DEZEMBRO DE 2018 // ANO 7 // NÚMERO 14 REVISTA-LABORATÓRIO DOS ALUNOS DO CURSO DE JORNALISMO DA ESPM
PARTICIPAÇÃO DO #ELENÃO AO #ELESIM, MANIFESTAÇÕES LOTAM AS RUAS E CELEBRAM ENGAJAMENTO POLÍTICO ASSÉDIO ANONIMATO NA INTERNET INCENTIVA ATAQUES VIRTUAIS, QUASE SEMPRE CONTRA GAROTAS ENTREVISTA PARA FUNDADORA DA THINK OLGA, MOMENTO É DE LUTA PARA RESGUARDAR DIREITOS DAS MULHERES
LUTE COMO UMA GAROTA O que significa ser uma menina no Brasil? Conheça preocupações, desafios e conquistas Foto: Roberto Braga/NIS ESPM
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REVISTA-LABORATÓRIO DO CURSO DE JORNALISMO DA ESPM-SP Nº14 - 2º SEMESTRE DE 2018
Presidente Dalton Pastore Jr. Vice-presidente Acadêmico e de Graduação Alexandre Gracioso Vice-presidente AdministrativoFinanceira Elisabeth Dau Corrêa Diretora nacional de operações acadêmicas Flávia Flamínio Diretor nacional de educação continuada Luiz Fernando Garcia Coordenadora do curso de Jornalismo-SP Maria Elisabete Antonioli
EDITORIAL
POR NENHUM DIREITO A MENOS A luta das mulheres não para de avançar desde o século retrasado. E não vai parar. Mas, ao mesmo tempo, ainda vivemos uma realidade na qual somos assassinadas, assediadas e recebemos salários menores pelo simples fato de sermos mulheres. Em 2018, o Brasil viveu extremos dessa contradição. Enquanto o roxo que representa a batalha feminista por direitos tomou as ruas de todo o país, o verde e o amarelo foram apropriados por campanhas políticas que permitiram a eleição do Congresso mais con-
Revista Plural revistaplural-sp@espm.br Editor - Revista Plural Prof. Renato Essenfelder Editora convidada - Revista Plural Profa. Cláudia Bredarioli Editor - LabFor Prof. André Deak Revisão Prof. Antonio Rocha Filho Profa. Maria Elisabete Antonioli
servador desde a redemocratização brasileira, ainda que isso tenha possibilitado também um aumento de 50% da representatividade feminina na Câmara dos Deputados, como vemos na reportagem que começa na página 34 desta 14ª edição da Revista Plural. A exposição a essas contradições dá o tom da reportagem de capa, “Vida de Menina”, na página 18. Com a discussão sobre os feminismos em pauta, ser menina passa pela compreensão desse contexto. Nesse sentido, Juliana de Faria, cofundadora da ONG feminista Think Olga, em entrevista na página 48, usa o slogan das sufragistas norte-americanas para reforçar que não se trata de uma disputa de gênero, mas de equidade: “Homens, seus direitos e nada mais. Mulheres, seus direitos e nada menos”
Alunos colaboradores (Plural, LabFor e Design Lab) Alana Ferrer; Aline Chalet; Amanda Rozenblit; Bianca Pancini; Bruna Piñeiro; Caroline Rullo; Giovanna Oliveira; Giovanna Tuneli; Jamyla Braga; Júlia Fontes; Laís Côrtes; Letícia Vinocur; Maria Victória Brizzi; Marina Lahr; Natalia Domingues (Design Lab); Nathalia Miranda; Nathália Rosa; Paula Jacob; Pedro Mitre (Design Lab); Sara Santana Sofia Nunes Aureli; Thaynah Silva; Tiago Rodrigues (Design Lab); Victória Faragó
Num momento de efervescência dessa luta, que tem levado milhões de mulheres às ruas, a Plural traz à tona as discussões desta temática pelo olhar de jovens futuras jornalistas. Nas páginas a seguir temos mulheres que escrevem sobre mulheres. Alunas que conversaram com mulheres jornalistas, ativistas, cientistas, com jovens que foram às ruas contra e a favor dos governantes eleitos no último pleito. Recuperaram fatos históricos do movimento feminista, re-conheceram mulheres empoderadas e à frente de seu tempo. Em todas as situações, a clareza que ficou foi a da importância do engajamento político feminino para além do reducionismo implícito no pensamento atrelado à semelhança e à analogia, compreendendo que o atual
CeJor, Centro Experimental de Jornalismo da ESPM-SP agenciadejornalismo-sp@espm.br Rua Dr. Álvaro Alvim, 123, Vila Mariana São Paulo, SP Tel. (11) 5085-6713
estágio dessa luta é um desdobramento de ondas anteriores e precisa dialogar com o aprendizado de toda uma história. Mas falar do feminino é também falar de generosidade. E a generosidade pode ser masculina – como foi a atitude do editor desta Plural ao incentivar e ceder espaço a esta reflexão feminina (e feminista), totalmente pre-
Projeto gráfico Márcio Freitas A fonte Arauto, utilizada nesta publicação, foi gentilmente cedida pelo tipógrafo Fernando Caro.
enchida por vozes de mulheres. Outras generosidades que permeiam as próximas páginas vieram do Labfor, o Laboratório de Formatos Híbridos do curso de Jornalismo da ESPM, que em parceria com o Design Lab elaborou o Jogo da Vida das Meninas, que pode ser conferido à página 30. Também convidamos alunas do Design da ESPM para ilustrar, ao longo das próximas páginas, seis mulheres brasileiras consideradas icônicas (confira a pág. 56). Fica a certeza de que quando a mulher ocupa o lugar social, político, econômico e cultural que lhe é de direito, a evolução não é apenas feminina. É de toda a sociedade. | CLÁUDIA BREDARIOLI, EDITORA CONVIDADA DA PLURAL
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Foto: Roberto Braga/NIS ESPM
ÍNDICE
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página 18
página 18
VIDA DE MENINA Acompanhadas por uma difícil realidade no Brasil, jovens meninas enfrentam as incertezas da transição entre a infância e a adolescência, lutam contra os problemas da desigualdade de gênero, superam as desconfianças da sociedade e batalham para se tornarem as personagens principais de suas próprias vidas – ao mesmo tempo em que desde o nascimento se acostumaram a serem bombardeadas por imagens de uma vida idealizada em redes sociais. Conheça mais sobre os anseios e temores delas.
página 6 ONTEM E HOJE Ser menina no Brasil, hoje, é uma experiência muito diferente daquela vivida pelas mulheres que foram adolescentes nos anos 1950 ou 1960, por exemplo. Confira relatos das duas épocas.
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página 12 PRIMEIRAS VEZES Meninas comentam sua ansiedade e surpresa com as suas primeiras vezes: a primeira menstrução, o primeiro beijo, a primeira transa.
página 14 NOSSAS FONTES Levantamento identifica que a maioria das fontes da Plural até hoje foi de homens – nesta edição, entretanto, 100% das entrevistas foram realizadas com (e também por) mulheres.
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Foto: Thays Bittar
página 48
Arte: Joana Coccarelli
página 42
Foto: Mídia Ninja/CC
página 34
página 34
página 42
página 48
MANIFESTAÇÕES
ASSÉDIO VIRTUAL
ENTREVISTA
Mulheres se organizam e protagonizam nas ruas grandes acontecimentos políticos, em manifestações cuja pauta foi além dos debates sobre igualdade de gênero.
Com a popularização da internet – e a sensação de anonimato que ela proporciona – crescem ataques e difamações; segundo estudo da ONU, 95% das vítimas são mulheres.
Juliana de Faria, uma das fundadoras da ONG feminista Think Olga, diz que há um certo “maquiavelismo” nos discursos que tentam confundir a sociedade sobre o que é o feminismo.
páginas 16 e 26 ANNE E ROSIE Conheça a história de Anne Frank, a menina judia que fugiu dos nazistas e sobreviveu escondida até 1944, e de Rosie, a Rebitadora, a operária que inspirou um dos pôsteres mais icônicos do feminismo.
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página 30 JOGO DA VIDA O LabFor (Laboratório de Formatos Híbridos) do curso de Jornalismo da ESPM e o Design Lab se juntaram para produzir uma versão feminina – e feminista – do popular Jogo da Vida.
página 32 ÍCONES FEMININOS Exemplos de referências femininas de sucesso – em especial fora do mundo das artes e do entretenimento – ainda são escassos na mídia, mas isso precisa mudar.
página 40 AS JORNALISTAS Atuação das mulheres no jornalismo brasileiro é relativamente recente, mas decisiva. Hoje, nas faculdades, elas já são maioria entre os estudantes da área.
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Foto: Reprodução/Internet
Meninas brasileiras em registro dos anos 1960
MENINAS DE ONTEM; MENINAS DE HOJE Ao longo das últimas décadas, preocupações das jovens brasileiras mudaram bastante
JÚLIA FONTES AMANDA ROZENBLIT
sar das décadas. Se hoje as mulheres
esposa”, lembra a aposentada Dirce Cam-
lutam contra a desigualdade salarial –
pos, 78.
segundo o IBGE, elas ganham 23,5% a
Pertencente a uma outra geração,
»»» O papel desempenhado pelas
menos do que os homens, mesmo pos-
a engenheira Ludmila de Oliveira, 26,
meninas na sociedade encontra-se em
suindo um nível educacional mais alto –,
sente na pele essa desigualdade: “Sem-
constante transformação. Se hoje, ao
antigamente isso não era um problema,
pre senti total desaprovação de uma
menos nas grandes cidades, elas pare-
simplesmente porque as mulheres não
mulher ganhar menos que um homem.
cem ser mais livres e independentes,
eram educadas para trabalhar. “A famí-
Na verdade acredito que sempre busquei
antes tinham uma disciplina muito
lia não me estimulava a ser independen-
fazer coisas consideradas ‘masculinas’
mais rígida a cumprir, dentro e fora
te e autossuficiente.
para mostrar que mulher também pode
de casa.
Naquela época, a maioria das mulhe-
fazer de tudo. Quando menina, queria
Mulheres acima de 60 anos contam
res eram educadas para casar. Quando
conquistar uma carreira e um salário
que percebem as mudanças que ocor-
eu era mais nova, achava que seguiria
bom para provar que mulher pode tanto
reram na vida das meninas com o pas-
a carreira de dona de casa, de mãe e de
quanto um homem”.
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Mas não existem somente diferenças entre as jovens de hoje e as de ontem.
esportes como judô, natação, além de
as meninas de hoje. “Depois da aula, eu
fazer cursos de idiomas.
fazia natação, judô e futebol”, relata a
Uma constante ao longo da história é
A estudante de Direito do Mackenzie,
a associação da mulher aos afazeres
Giovanna Furtado, 18, conta que seus
domésticos. Maria Helena, 78, de Patro-
pais sempre a incentivaram a realizar as
cínio, no interior de Minas Gerais , conta
mais variadas práticas. “Todo dia eu ia
Criadas para casar
que mesmo tendo cinco irmãos homens,
para a aula de balé. Alguns dias da sema-
Ao contrário de grande parte das meni-
era a única que ajudava a mãe com as
na eu ia para o inglês e para a natação.
nas de hoje, as de ontem sofriam com
tarefas domiciliares, como lavar a louça,
Durante os anos, tentei fazer outras ativi-
convenções tradicionais, como a de ser
cozinhar para seus familiares e arrumar
dades, como o piano, mas sempre acabei
criada para casar e cuidar dos filhos –
a casa. Ela ainda complementa que acha-
voltando para os meus favoritos”, conta.
e, em alguns casos, isso impedia até a
va esse cenário completamente normal.
O esporte é uma prática comum entre
prática de atividades tidas como femi-
estudante do terceiro ano do colegial, Sophia Micheloni, 18.
Pode ser difícil perceber, mas isso
ninas, como a dança. “Minha família era
ainda ocorre. Apesar dessa construção
conservadora, assim como a maioria das
social ter diminuído ao longo dos anos,
outras com as quais convivemos”, com-
ela ainda está presente na vida das meni-
pleta a dona de casa Arlete Rita. “Meu
nas de hoje. “Frases como ‘você já é uma
sonho era ser bailarina, mas nunca me
moça’ eram excessivamente repetidas
deixaram fazer balé. Havia um precon-
em situações em que cabia a mim lavar
ceito muito grande em relação aos artis-
a louça ou cozinhar. Meu irmão nunca
tas no meu tempo”, lamenta Maria Duso-
era submetido a nenhum comentário
lina, 74, de Adamantina, no interior de
referente às tarefas de casa”, diz Gabrie-
São Paulo. Para grande parte das mulhe-
la França, 18, estudante de meteorolo-
res de ontem, alguns de seus sonhos ou
gia na USP.
desejos pessoais eram impedidos ou
Maria Helena diz que após ir à escola
simplesmente silenciados, como o balé
e ajudar a mãe em casa, era ensinada a
para Dusolina. No entanto, ela relata que,
costurar e bordar, e que isso era comum.
anos depois, correu atrás do seu dese-
As atividades extracurriculares para as
jo de infância. “Quando fiz 35 anos e já
meninas eram relacionadas à costura e
tinha três filhos, decidi me recompensar.
à arte. “No período da manhã, eu estu-
Fiz balé e cortei a cidade com a bicicleta
dava piano e realizava as tarefas escola-
que ganhei de presente”, conta.
res. De tarde, ia para o colégio de freiras”, completa Solange Costa, 68. A mineira Nilda de Castro, 71, conta que, após os estudos e as atividades na escola, ajudava nas tarefas de casa. Ela também praticava canto e dança. “Se eu não cumprisse com todas as minhas obrigações, os castigos eram rigorosos. Não podia sair de casa e, se respondesse os pais, a punição era mais severa ainda.” As atividades feitas fora da escola são comuns em ambas as épocas – mas o foco delas mudou significativamente. As práticas mais “femininas”, como o
“Meu sonho era ser bailarina, mas nunca me deixaram fazer balé. Havia um preconceito muito grande em relação aos artistas no meu tempo” “Quando fiz 35 anos e já tinha três filhos, decidi me recompensar. Fiz balé e cortei a cidade com a bicicleta que ganhei de presente”
balé e o piano, continuam em alta, mas as meninas de hoje também praticam
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Pais e filhas Uma das influências na vida de todo adolescente é o relacionamento que eles têm com seus pais. No passado, dizem as meninas de ontem, essa era uma relação mais formal. “A relação com meus pais sempre foi boa e respeitosa. Meu pai era mais bravo, já minha mãe era mais maleável”, conta Nilda de Castro. As meninas na época não se sentiam livres para conversar sobre qualquer assunto. Por exemplo, a educação sexual acontecia normalmente durante a aula de ciências na escola, e não em conversas com
Maria Dusolina, aposentada
os pais – ou, como acontece em muitas
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Fotos: Amanda Rozenblit
À esquerda, a dona de casa Arlete Rita, de 71 anos; à direita, Gabriela Campos, 18, estudante de cursinho
famílias modernas, por meio de conver-
constrangimento. “Eles até davam uma
não pensa do mesmo jeito que eu”, conta
sas com amigas ou pela internet.
certa abertura, queriam que eu contasse
Gabriela Guedes, 18.
As meninas de hoje declaram ter um
as coisas, mas eu tinha muita vergonha,
relacionamento mais aberto e saudável
preferia não contar quase nada”, contou
Educação
com seus pais. “Sempre me senti livre
a paulista Marcela Lebrão, 23.
