DEZEMBRO DE 2015 // ANO 4 // NÚMERO 8 REVISTA-LABORATÓRIO DOS ALUNOS DO CURSO DE JORNALISMO DA ESPM
ROMANCE TECNOLOGIA, INDIVIDUALISMO, HEDONISMO: COMO MANTER UM RELACIONAMENTO NA ATUALIDADE? FAMÍLIA ARRANJOS TRADICIONAIS DIVIDEM ESPAÇO COM NOVAS ESTRUTURAS FAMILIARES ENTREVISTA COMPORTAMENTO SEXUAL MUDOU, MAS O DISCURSO SOBRE O SEXO SEGUE IGUAL, DIZ MIRIAN GOLDENBERG
AMAR, VERBO INTRANSITIVO Retratos do afeto na pós-modernidade
e
REVISTA-LABORATÓRIO DO CURSO DE JORNALISMO DA ESPM-SP Nº8 - 2º SEMESTRE DE 2015
Presidente J. Roberto Whitaker Penteado Vice-presidente Acadêmico Alexandre Gracioso Vice-presidente AdministrativoFinanceira Elisabeth Dau Corrêa Vice-presidente Corporativo Emmanuel Publio Dias Vice-presidente de Marketing e Comunicação José Francisco Queiroz Diretor de Graduação-SP Luiz Fernando Garcia Diretor Acadêmico-SP Ismael Rocha Júnior Coordenadora do curso de Jornalismo-SP Maria Elisabete Antonioli
EDITORIAL
AFETO QUE ENRIQUECE Sem paz, sem amor, sem teto, caminho pela vida afora. Tudo aquilo em que ponho afeto fica mais rico e me devora. Os versos, do poeta Rainer Maria Rilke, considerado um dos mais importantes da língua alemã, ilustram bem o processo de produção desta revista Plural. De um lado, o imenso afeto de alunos e professores empenhados em fazer o melhor trabalho possível. Do outro, as exigências devoradoras da reportagem: tudo em que se põe carinho e cuidado extras também exige esforço redobrado. Esforço de apuração, checagem, escrita, reescrita, edição,
Revista Plural revistaplural-sp@espm.br
fotografia, diagramação. Esforço de diálogo e mente abertos.
Editor Prof. Renato Essenfelder Revisão Profa. Maria Elisabete Antonioli Profa. Claudia Bredarioli
o padrão hegemônico de casais heterossexuais e de famílias tradicionais compostas por pai,
Compreender as manifestações contemporâneas de afeto é trabalho complexo. Há muito, mãe e filhos divide espaço com novos arranjos. Nestas páginas descobrimos novas formas de amar e de se deixar afetar, seja no sentido romântico, seja no plano familiar. Os alunos da disciplina Grande Reportagem, do quarto semestre do curso de Jornalismo da ESPM-SP, autores destas matérias, descobriram o afeto entre deficientes físicos, entre
Agência de Jornalismo ESPM-SP agenciadejornalismo-sp@espm.br Rua Dr. Álvaro Alvim, 123, Vila Mariana São Paulo, SP Tel. (11) 5085-6713 Projeto gráfico Márcio Freitas A fonte Arauto, utilizada nesta publicação, foi gentilmente cedida pelo tipógrafo Fernando Caro.
pais heterossexuais e filhos homossexuais, em famílias adotivas, em famílias com filhos inseminados artificialmente, entre transexuais. Descobriram também o que pensam os adeptos do amor livre, do poliamor, do amor à distância e do amor que se manifesta por curtidas e carinhos digitais. O amor nos tempos da internet. Amar, como no título da obra de Mário de Andrade, como um verbo intransitivo, que não exige complemento. Mas o que é o amor? O que é o afeto? Ao término desses meses de pesquisa, ainda não sabemos. Mas sabemos que, sem dúvida, ficamos mais ricos no processo. RENATO ESSENFELDER, EDITOR DA PLURAL
FOTO DONIZETE PINTO/NIS
Reportagem Ana Clara Maksoud, Antônia Cavalheiro, Camila Câmara, Carolina Cunha, Chimene Araújo, Fábio Martin, Fernando Turri, Gabriel Ficoni, Gabriel Wainer, Gustavo Torniero, Isabella Sarafyan, Júlia Feresin, Juliana Cândido, Juliana Marques, Laura Stabile, Letícia Teixeira, Luiz Felipe Simões, Luiza Lourenço, Lydia Aguiar, Marco Caruso, Murillo Parolini, Marina Bianchi, Marina Cassiolato, Nadjine Hochleitner, Otavio Cintra, Pedro D’El, Priscila Cukierkorn, Rafael Lemos, Renata Mendes, Rodrigo Tucci, Shelse Alves, Tainá Valadares, Thaisa Giannakopoulos, Thayane Matos, Thiago Morteira, Thiago Vidal, Thomas Aoki, Uly Campos, Yuri Bonet.
CAPA Ao lado, a foto original clicada para a capa, com os alunos-atores Gustavo Boccuzzi e Leticia Franco em pose inspirada no quadro O Beijo, do pintor austríaco Gustav Klimt
ÍNDICE
4/5
FOTO LUIZ FELIPE SIMÕES
página 6
página 6
ROMANCES MODERNOS Relacionamentos abertos, namoros virtuais e relações à distância atualizam as formas de aproximação entre as pessoas, impulsionados pelo avanço da tecnologia e por transformações na sociedade, que se tornou mais individualista e, no dizer do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, “líquida”. Mas, apesar de todo o barulho do amor descompromissado e veloz, o romance tradicional está longe de acabar.
página 14 POLIAMOR Praticantes do poliamor defendem “afeto sem limites” e protestam contra a institucionalização da monogamia como padrão social – segundo eles, uma imposição antiquada e antinatural.
página 18 BASTIDORES Conheça os bastidores da apuração desta revista Plural, que contou com uma equipe recorde de 38 alunos em ação para apurar 13 pautas cobrindo variadas manifestações de afeto.
página 20 PERFIS Com o passar do tempo, a visão da mulher e do amor romântico mudaram; na música, o poetinha Vinícius de Moraes e a funkeira contemporânea Valesca Popozuda ilustram o fenômeno.
FOTO DIVULGAÇÃO
página 42
FOTO SILVIA FALLER/ONG CLUBE DO VIRA LATA
página 48
FOTO ACERVO PESSOAL
página 38
página 38
página 42
página 48
SEM DEFICIÊNCIA
ENTREVISTA
CACHORRO X GENTE
Em geral visto com preconceito ou simplesmente ignorado pela sociedade, o amor entre deficientes físicos e entre pessoas com e sem deficiência também merece respeito.
A antropóloga Mirian Goldenberg fala com exclusividade à Plural sobre o valor da fidelidade na sociedade brasileira e sobre a importância do corpo como um capital entre nós.
Famílias menores e indivíduos sem filhos alimentam a explosão do mercado pet no país, mas, quando o dono trata o animal como um ser humano, a relação deixa de ser saudável.
página 22 DIVÓRCIO Separação de casais com filhos é cada vez mais comum no país, segundo o IBGE. Mas o fim do afeto entre os pais continua impactando profundamente a vida dos filhos, dizem especialistas.
página 26 OS FILHOS GAYS Filhos homossexuais de pais heterossexuais relatam as dificuldades dessa convivência e também a alegria com a conquista da aceitação – por parte deles próprios e de suas famílias.
página 30 TRANSEXUAIS Jovens transexuais se queixam da completa falta de afeto a eles, que se encontram marginalizados na sociedade, e contam onde e como buscam estabelecer vínculos.
página 32 ADOTADOS Crianças e adolescentes adotados ganham uma segunda oportunidade de formar família e reestruturar suas vidas ao serem acolhidos em um lar, mas a convivência traz desafios.
