela prova do tempo. Essas reportagens da “Realidade” tinham essa ambição literária,

na “Realidade”. Tem uma outra que eu

é só o repórter que faz a reportagem,

como as reportagens da “Piauí” hoje.

gosto muito também, que o assunto é o

quem faz a reportagem é uma estrutu-

seguinte: a gente procurou na umban-

ra empresarial, porque você não faz a

Dentre essas centenas de reportagens que o sr. fez, quais foram as mais marcantes?

da o pessoal que trabalha com exus,

reportagem em casa para você mesmo,

que trabalha com o mal. A umbanda,

você faz para publicar em uma revista,

teoricamente, trabalha com os orixás,

em um jornal. E essa estrutura empre-

Tem um livro meu com as reporta-

com os santos do bem, mas tem uma

sarial está em uma crise grave. O negó-

gens que ganharam o Prêmio Esso,

linha que trabalha com o mal. Essa

cio do jornalismo apoiado na publici-

são reportagens que tiveram desta-

linha aceita encomenda para chamar

dade esvaziou com a internet.

que. Algumas figuram em antologias

a morte de alguém.

de grandes reportagens. E tem algumas que eu gosto pessoalmente mais do que outras.

Hoje, os grandes jornais nos Estados Unidos, na Europa, na Inglaterra

Ainda se fazem grandes reportagens, como as daquela época, hoje em dia?

e também no Brasil estão buscando formas de sobreviver como empre-

Uma que eu gosto muito chama

Diminuiu um pouco o número des-

sa, como negócio, na atual conjuntu-

“Coronel não morre”, que é um per-

sas reportagens nos jornais em fun-

ra de enfrentamento com a internet.

fil de um coronel do Nordeste, e saiu

ção da crise da imprensa. Porque não

E os americanos estão conseguindo,

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WWV Fotos: Renato Essenfelder

“UM REPÓRTER QUER GANHAR DO OUTRO, É CARACTERÍSTICA DO JORNALISTA ESSA LUTA PARA SAIR NA FRENTE, PARA SER O MELHOR”

eu acho que as grandes capitais bra-

fissional. A pessoa normal, que vive

rizar a informação qualificada que um

sileiras também vão conseguir man-

de informação da internet, teria que

profissional treinado pode dar, que é

ter um grande jornal. Agora, os jornais

ficar 24 horas ligada à internet, é muita

o jornalista.

pequenos, do interior, eu não sei se vão

informação. Ela não faria outra coisa

conseguir.

na vida.

Então, de um lado, isso valoriza a função social do jornalista. De outro,

Já se sabe que a internet é uma fer-

minou a realização material da empre-

O sr. acha que o jornalismo ganhou ou perdeu relevância em um mundo tão conectado à internet em que as pessoas dispensam um mediador e vão direto a uma fonte primária para buscar informação?

ramenta valiosa, mas é traiçoeira. Você

sa. Por isso está acontecendo essa crise

não pode acreditar em tudo o que ela

no mundo todo e é preciso reencontrar

diz. Então, uma entidade, que seria

uma fórmula empresarial que faça o

um jornal, uma revista, um noticiá-

jornal, a revista, o rádio e a TV sobre-

rio de TV ou de rádio, que filtre para

viverem.

o cidadão as notícias e passe para ele

O telejornalismo depende da con-

Acho que é um assunto que ainda

só as relevantes, que tenham sentido,

dição da empresa, pois jornalismo é

está em análise. Mas já se tem uma

e ignore essa poeira inconsistente do

uma coisa cara. E bom jornalismo é

percepção que a internet vai mostrar

ponto de vista de conteúdo.

muito caro, precisa ter estrutura eco-

o quão importante é o jornalismo pro-

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Esse tiroteio de informação vai valo-

nômica e financeira para bancar isso.