No campo da educação, um fator que
para conversar com eles sobre tabus em
“Como uma criança muito tímida, meu
mudou muito foi o crescimento da com-
geral, principalmente com meu pai. Ele
diálogo com meus pais era bem limita-
petitividade e o processo seletivo para
tinha a paciência de ouvir e, com calma,
do. Eu escondia deles episódios marcan-
entrar para as universidades, hoje motivo
explicava o que fosse necessário, mas
tes e traumáticos da minha infância que
de ansiedade e desespero entre jovens.
sempre com fatos reais. Ele me contava
teriam sido evitados ou amenizados se
Julia Lima, que está no final do ensino
de suas experiências próprias para me
fossem comentados”, relata a estudan-
médio, conta que seu ano tem sido extre-
orientar”, conta Isabela Mello, 26, psi-
te de Meteorologia Gabriela França. “Eu
mamente cansativo. “No começo do ter-
cóloga.
tinha medo de perguntar algumas coi-
ceiro colegial foi bem difícil. Eu chorava
O caso de Isabela, porém, é uma exce-
sas para eles, como permissão para sair
praticamente todos os dias. Acho que a
ção, já que a maior parte das meninas
de noite, pois tinha medo deles não dei-
escola coloca uma pressão absurda nos
contemporâneas dizem não ter tido
xarem. Sobre meninos também não falo
alunos, algo que não é necessário. Estu-
conversas profundas com seus pais por
até hoje com a minha mãe, porque ela
dar é uma coisa superinteressante, mas
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AS MENINAS DE HOJE DIZEM TER UM RELACIONAMENTO MAIS ABERTO E SAUDÁVEL COM SEUS PAIS. “SEMPRE ME SENTI LIVRE PARA CONVERSAR SOBRE TABUS” Fotos: Reprodução
a escola destrói esse processo”, lamenta. A jovem conta que passa por crises de ansiedade quando não consegue acompanhar a matéria. Luana Darc, 18, estudante de Letras da PUC Minas, conta que um fator essencial nesse período incerto de vestibular foi o apoio de seus pais. “Meus familiares sempre entenderam que eu iria escolher uma profissão relacionada aos meus interesses pessoais, e isso me ajudou muito no processo de tomar minha decisão.” Para a estudante de Administração do IBMEC de Minas Gerais Giovanna Borges, 19, esse processo também foi complicado. “Me senti pressionada, algo que partiu de mim mesma, porque toda a sociedade espera que você saia do ensino médio e vá direto pra faculdade. Lidei com isso de forma péssima.” As meninas de hoje contam que nunca tiveram a opção de não ingressar em uma universidade. Para algumas delas, isso se tornou um obstáculo ou até mesmo um motivo de preocupação. Para outras, isso se converteu em um desejo. “Passar no vestibular sempre foi um sonho”, diz Amanda Carvalho, 18, mineira e estudante de letras. “O meu ensino médio todo foi focado em ser aprovada”, completa Maria Eduarda Okano, 19, aluna de Design na FAAP-SP. A apreensão com o futuro chega muito cedo na vida das meninas de hoje. “Quando via que a maioria dos meus colegas de sala já haviam decidido que carreira iriam seguir, me sentia muito pressionada. Conversando com pessoas que também estavam em dúvida de qual carreira seguir me fez perceber que era normal não ter certeza do que escolher. Porém, também procurei ajuda profissional com a aplicação de teste vocacional, uma coisa que aliviou a pressão”
RECLAMES ANTIGOS Publicidade do século passado reforçava estereótipos sobre as mulheres
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conta a jovem. Há algumas décadas, as preocupações eram outras. “Naquela época, não
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A APREENSÃO COM O FUTURO CHEGA MUITO CEDO NA VIDA DAS MENINAS DE HOJE. ELAS MANIFESTAM GRANDE ANSIEDADE SOBRE QUAL CARREIRA SEGUIR
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Foto: Guus Krol/CC
Show da banda britânica de indie rock Florence + The Machine, citada como referência entre garotas
me preocupava em estudar, só em casar.
ti todos os filmes da época, dos musicais
e pescar”, diz a dona de casa.
Não tinha o sonho de seguir nenhuma
da Metro aos maiores clássicos cinema-
Nos dias atuais, a diversão mudou, mas
carreira, mas, sim, de arrumar um casa-
tográficos. Desde pequena, ia muito ao
não é só feita de baladas e festas, como
mento bom”, conta a mineira Nilda de
cinema, ao teatro e a jogos de futebol do
muitos pensam. “No meu tempo livre,
Castro. Ou seja, o vestibular, que nem
Corinthians. Duas primas jogavam bas-
gosto muito de ler livros, fazer exercícios
sequer era uma alternativa para grande
quete na Seleção Brasileira, então íamos
na academia e assistir séries de televisão.
parte das meninas de ontem, não tinha
sempre assistir os jogos”.
Gosto muito de sair com meus amigos e
nem metade do peso que tem atualmen-
Alda Marconcin, 76, lembra que parou
conhecer lugares novos”, conta Gabrie-
te. “Eu não consegui terminar o terceiro
de estudar quando tinha 17 anos, e que
la Campos, 18, estudante de cursinho.
colegial, pois me casei cedo. Eu tinha 18
só retomou anos depois. Ela conta que
“Sempre gasto meus momentos deso-
anos”, lembra Dirce Campos.
se divertia muito quando menina. “No
cupados cuidando de mim mesma com
tempo livre, eu dançava, ia a bailes. Nós
atividades relaxantes. Gosto de tomar
Diversão
ficávamos cantando de noite com várias
sol, cozinhar, caminhar. Na maioria das
No campo do lazer, os costumes também
pessoas. Nos encontrávamos nas casas
vezes, faço essas essas coisas sozinha,
mudaram. A dona de casa Arlete Rita, 71,
dos outros e fazíamos brincadeiras dan-
mas sempre é bem-vinda a companhia
conta que passou grande parte de sua
çantes com toca-discos. Nós namoráva-
de alguém que eu amo”, declara Julia
adolescência lendo. “Sempre li muito. Li
mos. A cidade era pequena e não tinha
Bassani, 18, também estudante do últi-
duas vezes o livro ‘Guerra e Paz’. Assis-
muita distração. Às vezes ia ao rio nadar
mo ano do ensino médio. n
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Anita Garibaldi (1821-1849)
Por Thai Gomes (leia mais à pág. 56)
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12/13 “Dans le lit “ (“Na cama”), quadro de 1892 do pintor francês Henri de Toulouse-Lautrec
AS PRIMEIRAS VEZES Meninas comentam a primeira menstrução, o primeiro beijo, a primeira transa
BIANCA PANCINI CAROLINE RULLO JAMYLA BRAGA
te. Afinal, é a sua primeira vez. Por isso, é
ra menstruação é menarca. A menarca
muito importante não esconder das pes-
está relacionada tanto a fatores genéticos
soas que está fazendo algo que nunca fez.
quanto a fatores ambientais e psicológi-
Muitas meninas sentem vergonha, mas
cos. Ela acontece no início da puberdade,
»»»Você se lembra como foram suas
há diversas situações nas quais essa ati-
quando o corpo sofre diversas mudanças,
primeiras vezes? Seu primeiro amor,
tude é fundamental. Se as pessoas sou-
como o crescimento de pelos e o aumen-
seu primeiro beijo, seu primeiro
berem que é a sua primeira vez, talvez
to dos seios. É um período marcado por
namorado? A vida é cheia de primei-
sejam mais pacientes. Portanto, se abrir
mudanças e, consequentemente, inse-
ras vezes. A gente não sabe no come-
e ser honesta sempre é o melhor cami-
guranças.
ço, mas vai aprendendo. É assim que
nho. Não tente atrasar nem adiantar
“Nenhuma das minhas amigas tinha
é. Você já parou para pensar que, uma
nada. Cada um tem seu próprio tempo,
menstruado ainda, então eu fiquei muito
vez, deu seu primeiro passo, falou sua
para tudo.
nervosa”, conta Victória, 17, sobre sua pri-
primeira palavra? Para tudo, por mais
A primeira menstruação, por exem-
meira menstruação, que aconteceu quan-
clichê que seja, há uma primeira vez.
plo, é um momento importante na vida
do tinha 12 anos. Ela entrou em desespero
É normal, quando se está fazendo
das meninas, mas, mesmo assim, ainda é
e tentou ignorar o que estava acontecen-
algo pela primeira vez, ser inexperien-
um tabu. O termo médico para a primei-
do, mas, quando percebeu que isso seria
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Foto: Reprodução
dramática da situação. “Eu achei que eu
vezes é o sexo. Uma mistura de senti-
ia morrer quando eu menstruasse e não
mentos define o que é perder a virgin-
foi tudo isso”, lembra. Ela tinha 14 anos
dade. Julia, 19, acredita que teve uma
quando menstruou pela primeira vez e
experiência diferente da maior parte
esse momento a assustava. “Como assim
das meninas. “Eu não perdi a virgin-
vai sair sangue de mim?”, pensava. Sofia
dade com um namorado ou algo assim,
contou que, apesar de ter sentido muita
eu não era apaixonada por ele”, diz. Ela
cólica, sua experiência não foi tão trau-
afirma que não vê necessidade de ter um
mática como ela imaginou. Nesse caso, a
relacionamento com seu parceiro; deve
expectativa era muito pior do que a rea-
apenas existir confiança. Julia tinha 17
lidade.
anos quando transou pela primeira vez
O primeiro beijo também é uma situ-
e comentou que não foi tão bom quanto
ação muito esperada entre as meninas,
ela esperava. “A primeira vez dói, sangra.
e é muito comum que elas tenham uma
Não tinha como ser do jeito que minhas
expectativa que destoa da realidade
amigas falavam que era”, lembra. n
quando se trata deste tema. Romantismo, dúvidas, incertezas... Tudo isso passa pela cabeça de quem está beijando pela primeira vez. Na maioria das vezes, o beijo é bem diferente do que era esperado. “Eu achava que ia ser tipo ‘O Diário da Princesa’, sabe? Levantando o pezinho e tal”, disse Marina, 19, sobre sua expectativa para o primeiro beijo. Ela tinha 15 anos quando beijou pela primeira vez e se sentia “atrasada” em relação às amigas por ser a única que não tinha beijado ainda. Essa pressão é frequente entre as adolescentes, e provoca nelas um sentimento de vergonha e muita insegurança, principalmente em relação aos seus corimpossível, procurou sua mãe, que, por
pos. Marina, como a maioria das meni-
sua vez, ficou radiante que a filha tinha
nas, definiu seu primeiro beijo como
menstruado. A mãe de Victória a levou
algo “ruim e estranho”, e sua reação foi:
ao shopping para comprar absorventes e
“Nossa! É isso?”. Esse sentimento é o mais
escolher um presente que ela ganhou por
usual nessa situação.
ter “virado mocinha”. “Era uma coisa que
“Eu achava que eu não ia conseguir,
eu queria esconder, eu não queria falar
que eu não ia saber, que ele ia rir da
para ninguém, e minha mãe queria con-
minha cara, que eu ia fazer errado”, con-
tar para o mundo inteiro”, comentou. Na
tou Luísa, 19, sobre seu primeiro beijo.
época, ela sentia vergonha até de contar
Quando ela tinha 13 anos beijou o amigo
para o seu irmão gêmeo, mas hoje agra-
de uma amiga em uma festa de confra-
dece a abordagem da mãe, por fazer com
ternização depois da aula de inglês. Ela
que ela se sinta mais à vontade em falar
não contou para ninguém que aquela era
abertamente sobre o assunto.
sua primeira vez. “Eu estava com muito
Sofia, 20, tinha medo de como seria sua menarca e tinha uma visão muito mais
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medo”, conta. Mas o maior dos tabus das primeiras
“Era uma coisa que eu queria esconder, eu não queria falar para ninguém, e minha mãe queria contar para o mundo inteiro” Victória, sobre a sua primeira menstruação
“Eu achava que ia ser tipo ‘O Diário da Princesa’, sabe? Levantando o pezinho e tal” Luísa, sobre o seu primeiro beijo
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OUÇAM AS MULHERES 14/15
Levantamento identifica que a maioria das fontes da Plural até hoje foi de homens – nesta edição, entretanto, 100% das entrevistas foram realizadas com (e por) mulheres
LABFOR
e a Revista Plural fizeram um levanta-
igualitária, ocorre que as mulheres são
mento sobre todas as fontes publica-
mais ouvidas quando personagens (54%
das na revista desde o primeiro número.
de fontes femininas contra 46% de mascu-
»»»Não foi à toa que a ONG Think
Separamos as fontes em três categorias:
linas), e menos como especialistas (66%
Olga criou o projeto Entreviste uma
especialistas, personagens e entrevista
de homens ouvidos contra 34% de mulhe-
Mulher – um banco de dados online
principal, publicada sempre na seção pin-
res). Na entrevista principal , eles lideram
com nomes de mulheres especialistas
gue-pongue. Especialistas e pingue-pon-
por 67% a 33%.
nas mais diversas áreas, todas disponí-
gue são escolhidos, a princípio, porque
Levantamentos desse tipo são impor-
veis para serem entrevistadas por jor-
são renomados em suas áreas de atua-
tantes para provocar reflexão – não só
nalistas e produtores de conteúdo. Em
ção e têm conhecimento reconhecido por
entre nós, jornalistas e estudantes de jor-
geral, mulheres são menos ouvidas do
pares para comentarem o assunto sobre
nalismo, mas também entre vocês, lei-
que homens em reportagens. Claro que
o qual serão entrevistados. Os persona-
tores, cidadãos. A democracia e o debate
existe uma estrutura social que faz com
gens, ou fontes de rotina, no jargão jor-
público não ficam completos sem a par-
que mais homens estejam em posições
nalístico, são pessoas que podem contar
ticipação das mulheres, sem diversidade.
de liderança, ou com que sejam consi-
o que viram ou viveram, ou dar uma opi-
Não será possível construir uma socie-
derados especialistas nas mais diversas
nião não-especializada.
dade mais igualitária se não incluirmos,
áreas de atuação com mais frequência.