FOTO BEATRIZ CONSOLIN
6/7
TODA A FORMA DE
VALE A PENA Relacionamentos abertos, namoros virtuais e relações à distância atualizam as formas de aproximação entre as pessoas
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EM UMA ERA INDIVIDUALISTA, NAMORAR PELA JANELA É QUASE INCONCEBÍVEL. A NÃO SER PELA JANELA DA INTERNET
Família se diverte em pedalinho| FOTO KELLY CILENTO
um momento de individualismo e dependênCHIMENE ARAÚJO LETÍCIA TEIXEIRA SHELSE ALVES TAINÁ VALADARES PRISCILA CUKIERKORN
cia digital, globalização e capitalismo, namorar pela janela é quase inconcebível. A não ser que sejam pelas janelas da rede, as janelas da internet. É o caso de Ricardo Moronato. Ele namora
»»»Dona Eulália abriu a janela de seu
há 10 meses com Jaqueline de Oliveira, que
quarto e se debruçou nela, olhando para
conheceu pelo aplicativo Tinder. Os dois se
a casa ao lado e esperando seu amor che-
encontraram pela primeira vez no metrô Con-
gar. Era um retrato muito parecido com
solação, em São Paulo, após uma semana de
o daquelas bonecas namoradeiras encon-
conversa na rede.
tradas nas janelas das casas coloniais do
É a primeira relação dele que começou vir-
interior do país. Pouco tempo depois, seu
tualmente e ele diz que se sente muito mais
amor, Florisvaldo, aparece.
seguro usando o aplicativo: “O bate-papo pelo
Ele pergunta como foi o dia da moça e por
aplicativo facilita as coisas para quem é tími-
um tempo eles permanecem assim, conver-
do e não tem facilidade de chegar nas pesso-
sando e namorando pela janela. Era o que
as”, comenta.
se fazia naquela época, há exatos cinquen-
Práticas como essa fazem parte de hábitos
ta anos. E essa cena se repetiu todos os dias
que já despontam nos romances contempo-
por pouco mais de dois anos.
râneos, especialmente entre gerações mais
Hoje, a cena seria muito improvável. Novas
jovens. Outra tendência, essa não relacionada
formas de se relacionar ganharam força. Em
à evolução das tecnologias de comunicação, é
APÓS ONDA HEDONISTA, MUITOS RELACIONAMENTOS VOLTARAM A SER CONSERVADORES, MAS AGORA SINTONIZADOS AO CAPITALISMO
a de manter relacionamentos abertos.
relacionamento. Ou seja, nós estamos entran-
A ausência de comprometimento que
do num ciclo que deverá dar num modelo con-
caracteriza inúmeras relações hoje – tanto
forme os relacionamentos eram há 30, 40, 50
pessoais como profissionais – é, no enten-
anos, agregado à toda tecnologia que temos
der do sociólogo polonês Zygmunt Bauman,
hoje”, explica.
o que caracteriza a nossa “sociedade líqui-
Coelho diz que embora ocorra um desape-
da moderna”, em que a fluidez das relações,
go nas relações, o que é fruto dos movimen-
o consumismo e o individualismo exacerba-
tos dos anos 1970 e 1980, estamos em fase de
dos dificultam o estabelecimento de víncu-
refluxo. “Hoje existe um ciclo informático,
los profundos.
e as pessoas ficaram mais individualistas.
Nessa sociedade, diz ele, vivem-se “amores
Mas, no final das contas, a juventude de hoje
líquidos”. O termo abrange ainda os chama-
é muito mais conservadora do que a juventu-
dos “relacionamentos de bolso”, que o indiví-
de da década de 1970, 1980. A gente ficou mais
duo vive quando o interessa para depois vol-
bobão”, conclui.
“Hoje existe um ciclo informático e as pessoas ficaram mais individualistas” Roberto Coelho, historiador
tar a guardá-lo, sem mágoa, sem drama – sem a dor do rompimento. “Esse tipo de experiên-
Individualismo e capitalismo
cia é a própria dissolução do contrato social”,
Os conceitos de amor líquido e modernida-
afirma Renato Nunes, sociólogo e estudioso
de líquida fazem parte de um mundo capita-
de Zygmunt Bauman.
lista e de uma noção individualista prove-
Influenciados pelos valores contemporâ-
nientes da Revolução Industrial que teve
neos e pelo avanço da tecnologia, os relacio-
início no século XIX. Renato Nunes conta que
namentos atuais estimulam, muitas vezes,
a sociedade passa por uma lógica que estimu-
contatos frágeis e efêmeros, como pontua a
la o consumo, o sucesso a qualquer custo e a
psicóloga Pâmela Magalhães. “A proposta das
competitividade, o que faz com que o indiví-
novas gerações respeita o ritmo da contem-
duo acabe incorporando a necessidade de ter
poraneidade. Tudo é muito rápido, essa gera-
sucesso e o medo de fracassar. “Existe uma
ção é muito ansiosa, imediatista. Então a pro-
certa incerteza na sociedade pós-moderna,
posta de viver um relacionamento, viver as
e então o próprio amor entra nessa lógica”
contingências dele, viver as frustrações, não
Por conta dessa realidade, o ato de se rela-
é uma característica deles. A forma com que
cionar se torna muito mais difícil. “Como,
o cérebro é conduzido e condicionado é a de
com essa vertente de pensamento, eu posso
não esperar. De não ter paciência”, afirma.
pensar em me relacionar? Os movimentos de
Mas engana-se quem pensa que as chama-
troca acabam se tornando muito mais difí-
das “relações líquidas” dominam o panora-
ceis, o que dificulta também a empatia e a fle-
ma do amor no século 21, pois elas não são
xibilidade”, explica Pamela Magalhães.
hegemônicas. Convivem com o amor como
Coelho pontua também que esse tipo de
tradicionalmente o entendemos, românti-
prática implica em novas mudanças de hábi-
co e duradouro, de vínculos profundos, “na
tos por parte dos indivíduos. “É por isso que
alegria e na tristeza”. Isso cria um paradoxo:
as mulheres voltaram a ter cabelos compri-
após a onda hedonista, muitos relacionamen-
dos, voltaram a usar vestido, saia. Porque
tos voltaram a ser conservadores, mas agora
elas precisam ser femininas para mostrar
sintonizados ao capitalismo, à globalização
que estão aptas a um casamento.”
e às novas tecnologias. É o que o historiador Roberto Coelho chama de “ciclo em espiral”.
Cultura cíclica
“Cada vez que esse ciclo vai terminar
Se fizermos uma viagem no tempo e ana-
uma volta, ocorre uma modificação nas
lisarmos os modelos de relacionamento ao
percepções cotidianas e nas percepções do
longo dos anos, poderemos identificar claramente as mudanças nos rumos
do afeto até chegar aos modelos existentes hoje. A posição do historiador Roberto Coelho, porém, é outra. Ele afirma que o que mudou foi a sociedade, a cultura da sociedade e não os relacionamentos em si. “Os relacionamentos humanos não mudaram muito. A química entre a aproximação ou
10/11
a rejeição de uma pessoa ainda é a mesma. O que mudou foi a tecnologia. A sociedade foi mudando conforme ela foi se ‘tecnologizando’. Houve uma mudança cultural. Hoje nós vivemos em uma cibercultura.” Coelho pontua que antigamente as relações duravam mais porque a mulher era submissa ao homem, e que essa situação só começou a mudar quando ela foi ganhando independência. “O mundo só ficou mais feminino a partir dos votos universais. É a primeira participação séria e definitiva das mulheres. Foi quando a mulher descobriu que podia se sustentar”, diz. Já o sociólogo Renato Nunes pontua que o fato de os relacionamentos de antigamente serem mais duradouros não significa que eles
relacionamento. “Eu tive a minha fase em que
eram mais profundos.
não estava nem aí para nada, e nesse perío-
“Uma sociedade de patriarcalismo, de
do eu passei um tempo sozinha, mas isso não
dominação do homem, não favorece uma
durou muito. Depois, eu tive aquele momento
experiência autêntica de relacionamento
que você se sente pronto, maduro para entrar
amoroso. A durabilidade não é a única coisa
em um relacionamento”, conta.
que determina a qualidade de uma relação”, comenta.