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Foto: Renato Essenfelder

“HOJE EM DIA O JORNALISTA CHEGA AO JORNAL COM QUATRO ANOS DE UNIVERSIDADE. ELE É MUITO MELHOR DE FORMAÇÃO DO QUE O DAQUELA ÉPOCA. O JORNALISTA MELHOROU MUITO”

É o que está em pauta no momento: as

tas filiados ao sindicato. Até 1997, o

ser jornalista, entrou na escola, deve

empresas jornalísticas conseguirem

sindicato tinha associados como jor-

tratar de se formar, de se instrumen-

uma forma de se sustentarem.

nalistas vários analfabetos. A pessoa

talizar. Ele precisa de armas, porque

analfabeta entrava no jornal como

o jornalismo é uma profissão muito

O que o sr. pensa da formação do jornalista? O que é um jornalista bem formado? Esses parâmetros mudaram nas últimas décadas?

motorista, como vigia, como porteiro,

competitiva. Um repórter quer ganhar

e, se gostasse desse negócio de jorna-

do outro, é característica do jornalista

lismo, ele ia se aproximando. Se tivesse

essa luta para sair na frente, para ser o

uma emergência, mandavam esse cara

melhor. Se a pessoa tem vocação ver-

O jovem jornalista de hoje é melhor

mesmo para cobrir a pauta, e ele tra-

dadeira para ser jornalista, deve con-

do que o jovem jornalista da minha

zia as informações à redação e assim

seguir uma boa formação, seja nos

época. Quando eu comecei não era

se transformava em jornalista.

bancos da escola, seja através da lei-

obrigatório o diploma, a lei veio

Hoje em dia o jornalista chega ao

tura de bons livros.

jornal com quatro anos de universi-

O jornalista tem que ler bons livros,

Um livro que eu fiz para o Sindicato

dade. Ele é muito melhor de formação

bons autores e bons poetas. A poesia

dos Jornalistas sobre os seus 60 anos

do que o daquela época. O jornalista

é uma quintessência do pensamento

de existência teve a ambição de contar

melhorou muito.

humano: o poeta tem a antena da raça,

depois, com o golpe militar.

a história da imprensa de São Paulo, não vista pela empresa e pelos donos

ele vê antes os fenômenos do mundo, e o jornalista também precisa ver antes.

de jornal, mas sim pelos jornalistas.

Com toda a sua experiência, o que o sr. aconselharia a um jovem jornalista hoje?

A gente fez uma pesquisa sobre o jor-

O jornalista precisa ter duas coi-

formação, ele faz seu caminho no jor-

nalismo daquela época e os jornalis-

sas: vocação e formação. Quem quer

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Se o jovem tem vocação e uma boa nalismo. n

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WW Fotos: Reprodução

Em 1968, repórter perdeu a perna no Vietnã »»»José Hamilton Ribeiro já havia encerrado sua matéria sobre a guerra do Vietnã e planejava voltar ao Brasil em 20 de março de 1968 quando, a pedido de seu fotógrafo, o japonês Shimamoto, decidiu ficar um dia a mais no Vietnã para tirar a foto que seria a da capa de sua reportagem para a revista “Realidade”. Eles estavam acompanhando um esquadrão do Exército norte-americano no front de guerra quando ouviram uma explosão. José e um soldado correram na direção do ferido, e, nesse momento, o repórter pisou em uma mina terrestre que arrancou sua perna esquerda e feriu a direita. “A calça do lado esquerdo tinha desaparecido. A visão foi terrível. O sangue brotava como de torneiras. Depois do joelho, a perna abria-se em tiras, e um pedaço largo de pele, retorcido, estava no chão. Olhei em volta e não achei meu pé”, escreveu o repórter em sua premiada matéria na “Realidade” que narrou o episódio (reproduzida na imagem ao lado, no alto). Os dias seguintes, em um hospital do Exército americano no Vietnã, foram o que José descreveu como os piores de sua vida, recheados de dor, morfina e náuseas. “Meu moral é zero: sofro dor o tempo todo, não posso comer, estou obrigado a uma posição fixa, e sem possibilidades de contato com ninguém”, escreveu ele. Após estabilizado, José terminou

histórica //

sua recuperação em um centro de

Considerada um divisor de águas na imprensa brasileira, a revista “Realidade” floresceu em plena ditadura militar e marcou época com um time de jornalistas talentosos, autores de textos memoráveis que até hoje inspiram repórteres

reabilitação de Chicago (EUA) e vol-

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tou ao Brasil quatro meses após chegar ao Vietnã, já com uma prótese. n