O resultado é que até a edição de núme-
em todas as instâncias, minorias sociais
Mas apesar do desequilíbrio de gêne-
ro 13, sobre a Rússia, foram ouvidas 566
e mesmo aqueles tidos como invisíveis –
ro existir, o jornalismo pode atuar para
pessoas no total. Dessas fontes, apro-
sobretudo no jornalismo, espaço públi-
não perpetuar essa situação.
ximadamente 54% são homens e 46%
co privilegiado, vitrine de nossa socie-
mulheres. Apesar da aparente divisão
dade. n
O Laboratório de Formatos Híbridos
ELAS E ELES Confira levantamento que somou e comparou todas as fontes ouvidas pela Plural desde o número 1 até a edição 13 TOTAL DE FONTES OUVIDAS
45,9
ESPECIALISTAS
54,1
PERSONAGENS/ROTINA
34,4
65,6
46,1 53,9
PINGUE-PONGUE/ ENTREVISTA PRINCIPAL
33,3 66,7
Total de fontes nas 13 edições
260 mulheres 306 homens 566 total RM_14_15_fontes.indd 10
n MULHERES n HOMENS Valores percentuais
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Chiquinha Gonzaga (1847-1935)
Por Fernanda Sanovicz (leia mais à pág. 56)
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Foto: Wikipedia/CC
p
PERFIL: ANNE FRANK
O DIÁRIO DA RESISTÊNCIA Conheça a história da menina judia que fugiu dos nazistas em 1933, sobreviveu escondida até 1944 e registrou sua história no diário mais famoso do mundo
gue, tomava muito sorvete, principal-
andar de bonde; os judeus não podiam
LETÍCIA VINOCUR
mente no verão, teve namoradinhos e via
dirigir automóveis. Só lhes era permitido
»»» Anne Marie Frank nasceu em
os filmes do Rin-Tin-Tin – um cachorro
fazer compras das três às cinco e, mesmo
Frankfurt, Alemanha, em 1929. Filha
pastor alemão herói de cinema. Tudo que
assim, apenas em lojas que tivessem uma
de Otto Frank e Marie Frank, ambos
uma garota normal com 13 anos faria. A
placa com os dizeres: loja israelita”.
judeus, Anne foi para Holanda em 1933
diferença entre Anne e outras crianças na
Anne conta que os judeus eram obri-
com seus pais e sua irmã Margot, para
pré-adolescência era sutil. Anne era judia.
gados a se recolher a suas casas às oito da
fugir do governo autoritário do dita-
Em suas próprias palavras, “os judeus
noite, e, depois dessa hora, não podiam
dor Adolf Hitler.
tinham de usar, bem à vista, uma estre-
sentar-se nem mesmo em seus próprios
Na Holanda, frequentou escolas, fez
la amarela; os judeus tinham de entre-
jardins. Não podiam frequentar teatros,
amigas, batia corda, jogava pingue-pon-
gar suas bicicletas; os judeus não podiam
cinemas e outros locais de diversão. Não
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SEU NOME É VISTO NO MUNDO INTEIRO COMO UM SÍMBOLO DE RESISTÊNCIA À INTOLERÂNCIA. ANNE É UMA INSPIRAÇÃO PARA TODAS AS MULHERES
podiam praticar esportes publicamen-
dez minutos no feriado judaico, em vez
como teve esperança. Esperança de que
te. Piscinas, quadras de tênis, campos de
dos oito dias tradicionais, para poderem
tudo iria dar certo e de que iriam sair do
hóquei e outros locais para a prática de
economizar.
esconderijo algum dia e que enfim pode-
Mas Anne também registra o quão
ria ser, como conta o último trecho de seu
podiam visitar os cristãos. Só podiam fre-
feliz ficou ao ganhar vestidos, e que
diário, ela mesma. “Não aguento esses
quentar escolas judias, sofrendo ainda
ficou extremamente ansiosa ao ganhar
cuidados: se me fiscalizam fico malcria-
uma série de restrições semelhantes”,
125 gramas de manteiga além do espera-
da, depois infeliz e, finalmente, viro meu
escreve.
do no Natal. Registra seu contentamento
coração do avesso para que o lado mau
esportes eram proibidos. “Os judeus não
Mas não era só isso que separava Anne
ao conversar com seu pai e ao descobrir
fique de fora e o bom para dentro, e con-
Frank das outras meninas. Ela escrevia
que foi declarada guerra na Turquia – de
tinuo tentando encontrar a maneira de
um diário. Se para outras meninas de sua
algum modo isso indicava para ela que a
ser como desejo ser, como poderia ser,
idade isso era comum, o diário de Anne
guerra poderia estar próxima ao fim. E
se.… se não houvesse mais ninguém vivo
carregava páginas a colocariam na his-
havia os livros. O amor que ela sentia ao
neste mundo…”.
tória. No dia 19 de julho de 1942, ela e
ganhar livros. Existia também a emoção
No dia 4 de agosto de 1944, a Gestapo
sua família, junto com família Van Daan,
de começar a sonhar com Peter, filho do
invadiu o Anexo Secreto. Todos seus ocu-
mudaram-se para um esconderijo, para
casal Van Daan, descobrir a reciprocidade
pantes foram levados ao campo de con-
evitar que fossem enviados para cam-
de seus sentimentos e dar seu primeiro
centração de Auschwitz. Margot e Anne,
pos de concentração. Enquanto morava
beijo às oito e meia da noite em seu divã.
mais tarde, foram transferidas ao campo
no chamado “Anexo Secreto”, a menina
A felicidade em comemorar aniversá-
de Bergen-Belsen e contraíram tifo. Anne
escreveu um diário contando sua rotina
rios e contar segredos ao seu pai e a sua
morre no inverno de 1945, uma semana
como fugitiva do regime nazista.
irmã Margot. Acima de tudo, Anne conta
antes de o campo ser libertado. Durante três anos escondida, Anne
O registro de Anne é extremamente detalhado desde o primeiro dia em que
manteve seu diário, carinhosamente
pisou no esconderijo. A menina conta
apelidado por ela de Kitty, e destinou a
desde a decoração de cada cômodo, pre-
ele um relato detalhado de seus dias no
enchidos com seus vários pôsteres de
Anexo Secreto. Apesar de toda a dor e
cinema, até o que come todos os dias.
sofrimento, ela continuava escrevendo
Com o passar dos dias, é possível ver a
e continuava tendo esperança no mundo.
deterioração do mundo em que Anne
Mesmo comendo pouco, vivendo escon-
vivia. Ela tomava banho em uma tina,
dida sem sentir decentemente a luz do sol
não podiam chamar um médico, então tinha grande preocupação em não ficar
O MANUSCRITO
e morando em um quarto-sala, Anne persistia. Seguia admirando pequenas coi-
doente, assim como também tinha medo
sas e tendo breves momentos de felicida-
da campainha toda vez que soava. Conta
de. Não só se manteve forte com sua irmã
o quão a Gestapo não “tinha o mínimo de
e familiares, como conseguiu, de algum
decência” ao levarem embora seus ami-
modo, achar o amor por Peter, escondida
gos judeus para os campos de concen-
atrás da parede de um escritório.
tração. Especulava sobre o porquê de os
Hoje em dia, “O Diário de Anne Frank”
nazistas usarem câmaras de gás como
é um dos maiores best-sellers mundiais,
método – “talvez fosse o jeito mais rápi-
tendo vendido mais de 30 milhões de
do de morrer” – e o quanto estava ater-
cópias em 40 países e tendo sido tradu-
rorizada pelas bombas que ela ouvia cair
zido para 70 idiomas. Anne Frank resis-
perto de onde estava. Anne dizia que sen-
tiu, viveu e fez a sua própria história. Seu
tia remorso por dormir em uma cama quente, enquanto seus amigos eram assassinados, e também como deixaram as velas de hanuká acessas por apenas
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O DIÁRIO DE ANNE FRANK Reprodução da primeira edição do “Diário de Anne Frank”, publicada em 25 de junho de 1947.
nome é visto no mundo inteiro como um símbolo de resistência à intolerância. A pequena autobiógrafa é um exemplo e uma inspiração para todas as mulheres. n
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Acompanhadas por uma difícil realidade no Brasil, jovens meninas enfrentam as incertezas da transição entre a infância e a adolescência, lutam contra os problemas da desigualdade de gênero, superam as desconfianças da sociedade e batalham para se tornarem as personagens principais de suas próprias vidas
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Foto: Roberto Braga/NIS ESPM RM_18_25_capa meninas.indd 13
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sideração as problemáticas da diferença de MARINA LAHR THAYNAH SILVA
gênero, questão histórica que acaba por limi-
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tar as oportunidades pessoais e profissionais »»»Brincar. Estudar. Ser jogadora de fute-
para a população feminina, sendo outra pres-
bol. Se formar em matemática. Namorar.
são comumente enfrentada pela categoria.
Morar sozinha. Ter o emprego dos sonhos.
Nesse sentido, a recepcionista Sirlen
Casar. Ser mãe. Conhecer o mundo. São res-
Luchiari de Oliveira, de 40 anos, conta como
postas como essas que jovens meninas fre-
a falta de oportunidades na sua juventude fez
quentemente usam para descrever seus
com que tivesse uma perspectiva oposta à da
desejos e objetivos para o futuro de suas
filha, Ana Luiza Luchiari de Oliveira, nos seus
vidas. Entretanto, ao lado dos sonhos, exis-
14 anos. “Eu queria ser professora ou veteri-
tem também muitos obstáculos, que as
nária, queria ter um emprego bom e ser útil a
meninas – especialmente elas – precisam
alguém, mas meus pais não tinham condições
enfrentar desde muito cedo.
de me pagar uma faculdade. Hoje em dia eu
O Brasil possui atualmente uma população
não tenho paciência de voltar a estudar, de vol-
próxima de 210 milhões de pessoas, sendo
tar para a sala de aula, de prestar atenção no
que, destas, quase 70 milhões têm menos de
professor”, conta. Por isso, Sirlen está sempre
19 anos de idade, segundo as estimativas do
presente na vida da filha, mostrando a realida-
IBGE. Entre essa população mais jovem, 48%
de a ela a todo o momento, ajudando a superar
são meninas, que enfrentam a dura realidade
as pressões da adolescência e deixando claro-
do país, considerado pela ONG Save the Chil-
aa importância de seguir nos estudos. “Eu vivo
dren como o pior da América Latina para o
dizendo para ela que emprego hoje em dia está
crescimento feminino, levando em considera-
muito difícil de conseguir, mesmo para quem
ção índices de gravidez na adolescência, casa-
tem formação, imagine para quem não tem”,
mento infantil, mortalidade materna e repre-
ressalta a recepcionista.
sentação das mulheres no Parlamento.
Juliana Mota tem 33 anos, é analista de
Esse panorama desperta uma série de ques-
recursos humanos e tinha acabado de comple-
tões e incertezas para as jovens, que muitas
tar 19 anos quando teve sua filha, Maria Edu-
vezes têm seus sonhos e oportunidades res-
arda da Mota, hoje com 14 anos. Ela conta que
tringidos pelos papéis de gênero e pelas difi-
não tinha muita estrutura familiar, na idade
culdades que surgem ao longo da estrada per-
da filha, e que sempre quis ter um relaciona-
corrida por elas.
mento estável e um lugar para morar sozinha. Hoje, a analista incentiva a filha para que ela
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Pressões
possa alcançar todos os seus desejos. “Hoje
Ao longo do tempo é possível observar um
eu dou a base para que ela consiga no futu-
processo de amadurecimento precoce das
ro conquistar todos os objetivos e sonhos que
meninas em geral, realidade que pode pro-
ela possa ter.”
vocar uma espécie de adultização forçada e
Juliana incentiva Duda, como carinhosa-
criar uma série de pressões físicas e psicoló-
mente a chama, a frequentar os eventos de
gicas sobre as jovens. Problemas de autoesti-
K-pop (gênero musical originado na Coreia do
ma, falta de confiança em si mesma, depres-
Sul e muito popular entre as jovens nos dias
são prematura e dificuldade em se relacionar
de hoje) e a conhecer novas pessoas e lugares,
com outras pessoas são algumas das adversi-
apesar de achar o gosto da filha muito pecu-
dades encontradas tanto na infância como no
liar. Maria Eduarda conta como a mãe fez para
período da adolescência das mulheres.
incentivá-la nos estudos. “Eu sempre gostei de
O cenário negativo para as meninas se
dançar, e quando eu saí da casa dos meus avós
estende ainda mais quando se leva em con-
paternos em Salto Grande e vim morar com a
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NO BRASIL, MENINAS JOVENS ENFRENTAM UMA DURA REALIDADE, A PIOR DA AMÉRICA LATINA PARA O CRESCIMENTO FEMININO SEGUNDO A ONG SAVE THE CHILDREN Foto: Jan Ribeiro/Prefeitura de Olinda/Divulgação
Alunas de escolas públicas de Olinda (PE) desfilam no Bloco da Paz, durante o Carnaval
minha mãe em Santo André, eu descobri essa
desde os primeiros anos de vida é a dificulda-
escola de dança perto de casa. Então eu fiz um
de de autoaceitação e a falta de autoconheci-
acordo com a minha mãe: ela me deixaria fazer
mento. De acordo com uma pesquisa feita para
as aulas de dança se eu mantivesse boas notas
o Relatório Global 2017 da Dove sobre meninas
na escola”, explica a adolescente.
e confiança na própria beleza, apenas 46% das
Atualmente, diversas pesquisas comprovam
jovens no mundo possuem uma autoestima
que a participação ativa dos pais na educação
corporal alta. Este número diminui no Reino
e no crescimento de seus filhos propicia um
Unido para 39%, e o panorama é muito pior
ambiente mais favorável para o amadureci-
na China e no Japão, que têm índices ainda
mento natural das crianças. Assim, receber o
mais baixos na pesquisa. No Brasil, mais da
apoio dos familiares é um diferencial para as
metade das garotas não se sentem bonitas, e
meninas enfrentarem com maior facilidade
62% afirmam que se sentem mais pressiona-
os muitos obstáculos que são colocados em
das para serem bonitas do que para irem bem
seus caminhos.
na escola, algo bastante comum em lugares dominados por uma cultura predominante-
Autoestima Além da falta de oportunidades, outro horizonte que surge na realidade das meninas
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mente machista. Esses dados mostram que a insatisfação com a aparência provoca uma tendência na qual as meninas são mais vulneráveis e
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daquela coisa de relacionamento, de encon-
seminados por grande parte da mídia e da pró-
trar um namorado... Eu pensava ‘sempre que
pria sociedade.
me olharem vão me olhar pela deficiência’.”
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mais afetadas negativamente do que os meninos pelos padrões de beleza dis-
Juliana conta que aos 3 anos de idade sua
Com o passar do tempo, Eduarda deixou de
filha, Maria Eduarda, foi tardiamente diag-
lado suas inseguranças e passou a se conside-
nosticada com uma pneumonia, que resul-
ra suficientemente madura para ignorar tais
tou na amputação parcial dos quatro mem-
questionamentos. “Agora eu entendo que as
bros da menina. Duda então foi morar com os
pessoas me enxergam como ‘a deficiente’ até
avós paternos em Salto Grande, no interior de
me conhecerem melhor, porque depois isso
São Paulo, onde a avó quis matricular a neta
parece se tornar irrelevante.”
em uma escola especial, ideia com a qual a mãe não concordou. “Eu não deixei, porque
Redes Sociais
na época a Eduarda já usava próteses nas per-
A pressão pela aparência ideal das jovens
nas, então não havia necessidade de rampas e
ultrapassa os limites do mundo físico e chega
elevadores para ela se locomover, por exem-
hoje ao mundo digital, com a criação e a popu-
plo. Eu acredito que são as outras pessoas que
larização das redes sociais. Um estudo reali-
precisam se adaptar à deficiência da Duda, e
zado em 2017 pela ONG inglesa Girlguiding
não o contrário”, afirma a mãe.
comprovou que a relação das meninas com o
Em relação à autoestima, a analista de RH
mundo virtual não é muito amistosa. Uma em
tem ciência de que a filha possui seus altos
cada três jovens declara que sua maior preo-
e baixos, assim como ocorre normalmente
cupação online era comparar a sua vida com a
com todas as mulheres. No entanto, conside-
de outras pessoas por meio das redes sociais,
ra a autoestima da filha boa, principalmente
alimentando a tensão de passar a imagem de
no que diz respeito à deficiência. “Ela se ama
uma vida perfeita na internet.
bastante, do jeitinho que ela é”, diz, sorrindo.
Esse comportamento possui relação dire-
Maria Eduarda sempre lidou com leveza
ta com o encurtamento da infância, em que
com sua deficiência, por muitas vezes fazen-
as meninas passam a se preocupar mais com
do piadas com sua própria condição, compor-
sua fisionomia e seu visual e acabam por con-
tamento que acaba por desmotivar o bullying e
sumir mais produtos de beleza e roupas da
até facilita a aproximação das pessoas. Porém,
moda desde cedo, em um processo antecipado
a menina confessa que teve dúvidas durante a
de consumismo progressivo. Tal perspectiva
primeira fase da adolescência. “Quando eu era
contribui para desencadear casos de depres-
mais nova, eu era muito insegura, não acredi-
são precoce e distúrbios alimentares, além de
tava no meu próprio potencial. Até por causa
promover uma dependência do mundo digital, no qual tudo aparece idealizado. Sirlen conta que apesar de terem uma ótima relação, seu pensamento era completamente diferente da filha quando possuía a mesma idade, e acredita que os celulares e as redes
62%
» das garotas brasileiras dizem que se sentem mais pressionadas para serem bonitas do que para irem bem na escola, segundo pesquisa patrocinada pela Dove.