Após essa experiência, Giuliana passou por duas relações muito intensas: um relacionamento efêmero em um intercâmbio no Cana-
Paradoxo
dá e um relacionamento aberto. “A gente se
Giuliana Kaori viveu esse paradoxo. Até os
envolveu sabendo que não ia dar certo. E a
17 anos, a jovem nunca havia tido um relacio-
minha visão sobre isso é que é um relacio-
namento sério. Ela tinha o hábito de conver-
namento fadado a dar errado. Uma hora um
sar e se relacionar com as pessoas nas redes
ou outro tem mais ciúme e vai cobrar mais do
sociais, onde conheceu o seu primeiro namo-
que o outro quer oferecer”, explica.
rado. A partir de então, ela entrou em uma relação destrutiva.
Esses tipos de relacionamento causam estranhamento entre pessoas mais velhas.
“A gente chegou a se conhecer pessoal-
Dona Eulália, que é casada há cinquenta anos
mente, mas começamos a namorar sem nos
e estava acostumada a namorar pela jane-
conhecer. Isso aconteceu durante um tempo
la, não entende a facilidade de separação dos
e a gente se via só uma vez por mês. Aconte-
casais hoje em dia. “O que eu vejo hoje é que
ceu muita mentira, muita desconfiança. Então
os casais se separam por qualquer problema,
isso foi muito complicado. Eu sofri muito nessa
mas nós resistimos”, comenta.
relação”, explica.
A psicóloga Pâmela Magalhães diz que não
Depois do término, Giuliana passou
devemos invalidar os novos modelos de se
por uma fase em que não queria nenhum
relacionar, já que eles não são totalmente
UMA SOCIEDADE DE PATRIARCALISMO NÃO FAVORECE UMA EXPERIÊNCIA AUTÊNTICA DE RELACIONAMENTO AMOROSO Tudo começou há quase quatro anos, quando Caroline conheceu seu ex-namorado em uma festa. Eles tiveram uma conexão logo de cara e decidiram namorar à distância. “Ficávamos uns dois meses juntos e um mês depois ele voltou para lá [a Austrália, onde morava]. Ficamos dois anos juntos depois disso.” Foram três anos e meio ao todo, entre idas e vindas, diz. Depois desse relacionamento, que terminou em fevereiro de 2015, Caroline decidiu experimentar novas formas de se relacionar. Foi a partir daí que ela se descobriu bissexual. “Eu sempre fui muito aberta a esses assuntos de ficar com garotas. Eu queria ver como é que era”, conta. “A primeira vez que eu fiquei com uma mulher não foi muito natural, mas
Grafite e pichações em muro de São Paulo |
depois eu me acostumei com a situação e as
FOTO SILVIO JÚNIOR
coisas foram acontecendo mais normalmente”, completa. Esse relacionamento rendeu a Caroline
ruins, embora possam, em excesso, condi-
uma outra experiência comum hoje em dia
cionar o indivíduo a viver sozinho. “Essas
e que expõe o paradoxo afetivo do século 21:
pessoas podem ficar condicionadas à ideia
ela vive um relacionamento aberto com a sua
de novidade. Sempre ligadas a experiências
nova namorada.
diferentes, sempre querendo viver a excita-
Caroline considera que essa experiência
ção e a emoção de conhecer novas e muitas
foi uma boa solução por não querer se envol-
pessoas”, explica. Esse tipo de experiência pode fazer com que o jovem se sinta despreparado para um relacionamento profundo. “Essa geração não desenvolveu recursos suficientes para lidar com um relacionamento que envolve comprometimento, tolerância, responsabilidade, envolvimento, possibilidade de decepção, de crescimento pessoal. Querer se relacionar profundamente está longe do poder. Para
“O que eu vejo é que os casais se separam por qualquer problema, mas nós resistimos” Dona Eulália, casada há 50 anos
ver neste momento e que a proposta partiu dela. “Eu não quero me envolver com ninguém e não quero abrir mão disso, de ficar com as outras pessoas. Então nós combinamos que seria um relacionamento aberto. É bem difícil porque ela não gosta muito dessa ideia”, comenta. A jovem diz que esse tipo de relacionamento requer regras. “É uma relação um pouco mais distante. A gente pode ficar com outras
que isso aconteça, a gente precisa desenvol-
pessoas, mas a gente não conta uma para
ver recursos”, explica.
a outra. Eu nunca conheci a família dela e ela nunca conheceu a minha, por exemplo”,
Liberdade sexual
explica.
A história da gaúcha Caroline Fortes, de 20
“A gente tem que ter muito cuidado para
anos, ilustra bem as transformações dos rela-
não invalidar os modelos de hoje e enaltecer
cionamentos nas últimas décadas. Depois de
o que era ontem, mas sim identificar as dife-
uma experiência de relacionamento à distân-
renças. Os relacionamentos duram menos,
cia, a jovem se descobriu bissexual e hoje tem
mas as pessoas se relacionam muito mais”,
uma relação aberta com uma garota.
afirma a psicóloga Pamela Magalhães.
AS PESSOAS BUSCAM UM RELACIONAMENTO MAIS SIMPLES, QUE NÃO DEMANDA MUITO TEMPO NEM MUITO ESPAÇO PARA ACONTECER
ANTONIA CAVALHEIRO CAMILA CÂMARA LUIZA LOURENÇO
»»»Às 17h30, ela chegou em sua casa após mais um dia de cursinho. Estava
12/13
atrasada como sempre. Correu para o seu quarto e foi direto ao banheiro se arrumar. Só tinha mais uma hora: a pressa tomava conta dela. Deu uns toques finais e enfim conseguiu sentar em sua escrivaninha. Ligou o Skype e telefonou para o namorado. O namoro à distância não é um fenômeno restrito ao século XXI. No entanto, com o desenvolvimento da internet, as possibilidades, e facilidades, aumentam exponencialmente para o casal. “As pessoas estão mais dispostas a vencerem a distância porque ela já não é mais a mesma. Na década de 1960, por exemplo, as ligações internacionais eram feitas através de um telefonista. Hoje você consegue conversar e ver a pessoa simultaneamente através de aplicativos. A facilidade ajuda”, explica o sociólogo Marcelo Ribeiro. Mais que isso, as pessoas buscam um relacionamento mais simples, que não demanda muito tempo nem muito espaço para acontecer. Assim, não abrem
Renan e Maria Paula preferem não fazer planos a longo prazo | FOTO ACERVO PESSOAL
mão de sua vida profissional, hobbies e outros compromissos. Na sociedade moderna, o individualismo ganha força e cresce a busca pelo prazer pessoal e pela liberdade. “Com o namoro à distância comecei a ter mais tempo para mim, meus estudos, minha família e amigos e eu adoro isso. Antes eu deixava de fazer muitas coisas por causa dele, agora, como ele mudou, vi que não podia deixar de fazer minhas coisas”, conta Giulia Costa, 19, que namora há dois anos e meio com Pedro Alves, atualmente morando nos Estados Unidos. O sociólogo polonês Zygmunt Bauman
TÃO LONGE E TÃO PERTO Relacionamentos à distância proliferam incentivados não apenas pelo avanço tecnológico, mas também pelo desejo de relações mais leves e com menos exigências
“NÃO SE PROCURA MAIS UM RELACIONAMENTO COM DATA PARA O CASAMENTO. AS PESSOAS ESTÃO MAIS LIVRES, QUEREM EXPERIMENTAR DIFERENTES JEITOS DE AMAR”
pelo computador até que um dia resolvi viajar para Escócia para encontrá-lo. Foi maravilhoso, finalmente pude senti-lo ao meu lado, estávamos apaixonados e resolvemos que ficaríamos juntos mesmo com toda a distância”, lembra Fernanda Battaglia, 20, que namora o escocês Keiran Paterson há três anos. O namoro à distância não é a primeira opção. A maioria dos casais nessa condição já namorava antes e então a distância surgiu. Junto com ela, o fuso horário e a desconfiança. “Sempre que possível é bom matar a saudade. Até porque se não fizermos nada, começamos a brigar muito. Acho que ainda não sabemos lidar direito com a distância”, comenta Nicole Pacey, 19, que namora há 6 meses com Aleksander Hildebrand, que mora nos Estados Unidos. Ao contrário dela, Giulia acredita que
Acima, Nicole e Aleksander, que dizem fazer surpresas para matar a saudade; ao lado, Giulia e Pedro, que viajam entre Rio de Janeiro e Los Angeles há dois anos | FOTOS ACERVO PESSOAL
a distância fez com que ela e seu namorado tivessem mais paciência um com o outro. “Tivemos que nos adaptar e hoje tenho um namoro mais compreensivo, saudável e com menos ciúmes.” Mas sempre chega o momento em que as conversas por telefone e as vídeoconferências não bastam e começa o planejamento das viagens. “A gente tenta viver nossa vida e não ficar focado apenas na contagem regressiva. Nos orga-
chama esses relacionamentos de “amo-
A DISTÂNCIA
nizamos de seis em seis meses e no
res líquidos”: assim como o líquido não
“Fechei os olhos com força quando o
meio tempo vamos conversando pelo
mantém a forma por muito tempo, e
avião pousou. O que me angustiava era
celular, mas não é sempre que conse-
flui antes de se solidificar, as pessoas
que eu estava voltando para casa sem
guimos fazer Facetime”, conta Maria
não sabem mais manter um relaciona-
ele e ainda não tínhamos outra data
Paula Arantes, 20, que mora na Alema-
mento a longo prazo. A sociedade está
marcada para o encontro. O alívio era
nha enquanto seu namorado, Renan
mais consumista e imediatista. Tudo
que eu poderia ouvir sua voz assim que
Andrade, está no Brasil.