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UM OLHAR SOBRE O PROCESSO DE REPORTAGEM

46/47

BASTIDORES

(RE)VIVENDO A HISTÓRIA Ao fazer um balanço do ano de 1968, a equipe da Plural se deparou com incríveis histórias de dor e de perseverança

FERNANDA BADDINI

»»»A indignação se misturava com uma

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não entendemos esse drama de verdade até ouvi-lo sendo contado, olho no olho, pela boca de uma sobrevivente.

tristeza, que era acentuada por um nó na

Precisávamos de fontes que realmen-

garganta, capaz de paralisar até a respi-

te viveram o ano de 1968. A procura por

ração. Durante uma entrevista, a repór-

nomes começou em secretarias de uni-

ter Ana Teresa Guida, do 4º semestre de

versidades e depois migrou para sites

jornalismo, inspirou forte, tentando con-

especializados no período. O “Memórias

trolar o choro. A entrevistada, sem enten-

da Ditadura” foi um deles. A partir desse

der o que acontecia, achou que a aluna

canal, contatamos várias fontes, e Rose-

ria e interrompeu o trabalho, indignada.

meire Nogueira – ou Rose, como costu-

A cena aconteceu durante o relato de um

ma ser chamada – respondeu com gen-

estupro sofrido por Rosemeire Nogueira

tileza. “Parabéns pela escolha do tema”,

durante a ditadura militar.

dizia seu e-mail de resposta, acompanha-

A gente sabe do golpe militar brasileiro.

do de seus telefones de contato e segui-

A gente sabe da violenta repressão que se

do de um “se te interessar, lembrei-me de

instalou no Brasil. A gente sabe que mui-

muita coisa que aconteceu naquele ano

tos se levantaram e lutaram contra a dita-

na imprensa até chegar ao Ato 5, em 13 de

dura – e quão caro pagaram por isso. Mas

dezembro de 1968”.

28/11/17 23:36


sença de Elisabeth. A conversa se estendeu por quatro horas e pode ser caracte-

Enquanto Marcella folheava a

rizada por uma única palavra: intensa. Em

memória da ditadura, um grupo de

determinado momento tocou o telefone.

repórteres proseava com a memória

Rose atendeu. Não prestamos muita aten-

do jornalismo.

ção no papo, até que ela desligou e veio a

Em uma ensolarada tarde de outu-

surpresa: “Conhecem a Clara? É a viúva do

bro, os alunos-repórteres Peter Fron-

Marighella, muito minha amiga. Se qui-

tini e Catarina Bruggeman, acompa-

serem, podemos marcar uma entrevista

nhados do cinegrafista Leandro Vieira

com ela”. Mariguella foi um dos líderes

e do editor da Plural, Renato Essenfel-

comunistas mais perseguidos pelo regi-

der, tiveram a oportunidade de encon-

me militar, foi torturado e morto. Infeliz-

trar um dos maiores mestres do jor-

mente o prazo de fechamento da revis-

nalismo brasileiro: José Hamilton

ta não permitiu que agendássemos um

Ribeiro.

encontro com Clara.