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71%
» das meninas dizem se sentir pressionadas a nunca demonstrar fraqueza. Além disso, 60% deixam de fazer algo importante quando estão insatisfeitas com a aparência.
sociais têm grande responsabilidade por essa mudança comportamental. “Os jovens hoje em dia estão fascinados com o celular, não vivem sem eles.” De fato, um dos maiores riscos acarretados pelo uso das redes sociais é o aumento da exposição diária à tecnologia, que se torna excessiva. A pesquisa “Este jovem brasileiro”,
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Foto: Longbrothers/Flickr/CC
“Eu queria ser professora ou veterinária, queria ter um emprego bom e ser útil a alguém, mas meus pais não tinham condições de me pagar uma faculdade. Hoje em dia eu não tenho paciência de voltar a estudar, de voltar para a sala de aula” “Eu dou a base para que ela [a filha] consiga no futuro conquistar todos os objetivos e sonhos que ela possa ter.” Sirlen de Oliveira, recepcionista Garota anda de skate; nova geração desafia divisão de atividades “masculinas” e “femininas”
realizada pelo Portal Educacional em parce-
segurança das redes sociais, que pode facili-
ria com o psiquiatra Jairo Bouer, indica que
tar a invasão da privacidade e até mesmo pos-
quase 95% dos jovens acessam a internet todos
sibilitar os casos de assédio. Dentre os jovens
os dias ou quase todos os dias, e 85% usam a
do país entrevistados pelo Portal Educacio-
internet por duas horas ou mais.
nal, 60% usam as redes sociais para conhecer
A relação com os pais, nesse caso, pode se
pessoas, 71% costumam postar fotos com fre-
tornar mais um fator de perturbação psicoló-
quência e 7% já colocaram fotos ou vídeos mais
gica para as meninas. A pesquisa aponta que
ousados na internet. Além disso, 35% dos ado-
80% dos pais dizem ter problemas com os filhos
lescentes entrevistados afirmaram não usa-
em função do tempo de permanência na inter-
rem filtros para impedir que suas informa-
net, e as discordâncias se tornam constantes.
ções sejam acessadas por qualquer pessoa, e
Além disso, existe o problema da falta de
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aproximadamente 7% abrem a webcam para estranhos. Nesse contexto, a pre-
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Foto : Mídia Ninja
Fotógrafos registram “toplesszaço” no Rio; manifestação buscou denunciar o machismo naturalizado na cultura nacional
venção contra os abusos e o fortalecimento dos canais de denúncia são essen-
de denúncias. Estima-se que apenas 10% dos
ciais no combate ao crime virtual e aliados na
casos de estupro sejam notificados no país.
proteção das meninas.
Esse dado alarmante revela outro lado obscuro da realidade das meninas no Brasil. A socie-
Violência
dade, devido ao machismo estrutural, não só
A violência está presente na vida das meninas
culpa a vítima como trata a menina que sofreu
desde quando são pequenas. De acordo com
abuso como se fosse adulta, desestimulando
o Ministério da Saúde, do total de vítimas de
o registro de queixas.
estupro no Brasil, 89% são do sexo feminino.
Para lidar com esse cenário, muitas inicia-
Na faixa de idade entre 14 e 17 anos, essa taxa
tivas de órgãos públicos e organizações não
aumenta para 94%, e dentre as vítimas mais
governamentais vêm sendo testadas nos últi-
novas, com 13 anos, chega a 81%.
mos anos para combater a violência contra as
A violência sexual em adolescentes gera
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mulheres e meninas no mundo todo.
consequências a longo prazo e pode acarre-
Foi assim que surgiu no Brasil o Dia Laran-
tar em efeitos físicos e psicológicos perma-
ja, em que todo dia 25 de cada mês, a equi-
nentes para as jovens, que podem desenvol-
pe da Organização Pan-Americana da Saúde/
ver ansiedade, fobias, depressão, síndromes
Organização Mundial da Saúde (OPAS/OMS)
de estresse pós-traumático e sentimentos de
no país se veste de laranja para marcar sua
autoculpabilização que em casos extremos
adesão à iniciativa global “Torne o Mundo
levam ao suicídio.
Laranja”, da campanha do secretário-geral da
Entre os principais problemas relacionados
ONU “Una-se Pelo Fim da Violência Contra as
à violência física, sexual e psicológica pratica-
Mulheres”. O projeto busca celebrar o compro-
da contra as jovens brasileiras está a ausência
misso pela igualdade de gênero, bem como
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promover o empoderamento das mulheres e
si mesma”, segundo a instituição, é uma estra-
a eliminação da violência, que são questões
tégia muito eficaz, já que “atitude não conhe-
centrais para o desenvolvimento sustentável
ce gênero”.
dos países.
Luiza defende que atitudes simples como essa são cruciais na educação das jovens.
Criando protagonistas
“Qualquer movimento hoje que a gente faça,
O fortalecimento da consciência coletiva e das
seja ele um pequeno passinho em relação ao
ações para promover as mulheres e desenvol-
empoderamento feminino, pode contribuir
ver a equidade de gênero, consequências dos
muito e causar um grande impacto em todas as
esforços do movimento feminista nas últimas
meninas. As meninas vendo mulheres inspira-
décadas, traz esperança de que as futuras gera-
doras e convivendo com elas podem aprender
ções de meninas conquistem maior autono-
desde cedo que não é por que elas são meni-
mia e confiança e se sintam menos pressiona-
nas que não podem ser protagonistas”, ressal-
das em seus cotidianos.
ta a jogadora.
O papel das redes sociais, nesse caso, pos-
Foi nesse contexto que surgiram global-
sui outra característica, mais favorável. Para
mente nos últimos anos escolas de lideran-
Luiza Travassos, jovem jogadora de futebol
ça para garotas, que buscam reunir meninas
feminino, a internet pode ser uma forte alia-
em ambientes transformadores, conectando
da na luta pelo empoderamento feminino, ao
elas a mulheres inspiradoras e promovendo
incentivar as meninas de diferentes formas.
a conscientização de pais e educadores para o
Com apenas 14 anos, Luiza já figura na lista
desenvolvimento saudável das jovens. No Bra-
da BBC das 100 mulheres mais inspiradoras e
sil, a ONG Força Meninas, da jornalista e pes-
influentes do mundo, é blogueira da ESPN no
quisadora Deborah de Mari, é um dos grandes
Brasil e mantém a página Futblog - A Menina
exemplos de ensino e capacitação de meni-
que Joga Futebol, onde posta situações do seu
nas, a partir do desenvolvimento de habilida-
dia a dia como esportista e fala sobre precon-
des que ajudam as pequenas a expressar todo
ceitos que já sofreu, para servir como exem-
o seu potencial.
plo de superação.
Assim, encorajar as meninas a serem mais
A atleta acredita no poder da influência digi-
autoconfiantes, a possuírem maior tolerância
tal, que pode levar as meninas a se tornarem
consigo mesmas, a terem controle emocional
mais confiantes para perseguirem seus sonhos.
e a desenvolverem o pensamento crítico e a
“Existe aquele lado, principalmente no caso do
mentalidade de crescimento são os melhores
Instagram, de tudo parecer ser perfeito e que
meios de promover a liderança infantil, e deter-
de certa forma pode acabar prejudicando as
minantes para criar jovens com autonomia e
garotas, mas eu vejo muitos movimentos nas
protagonismo.
redes sociais para tentar mudar o pensamento
Deborah defende que apoiar as meninas
das pessoas, para tentar influenciar as meninas
desde cedo é fundamental. “No Força Meni-
de forma positiva, então eu acho que as redes
nas, frequentemente recebemos mensagens
podem ser benéficas para elas”, afirma Luiza.
de pais preocupados com suas filhas de opi-
Aumentar a confiança das meninas é, efe-
niões fortes que são hostilizadas na escola e
tivamente, uma das formas mais práticas de
às vezes até por amigos ou familiares”, conta
amenizar as consequências da distinção de
a jornalista. “Nos nossos programas, ressal-
gênero na vida das meninas, aumentando a
tamos a importância do fortalecimento des-
performance escolar delas e até impulsionando
sas vozes. O pensamento crítico da sua meni-
a entrada delas no mercado de trabalho futu-
na não é um problema, é uma qualidade que
ramente, como mostra um estudo da Organi-
a ajudará ao longo da vida. Auxilie-a a lapidar
zação para a Cooperação e Desenvolvimento
a comunicação e com sua força e apoio ela irá
Econômico. Dizer para as jovens “acredite em
em frente”, conclui ela. n
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“As meninas vendo mulheres inspiradoras e convivendo com elas podem aprender desde cedo que não é por que elas são meninas que não podem ser protagonistas” Luiza Travassos, adolescente, jogadora de futebol feminino
“O pensamento crítico da sua menina não é um problema, é uma qualidade que a ajudará ao longo da vida. Auxilie-a a lapidar a comunicação e com sua força e apoio ela irá em frente” Deborah de Mari, fundadora da ONG Força Meninas
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LETÍCIA VINOCUR
»»»Estados Unidos da América, 1943. Dezesseis milhões de norte-americanos serviam seu país, combatendo o mal do nazifascismo Europeu, duran-
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te a Segunda Guerra Mundial. Enquanto isso, suas mulheres e filhos ficaram em casa, esperando o retorno dos chefes de família, provedores financeiros, maridos e pais. Durante esse período, houve uma demanda muito forte por mão de obra nas indústrias bélicas. Em paralelo, surgia uma necessidade de liderança nas famílias, antes chefiadas pelos homens, que no momento se encontravam em frontes de batalha. E foi nesse momento que as mulheres se tornaram mais necessárias do que nunca. De repente, a mulher, antes retratada como submissa, cujas tarefas eram restritas ao lar, tornou-se necessária para o desenvolvimento da economia nacional. A mulher, tão capacitada para trabalhar quanto qualquer homem. Durante o período de guerra, muitas propagandas procuravam trazer essas ideias e incentivar o trabalho feminino. Do dia para a noite, a publicidade norte-americana começou a retratar as mulheres com características tidas como masculinas. Nas figuras, elas usavam macacões de oficina, faziam muque, tinham um porte físico forte e incentivavam outras mulheres a fazerem o mesmo. Nasce Rosie Foi com esse intuito que uma fábrica em Pitsburgh, a Westinghouse Eletric and Manufacturing Company, contratou o artista J. Howard Miller, de apenas 24 anos, para criar cartazes e pôsteres que atraíssem e impulsionassem a atuação feminina nas indústrias. O cartaz continha uma mulher arregaçando
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PERFIL: ROSIE, A REBITADORA
UM ÍCONE ACIDENTAL Conheça a controversa história por trás de um dos pôsteres mais icônicos de movimentos feministas ao redor do mundo todo
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DO DIA PARA A NOITE, A PUBLICIDADE NORTE-AMERICANA COMEÇOU A RETRATAR AS MULHERES COM CARACTERÍSTICAS TIDAS COMO MASCULINAS Foto: Reprodução/Internet
Trabalhadoras americanas durante a Segunda Guerra Mundial
as mangas, usando um laço vermelho de
depois. A composição falava sobre uma
manifestarem desejo de continuar em
bolinhas brancas na cabeça, com os dize-
mulher chamada Rosie, que era dife-
seus postos. Com isso, a maior parte das
res “We Can Do It” (em tradução livre,
rente de todas as outras. Ela trabalhava
propagandas internas voltou a retra-
“nós podemos fazer isso”). O panfleto
em uma fábrica enquanto seu namora-
tar as mulheres como figuras submis-
de Miller ficou em exposição por apenas
do estava combatendo os nazistas pela
sas, que esperavam os maridos em casa,
algumas semanas na parede da frente da
Marinha norte-americana. Ela mexia em
lendo livros e com os jantares postos à
fábrica, e o artista não tinha nenhuma
máquinas e ajudava na defesa dos Esta-
mesa.
intenção de tornar aquela mulher estam-
dos Unidos, trabalhando enquanto seu
Mas a situação já tinha mudado.
pada no pôster um dos maiores ícones
namorado não voltava do fronte de bata-
Mesmo que os publicitários não perce-
feministas de todos os tempos.
lha. Espontaneamente, a figura desenha-
bessem, durante a guerra eles não haviam
Naquele momento, o cartaz de Miller
da por Miller passou a ser chamada de
feito apenas uma mobilização para o tra-
ainda era apenas um cartaz. A persona-
Rosie e logo se popularizou em uma série
balho feminino temporário. Eles come-
gem não tinha nome. Só ficou conheci-
de cartazes do período.
çaram a abrir um espaço para descons-
da como “Rosie, The Riveter” (“Rosie, a
Quando os homens voltaram da
trução da ideia de mulher como alguém
Rebitadeira”) após ser associada a músi-
guerra, 6 milhões de mulheres perde-
frágil e vulnerável, que queria ficar con-
ca escrita em 1942 e lançada um ano
ram seus trabalhos, apesar de 80% delas
finada a um ambiente doméstico.
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Foto: Reprodução
Passados alguns anos, em 1949, a filósofa Simone de Beauvoir, ícone do feminismo mundial, lança seu livro “O Segundo Sexo”. O sociólogo Herbert Marcuse escreve “Eros e a Civilização” em 1966 e inspira a formação de vários movimen-
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tos reivindicatórios de direitos civis. Em 1968, Martin Luther King, símbolo da luta contra o racismo, é assassinado. No ano seguinte, na França, acontece o Maio de 1969, levante dos universitários descontentes com a sociedade e o sistema de ensino. Na esteira desses acontecimentos, o movimento feminista ganha força na década de 1970 e a figura com o rosto de Rosie é resgatada. As mulheres intensificam os protestos contra a desigualdade de gênero. Redescoberta, Rosie passa a estampar milhões de folhetos, cartazes, fanzines, camisetas e outros ícones mundo afora. A verdadeira Rosie A identidade de Rosie já foi atribuída a muitas mulheres com o passar dos anos.
A lendária foto de Naomi Parker “quase com o nariz no torno”
Nos anos 1970, foram resgatados tanto o cartaz quanto a foto que teria supostamente inspirado Miller na composição de sua obra. Várias mulheres se manifestaram afirmando que eram seus rostos
bela Naomi Parker parece capaz de tocar
Guerra Mundial e se deparou com sua
estampados no cartaz. Em 1980, a figu-
o nariz no torno que está utilizando”.
foto. Porém, na legenda, estava escrito o
ra foi atribuída à modelo estadunidense
Em 2016 Kimble encontrou Naomi e
nome de Geraldine Doyle. “Eu não conse-
Geraldine Doyle, que trabalhou por um
revelou toda sua história ao mundo. Ela
guia acreditar porque era eu na foto, mas
breve período em 1942 como operária da
também achava que ela era a moça do
havia o nome de outra pessoa na legen-
American Broach e Machine Co.
cartaz, mas nunca havia sido escuta-
da. Eu só queria a minha identidade. Eu
Mas isso não estava certo. Por aproxi-
da. Em 1942, após o ataque a Pearl Har-
não queria fama nem fortuna, só a minha
madamente 70 anos acreditou-se que a
bor, ela fora trabalhar para uma base
identidade”, declarou à revista “People”.
mulher que inspirou o cartaz de Rosie
naval, sendo uma das primeiras mulhe-
A ex-operária faleceu em janeiro de
era Geraldine, mas em 2010 o pesquisa-
res a chegar ao local. A foto foi tirada no
2018, com 96 anos. Na mesma entrevis-
dor James Kimble, que há anos se dizia
mesmo ano.
ta à “People”, declarou que “as mulhe-
obcecado pelo caso, finalmente encon-
A partir do descobrimento da ver-
res precisam de mais ícones”. Enfim teve
trou uma cópia da fotografia original
dadeira identidade de Rosie, Naomi
sua identidade reconhecida e, ao mesmo
que possivelmente inspirou o artista J.