muda rapidamente e nada é feito para
ligasse o celular ou até vê-lo por Face-
ser duradouro.
time”, lembra Giulia Costa.
Para Maria Paula, o relacionamento funciona porque os dois conversam
“Não se procura mais um relaciona-
Muitos casais se conhecem pela inter-
muito e compartilham tudo que ocor-
mento com data para o casamento. As
net e começam um namoro à distância
re na vida um do outro. “É uma forma
pessoas estão mais livres, querem expe-
sem ter previsão para o encontro físico.
de estarmos presentes um na vida do
rimentar diferentes jeitos de amar”,
“Nos conhecemos em um site de relacio-
outro mesmo que haja quilômetros de
explica a psicóloga Cláudia Barbosa.
namento, conversamos durante um ano
distância.”
ABAIXO A MONOGAMIA 14/15
Praticantes do poliamor afirmam que não se deve censurar nenhuma forma de afeto
FOTO LUIZ FELIPE SIMÕES
um pelo outro, segundo eles próprios. CAROLINA CUNHA GUSTAVO TORNIERO PEDRO D’EL THAYANE MATOS
Há níveis diferentes de amor. Eles cons-
»»»“Enquanto a vida vai e vem, você
nível de relacionamento com outras
procura achar alguém que um dia
pessoas. Olívia mora perto do aeroporto
possa lhe dizer: quero ficar só com
de Congonhas. Ariel, na Barra Funda. Às
você”, cantou Renato Russo em “Antes
vezes, ele atravessa a cidade três vezes
das Seis”. Mas talvez ele não estives-
em uma semana para vê-la. Os dois se
se completamente certo. O que é o
consideram verdadeiramente compa-
amor? Afeto, sexo, companheiris-
nheiros.
truíram uma conexão tão forte que entendem a dificuldade de ter o mesmo
mo? Ao longo da história, o conceito
A suave voz de Olívia demonstra sua
de amor foi encaixado em diferentes
sensibilidade ao falar de seus relacio-
formas de relacionamentos, relações
namentos e da vida. O apreço pela arte,
que mudaram no decorrer do tempo.
pela poesia e pelo curso de filosofia que
O antropólogo e psicanalista Eduar-
faz na USP colaboram para um conjun-
do Benzatti afirma que as pessoas estão
to de fatores que moldam sua persona-
mais propensas hoje a buscar coisas
lidade.
novas e fugir dos rótulos. E é aqui que
Ariel, centrado e calmo, estudante
entra a contramão do que Renato Russo
de psicologia e um grande entusiasta
disse. “Quero ficar só com você” é uma
da filosofia, também parece refletir os
frase que nem sempre faz sentido.
mesmos aspectos de sua companheira,
O tema é tabu, mas, para o pesqui-
justificando a forte conexão entre eles.
sador Christopher Ryan, autor do livro
A regra nesse tipo de relacionamento
“No Princípio Era o Sexo”, se não tivés-
é não ter regra. É uma construção diá-
semos uma cultura imposta, nossa
ria de diálogos. Mentir ou omitir o que
orientação sexual seria composta de
sente é muito grave. “Eu sinto como
diversas relações paralelas.
se eu estivesse em um namoro fecha-
São Paulo concentra grande parte das
do e descobrisse que ele estava tendo
pessoas que querem liberdade nos rela-
um caso”, ilustra Olívia, ressaltando ser
cionamentos no Brasil. Alfredo, Olívia
uma dor terrível quando isso acontece.
e Ariel, Juliany e Pedro, Maíra. O que
Ariel diz que as crises normalmen-
eles têm em comum? Todos encontra-
te são muito fortes, mas a partir do
ram uma forma de amar as pessoas.
momento em que elas são resolvidas, o
Longe da monogamia.
relacionamento se fortalece e a confiança aumenta. “A partir dessas crises nós
De Congonhas até a Barra Funda
sabemos nossos limites, desejos, como
Olívia Lágua e Ariel Schicchi se relacio-
a gente se vê com o outro”, ele explica.
nam há mais de um ano. Estudaram no
Ambos não gostam de ser enquadra-
mesmo colégio, mas não conversavam
dos em esquemas e estereótipos.
muito. Foi depois de uma viagem com amigos que o interesse surgiu. Logo se
No Edifício Copan, República
apaixonaram. Mas se dizem livres. Não
“Você não é louco, apenas não se ade-
se prendem a amarras sociais.
qua a isso.”
Eles se amam, mas nem por isso se
Há 30 anos, Alfredo Nora ouviu essa
privam de se relacionar com outras pes-
frase de um psiquiatra por ser tachado
soas, e isso não diminui o que sentem
de louco pelos alunos da escola. Ainda
“Eu sempre me apaixonei por outras pessoas estando num relacionamento monogâmico. Eu buscava em mim um ideal que não era meu: amar uma pessoa só, estar com uma pessoa só” Pedro “Calê” Calejon, adepto do poliamor
“Quando eu descobri o poliamor, foi instantâneo. Eu nunca tinha pensado a respeito, mas quando eu soube o que aquilo significava, foi uma identificação imediata” Juliany “Jujuba” Bernardo, praticante do poliamor
hoje a recorda com um sorriso no rosto, como se concordasse. Aos 39 anos, vive o que chama de amor pleno, continuando sua trajetória como uma pessoa fora dos padrões estabelecidos pela sociedade. Por ser livre, agora é conhecido
16/17
pelos amigos como Alfreedom. Mas o que é amar de forma plena? Para Alfredo, é apenas amar. Ele diz que não devemos nos limitar à simples atração. Não existe hétero e nem homossexual, diz, só o amor. Mas é necessário que uma pessoa se sinta realmente ligada à outra para que o vínculo não seja apenas físico. A plenitude desta forma de amar é enxergar o que os parceiros trazem, o que são e como atingem os outros. Alfredo chegou a essa forma de amar por um simples motivo: ciúmes. Foi esse sentimento que causou um sofrimento imensurável a ele. Depois de pensar no
FOTO LUIZ FELIPE SIMÕES
que isso significava, chegou à conclusão de que o ciúmes nada mais é do que “odiar o amor do outro”. Então concluiu
que o outro. São Pedro Calejon, mais
que o amor é algo inerente ao ser huma-
conhecido pelos íntimos como Calê, e
no e que “ninguém tem culpa do meu
Juliany Bernardo, a popular Jujuba.
amor”, completa Alfreedom. Foi aos vinte e tantos anos que Alfredo resolveu abrir seus horizontes e encon-
+ PLURAL NA INTERNET
Os dois formam um típico casal paulistano, que de típico não tem nada. Pedro, 27 anos, nasceu em São Paulo em
trar essa forma diferente de se relacio-
plena avenida Paulista. Por esse fato, é
nar. “Gosto de pensar que somos uma
chamado carinhosamente pela compa-
família de pessoas que se amam.”
nheira de paulistiniano.