Produção da capa da Plural, feita em uma Vandercook, impressora tipográfica do ano de 1969. Na foto, Érico Padrão monta o processo de impressão, realizado pela gráfica Carimbo Letterpress | FOTO: CATARINA BRUGGEMANN

repórter do século

O repórter, vencedor de inúmeros

Conhecer Rose foi uma lição de cidada-

prêmios, que se notabilizou pelo tra-

nia, fé, esperança e resistência. Nossa des-

balho na histórica revista Realidade

pedida foi marcada por um abraço forte

– onde, entre outras pautas, cobriu a

e por uma frase que para sempre vou

Guerra do Vietnã , perdeu um perna

levar comigo: “Como a ditadura me tirou

no front de batalha e escreveu memo-

o direito de ter uma filha, eu saio caçando

rável reportagem –, recebeu a equipe

filhas por aí. Sintam-se em casa e voltem

da revista em sua própria casa. Duran-

sempre que quiserem”. Ela, de fato, mar-

te mais de uma hora, falaram sobre o

cou minha vida.

ano de 1968, a ditadura militar, e, claro jornalismo. “Entrevistar o Zé Hamil-

arquivo vivo

ton foi uma experiência profissio-

Na mesma tarde do primeiro encon-

nal muito boa, porque afinal de con-

tro com Rosemeire, a repórter Marcella

tas sou um jornalista com oito meses

Stewers, do 3º semestre do curso de Jor-

de conhecimento e ele tem mais de

Marcamos o encontro cinco dias após

nalismo, se surpreendia com a quantida-

60 anos de trajetória”, pondera Peter

a ligação. Nos encontramos na casa dela,

de de identidades falsificadas de José Luís

Frontini. n

em uma terça-feira à noite. A conver-

Del Roio. O encontro aconteceu na praça

sa aconteceu no sofá da sala: quatro alu-

da Sé, no prédio da Unesp.

nas, ela e a jornalista de cultura Elisabeth

Depois de mostrar a Marcella a sala em

Lorenzotti, amiga íntima de Rose. Depois

que Monteiro Lobato realizava suas reu-

o papo seguiu para a cozinha, onde foi

niões, e logo em seguida contar que pos-

servido, carinhosamente, um lanche. Em

sui um cartaz original da Revolução Russa

momento algum havia sido citada a pala-

pregado na parede de sua casa, ele desceu

vra “tortura”.

alguns lances de escada e abriu uma caixa.

Próximos às 22h, perguntamos sobre a

“Eu usava muitos nomes porque era diri-

violação que Rose sofreu no período em

gente e fundador da Aliança Libertadora

que permaneceu presa. “Podemos mar-

Nacional (ALN), então em cada Estado eu

car para amanhã? Estou um pouco cansa-

mudava de nome”, contou, enquanto tira-

da e esse assunto é muito pesado e mexe

va dezenas de RGs falsificados do arquivo.

comigo.” Claro. Voltamos no dia seguinte.

Esses e outros documentos sobre o

Na quarta-feira não erámos mais em

período de ditadura que Del Roio adqui-

quatro, mas em cinco. O lanche também

riu– sem nos revelar como – ficam guar-

“Como a ditadura me tirou o direito de ter uma filha, eu saio caçando filhas por aí”

nos esperava, mas desta vez sem a pre-

dados em cofres.

Rosemeire Nogueira

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ARTIGO

48/49

A propaganda brasileira em 1968

PROF. DR. PAULO ROBERTO FERREIRA DA CUNHA COORDENADOR DO CURSO DE PUBLICIDADE E PROPAGANDA DA ESPM-SP

»»»Para entender a propaganda bra-

de maior penetração nacional – utiliza-

sileira em 1968 é fundamental ter

da como fator de integração deste país

em mente o que significou a década

com dimensões continentais. Em parale-

de 1960 para esta atividade. Profun-

lo, ocorreu o impulsionamento do merca-

das transições aconteceram no perí-

do editorial de revistas através de novos

odo, possibilitadas pelos reflexos do

títulos – como as revistas “Realidade” e

momento econômico que oportuni-

“Veja” (lançada, esta última, em 1968)

zou o consumo, pela reestruturação do

– e do movimento de segmentação de

ambiente midiático que consolidou o

publicações no sentido de buscar e fide-

padrão vigente até hoje com a televi-

lizar leitores.

são e por novos processos no exercício da atividade profissional.