Parker deu entrevistas para várias revis-
tempo, conseguiu viver o suficiente para
Howard Miller. Ela achou a imagem em
tas e comentou que uma vez participou
ver que se tornou exatamente aquilo de
uma loja de antiguidades. A foto era de
de uma convenção que reunia mulhe-
que as mulheres, segundo ela, tanto pre-
1942, e no verso constava a legenda: “A
res que trabalharam durante a Segunda
cisam. Um ícone. n
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Tarsila do Amaral (1886-1973)
Por Amanda Theodoro (leia mais à pág. 56)
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32/33 A filósofa Simone de Beauvoir, um dos principais ícones do movimento feminista
SUCESSO INVISÍVEL Sociedade celebra poucos exemplos de mulheres que se destacam em suas áreas
como inspiração a atriz Emma Watson JÚLIA FONTES
e a filósofa Simone de Beauvoir.
Meninas mais novas, como Eduarda Strabelli, 14, encontram inspiração den-
“A história das mulheres não faz parte
tro de casa. “Ver que por exemplo minha
»»» Quantos ícones femininos você
dos livros em que a gente estuda a huma-
avó já conquistou tantas coisas, como
conhece? Mulheres de sucesso, ganha-
nidade e as mudanças do mundo em
ser diretora de faculdade, viajar muito,
doras de prêmios Nobel, inventoras,
geral. Então existe uma falta de ídolos
ter um doutorado, entre outras coisas,
cientistas, empreendedoras… Fora do
nesse sentido, porque as meninas não
mostra como eu também posso chegar
terreno das artes, em especial da músi-
se veem espelhadas na história, nem nos
longe”, diz Eduarda.
ca e do cinema, os exemplos são pouco
grandes cientistas, descobridores e líde-
Fora de casa, celebridades inspiram as
divulgados. Em muitos casos, ocorre
res. Nas pessoas que de fato fizeram um
garotas. Camila Tiferes,14, diz não ter um
uma invisibilização das figuras femi-
movimento para um futuro promissor”,
ídolo feminino específico, mas que geral-
ninas. Giovana Cardoso, 17, lamenta
avalia Deborah de Mari, fundadora da
mente se sente inspirada por mulheres
haver enorme desinformação sobre
ONG Força Meninas e pesquisadora nas
bonitas e famosas. Giovanna Pavanelli,
os grandes ícones femininos e diz ter
áreas de gênero, liderança e educação.
12, falou que sua inspiração é a atriz
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Fotos: Wikipedia/CC
Três atrizes hollywoodianas tidas como mulheres inspiradoras: Rachel Wood, Viola Davis e Hedy Lamarr (1914-2000)
americana Ashley Benson. Para Debo-
realizaram grandes feitos para a socie-
Engenharia de Produção e acredita não
rah de Mari, essa identificação ocorre
dade na área de desenvolvimento tec-
ter uma mulher para se espelhar na área,
pelo fato de a imagem feminina (e tam-
nológico. “Quem fez as bases da compu-
pois apesar de contribuírem muito para
bém a masculina) ser muito estereotipa-
tação e da internet foram as mulheres,
a engenharia, elas não são reconhecidas
da. “A menina ainda vê a mulher nessa
e elas foram completamente apagadas.
por grandes empresas. Mas cita a escri-
figura do corpo e da beleza, ou em uma
Um exemplo incrível é a Hedy Lamarr,
tora Bruna Viera como uma de suas ins-
figura de cuidado, muito mais materna”,
que além de atriz criou o wifi, e ninguém
pirações para a vida: “Admiro-a por cor-
diz a pesquisadora.
conta a história dela”, lamenta Camila.
rer atrás de seus sonhos de uma forma
As inspirações vão além de uma figu-
empreendedora, mesmo sendo nova. É
Cientistas
ra bonita e de sucesso. Algumas meni-
uma algo que quero seguir para minha
Em 2016 o Instituto de Matemática e
nas, como Marina Vieira, 17, não se inspi-
vida”.
Estatística (IME) da USP, em São Paulo,
ram e admiram apenas uma mulher. “Eu
No esporte não é diferente. No Bra-
contava com uma turma de 41 alunos
não tenho uma inspiração única, alguém
sil o futebol é o mais reconhecido, mas
de Ciências da Computação. Apenas
que seja referência para mim. Mas eu
apenas o masculino tem grande cober-
seis eram meninas. Isso representa 15%
reconheço e admiro todas aquelas que
tura da mídia. Luiza Travasso, 14, é joga-
da sala de aula. Em um discurso sobre
de alguma maneira fizeram a diferen-
dora de futebol da PSG Academy, no Rio
mulheres na tecnologia para o TEDxUSP,
ça na nossa sociedade, seja descobrindo,
de Janeiro, e foi eleita uma das mulhe-
Camila Achutti, cientista da computa-
inventando algo, ou lutando por nossos
res mais inspiradoras do mundo em 2017
ção e empreendedora, diz que tal fato é
direitos”, conta.
pela BBC. Ela destaca o fato de o fute-
influenciado pela criação de um estere-
A estima por grandes mulheres tam-
bol feminino não ter visibilidade e como
ótipo feminino que não está baseado na
bém vem de como elas seguem seus
seria importante ter uma maior exposi-
verdade. Pois existem, sim, mulheres que
sonhos. Cecília Gauer, 19, é estudante de
ção, na mídia, de mulheres de sucesso. n
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#ELAS SIM 34/35
Mulheres se organizam e protagonizam grandes acontecimentos políticos em 2018
para 77 deputadas, em 2018. No entanGIOVANNA OLIVEIRA GIOVANNA TUNELI NATHALIA MIRANDA MARIA VICTÓRIA BRIZZI SOFIA NUNES AURELI
to, o número do Senado – sete – permaneceu o mesmo. Isso mostra que ainda há um longo caminho para alcançar a igualdade. E
»»»Sob a perspectiva dos movimen-
as expectativas passaram a ser negati-
tos sociais, especialmente o feminis-
vas depois das últimas eleições gerais.
ta, o ano de 2018 não veio apenas para
A cientista política Deysi Cioccari desta-
eleger o retrocesso ao Brasil. Foi tam-
ca, por exemplo, que as mulheres detêm
bém uma faísca para a ação das mulhe-
apenas 15% de cadeiras no parlamento
res em prol de seus direitos. “Compa-
brasileiro, um cenário completamente
nheira, me ajuda que eu não posso
desproporcional ao total da população
andar só. Eu sozinha ando bem, mas
feminina no País, de 51%. “O Congresso
com você ando melhor” foi não ape-
eleito é o mais conservador desde 1964.
nas um dos cantos entoados nas mani-
E o que isso significa? Que dificilmen-
festações, mas também um grito de
te pautas femininas e progressistas vão
união pela sororidade, e sobretudo,
entrar em votação nos próximos qua-
pela democracia.
tro anos”, pontuou. Outra questão a ser
Vozes femininas ecoaram pelas ruas
lembrada, segundo ela, é o fato de que
de todo o país. Como uma lufada de ar,
foi o assassinato de uma mulher, a vere-
bradavam em gritos de guerra as práticas
adora fluminense Marielle Franco, em
sufocantes para sua existência. Quando
14 de março, um dos pontos nevrálgi-
a rua é pintada de roxo, a cor do feminis-
cos da deflagração das recentes mani-
mo, as mulheres retomam pautas como
festações feministas. Nas palavras de
feminicídio, cultura do estupro, igual-
Deysi, “Marielle era revolucionária, e aí
dade de gênero, visibilidade lésbica e bi
mataram a revolução”. Sua figura virou
e o combate a tantas outras formas de
semente e semeou uma maior inserção
machismo e misoginia. Todas elas, invi-
das mulheres na política.
síveis aos olhos de terceiros no dia a dia, mas pulsantes na pele feminina.
Essa perspectiva negativa sobre o futuro próximo é compartilhada por
E essa movimentação se transfor-
Talíria Petrone, eleita deputada federal
mou em representatividade feminina
pelo PSOL-RJ. “O presidente eleito, Jair
no Legislativo, com aumento de 51% das
Bolsonaro, representa uma ameaça para
mulheres atuantes no Congresso Nacio-
a democracia e para os direitos huma-
nal. Na Câmara dos Deputados, a repre-
nos, sobretudo das minorias”, diz, des-
sentação feminina passou de 51, em 2014,
tacando que ele é porta-voz de inúme-
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Foto: Rafa Giovannini/Flickr/CC
Manifestação reuniu milhares de mulheres em setembro de 2018 em São Paulo
ras declarações misóginas, homofóbicas e racistas. Bolsonaro afirmou publicamente que iria “botar um ponto final em todos esses ativismos”. “Isso já diz tudo sobre uma possibilidade grave de retrocesso nas condições de liberdade para o nosso exercício do direito à manifestação política em nosso país e de violento silenciamento dos movimentos sociais e partidos comprometidos com os direitos humanos e as pautas da esquerda”, afirma Talíria. Diante desse cenário, a reação das mulheres foi semelhante à de um ser humano quando entra em defesa do próprio organismo. Elas se uniram e assumiram o papel de anticorpos. Em setembro, houve uma manifestação nas redes sociais em um grupo do Facebook, seguido por uma série de atos que começaram no mesmo mês. O objetivo era demonstrar a desaprovação ao então candidato Bolsonaro e passar um recado para qualquer um que estivesse ali para ouvir: nossas pautas não serão silenciadas. Além da criação do grupo no Facebook “Mulheres unidas contra Bolsonaro” – com mais de 2,5 milhões de participantes –, a hashtag #elenão se popularizou nas principais redes sociais. Artistas nacionais e internacionais aderiram à tag e a tornaram mais conhecida. Deborah Secco, Bruna Linzmeyer, Leticia Colin e Nanda Costa encamparam a causa no Brasil; Roger Walters, Dan Reynolds, Dua Lipa, Madonna e Lauren Jauregui a pro-
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“TODAS AS BANDEIRAS PODEM LUTAR UNIDAS POR CAUSAS FUNDAMENTAIS, COMO A PRÓPRIA DEMOCRACIA”
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Talíria Petrone, deputada federal
Acima e na página ao lado, mulheres em ato contra Bolsonaro realizado em Belo Horizonte
pagaram no exterior.
tos marcados, sendo a maioria na Euro-
2015 tiveram grande protagonismo das
Em razão da primeira manifestação
pa. “O #elenão é uma bela demonstração
mulheres”, relembra a socióloga Jorda-
oficial, o #elenão foi utilizado 193,4 mil
de como todas as bandeiras podem lutar
na Dias.
vezes e uma de suas variações, a #ele-
unidas por causas fundamentais em
“O #elenão é a continuidade de um
nunca, outras 152 mil, segundo levanta-
comum, como a própria democracia”,
processo importante de empoderamen-
mento da reportagem da Plural realiza-
comenta Talíria Petrone, que também
to das mulheres que agora mira nesta
do com o uso da ferramenta para análise
compartilhou a campanha nas redes
ameaça chamada Jair Bolsonaro, que é
de publicações nas redes sociais forne-
sociais.
a materialização do que há de pior das
cida pelo Stilingue para uma parceria
“No Brasil, tivemos o que chamam de
forças patriarcais, misóginas, racistas e
com o curso de Jornalismo da ESPM-SP.
‘Primavera Feminista’ contra o Cunha
homofóbicas na sociedade”, acrescenta.
No Brasil, os manifestantes se reuniram
[Eduardo Cunha, ex-presidente da
“Se buscamos a igualdade e nossos
em 114 cidades, em todos os Estados e no
Câmara dos Deputados]. Além disso,
direitos, devemos lutar por eles, conse-
Distrito Federal. Na semana do primei-
temos há anos a Marcha das Vadias, e as
quentemente precisamos nos posicio-
ro ato nas ruas, 15 países já tinham even-
ocupações de escolas em São Paulo em
nar e nos colocar disponíveis para isso”,
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“SE BUSCAMOS A IGUALDADE E NOSSOS DIREITOS, DEVEMOS LUTAR POR ELES, PRECISAMOS NOS POSICIONAR” Brenda Silva, manifestante
Fotos: Luiz Rocha/Mídia Ninja
disse Brenda Silva, uma das manifestan-
movimento #elesim, em defesa do então
ticamente. Muitas demonstravam certo
tes presentes no Largo da Batata, zona
candidato. Essa contra-resistência par-
endeusamento pelo então candidato.
oeste de São Paulo.
tiu de mulheres, homens e crianças que
“Tem gente indo na onda da ‘modinha’
Na visão da cientista política Deysi
repetiam discursos de ordem em repre-
do feminismo. E vêm falar sobre gros-
Cioccari, contudo, o #elenão foi usado
sália à esquerda, como bordões como “o
seria? Me poupe. Estamos elegendo um
de forma equivocada pelos manifestan-
PT acabou com a minha vida”, “o regime
presidente e não um marido”, afirmou a
tes, o que de certa forma teria deturpado
militar só matou bandido” e “o comunis-
advogada Carol Pavanelli.
o movimento. “O que a gente viu sendo
mo vai acabar com o Brasil”.
passado para frente foram imagens de
O posicionamento de Carol ecoou o
Nessas manifestações, as mulheres
que as próprias mulheres do partido do
estavam com bandeiras do Brasil em
presidente eleito defenderam ao longo
punho e entoando versos musicais para
da campanha. Auto-intitulada “Bolso-
Contra a resistência?
exaltar Bolsonaro, gritando por mudan-
naro de saia”, Joice Hasselmann, eleita
Em resposta a essas manifestações contra
ça. Elas traziam no rosto sorrisos de
deputada federal pelo PSL-SP com mais
Jair Bolsonaro, surgiu nas redes sociais o
quem acreditava que iria votar democra-
de 1 milhão de votos, declarou publica-
mulheres levantando a camiseta”, disse.
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Foto: Alessandro Dias/Flickr/CC
Manifestação pró-Bolsonaro realizada em Brasília após o primeiro turno das eleições
mente que não pensa em trabalhar em
necessária, pois acredita que Bolsona-
família. Essas mulheres foram atrás dos
projetos somente para o público femi-
ro se elegeu porque “ninguém aguenta
maridos”, avalia.
nino. “Não gosto dessa coisa de projeto
mais a roubalheira do PT”. “Eu votei nele.
É com base em análises assim que
segmentado. Fui eleita por brasileiros de
Não concordo com tudo que ele fala. Mas
Deysi questiona, por exemplo, a neces-
São Paulo, meus projetos são de nação”,
é a minha esperança! Se ele não for bem,
sidade de se pensar sobre quem repre-
disse à imprensa.
farei um esforço para tirá-lo!”.
sentará as minorias diante de um Con-
O #elesim alcançou grande repercus-
A cientista política Deysi Cioccari
gresso eleito com maioria conservadora,
são entre as garotas a partir da página
explica que este tipo de posicionamen-
ou ainda, no tocante às questões feminis-
do Facebook Mulheres com Bolsonaro
to está relacionado a uma necessidade de
tas, como lidar com um presidente eleito
– que atingiu 1,4 milhão de curtidas – e
buscar o passado como um lugar segu-
que descredibiliza essas temáticas. “Eu
de vídeos compartilhados pela mesma
ro. “O fato de a sociedade hoje ser muito
não vejo com muito otimismo. A histó-
mídia. Celebridades como a atriz Regi-
acelerada causa ansiedade. O passado a
ria da mulher na política brasileira ainda
na Duarte e a ex-modelo Andressa Urach
gente já conhece, mas o futuro é incer-
é muito recente. São pautas intocáveis
também se manifestaram em defesa do
to, líquido”, afirmou.
porque são silenciadas”, disse.
então candidato à Presidência.