A crítica que faz é de que as pessoas
Há mais ou menos dois anos, seu últi-
costumam procurar outras para preen-
mo relacionamento monogâmico aca-
cher uma ausência, e assim depositam no outro a responsabilidade de completar um vazio que na verdade é pessoal. “Quando a pessoa se preenche do seu próprio amor, ela não precisa do outro. Aí ela já é plena”, conclui.
Use um leitor de QR Code e assista uma reportagem em vídeo e um documentário sobre Poliamor, ambos produzidos pelos alunos de Jornalismo da ESPM.
bou por conta de uma descoberta: o poliamor. Através de uma rede social, Calê se deparou com o documentário “Poliamor”, de José Agripino. E o que era apenas uma curiosidade acabou se tornando uma nova filosofia de vida. “Eu sempre me apaixonei por outras
Da Vila Madalena a Diadema
pessoas estando num relacionamento
Ele, um homem simpático, camisa
monogâmico. Eu buscava em mim um
verde, cavanhaque e cabelo crespo.
ideal que não era meu: amar uma pes-
Ela, uma mulher sorridente, blusa azul
soa só, estar com uma pessoa só.” A par-
escura, pele negra e um brinco maior
tir dessa conclusão, se transformara em
FOTO NADJINE HOCHLEITNER
que começou a experimentar uma relação não monogâmica, e a confusão a tomou. Não existem modelos. Filmes, literatura, músicas, nada disso explica como é um amor livre. Ela lembra que começou a se interessar inteiramente por garotas aos 21 anos. “Os garotos eram mais legais para serem amigos”, suspira. No primeiro namoro com uma garota, Maíra precisou explicar sua forma de relacionamento: o aberto. A companheira aceitou, mas mesmo assim não deu certo. Sem o manual que a cultura proporciona aos relacionamentos monogâmicos, Maíra não soube o que fazer. Entretanto, essa desorientação acabou em 2013, quando conheceu o grupo de Relações Livres, ou simplesmen-
Amantes buscam formas de vivenciar os afetos longe das amarras sociais, sem reduzir a força dos relacionamentos
te RLi. Essa comunidade é composta por pessoas que estudam a história da monogamia e da não monogamia – que os adeptos consideram diferente da poligamia, relação em que o mais
um poliamorista.
seus sentimentos com outra palavra:
comum é o homem ter mais de uma
Um ano após sua decisão, Calê conhe-
compersão. “É o termo que a gente usa,
mulher. Foi aí que o pensamento críti-
ceu um novo amor, ou pelo menos um
definido como o oposto de ciúmes,”
co surgiu. A crítica ao tipo de relacio-
deles. Pelo Facebook, entrou no grupo
explica Calê.
namento padrão da sociedade: a famí-
Poliamor São Paulo, onde pediu assis-
Compersão significa “ficar feliz pelo
tência à administradora: a diademense
seu companheiro estar com outra pes-
de 21 anos Juliany.
soa”. É exatamente assim que Juliany
A estudante de Jornalismo se inte-
descreve o poliamor.
lia como forma de manter bens e “gerir a vida de outra pessoa”, diz Maíra. A tradutora conta que a diferença da RLi em relação às outras formas de relacionamento é que ela não se limi-
ressou por acaso, num bate papo online. “Quando eu descobri o poliamor, foi
Já na Paulista
ta à prática. Envolve também o histó-
instantâneo. Eu nunca tinha pensado
Pisciana, apaixonada por música e fil-
rico das relações na sociedade. É um
a respeito, mas quando eu soube o que
mes, tradutora audiovisual, Maíra Mee,
grupo militante, que busca, além de
aquilo significava, foi um identificação
aos 37 anos, defende a não monogamia.
tudo, valorizar a mulher. Em muitos
imediata”, disse a jovem.
O início de sua vida amorosa foi com
momentos da história da humanida-
O casal já está junto há 10 meses,
um homem, aos 15 anos, mas, no ano
de, as moças eram trancadas em casa e
contudo não são os únicos nesta rede.
seguinte, acabou percebendo que não
tudo o que podiam fazer era cuidar da
Cada um tem mais um namorado do
era o que queria, e talvez nem quises-
residência e se manter longe de outros
sexo oposto, apesar de ambos se decla-
se uma pessoa só.
homens.
rarem pansexuais, ou seja, ter atração
O cabelo curto e cacheado balança
Hoje, essa necessidade está sendo
por outras pessoas independentemen-
quando é movido pelas mãos agitadas.
superada; se temos afeto suficiente para
te do gênero delas.
Os olhos castanhos mostram concentra-
viver mais de uma história ao mesmo
ção no assunto que aborda.
tempo, questiona, então por que nos
Em relação ao ciúme, os apaixonados o dispensam prontamente e classificam
Foi no seu segundo relacionamento
censurarmos?
FOTO NADJINE HOCHLEITNER
UM OLHAR SOBRE O PROCESSO DE REPORTAGEM
18/19
BASTIDORES
MÚLTIPLOS OLHARES
Equipe recorde de 39 alunos se lança ao desafio de entender melhor as manifestações de afeto da atualidade cada grupo iniciou sua apuração. As ULY CAMPOS
matérias possuem uma proposta interpretativa, ou seja, que não se limita a
»»» Mais difícil do que entender a
informar um acontecimento, mas que
questão de afeto na atualidade é
ambiciona analisá-lo com a ajuda de
escrever sobre ele. A Plural deste
todas as fontes possíveis.
semestre buscou entender os mais
Thomas Aoki, um dos alunos que
diversos tipos de relações de afeto
escreveu a matéria sobre o relaciona-
entre as pessoas. Diferentemente do
mento de pais heterossexuais com filhos
ocorrido em outras edições, coube aos
homossexuais, conta que muitas vezes
alunos da disciplina Grande Reporta-
teve de tomar cuidado, pois seu tema
gem, do quarto semestre do curso de
é delicado. Sua intenção ao escrever a
Jornalismo da ESPM-SP, propor e exe-
matéria era de quebrar preconceitos.
cutar as pautas.
Em vários casos os pais não puderam
Como a equipe aumentou – nesta edição são 39 alunos colaboradores –,
ou quiseram dar entrevista. As dificuldades variam conforme a
a diversidade de assuntos cobertos tam-
pauta. Para a entrevista principal da
bém cresceu. Com as pautas definidas,
edição (veja à página 42), por exemplo,
FOTO DONIZETE PINTO/NIS
Ao lado, bastidores da gravação de depoimentos para o site da Plural; acima, a equipe que participou da versão multimídia da revista
foi difícil conseguir conciliar a agenda
as pessoas com que conversamos foram
das fontes em potencial com o prazo de
muito receptivas, pois sentem vontade
fechamento da revista. Contatamos a
de compartilhar experiências, opiniões
psicóloga Rosely Sayão para falar sobre
e pontos de vista. Uma dificuldade foi
afeto nas famílias brasileiras e também
tentar não ser invasivo durante a entre-
a antropóloga Mirian Goldenberg, que
vista e, ao mesmo tempo, conseguir as
daria um panorama sobre relaciona-
respostas”, conta Fernando Turri, um
mentos românticos na contemporanei-
dos alunos-repórteres.
dade. Sayão recusou o convite, mas conseguimos falar com Goldenberg.