MF48_50_artigo paulo.indd 52

Para o mercado de agências, os anos 1960 deixaram sua marca com a introdu-

No Brasil, a importância da década de

ção do sistema de duplas de criação – um

1960 para o mercado publicitário pode

diretor de arte e um redator trabalhando

ser exemplificada por alguns fatos. Para

juntos –, implementada por Alex Peris-

o setor, a fundação da Associação Brasi-

cinotto na agência Alcântara Macha-

leira de Anunciantes (ABA), a promul-

do, à qual respondeu vigorosamente à

gação da Lei 4.680 que regulamentou

demanda de maior criatividade exigida

serviços e formas de remuneração das

pelo mercado. Com igual importância,

agências de publicidade, o lançamento

percebe-se, no período, maior eferves-

da Rede Nacional de Telecomunicações

cência promovida por fusões e aquisições

pela Embratel e a ampliação do jornalis-

de agências, além da criação de empresas

mo especializado com a revitalização da

icônicas – como a DPZ, fundada em 1968.

revista “Propaganda” e os lançamentos

Cabe apontar uma importante caracte-

da publicação “Veículos” e do “Anuário

rística da propaganda à época: a amplia-

Brasileiro da Propaganda”.

ção do uso de abordagens emocionais em

Sob o ponto de vista da mídia, houve

campanhas. Reflexo direto da segmen-

a consolidação da televisão como meio

tação de mercado impulsionada pelo

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Em 1968, a propaganda pegou carona no crescimento econômico e na ampliação do consumo, sob a batuta de uma emergente classe média

Fotos: reprodução

consumo pós-II Guerra Mundial, a qual exigiu maior volume e sofisticação de informações sobre o comportamento de consumidores, de modo a diferenciar e direcionar o posicionamento de produtos e serviços, em oferta crescente. Assim, a comunicação fez uso de projeções, anseios e estilo de vida de consumidores para os conectar a marcas. Já sob o impulso do que se constituiria, poucos anos após, no Milagre Brasileiro, especificamente no ano de 1968, a propaganda pegou carona no crescimento econômico e na ampliação do consumo, sob a batuta de uma emergente classe média. Havia trabalho, havia espaço para a criatividade e verbas para campanhas publicitárias. Em termos práticos, por exemplo, naquele ano a propaganda apresentou o lançamento de automóveis icônicos como o Ford Corcel e o Chevrolet Opala, assim como estimulou a participação em eventos como a 11ª Feira Nacional da Indústria Têxtil (Fenit), patrocinada pela Rhodia, e o VI Salão do Automóvel. Milagre econômico O momento da comunicação em 1968 permitiu a convivência de características singulares tais como o desenvolvimento do setor, os investimentos em propaganda, a adoção de novas linguagens e a censura. O consumidor brasileiro possuía um vasto leque de alternativas de produtos midiáticos para informação e entretenimento, os quais ampliavam espaços para veiculação de campanhas publicitárias. Por exemplo, na TV Tupi, o programa de Flávio Cavalcanti, o jornalístico “Repórter Esso” – cuja última exibição se deu em dezembro daquele ano – e a novela “Beto Rockfeller” – que concretizou a estética naturalista na narrativa do folhetim eletrônico. Por sua vez, na Rede Globo, programas como “Discoteca do Chacrinha” – com merchandising da

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Acima, anúncio da borracha Mercur, com o personagem “Mercurinho”; ao lado, propaganda dos carrinhos colecionáveis Matchbox

rede de supermercados Casas da Banha –, humorísticos como “Oh! Que delícia de show” ou novelas como “A gata de vison” e “Passos dos ventos”, na qual a autora Janete Clair gerou polêmica com um namoro interracial, fizeram sucesso. Ao mesmo tempo, as icônicas revistas de informação “Manchete”, “Fatos & Fotos” e “O Cruzeiro” disputavam espaço com as revistas de fotonovelas “Capri-

em anúncios, como as miniaturas de car- cinado pelos Maiôs Catalina, que consa-

cho”, “Grande Hotel” e “Sétimo Céu” e

ros Matchbox.

grou a baiana Martha Vasconcellos como

com a automobilística “Quatro Rodas”.