Deysi ainda pontua que o movimen-
As respostas parecem estar justamen-
O #elesim alcançou grande repercus-
to Mulheres Com Bolsonaro confirma a
te na necessidade de encontrar nesse
são entre as garotas a partir da página
hipótese da influência do voto feminino
cenário adverso uma equação para o
do Facebook Mulheres com Bolsonaro
definido pela figura masculina, especial-
fortalecimento dos movimentos sociais.
e de vídeos compartilhados pela mesma
mente dos maridos: “Bolsonaro come-
“Sem as mulheres, não haverá uma revo-
mídia. Questionada sobre o #elenão,
çou a crescer entre mulheres casadas, ou
lução que transforme este mundo em um
Gabriela Saade, defensora do presiden-
seja, os maridos votavam nele, tecnica-
lugar bom de se viver”, concluiu a depu-
te eleito, disse considerar a hashtag des-
mente porque ele defende os valores da
tada eleita Talíria Petrone. n
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Nise da Silveira (1905-1999)
Por Giulia Golfari (leia mais à pág. 56)
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Foto: Waldemir Barreto/Agência Senado
Aline Guedes entrevista assessora da Procuradoria Especial da Mulher, no Senado
MULHERES NA PAUTA Nas últimas décadas, elas conquistaram um espaço decisivo no jornalismo brasileiro carreira – criação de sindicatos, asso-
de Informações da ONU para o Brasil
SARA SANTANA
ciações, divisão por editorias nas reda-
(UNIC Rio), concorda que a maior difi-
»»»Quem assiste o noticiário e vê
ções, exigência do diploma, inovações
culdade na carreira é ascender na hie-
em ação Sandra Annenberg, Patrícia
tecnológicas, entre outros.
rarquia editorial – não só pelo fato da
Poeta e Fernanda Gentil, por exemplo,
Atualmente, as mulheres estão con-
qualidade do profissional, mas tam-
pode até achar que as mulheres sem-
quistando a cada dia mais espaço dentro
bém pela idade. “Acho que o jornalismo
pre estiveram presentes no jornalis-
do mercado de trabalho no Jornalismo.
tem mais espaço e vagas para pessoas
mo. Mas isso não é verdade. Como em
Nos cursos de jornalismo, já são maio-
jovens. Chega um momento em que você
várias outras profissões, elas tiveram
ria. Nas redações também, na maior
não vê tanta gente mais velha nas reda-
de conquistar seu espaço.
parte dos casos. Os cargos de chefia, no
ções, o que me soa como um alerta sobre
entanto, ainda são predominantemen-
o que fazer quando chegar na idade des-
te masculinos.
sas pessoas. Outra dificuldade é aque-
O aumento de mulheres no campo jornalístico se deu a partir do final da década de 1930, com a profissionalização da
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Luciana Bruno,33, jornalista do Centro
la máxima que a gente sempre ouve, de
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AS MULHERES ESTÃO CONQUISTANDO A CADA DIA MAIS ESPAÇO DENTRO DE VEÍCULOS DE COMUNICAÇÃO. NOS CURSOS DE JORNALISMO, JÁ SÃO MAIORIA que jornalista tem que ser multimídia,
do na profissão, Meiri recomenda “ter
profissão na época não era muito valo-
multitarefa. Já ouvi isso em 2005 e con-
postura ética e se dedicar ao máximo a
rizada. “Minha mãe me obrigou a cur-
tinuo ouvindo hoje. No entanto, apesar
toda e qualquer oportunidade de tra-
sar para ser professora, com o seguinte
de achar que a gente tem sim que saber
balho que aparecer”. Para quem correr
argumento: primeiro você tem que ter
mais de uma linguagem, acredito que
atrás, cedo ou tarde as coisas boas acon-
uma profissão de verdade”. Cida acres-
as empresas em que eu achei mais legal
tecem”, pondera.
centa que o Jornalismo não era uma pro-
trabalhar tinham as funções bem divi-
fissão receptiva a mulheres. “Quando eu
didas – fotógrafos muito bons que só
Primeiros anos
argumentava que gostava de escrever,
tiram fotos, jornalistas só de texto ou
A jornalista Cida Damasco começou a
minha mãe me dizia para cursar Letras.”
só para vídeo etc. Acho que a qualida-
trabalhar na área em 1970. Para ela, o
O primeiro emprego da jornalista foi
de do serviço é muito melhor quando
sonho pela profissão surgiu bem cedo,
na equipe de copidesque do extinto jor-
as funções são divididas e especializa-
na época do ginásio. “Todo mundo me
nal “Notícias Populares”, em São Paulo,
das”, completa ela.
dizia que eu escrevia bem e que tinha
onde afirma ter aprendido os principais
A jornalista Meire Borges, que atual-
boas idéias, e isso acabou me influen-
elementos de uma apuração, em um
mente atua como diretora da divisão de
ciando.” A jornalista explica que a
ambiente predominantemente mascu-
comunicação social da Câmara Muni-
lino. Logo depois, foi para o núcleo de
cipal de Osasco, compartilha os moti-
revistas técnicas da Editora Abril. Con-
vos que a levaram a seguir o jornalis-
solidou a carreira na área de Economia:
mo. “Sou uma pessoa que gosta de servir
passou pela revista “Exame” e pelos jor-
a outras pessoas. Quando pensava em
nais “O Estado de S.Paulo”, “DCI”, “Zero
profissão, meu desejo sempre foi poder
Hora” e “Gazeta Mercantil”.
ajudar a sociedade. Defender a democra-
No jornal O Estado de S.Paulo ela fez
cia e a população, expor coisas erradas.”
história: em 2011 Cida se tornou a pri-
Meire explica que, quando decidiu
meira editora-chefe nos 136 anos da
cursar Jornalismo, a situação econô-
publicação. Em sua longa carreira, como
mica do país era outra, e que ser jorna-
define, só pontua uma única situação em
lista era sinônimo de status e de respei-
que sofreu preconceito por ser mulher.
to. Entre as maiores dificuldades que já
“Muito no começo de minha carreira eu
encontrou, lembra que “no começo da
estava em uma lista para ser promovida
carreira eu ainda não tinha muito aces-
– a ‘disputa’ era entre eu e um homem –
so a boas fontes. Foi com o passar dos
e não consegui a vaga. Ouvi o argumen-
anos que fui construindo meus contatos
to: ‘Você pode esperar, o que ia fazer com
com pessoas que contribuíram muito na
esse aumento? Comprar maquiagem?’
minha formação”.
Depois disso nunca tive nenhum pro-
Hoje, diz, “o desafio é conciliar o papel
blema de preconceito ou remuneração”.
de mãe e minhas atividades à frente
Quando questionada sobre as quali-
do departamento de comunicação da
dades que um bom jornalista precisa
Câmara de Osasco. Coordeno uma equi-
ter, Cida, além de citar a pluralidade de
pe de oito profissionais, entre eles qua-
funções e a necessidade de adaptação do
tro homens mais velhos do que eu. Além
profissional, defende a base do jornalis-
disso, sou porta-voz do Poder Legislati-
mo, que é a defesa da verdade. “O funda-
vo de uma das maiores e mais importantes cidades do Estado de São Paulo em um momento em que a política do Brasil vive uma fase crítica e uma crise moral muito grande”. Para as mulheres que estão ingressan-
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“Ouvi o argumento: ‘Você pode esperar, o que ia fazer com esse aumento? Comprar maquiagem?’”
mental para o profissional é o conteúdo,
Cida Damasco, editora-chefe do jornal O Estado de S.Paulo
to que está abordando e não tiver fon-
esteja ele no jornal impresso, no site, na revista ou em qualquer outro meio. Se o profissional não se dedicar ao assuntes, não adianta”, conclui. n
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42/43
Arte: Joana Coccarelli
Colagem da artista plástica carioca Joana Coccarelli
A BANALIDADE DO MAL Assédio virtual se multiplica com o avanço da internet; 95% das vítimas são mulheres
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O ASSÉDIO VIRTUAL SE TORNOU PRÁTICA COMUM EM RELACIONAMENTOS ABUSIVOS, COM O “REVENGE PORN” E A PERSEGUIÇÃO DE PESSOAS POR MOTIVOS IDEOLÓGICOS
PAULA JACOB
tinatária postou o print do que lhe foi enviado na página do blog no Facebook,
»»» Desde que os aparelhos celulares
com mais de 300 mil seguidores, sem
ganharam câmeras, as mensagens de
preservar a identidade de Lucila. A ima-
texto se tornaram populares e as redes
gem acompanhava a descrição: “Quan-
sociais foram criadas, o assédio virtu-
ta arrogância da Moleskine!!! Confesso
al virou um comportamento comum
que peguei ranço, viu? Mas agora farei
dos usuários. No início, muito pelo fato
questão de comprar caderno, caderne-
de que existia uma persona virtual e
ta, agenda, e nunca mais Moleskine. Pq
outra real, uma sensação de anonima-
marca arrogante eu não faço a menor
to generalizada.
questão de ter”. Em poucos instantes, a
Segundo o site Cyberbullying.org, o assédio virtual “é uma prática apoiada
publicação viralizou nos diversos grupos de comunicação do Facebook.
no uso de tecnologias de informação e
– Vaca .
comunicação para dar vazão aos com-
– Burra.
portamentos deliberados, repetidos e
– Ignorante.
hostis praticados por um indivíduo ou
– Que Deus leve essa menina.
grupo com a intenção de prejudicar o
– Me dá a sua vaga.
outro”. Contudo, para além de xinga-
– Moleskine me contrata.
mentos imaturos e polarização políti-
“90% desses xingamentos foram fei-
ca – temos bons exemplos disso, consi-
tos por mulheres”, comenta Lucila,
derando o ano de eleições no Brasil –,
enquanto os lê em voz alta. E então sus-
o assédio virtual se tornou uma práti-
pira: “É… ódio gratuito”. Por menor que
ca muito comum em casos de relaciona-
possa parecer hoje para ela, “são apenas
mentos abusivos, com o “revenge porn”
comentários no Facebook”, na época,
(vídeos e/ou fotos íntimas vazadas sem
a pressão psicológica causada afetou
o consentimento da vítima), e a perse-
a sua rotina, autoestima e vivacidade.
guição de pessoas por motivos ideológi-
“Fiquei sem comer por dias. Vivia apenas
cos quaisquer, tornando a mulher o alvo
de cigarros, café e água.” O buraco den-
da difamação online em 95% dos casos,
tro do estômago, que ela descreve como
como estima a ONU.
primeiro sentimento ao ver aquele post,
Em fevereiro de 2018, Lucila Longo, RP
a consumiu durante as duas semanas
da Moleskine, sofreu assédio moral via
seguintes. “É o famoso ciclo vicioso do
redes sociais após um email seu envia-
pensamento negativo. Meu próprio corpo
do à blogueira do #Deu Ruim ir a públi-
vai se comendo. Já eu, não tinha fome.”
co. Nele, ela explicava à blogueira literá-
Enquanto o telefone das agências que
ria que um de seus colaboradores havia
Lucila havia trabalhado não paravam de
mencionado “Moleskine” incorretamen-
tocar, a busca pelo seu nome no Linkedin
te – de acordo com as normas interna-
aumentou 162% naquele período. Eram
cionais da empresa, é função dos funcio-
mensagens de ódio na caixa de entrada
nários de comunicação esclarecer que
do email e nos perfis nas redes sociais –
qualquer caderno não é um Moleskine
“só não me marcaram no Twitter, por-
e vice-versa, porque quanto mais pes-
que não tenho um, mas o assunto virou
soas fizerem essa associação errônea,
trend topic do dia” –, ao passo que ami-
menos direitos sobre o próprio nome a
gos, colegas profissionais e familiares
“A única coisa que pedi para os que vinham falar comigo era para não se envolverem nas postagens, não me defenderem, porque não queria que aquilo se estendesse”
companhia tem. Anexou o termo global
surgiram como conforto. “A única coisa
da marca, mas, em poucas horas, a des-
que pedi para os que vinham falar comi-
Lucila Longo, jornalista
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Arte: Joana Coccarelli
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go era para não se envolverem nas pos-
coisa ruim como essa acontecer nova-
tagens, não me defenderem nos comen-
mente. Isso mexe com a gente.” Para evi-
tários, porque não queria que aquilo se
tar futuros desdobramentos, a coordena-
estendesse para outros lados”, explica.
dora da marca achou de bom tom trocar
A Moleskine, por sua vez, se posicionou
o contato de trabalho de Lucila para um
a favor de sua funcionária e o coorde-
mais genérico: comunicacao@moleski-
nador internacional de comunicação de
ne. E, em casos específicos, pediu para
Nova York perguntava constantemente
que a assinatura fosse retirada do conte-
sobre o estado físico e mental de Lucila.
údo do e-mail. “Preciso voltar a acreditar
Eram dez anos de experiência no mer-
em mim, minha identidade foi retirada
cado que pareciam escapar pelos dedos
sem a minha autorização”, reflete. “E me
da jornalista. “A internet dá um poder
espanta também ver que, mesmo com o
para as pessoas que jamais foi imagina-
aumento do número de pautas em torno
do. Elas não conseguem enxergar um
do assédio virtual em veículos de gran-
ser humano atrás da tela, somos todos
de alcance, as pessoas seguem com esse
tratados como máquinas. Eu deixei de
tipo de comportamento. Parece que nada
me ver como profissional. Me senti um
é o suficiente, as pessoas não leem mais.”
peão no jogo da vida e, hoje, ainda traba-
Entre os colegas que a auxiliaram no
lho no automático, com medo de alguma
primeiro momento do caos, uma amiga
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sugeriu o contato de um advogado espe-
Conexões que Salvam. A plataforma em
cializado em causas de redes sociais. “A
prol da saúde mental das vítimas conta
internet virou uma terra sem lei. Os usu-
com diversas informações sobre o que
ários que atacam o fazem porque nin-
é o assédio virtual, como identificá-lo e
guém os pune; os usuários que são ata-
como proceder quando você é a vítima.
cados temem expor e piorar a situação.
Indica, em forma de passo a passo, para
No meu caso, eu tive medo de afetar a
quem ligar, quando ligar, como reagir e a
minha carreira. Eu era a vítima e esta-
quem recorrer em horas como essa. Lem-
va me culpando de coisas que não deve-
bre-se, você não tem culpa da violência
ria. Estava questionando a minha pró-
no rodapé do hotsite.
“Eu não dormi por dias lendo os comentários às 4 da manhã. Eu não comi por duas semanas”
blema tem um rosto, as pessoas vão falar
“Não acredito que chegou a esse
mal. Não importa o tanto que batam na
ponto”, exclama ela ao saber que a jor-
Coca-Cola, ela é uma marca, ela continua
nalista foi até xingada de “puta” e “vaca”.