Mesmo reportagens com viés mais leve, como a sobre humanização de
Antes da entrevista, a preparação.
cachorros, têm desafios. “Para mim foi
Lemos diversos artigos da antropóloga
gostoso fazer a matéria porque, como
para desenvolver melhor o tema e tecer
eu tenho um cachorro, e o humanizo,
uma linha de raciocínio coerente.
queria ver como era a relação dos outros
Quase todas as matérias enfrenta-
com seus companheiros, principalmen-
ram dificuldades, algo corriqueiro para
te nesses extremos: uma mulher rica e
qualquer jornalista. Falta de fontes, de
um morador de rua”, conta Otavio Cin-
fotos, de informação aprofundada, de
tra, que entrevistou a arquiteta Brune-
tempo, de espaço para escrever. Quando
te Fraccaroli e um morador de rua dos
abordamos temas delicados, nos quais
Jardins, Paulo. Ambos igualmente apai-
as pessoas não se sentem confortáveis
xonados por cachorros.
para falar, os problemas se multiplicam.
Com as matérias prontas coube aos
“A parte mais complicada de escrever
alunos fazer diagramação, escolha das
sobre o afeto entre deficientes físicos foi
fotos e fechamento da revista, contan-
não ser preconceituoso e acabar refor-
do com o apoio do editor, o professor
çando, sem querer, estereótipos. Ao con-
Renato Essenfelder, em todas as etapas.
versar com especialistas fomos desco-
O resultado é um panorama rico e diver-
brindo termos que não devem ser usados
sificado de algumas das várias formas
ou que devem ser evitados. Eu senti que
de afeto que encontramos hoje.
“A parte mais complicada de escrever sobre o afeto entre deficientes físicos foi não ser preconceituoso e acabar reforçando, sem querer, estereótipos” Fernando Turri
p
20/21
PERFIS:
VINÍCIUS DE MORAES
O POETA E A FUNKEIRA Com o passar do tempo, a visão da figura feminina mudou; na música, o poetinha Vinícius de Moraes e a funkeira Valesca Popozuda ilustram bem esse fenômeno
Se você quer ser minha namorada (…) Você tem que me fazer
LUIZA LOURENÇO
Um juramento
»»»Dois tempos, duas visões do amor.
De só ter um pensamento
Carioca e boêmio, Vinícius de Mora-
Ser só minha até morrer...
es é um dos poetas brasileiros mais conhecidos. Ele nasceu em 1913 no bairro da Gávea, na capital fluminen-
Tá para nascer homem que vai mandar em mim (…)
se, mas não se contentou em ficar ape-
Mal sabe meu nome e já tá querendo me ter
nas lá. Diplomata, viajou o mundo e
Nunca dependi de homem pra coisa nenhuma
morou em diversos países, como
Se tuas negas são tudo assim, desacostuma
Inglaterra, Estados Unidos e Portugal. Além de ter conhecido diferentes culturas em sua profissão, foi dramaturgo, jornalista e compositor. Desde então, foi
VALESCA POPOZUDA Vinícius enaltecia mulheres em geral submissas, enquanto a cantora de funk Valesca canta a força do sexo feminino | FOTOS DIVULGAÇÃO
apelidado de “poetinha” por causa de
apanhava do amado, mas decidiu que
norte do Rio de Janeiro, em 1978, Valesca
seus sonetos.
não precisa mais dele, que se basta por
começou a vida profissional como frentista em um posto de gasolina.
Neles e em centenas de outros poe-
si. Valesca mostra o sexo feminino como
mas, Vinícius falava de um amor ideali-
poderoso, sexy e independente de qual-
zado e de uma mulher apaixonada, cega,
quer homem.
que apenas pensava em seu amado.
Ascendeu quando entrou para o funk como empresária e cantora do grupo
Autônomas e decididas, as mulheres
Gaiola das Popozudas, que foi um dos
Há que se considerar, no entanto, que,
de suas músicas escolhem com quem
pioneiros do gênero por introduzir o
sob esse ponto de vista, a figura femini-
querem estar e o que farão com seus
neofeminismo – a recuperação da femi-
na é colocada em uma posição submissa
próprios corpos. Na sua composição
nilidade, que também reforça a ideia de
e passiva, que apenas respeita e cumpre
de maior sucesso até hoje, “Beijinho no
que a mulher não é um sexo frágil – nas
os desejos de seu homem, sem reclamar.
ombro”, canta: “Não sou covarde, já tô
músicas. Em 2013, decidiu se separar do
pronta pro combate”.
grupo e seguir carreira solo. Atualmen-
Contrapondo o poetinha, a rainha do funk carioca, Valesca Popozuda, canta a
Essa visão reflete a vida da canto-
evolução de uma mulher oprimida, que
ra. Nascida no bairro do Irajá, na zona
te, ela é um ícone do empoderamento da mulher.
22/23
FILHOS DO DIVÓRCIO Fim do afeto entre os pais impacta profundamente a vida dos filhos
Mas o divórcio é mais do que um rito ANA CLARA MAKSOUD GABRIEL FICONI RODRIGO TUCCI ULY CAMPOS
burocrático. O advogado Lagreca Netoressalta que ele envolve inúmeros sentimentos. "A separação envolve tanto sentimentos presentes quanto mágoas
»»»“Às vezes eu fico pensando em
passadas e dúvidas sobre o futuro. Isso
como uma pessoa pode deitar no tra-
merece um tratamento muito especial,
vesseiro e pensar que tem uma filha e
pois vai transformar o projeto de vida
que não fala com ela há tanto tempo”,
dessa família."
conta Nathália Moura, 19 anos, sobre
No caso da estudante Nathália, o
como ficou seu relacionamento com
divórcio dos pais foi tranquilo e per-
o pai depois do divórcio de seus pais.
turbado ao mesmo tempo. Apesar de
A história da estudante se repete
não ter havido uma briga, os pais dela
em milhares de famílias por todo Bra-
se separaram e voltaram algumas vezes
sil. Segundo dados do IBGE, só em 2013
antes de se divorciarem definitivamen-
foram celebrados 324.921 divórcios.
te. "Eles ficaram assim até eu ter uns 7
A facilitação do processo legal e buro-
anos. Isso foi um pouco conturbado na
crático de divórcio impulsionou esse
minha cabeça", explica. Nathália conta
número. Nos anos de 1890, a “separação
que depois da separação, ela nunca mais
de corpos” só ocorria em casos de adul-
falou com o pai. "Minha mãe nunca me
tério, injúria, abandono do lar ou vonta-
incentivou a falar com meu pai, mas
de mútua dos cônjuges. Mais tarde, em
nunca me restringiu. Meu pai nunca
1916, foi criado o desquite, que colocava
teve compromisso comigo", completa.
fim à relação entre os casados, mas não
Já no caso de uma estudante de 21
ao vínculo matrimonial. A situação era
anos que não quis se identificar, a rela-
malvista pela sociedade e dificilmente a
ção com seus pais melhorou depois do
mulher desquitada podia se casar nova-
divórcio. "Minha relação com a minha
mente. O divórcio foi instituído oficial-
mãe se estreitou, e com meu pai tam-
mente só em 1977. Hoje, se o casal esti-
bém." Apesar de não ter irmãos e sentir
ver de acordo e não houver filhos, pode
que o divórcio diminuiu ainda mais sua
"Eu não aceitava meu padastro (...) Eu achava que ele tinha causado todos os meus problemas”
se divorciar em um dia em um cartó-
família, hoje ela lida bem com a situação
Nathália Moura, estudante
rio. Se houver filhos, é preciso procu-
e vê tudo isso como um aprendizado.
rar a Justiça.