Ainda relacionado ao mercado edi- a representante nacional para o concurso

Para a criançada, os gibis apresenta-

torial, e correndo em paralelo, o espaço Miss Universo, também vencido por ela.

vam aventuras e anúncios tradicionais

para coleções e fascículos aqueceu-se com

das marcas Chiclete Adams e Chocolate

a inauguração da Abril Cultural em 1968, nado à propaganda, é possível concluir

Galak, formatos diferenciados das Borra-

que oferecia obras como “As grandes ópe- que 1968 representou para o mundo e

chas Mercur – que já preconizava o que

ras”, com disco de vinil incluído na brochu- para o Brasil um momento de transi-

hoje é chamado de branded content, com

ra, e receitas deliciosas da coleção “Bom ções políticas e econômicas e de abertura

o personagem Mercurinho – e a possi-

Apetite”.

Por fim, diante de tal mosaico relacio-

para novas propostas estéticas, culturais

bilidade de comprar produtos através de

Vale registrar que também em 1968 foi e sociais. Para a propaganda brasileira,

cupons para reembolso postal colocados

possível vibrar com o 15º Miss Brasil, patro- o período gerou reflexos significativos e de imenso valor, como se comprovou nas décadas posteriores através de seu crescimento, inovação e reconhecimento

Para a propaganda brasileira, o período gerou reflexos significativos e de imenso valor, como se comprovou nas décadas posteriores através de seu crescimento

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técnico obtido aqui e internacionalmente. Respostas vigorosas de um setor cada vez mais consolidado, profissional e eficaz à época, e que mantém sua importância inconteste como mercado e como manifestação de comunicação até hoje. n

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FOTO: ANDRE DEAK/LABFOR

DEZEMBRO DE 2017 // ANO 6 // NÚMERO 12

COLABORADORES

ANA TERESA GUIDA

FERNANDA BADDINI

LUÍZA COLLOCA

20 anos, cachoeirense. Enciclopédia de cultura pop, quer atuar no jornalismo de entretenimento.

20 anos, sorocabana. Sonha em mostrar histórias não conhecidas, mas dignas de serem contadas.

19 anos, paulistana. Almeja escrever roteiros e reportagens sobre questões sociais.

BRUNO REIS

FRANCIELLEN ROSA

MARCELLA STEWERS

18 anos, taubatense. Como não tenho certeza do que quero no jornalismo, só posso desejar ser feliz.

20 anos, de São Bernardo do Campo. Sua referência no jornalismo é o repórter Caco Barcellos.

20 anos, de Blumenau. Tocar as pessoas de alguma forma é o que acha mais bonito no jornalismo.

GABRIELA SOARES

NATHALIA OLIVA

19 anos, nascida em São Paulo. Quer ser tipo a Míriam Leitão.

20 anos, paulistana. Para ela, o melhor do jornalismo é conhecer e contar histórias.

19 anos, nascida em São Paulo, pretende ser correspondente internacional.

CLARA GUIMARÃES

LUANA MATSUDA

PETER FRONTINI

18 anos, de Presidente Prudente (SP), quer seguir carreira no ramo da moda e entretenimento.

20 anos, nascido em São Paulo. Pretende seguir carreira no jornalismo literário e cultural.

LUCAS DE ABREU PALMA

STEPHANIE FRASSON

18 anos, de São Bernardo do Campo. Quer atuar com conteúdos que aliem educação e entretenimento.

29 anos, niteroiense, mora em SP há dez anos. Poder conhecer e contar histórias é o que ama no jornalismo.

CATARINA BRUGGEMANN

18 anos, nascida em Ribeirão Preto. Quer trabalhar com jornalismo impresso na área cultural.

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DESTA EDIÇÃO

30/11/17 15:00


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