“A internet tem um potencial imensurável para espalharmos mensagens positivas, formarmos grupos de auxílio entre mulheres, mas ainda não chegamos lá. Estamos vivendo momentos de marcação de alvos. Temos que estender as mãos umas para as outras e não nos atacarmos”
sendo o refrigerante com o maior núme-
“O problema da internet não é a falta de
Lucila Longo, jornalista
ro de vendas. Eu sou a Lucila Longo. Eu
lei, porque ela existe e ela pune as pes-
não dormi por dias lendo os comentá-
soas que cometem os crimes online. O
rios às 4 da manhã. Eu não comi por duas
grave é chegar nas autoridades para ten-
semanas. Eu não sou a Coca-Cola, eu sou
tar abrir um B.O. e ver a vítima ser mini-
um ser humano”, pontua ela. “A inter-
mizada pelo assédio ter acontecido na
net tem um potencial imensurável para
internet. Já escutei de tudo, inclusive que
espalharmos mensagens positivas, for-
bastava fechar o computador que tudo
marmos grupos de auxílio entre mulhe-
se resolveria – a gente sabe que não é
res, mas ainda não chegamos lá. Esta-
bem assim.”
pria experiência profissional, a minha
Além de dados sobre delegacias da
capacidade intelectual, a minha forma-
mulher espalhadas pelo país, o Cone-
ção”, desabafa.
xões que Salvam disponibiliza também
O advogado, após recolher todos os
o contato do Coletivo de Juristas Femi-
prints que Lucila tinha salvo, confir-
nistas. Ao serem contatadas para a elabo-
mou que o comportamento era de abuso
ração desta reportagem, as organizado-
moral, exposição e difamação online, e o
ras da página encaminharam o telefone
material serviria como base para o pro-
de Mariana Valente, advogada, membra
cesso. Até o presente momento, a vítima
do coletivo, diretora e pesquisadora do
não entrou com o recurso, porque quer
InternetLab, “centro independente de
esperar deixar o cargo na empresa, con-
pesquisa interdisciplinar que promo-
siderando que, desde o começo, a briga
ve o debate acadêmico e a produção de
não foi entre a blogueira e a Moleskine,
conhecimento nas áreas de direito e tec-
mas entre a blogueira e a Lucila pessoa
nologia, sobretudo no campo da Inter-
física. “A partir do momento que o pro-
net”, como descrito no site.
mos vivendo momentos de marcação de
As consequências de assédios morais,
alvos. Temos que estender as mãos umas
sexuais e difamação na internet são
para as outras e não nos atacarmos.”
reais, mas o abusador não tem o contato direto com a vítima, o que o dá a sen-
Do ponto de vista legal
sação de poder. “As pessoas não fazem
Pensando nas mulheres vítimas do
isso porque acham que não tem lei,
assédio virtual, tal como Lucila Longo,
elas fazem isso porque não há um con-
a ONG Think Olga e o Facebook lança-
tato físico com a vítima, elas não estão
ram no primeiro semestre deste ano o
vendo no rosto do outro as reações aos
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“DIFICILMENTE UMA PESSOA QUE XINGUE E HUMILHE A OUTRA NAS REDES SOCIAIS FARIA ISSO PESSOALMENTE. E NÃO ADIANTA DAR A VELHA DESCULPA DO ANONIMATO” Arte: Joana Coccarelli
Rede de juristas auxilia mulheres A Rede de Feministas Juristas é composto
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por mulheres e mulheres trans advogadas para auxiliar as mulheres que sofrem com crimes de gênero e difamação. É uma rede de acolhimento, com o intuito de guiar e apoiar as vítimas, auxiliando na superação do trauma. O coletivo também trabalha com pesquisa e levantamento de pautas que melhorem as leis do Brasil seus comentários. Dificilmente uma pes-
te aponta para uma direção na qual a
em relação aos
soa que xingue e humilhe a outra nas
internet também ajuda. “Da mesma
crimes que chegam
redes sociais faria isso pessoalmente. E
forma que a plataforma permite que
até as membras.
não adianta dar a velha desculpa do ‘ano-
exista esse tipo de pessoa, ela também
Entre em contato
nimato digital’, porque hoje em dia todo
mostra uma menor tolerância em rela-
pelo defemde@
mundo coloca foto e nome na internet. É
ção aos assédios, portanto, um aumen-
gmail.com. n
a potencialização da experiência descor-
to nas denúncias de casos como esse ou
porificada, a mediação da tela deixa tudo
assédios sexuais e morais. A internet dá
mais ‘fácil’”, explica a advogada.
espaço para o fortalecimento das pautas
No caso de Lucila, Mariana afirma que
de aceitação, acolhimento e sororidade.
é possível fazer a denúncia e processar
A exposição de problemas ameaça o sta-
as pessoas que causaram a difamação,
tus quo e ele reage de forma agressiva”,
mas ressalta que existem outras ques-
completa a advogada.
tões envolvidas, como o custo de um pro-
Injúria e difamação são considerados
cesso e a demora para a resolução do
crimes de menor potencial ofensivo,
mesmo. “É triste pensar, mas até a Jus-
com penas baixas, e tratados no Juiza-
tiça parece não ser a melhor coisa nes-
do Oficial Criminal. “A ideia é punir por
sas horas. O que fortalece a minha cren-
outros meios, porque não precisamos
ça de que precisamos discutir cada vez
de mais presos, mas isso é uma outra
mais publicamente os efeitos concretos
discussão”, alerta Mariana. Prestação
desses ataques”, diz.
de serviços à comunidade e indenização
Apesar de o cenário brasileiro não ser dos mais otimistas, Mariana Valen-
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monetária são as penas mais comuns em casos como o de Lucila Longo. n
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Lina Bo Bardi (1914-1992)
Por Natália Nóbrega (leia mais à pág. 56)
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p&r
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ENTREVISTA: JULIANA DE FARIA JORNALISTA, UMA DAS CRIADORAS DO THINK OLGA
NOSSOS MEDOS NÃO PODEM SER VISTOS COMO ‘MIMIMI’ PARA UMA DAS PRINCIPAIS VOZES DO FEMINISMO ATUALMENTE, APESAR DOS AVANÇOS, MOVIMENTO AINDA É ALVO DE CAMPANHAS “MAQUIAVÉLICAS” DE DESINFORMAÇÃO, QUE DIFICULTAM O SEU AVANÇO
No bate-papo a seguir, Juliana conta VICTÓRIA FARAGÓ
que ela mesma já foi vítima de assédio sexual e que, por isso, quis ajudar a dar voz a outras vítimas. Ela lamen-
»»» Juliana de Faria, 33 anos, meio sem
ta a desinformação sobre o feminismo
querer se tornou uma das principais
e manifesta temor em relação à futura
porta-vozes do feminismo no Brasil
gestão do presidente eleito Jair Bolso-
hoje. A jornalista é uma das fundado-
naro – mas, ao mesmo tempo, celebra
ras da ONG Think Olga, com a propos-
a ascensão de mais mulheres ao posto
ta de “empoderar mulheres por meio
de deputadas federais.
da informação”. O projeto se descreve
Leia a seguir os principais trechos
como um “hub de conteúdo que abor-
da entrevista concedida via Skype – a
da temas importantes para o público
pedido da própria Juliana, cuja agen-
feminino de forma acessível”.
da está sempre lotada – a esta edição
“Meio sem querer” porque ela não
da revista Plural.
esperava o sucesso estrondoso de uma de suas primeiras ações: a campanha
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“Chega de Fiu Fiu”, que começou em
Como e quando você começou a se interessar pelo feminismo?
2013 como uma série de postagens em
Juliana de Faria – É uma pauta
redes sociais para abordar, com bom
que está presente na vida de todas
humor, o grave problema do assédio
as mulheres, mas às vezes é difícil
a mulheres. A iniciativa ganhou volu-
enxergar que a gente faz parte desse
me rapidamente e se tornou conhecida
movimento de lutar por direitos das
em todo o país, angariando milhares
mulheres. As pautas femininas sempre
de depoimentos espontâneos. Virou
tocaram a minha vida, sempre sofri e
documentário em 2018. Deu o ponta-
sofro pressões que são semelhantes
pé inicial à criação da ONG, fundada
às de várias outras mulheres… Mas
também em 2013.
quando eu tinha uns 27 anos, graças à
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Foto: Thays Bittar T_48_55_pingue.indd 45
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“EU ACHO QUE JUNTAS A GENTE TEM UMA FORÇA MUITO GRANDE, E ISSO CRIA UMA CORAGEM MUITO GRANDE DE SEGUIR EM FRENTE E BUSCAR MUDANÇAS” “ÀS VEZES É DIFÍCIL ENXERGAR QUE A GENTE FAZ PARTE DESSE MOVIMENTO DE LUTAR POR DIREITOS DAS MULHERES. AS PAUTAS FEMININAS SEMPRE TOCARAM A MINHA VIDA, SEMPRE SOFRI E SOFRO PRESSÕES QUE SÃO SEMELHANTES ÀS DE VÁRIAS OUTRAS MULHERES”
A jornalista Juliana de Faria, uma das criadoras da ONG Think Olga
internet, graças a mulheres que esta-
e conscientizar as pessoas sobre os
vam na internet, nas redes sociais, eu
direitos das mulheres. Sobre o que é
comecei a entender melhor o que sig-
ser mulher no mundo, e, com isso, de
nificava esse movimento e a entender
alguma forma tentar humanizar as
que fazia parte dele. Comecei a me
mulheres. Eu acho que um problema
identificar como feminista. Foi quan-
que a gente tem é justamente essa
do eu comecei a criar a Think Olga,
desumanização da mulher. Então a
que era um projeto que olhava para o
gente vem tentando fazer esse traba-
feminino, e aí eu comecei a me assu-
lho de humanização da mulher, para
mir como feminista, a entender que o
que a gente possa de novo conquis-
que eu fazia era ser feminista, não é?
tar espaços onde a mulher não está presente com poder ou com espaço
Como é o trabalho da Think Olga?
para voz.
O trabalho da Think Olga é criar conteúdos, projetos que possam educar
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Qual foi o projeto do Think Olga que
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Foto: Thays Bittar
RAIO-X Juliana de Faria cultural, que faz parte de ser homem, de ser mulher. A gente contou que é sim uma violência, e a campanha foi se desenvolvendo. Nós fizemos um estudo online, conversamos com mulheres que falavam sobre suas experiências, colhemos histórias, fizemos um mapa em que as pessoas podem indi-
Formação: Jornalista (PUC-SP) Carreira: Antes de fundar o Think Olga, trabalhou nas redações do “Jornal da Tarde”, em revistas de moda e na “Veja São Paulo”
car onde sofreram assédio, e finalizamos este ano um ciclo, com a criação desse documentário “Chega de Fiu Fiu”, que é uma ferramenta muito poderosa, em que falamos mais do que é o assédio. A gente fez um estudo sobre como a mulher circula em espaços públicos e como isso é difícil justamente por causa desse assédio,
do se encontram, têm a força do rio”
que é o controle do corpo da mulher.
Eu acho que juntas a gente tem uma força muito grande, e isso cria uma
Como é o dia a dia de vocês no Think Olga?
coragem muito grande de seguir em
É o dia a dia de uma redação jornalís-
sido fenomenal. Mas, enquanto mulhe-
tica, praticamente. A gente faz um pla-
res, nós temos de sempre lutar pelos
nejamento semestral, tenta entender
direitos não adquiridos e pelos direi-
quais pautas que são importantes, mas
tos já adquiridos, ao mesmo tempo. Por
também deixando espaço para que
exemplo, aborto: nós temos legalmen-
possamos abraçar temas do momen-
te algumas especificidades de abor-
to. Agora estamos passando por uma
to, alguns cenários em que a mulher
mudança, mas sobre isso ainda não
pode abortar, mas toda hora trami-
posso falar.
ta um projeto de lei que quer derru-
frente e buscar mudanças. Isso tem
bar esses cenários, então a gente tem que sempre ficar lutando para man-
Fiu”, que fala sobre assédio sexual em
O que você acha que mudou para melhor ou para pior na vida das mulheres brasileiras nas últimas décadas, considerando que o feminismo foi ganhando força nesse período? Quais foram os principais avanços?
locais públicos, e que a gente vai cada
Um dos grandes problemas de toda
nossa representatividade na políti-
vez mais aprofundando. A gente saiu
essa opressão, dessa violência contra
ca? É ainda muito baixa. Nesta última
do assédio sexual em locais públicos
a mulher, é a culpabilização, porque
eleição, apesar de o resultado ter sido
para falar de assédio sexual no geral e
a gente acha que essa violência acon-
uma afronta às mulheres, com a vitó-
depois para falar sobre violência sexu-
tece só com a gente, e a gente não fala
ria desse futuro presidente que não
al contra a mulher. E é uma campa-
pra ninguém por medo de culpabiliza-
olha para as nossas demandas com o
nha que começou de uma maneira bas-
ção. Sofre com isso. Eu acho que unir
carinho que elas merecem, tivemos
tante orgânica, tentando mostrar que
essas mulheres foi um avanço muito
um resultado interessante de mulhe-
isso é uma violência, o que por muito
maravilhoso. Tem aquela frase que diz
res vitoriosas para o cargo de deputa-
tempo era entendido como piada, algo
“as mulheres são como água: quan-
das. E é isso: um passo para frente, um
você considera o mais importante até hoje? Um dos nossos projetos mais bem sucedidos é a campanha “Chega de Fiu
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ter esses direitos. As pessoas falam de como avançamos em várias áreas, mas ao mesmo tempo essas áreas ainda têm problemas. Por exemplo, hoje as mulheres podem votar, mas qual é a
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1. Sônia Guajajara Líder indígena, militante, especialista em educação
passo para trás. É importante que a gente tenha esse olhar, tanto otimista como pessimista. O pessimista ajuda a gente a continuar, mas o olhar otimista faz com que a gente não desista.
Em muitos contextos a expressão “feminista” acaba virando “feminazi”, ou a própria palavra “feminista” acaba sendo usada como uma ofensa. Por que você acha que isso acontece?
Fotos: Wikipedia/CC
3
2. Maria da Penha Pioneira e ícone na luta em defesa da mulher brasileira 3. Maya Angelou Grande escritora e poetisa americana, morta em 2014 4. Débora Diniz Premiada antropóloga, professora de Direito na UnB
São várias coisas. Acho que primeiro existe uma ignorância com relação ao tema e ao movimento, e segundo acho que tem uma certa maldade mesmo, uma forma de diminuir, de colocar as mulheres em suas caixinhas estereotipadas. Então eu acho que existem essas duas questões: uma de ignorância, porque ninguém nasce sabendo e todos nós nascemos em uma sociedade
recue nessa nossa luta.
patriarcal, então ninguém nasce feminista, e outra porque a mulher sem-
pondo a explicar isso para as pessoas. E isso vem ganhando força. Quando
Você falou de ignorância. Você acha que as pessoas entendem o que é o feminismo?
eu me formei em jornalismo, nin-
vai pra rua, trabalhar, que vai à guerra.
Não sei se as pessoas entendem. Eu
a gente nem usava, nem se falava em
A mulher tem de ficar em casa, cuidar
acho que existe muita confusão e eu
feminismo. E hoje, o tanto de meninas
dos filhos, não emitir opinião. Quan-
acho que muita dessa confusão é feita
que me procuram pra fazer TCC sobre
do a gente tenta mudar esse status quo
de modo maquiavélico, para que as
feminismo é imenso. Então dá para
acontece essa forte reação, por mui-
pessoas se afastem do feminismo. Mas
dizer que sim, as pessoas estão falando
tas vezes violenta. Eu acho que isso
estão surgindo grupos de mulheres,
sobre isso, estão se informando, estão
faz parte desse desejo de que a gente
literatura, conteúdo que vem se pro-
debatendo. Tem sido interessante, mas
pre foi vista como esse ser doméstico, e não um ser público. É o homem que
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guém fazia trabalho de conclusão de curso sobre feminismo. Essa palavra
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“EU ACHO QUE EXISTE MUITA CONFUSÃO SOBRE O FEMINISMO E QUE MUITA DESSA CONFUSÃO É FEITA DE MODO MAQUIAVÉLICO, PARA QUE AS PESSOAS SE AFASTEM DO FEMINISMO” “O FEMINISMO É UM MOVIMENTO DE LUTA PELA EQUIDADE ENTRE HOMENS E MULHERES. TEM UMA FRASE MUITO LEGAL DA SUSAN DE ANTONIE, QUE DIZ: ‘HOMENS, SEUS DIREITOS E NADA MAIS. MULHERES, SEUS DIREITOS E NADA MENOS’”
4
tar com as pessoas... Precisamos achar
filhos vão ter de lutar, nossas netas vão
uma forma de conversar sobre isso.
ter de lutar.