"Eu percebo que sou uma pessoa dife-
"MINHA MÃE NUNCA ME INCENTIVOU A FALAR COM MEU PAI, MAS NUNCA ME RESTRINGIU. MEU PAI NUNCA TEVE COMPROMISSO COMIGO" nal das crianças, especialmente em suas relações adultas, pois essas crianças experimentaram o medo da perda e de catástrofes. Além disso foi encontrado um maior uso de drogas e álcool durante a juventude dessas crianças. Os filhos de pais divorciados também registraram menos casamentos, menos filhos e mais divórcios em relação à prole de famílias em que não houve separação. O estudo revelou ainda que apenas 60% dos filhos de pais divorciados haviam se casado, em comparação com 80% de casamentos nos filhos de famílias que permaneceram unidas. Em 25% dos casos, os filhos de divorciados relataram o uso de drogas e álcool antes dos 14 anos de idade, contra apenas 9% do grupo de comparação. Porém, Wallerstein não defende que os casais fiquem juntos por causa dos filhos, independentemente do casamento que tenham, pois a separação pode ser melhor para as crianças, se for conduzida como uma transformação benéfica na vida dos pais e encarada como um exemplo. ILUSTRAÇÃO ALBERTO GALLONI
Muitas vezes ver o fim do amor e afeto dos pais pode ser a parte mais difícil para os filhos. Para a psicóloga Luciane Bonfanti, é importante que os pais tenham uma conversa com eles e deixem claro que estão se separando porque algo não está dando certo. "A segu-
rente porque meus pais se separaram,
cio: Um Estudo Referência de 25 anos".
rança emocional passada pelos pais
eu aprendi a amadurecer muito rápido,
Sua pesquisa foi realizada de 1971 a 1996,
nesse momento também é fundamental:
aprendi a ignorar o que eles falavam,
acompanhando filhos de divorciados
dizer o quanto amam os filhos, o quan-
aprendi a separar as coisas e aprendi
até a vida adulta. Wallerstein também
to são importantes, que não sumirão de
que tenho muito dos dois", conta.
entrevistou um grupo de 44 crianças de
suas vidas e que podem continuar con-
famílias em que não houve separação,
tando com os pais para qualquer coisa
que cresceram ao lado de filhos de pais
que precisarem", explica.
O FIM DO AFETO No início deste novo século, já se sabia que o divórcio pode afetar a vida das
separados e que estudaram nas mesmas escolas.
Para a estudante que não quis se identificar, ver o fim do afeto dos pais foi
crianças de forma persistente. No ano
Ao comparar as experiências vividas
bem triste. “Mas como eles já brigavam
2000, Judith Wallerstein, psicóloga da
em ambos os grupos, o estudo concluiu
havia muito tempo, eu acho que já sabia
universidade da Califórnia, publicou o
que o divórcio dos pais teve um impacto
que o afeto e o amor entre eles não era
livro "O Legado Inesperado do Divór-
profundo e duradouro na vida emocio-
tão grande assim. O que foi mais cho-
"MUITAS VEZES VER O FIM DO AMOR E AFETO DOS PAIS PODE SER A PARTE MAIS DIFÍCIL PARA OS FILHOS"
cante é que eles se separaram duas ou três semanas depois da minha festa de 15 anos, e lá eles estavam muito apaixonados, a gente fez muita coisa em família”, conta. A separação para Luiza Lima, estu-
24/25
dante de 16 anos, também foi complicada. “Foi difícil em partes, porque os dois nunca foram carinhosos um com o outro. Vi eles se beijarem uma única vez e, mesmo assim, nada demais. O difícil foi lidar com o fato de que eles não se amavam do modo que eu acreditava. Foi meio que uma quebra do que eu considerava amor. A adaptação foi até que tranquila, me acostumei rápido com as mudanças”, diz. O caso de Isadora Nunes, que tinha 10 anos quando seus pais se separaram, foi marcante para sua noção de família. “Foi bem difícil. Eu tenho um estilo meio tradicional a respeito de família, meu sonho é construir uma unida e harmoniosa, e muitas vezes eu senti que não podia ter a minha como exemplo disso. Mas, conforme eu fui amadurecendo, fui me acostumando com essa situação dos pais separados e entendendo que uma família pode sim ser diferente e que nunca vai ser realmente perfeita”, explica. Para a psicóloga Bonfanti, existem adolescentes que vivem a experiência do divórcio de maneira mais tranquila. Ficam tristes por passar por essa separação e ver que os pais não estão mais juntos, mas conseguem superar isso sem grandes problemas. “Por isso casos de depressão, fúria e rebeldia em geral são causas de uma separação conturbada, em todas as fases. Há filhos
Nathália Moura não fala com o pai há sete anos |
FOTO GABRIEL FICONI
casa, brigando. Eles percebem o respeito entre os pais”, conta.
que lidam de maneira muito melhor
Um exemplo é o caso de Isadora, que
com a separação do que vivendo com
percebeu que a separação foi benéfica
os dois pais em constantes brigas den-
para os pais. “Hoje vejo que não faria o
tro de casa. Ver os pais se separarem de
menor sentido se eles estivessem juntos
forma tranquila é muito mais benéfico
ainda, eles são pessoas muito diferen-
e saudável do que ver os pais juntos em
tes e, como casaram cedo, acho que aca-
"EU PERCEBO QUE SOU UMA PESSOA DIFERENTE PORQUE MEUS PAIS SE SEPARARAM"
baram se acostumando um com o outro
ele estava saindo com uma mulher. Foi
e não se permitiam ser como eles real-
bem chocante e eu fiquei com bastan-
mente gostariam de ser”, diz.
te ciúme. Mas conforme eles foram se
Luiza e seu irmão, Pedro Lima, de 19
juntando eu fui me adaptando e hoje me
anos, também viram a separação como
dou superbem com ela e com meu meio-
um acontecimento positivo. “O que eu
-irmão.” Hoje a estudante gosta do fato
me lembrava sempre era de eles briga-
de ter duas famílias. “É bom para não
rem muito, não eram muito afetivos e
cair tanto na rotina. E também acabo
carinhosos um com o outro, sempre um
tendo mais liberdade para fazer as coi-
reclamava do outro para mim. Logo que
sas que eu quero, ser mais independen-
o divórcio aconteceu e eu soube, fiquei
te”, conta.
bem mal, mas depois entendi que seria
A mãe de Nathália acabou se casan-
o melhor para eles”, diz a irmã. “Lidei
do novamente e a estudante lembra de
bem, acho que foi o certo a fazer”, com-
como se sentiu trocada. “Eu não aceita-
pleta o irmão.
va meu padrasto, não exatamente porque eu sentia saudade do meu pai, mas
NOVA ROTINA Com a separação, os pais muitas vezes
porque eu me sentia um pouco trocada pela minha mãe”, comenta.
constroem novas famílias e os filhos se
A relação entre eles teve alguns even-
dividem em duas casas. Para a psicó-
tos turbulentos. “Quando a gente foi
loga Bonfanti, é bom que os filhos não
passar o Ano Novo junto, meu padrasto
sintam uma mudança tão drástica dessa
chegou querendo tirar uma foto comigo
vivência de dois lares com regras dife-
e eu falei: nunca vou querer tirar uma
rentes. “Se o filho não puder optar e
foto com você. Eu achava que ele tinha
tiver que viver sempre em duas casas,
causado todos os meus problemas”,
pipocando, ele terá que adquirir um
lembra Nathália.
jeito de lidar com isso. O melhor é sempre o bom senso” diz.
"A nossa relação não mudou da água para o vinho. Quando fiz 13 anos ele me
A partir dos 14 ou 15 anos, Lucia-
deu um MP4 que dentro tinha uma gra-
ne afirma que não há problema algum
vação falando o quanto ele gostava de
para o filho viver um dia em cada casa.
mim e que não queria fazer parte dos
“Ele já aprendeu e já está seguro de si
meus problemas", diz. Hoje, Nathália
mesmo. Ele se sente seguro dos dois
considera seu padrasto como um pai.
lados”, comenta.
"Ele me criou como filha dele", completa.