Como você definiria o feminismo? Simples: é um movimento de luta pela equidade entre homens e mulhe-
Em quem você se inspira, não necessariamente apenas para as pautas feministas, mas para a vida?
res. Tem uma frase muito legal da
Uma pessoa que eu admiro muito
Susan de Antonie, que diz: “Homens,
é a Débora Diniz. É uma pesquisado-
seus direitos e nada mais. Mulheres,
ra, antropóloga e militante a favor do
seus direitos e nada menos”.
aborto. Foi ela que conseguiu a liberação do aborto para anencéfalos. E
Que conselho você daria para uma adolescente que está começando a se interessar pelo feminismo, que não sabe nada sobre isso, e está buscando informações agora?
ela fez toda uma pesquisa com relação a mães que foram contaminadas pelo vírus da zika. Ela tem um trabalho belíssimo sobre aborto, e é uma das pessoas mais inteligentes que eu
Crie redes de apoio, converse com
já conheci. Mas há tantas outras pes-
outras mulheres. É sempre importante
soas que me inspiram: as pessoas com
ter outras visões sobre essas questões,
quem eu trabalho, as minhas sócias,
a gente não pode ficar muito autocen-
que construíram a Olga ao meu lado,
trada só no que a gente precisa. As
são pessoas que me ensinam muito
mulheres não são um grupo único, as
diariamente. Existe uma escritora e
mulheres têm demandas muito dife-
poeta que eu gosto muito, Maya Ange-
rentes e a gente precisa ser intersec-
lou, uma autora negra. Quando ela
cional. Não só para isso; também para
morreu eu chorei muito. Eu também
ainda existe ignorância sobre o movi-
que você possa se fortalecer, porque é
gosto muito do trabalho que a Sâmia
mento. As pessoas acreditam em “fake
muito difícil, é muito pesada essa luta.
Bomfim vem fazendo. Agora ela foi
news” absurdas sobre os candidatos, o
É uma luta dolorosa.
eleita deputada federal, e me inspi-
que demonstra muito sobre como elas
É importante que você tenha pes-
ra muito toda a trajetória política que
estão dispostas a acreditar nas coi-
soas com as quais possa contar e que
ela vem pautando, tão jovem. A própria
sas mais absurdas. Então quando vem
nos ajudem a nos fortalecermos. E por
Sônia Guajajara, candidata a vice do
alguém, de forma maquiavélica, dis-
fim, o autocuidado. Mais importante
Guilherme Boulos, é outra pessoa que
torcer o movimento, as pessoas acre-
que uma ativista ferrenha é uma ati-
eu admiro muito. A trajetória de vida
ditam. Precisa de muita resistência
vista viva, com sanidade mental para
dela também é muito pesada e muito
para informar essas pessoas. Em um
continuar. Não adianta lutar por seis
sofrida. Maria da Penha, que eu conhe-
momento de “fake news” e mentiras a
meses e ter um “burnout”: nós preci-
ci em 2016, é uma pessoa inspirado-
torto e a direito, é tão difícil se conec-
samos lutar nossa vida inteira. Nossos
ra que está lutando pelos direitos das
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“AS NOSSAS DEMANDAS, OS NOSSOS MEDOS, NOSSAS ANSIEDADES, PRECISAM SER LEVADOS EM CONTA, E NÃO VISTOS COMO ‘MIMIMI’ OU COMO VITIMISMO”
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Foto: Thays Bittar
A enorme repercussão da campanha “Chega de Fiu Fiu”, de 2013 (e que virou documentário em 2018), incentivou Juliana a se dedicar ao feminismo – e especialmente a combater a violência contra a mulher
mulheres. Elza Soares, sobre quem eu
nistas e femininas. Mas eu acho que
tive a oportunidade de escrever uma
o que a gente conseguiu nessa elei-
biografia curtinha, é muito admirável,
ção foi eleger mulheres que têm essa
tem uma energia muito boa.
consciência. Isso é de extrema importância porque é daí que a gente vai
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Você mencionou várias mulheres que têm participação política. Qual você acha que é a importância dessa representação e dessa representatividade para as meninas do futuro?
desenhar o nosso futuro, o futuro dos
É de suma importância, porque o
sil é o país que mais mata transexuais
Congresso precisa representar o povo
no mundo. É absurdo a gente pensar
brasileiro. É importante que a gente
nisso. Enquanto a gente não tiver pes-
tenha essa diversidade no Congresso,
soas que estão olhando para essas pau-
mas com consciência dos grupos dos
tas, é assim que continuaremos, e infe-
quais cada um participa – não adianta
lizmente quem não vive isso na pele
colocar lá uma mulher que não tenha
não consegue falar disso com proprie-
consciência dessas questões femi-
dade. É importante que nós tenhamos
nossos filhos, dos nossos netos – um futuro mais agregador, mais respeitoso e mais seguro para todos os grupos, o que hoje não acontece. O Bra-
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“É MUITO DIFÍCIL, É MUITO PESADA ESSA LUTA. É UMA LUTA DOLOROSA. É IMPORTANTE QUE VOCÊ TENHA PESSOAS COM AS QUAIS POSSA CONTAR”
essa representatividade para que as nossas demandas, os nossos medos, nossas ansiedades, sejam levados em conta, e não vistos como “mimimi” ou como vitimismo, como o nosso futuro presidente infelizmente já falou.
Você também falou que no feminismo existem muitas demandas diferentes. Quais pautas feministas você tem mais próximas de si?
BIBLIOTECA BÁSICA Confira alguns livros sugeridos por Juliana para entender melhor a condição feminina
Violência contra a mulher, principalmente violência sexual. Eu acho que eu falo disso de um espaço pessoal mesmo, o qual eu vivi, o qual eu presenciei. Não à toa o “Chega de Fiu Fiu” foi criado. Não é só uma campanha de planejamento, é uma campanha feita com toda a minha alma. Essa com certeza é a causa do meu coração.
» O CONTO DA AIA de Margaret Atwood
» EU SEI POR QUE O PÁSSARO CANTA NA GAIOLA de Maya Angelou
» MULHERES INCRÍVEIS de Kate Schatz
» VIVA A VAGINA de Nina Brochmann e Ellen Støkken Dahl
» A GUERRA NÃO TEM ROSTO DE MULHER de Svetlana Aleksiévitch
» AS FILHAS DO CAPITÃO de Maria Dueñas
Você poderia sugerir livros ou filmes sobre mulheres e para mulheres? “Eu Sei Por Que o Pássaro Canta na Gaiola”, da Maya Angelou. Eu fiz parte de um livro chamado “Mulheres Incríveis”, escrito pela Kate Schatz, em que escrevi o perfil de algumas brasileiras – são perfis de mulheres ao longo da história. Recomendo também os livros da Svetlana Alexievich, como “A Guerra Não Tem Rosto de Mulher”, e “Mulheres, Cultura e Política”, da Angela Davis. Dois que eu não terminei de ler: “As Filhas do Capitão”, da Maria Dueñas, e “Viva a Vagina”, da Nina Brochmann e da Ellen Støkken Dahl. “Olga”, mas não é escrito por mulher, é do Fernando Morais. “Garotas Mortas”, da Selva Almada, é sobre feminicídio, superpesado. E há um livro que mudou a minha vida, um dos meus preferidos, que é “O Conto da Aia”, da Margaret Atwood, que até virou série. O livro é muito pesado, eu lembro que quando eu li tive até pesadelos por duas ou três noites seguidas. n
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» MULHERES, CULTURA E POLÍTICA de Angela Davis
» GAROTAS MORTAS de Selva Amada » OLGA de Fernando Morais
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PLURAL + LABFOR + DESIGN LAB
ELAS POR ELAS Qualquer escolha seria ruim e redutora, mas não há páginas suficientes. Para decidir quais mulheres seriam ilustradas nas páginas desta edição da Revista Plural, partimos de uma lista da BBC Brasil. Em 2017 seus leitores indicaram uma série de mulheres que deveriam ser mais estudadas nas escolas do Brasil. A BBC escolheu dez brasileiras e a partir daí deixamos que as próprias ilustradoras do curso de Design da ESPM decidissem quais gostariam de retratar. Nestas páginas, confira pequenas biografias das ilustradas e das ilustradoras.
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Anita Garibaldi
Chiquinha Gonzaga
(1821-1849), página 11 A “Heroína dos Dois Mundos” (Brasil e Itália), Ana Maria de Jesus Ribeiro, Anita Garibaldi, combateu em diversas batalhas. Ao lado do marido, Giuseppe Garibaldi, lutou em Laguna (SC), foi prisioneira na batalha de Curitibanos (SC), fugiu de uma tropa imperial em Mostardas (RS), entre outros, inclusive durante a unificação da Itália. Acredita-se que tenha nascido em 1821 em Laguna. Conheceu seu marido aos 18 anos, na Revolução Farroupilha. Teve quatro filhos e faleceu durante o parto do quinto, em 1882.
(1847-1935), página 15 Francisca Edwiges Neves Gonzaga foi compositora, maestrina e importante nas lutas pelos direitos das mulheres. Nascida em 1847, começou sua carreira no Rio de Janeiro. Enfrentou o machismo e a sociedade patriarcal. Em uma profissão que, até então, era inédita para as mulheres, incorporou toda diversidade que encontrou. É autora da marchinha Ó Abre Alas, entre tantas outras. Foi ativista de grandes causas sociais, especialmente a abolição da escravatura.
Por Thai Gomes. Sou de São Paulo, escorpiana, feminista, designer e ilustradora. Graduada em fotografia pelo Senac-SP e estudante de Design Visual pela ESPM, sempre tive fascínio pelo universo gráfico. Antes mesmo de falar, já arriscava rabiscos pela parede de casa, e hoje ando por aí com dedos sujos de tinta e em constante experimentação. Gosto ficção científica, plantinhas, shows de punk rock e fotografar as coisas – bonitas e feias – que vemos por aí.
Por Fernanda Sanovicz. Sou formada em Design pela ESPM e mestranda na mesma área na Universidade Anhembi Morumbi. Instigada por amigas que sentiam uma ausência de “role models” femininas em suas áreas, comecei uma pesquisa sobre mulheres inspiradoras e o resultado foi o zine “DYI Mina Foda”, impresso em serigrafia e tipos móveis. Depois veio o projeto “One Woman a Week”, que pode ser visto no instagram @onewomanaweek.
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AS DESIGNERS DA ESPM ESCOLHERAM AS PERSONALIDADES COM QUEM TINHAM AFINIDADE, A PARTIR DE UMA LISTAGEM DA BBC BRASIL, E FIZERAM AS ILUSTRAÇÕES
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Como os pássaros, que cuidam de seus filhos ao fazer um ninho no alto das árvores e nas montanhas, longe dos predadores,das ameaças e dos perigos e mais perto de Deus, devemos cuidar de nossos filhos como um bem sagrado, promover o respeito a seus direitos e protegê-los.É preciso carpara a esperança.Amar é acolher, é compreender, é fazer o outro cresce, quando estão bem
Tarsila do Amaral (1886–1973), página 29 Responsável pela obra de arte mais valiosa do Brasil (avaliada em cerca de R$ 30 milhões) foi um dos principais nomes do modernismo brasileiro. O Abaporu, sua obra mais conhecida, é símbolo do movimento Antropofágico. A artista nasceu em 1886, em Capivari, interior de São Paulo. O primeiro casamento, com André Teixeira Pinto, acabou para que ela pudesse se dedicar à arte. O segundo foi com Oswald de Andrade, para quem dedicou O Abaporu. Tarsila participou do Partido Comunista Brasileiro e foi presa por um mês. Em 1933 pintou Operários, também bastante significativo em sua carreira, exposto hoje no Memorial da América Latina. Ela morreu em janeiro de 1973. Por Amanda Theodoro. É estudante do 5° semestre do curso de Design na ESPM. Gosta muito de fazer linoleogravura e colagens digitais em seu tempo livre. É vegana, feminista, LGBT e sonha em usar o Design para dar voz às minorias e gerar um impacto social.
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Nise da Silveira (1905-1999), página 39 A psiquiatra brasileira nasceu em 1905 e faleceu em 1999. Foi reconhecida por revolucionar o tratamento das doenças mentais, dando mais escuta às pessoas que não eram compreendidas. Filha única, mudou-se aos 15 anos para estudar na Faculdade de Medicina da Bahia. Era a única garota da turma. Durante o Estado Novo, chegou a ser presa, acusada de comunismo. Sua vida virou filme: “Nise – O coração da Loucura”. Por Giulia Golfari. Sou filha de uma mulher incrível. Minha mãe, Patricia, com 22 anos terminava a faculdade e me carregava no ventre em outro país, lutando contra tudo e todos que falavam que ela tinha acabado com sua vida e carreira. Com 25 anos, enfrentou um mundo de violência e “nãos”, trabalhando dois turnos para sustentar nós duas, e nunca deixou de sorrir. Melhor mãe do mundo, sorriu e chorou muito quando me viu vestida de universitária. E sorri muito ao me ver vestida de mulher.
Lina Bo Bardi
Zilda Arns
(1914-1992), página 47 A ítalo-brasileira foi uma das arquitetas de maior importância e expressividade na arquitetura brasileira do século 20. Abriu caminho para as mulheres na arquitetura e foi responsável pelos projetos do Masp e do Sesc Pompeia, entre outros. Lina era engajada e acreditava que a arquitetura deveria ser simples e uma ferramenta para melhorar a vida dos mais pobres. Suas obras integravam também trabalhos de cenografia, artes plásticas, mobiliário e design. Apesar do talento, teve pouco reconhecimento em vida.
(1934-2010), página 58 Foi uma médica pediatra e sanitarista brasileira que dedicou a vida para combater a mortalidade infantil, desnutrição e violência contra as crianças. Em 1983, a médica criou um programa de ação social com o objetivo de ajudar famílias pobres a evitar a mortalidade infantil através da disseminação do uso do soro caseiro. Ao longo de 25 anos, expandiu o programa, que chegou a alcançar 72% do território nacional, além de outros países. O trabalho foi fundamental para reduzir a mortalidade infantil, levando Zilda Arns a receber a indicação ao Prêmio Nobel da Paz em 2006.
Por Natália Nóbrega Tenho 20 anos e estou no quarto semestre de Design. Desde antes da faculdade faço parte de grupos que defendem a igualdade entre gêneros. Venci o concurso da ONU Mulheres chamado “O Valente não é Violento”, pelo júri popular e pelo júri especializado. Desde cedo valorizo a igualdade e prezo pelo diálogo como resposta à violência. Não deixo de dizer o que penso e de pregar o fim da intolerância.
Por Joyce Cavallini. Sou pisciana e tenho 22 anos. Sou uma estudante de Design apaixonada por ilustração e games. Sonho e luto por um mundo mais igualitário, pautado pela gentileza e cooperação. Um lugar cujas características que realmente importam para reconhecimento social sejam as construídas pelo caráter e esforço, onde cada detalhe e ação contam.
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Como os pássaros, que cuidam de seus filhos ao fazer um ninho no alto da árvores e nas montanhas, longe dos predadores,das ameaças e dos perigos e mais perto de Deus, devemo cuidar de nossos filhos como um bem sagrado, promover respeito a seus direitos e protegê-los.É preciso carpar a esperança.Amar é acolher compreender, é fazer o outro cresce, quando estão bem Zilda Arns (1934-2010)
Por Joyce Cavallini (leia mais à pág. 56)
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Foto: Roberto Braga/NIS ESPM
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DESTA EDIÇÃO DEZEMBRO DE 2018 ANO 7 // NÚMERO 14
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1 Tiago Rodrigues 2 Giovanna Oliveira 3 Nathalia Miranda 4 Maria Victória Brizzi 5 Laís Côrtes 6 Natalia Domingues 7 Pedro Mitre 8 Sara Santana 9 Nathália Rosa 10 Amanda Rozenblit 11 Giovanna Tuneli 12 Caroline Rullo 13 Jamyla Braga 14 Thaynah Silva 15 Sofia Nunes Aureli 16 Júlia Fontes 17 Alana Ferrer 18 Letícia Vinocur 19 Bianca Pancini 20 Aline Chalet 21 Bruna Piñeiro
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