O advogado Lagreca Neto ainda acres-
Se, mesmo com todos os cuidados, os
centa que é preciso decidir a respei-
filhos ainda apresentarem sintomas de
to das necessidades afetivas do filho,
agressividade, timidez, ou até mesmo
“quem estará presente nas datas come-
regresso no desenvolvimento, a ajuda
morativas como aniversários, Natal e
profissional de um terapeuta pode ser
Ano Novo, para evitar o desentendi-
interessante, sugere Luciane.
mento da família".
"Muitas vezes, a criança se sente
O pai de Isadora mora com outra
melhor falando com alguém que não
mulher e teve um filho com ela, mas
está ligado diretamente à família.
sua mãe não casou depois da separa-
Assim, é possível que se identifique as
ção. “No começo foi um incômodo muito
causas e os sintomas sentidos para pos-
grande, porque ele contou que ia ter um
teriormente começar um tratamento
filho antes mesmo de a gente saber que
psicológico", conclui.
"A segurança emocional passada pelos pais nesse momento também é fundamental, dizer o quanto amam os filhos, o quanto são importantes, que não sumirão de suas vidas e que podem continuar contando com os pais para qualquer coisa que precisarem" Luciane Bonfanti, psicóloga
26/27 Rafael e seus pais, que aos poucos entenderam a condição do filho | FOTO ACERVO PESSOAL
PAI, SOU HOMOSSEXUAL Relatos e histórias de como o afeto e a empatia por parte dos pais podem descomplicar a convivência com filhos de diferente orientação sexual
FÁBIO MARTIN RAFAEL LEMOS THOMAS AOKI
aulas de balé, com as quais Júlia não se
chamar atenção. Perceberam, com o
dava muito bem. Desde a infância, era
tempo, que precisavam apoiá-la.
a bermuda larga que lhe servia melhor;
“O que me levou a aceitar a condi-
era com garotos que tinha mais amizade
ção da Júlia foi perceber que ela tinha se
e era nas meninas em quem reparava.
libertado de algo. A partir do momento
»»»É difícil. Nenhum pai ou mãe quer
Aos 20 anos, ela se assumiu homos-
em que ela contou, nós, com a ajuda de
isso para o filho. Não pela condição em
sexual e precisou de relacionamentos
sua psicóloga, começamos a entender
si, mas o sofrimento pode ser muito
conturbados para que seus pais enten-
que ela não estava fazendo uma graça
grande. Aos poucos, acho que eles
dessem e apoiassem sua condição. “Foi
ou passando por uma fase. Estava, na
entendem. Nem todos. Mas a gente
estranho perceber a minha situação.
verdade, se descobrindo”, afirma Sebas-
não escolhe ser “diferente”, né? Seria
Eu tive que passar por alguns traumas
tião Campos, pai de Júlia.
muito mais fácil ser igual aos outros.
de relacionamento afetivo com meus
A notícia não chegou a seus pais da
Quando ia às compras com seus pais,
amigos, até com a sociedade em que eu
forma mais natural. Em 2014, quando
Júlia Campos, estudante universitária,
vivia, para perceber que na verdade eu
reconheceu sua sexualidade pela pri-
sabia desde pequena que não era dentro
escondia quem eu era”, diz Júlia.
meira vez e se assumiu, Júlia se decla-
de um vestido que se sentia confortável.
No começo, seus pais entendiam ser
rou para sua melhor amiga, por quem
Brigava com sua mãe, que insistia em
apenas uma fase pela qual ela estava
era apaixonada. Não recebeu a resposta
peças de roupa mais femininas e até em
passando. Achavam que a filha queria
que queria e teve sua homossexualidade
Perceberam que era isso mesmo que eu queria e sentia”, narra Júlia. Kátia Martins, terapeuta especializada em processos familiares, afirma que normalmente os pais têm medo de que o filho sofra e que não se encaixe em certos padrões. Em um primeiro momento, por conta dessa condição sexual, acham que os jovens não vão conseguir construir uma vida e relações estáveis. “Há uma grande preocupação com o futuro dos filhos. A partir do momento em que a pessoa vai caminhando e percebendo que as coisas vão se encaixando, é mais um processo de adaptação do que qualquer outra coisa. Se você vive em um país em que existem atos de homofobia, é lógico que você tem receio de que algo
Rafael e Bruno Sasso, com quem namora há 3 anos | FOTO ACERVO PESSOAL
possa acontecer”, analisa a terapeuta. Receio
revelada a seus pais. “Eu não tive a
“Primeiro, eu precisei admitir para mim
chance de contar para eles. A mãe da
mesmo para conseguir abrir isso e fazer
minha amiga fez isso por mim, contou
com que fosse parte de mim. No come-
tudo o que tinha acontecido. Quando
ço, foi muito difícil. Eu lembro de passar
eu fui falar com eles, os dois queriam
um mês em uma fase muito depressi-
entender “qual era a minha graça”. “Eu
va, em que eu assistia muitos vídeos na
estava muito mal, só queria voltar para a
internet, fazia muitas pesquisas sobre
casa e receber um abraço”, conta.
sexualidade, tentando me entender”.
Gradativamente, ela também teve
Era assim que o estudante de arquite-
que se aceitar. Passou sua adolescên-
tura Matheus Vaz se sentia após ter se
cia escondendo quem realmente era,
relacionado com um homem pela pri-
vestindo roupas de que não gostava
meira vez.
e se esforçando para estar dentro dos
Já em sua infância, Matheus se recor-
padrões. Compreendeu que seus sen-
da de pensamentos e olhares voltados
timentos não eram algo de sua cabeça.
mais aos meninos que às meninas.
Eles eram reais. Após relacionamentos
Sentia-se muito constrangido quando
fracassados, nos quais estava sentimentalmente imersa, recorreu aos pais, que passaram a entendê-la e apoiá-la. “Quando eu assumi que gostava de mulheres, comecei a ver o que as pessoas passavam. Em todas as relações, em todo o vínculo no qual você coloca seu coração em jogo, você fica chateado. Ao me ver sofrendo por outras mulheres, eles viram que eu precisava de apoio.
“O que me levou a aceitar a condição da Júlia foi perceber que ela tinha se libertado de algo” Sebastião Campos, pai de Júlia.
assuntos relacionados a homossexuais surgiam. Evitava cruzar as pernas e adotar qualquer outro ato considerado mais feminino. Seu relacionamento com mulheres se deu de forma relativamente tardia. Quando aconteceu, lembra de não ter achado a menor graça em algo que era tão buscado pelos outros garotos. Em 2012, Matheus ficou com um de
28/29
“EU SEMPRE TIVE UMA RELAÇÃO MUITO HONESTA COM MEUS PAIS E DE REPENTE TINHA ALGO QUE EU NÃO PODIA FALAR, QUE NÃO DAVA PARA CONVERSAR”
Foi durante a faculdade que Júlia decidiu se assumir | FOTO FÁBIO MARTIN
seus amigos mais próximos. Pela pri-
Gays, Bissexuais, Transexuais, Traves-
qual se sentia muito sensibilizado. “No
meira vez, havia se relacionado com
tis e Transgêneros).
meio de uma de nossas conversas, eu
uma pessoa do mesmo sexo e sabia
O receio que existe por parte dos gays
comecei a chorar e eles ficaram preocu-
que precisaria conversar com seus pais
é da reação que seus pais e a socieda-
pados. Eu precisava de apoio. “Está tudo
sobre isso. “Eu sempre tive uma rela-
de terão a respeito da sua sexualidade,
bem. A gente te ama do mesmo jeito”,
ção muito honesta com meus pais e de
segundo a terapeuta familiar Kátia Mar-
eles disseram. Mas com o tempo a rela-
repente tinha algo que eu não podia
tins. “É mais uma preocupação de como
ção entre pais e filho passou a ficar mais
falar, que não dava para conversar. Eu
a família vai reagir, como a sociedade
conturbada, após a revelação. Logo,
não me sentia à vontade”, conta.
vai reagir à condição sexual dele. Quan-
acharam que Matheus deveria frequen-
Ainda é muito comum que homosse-
to mais rígido é o meio em que ele con-
tar uma psicóloga. “Não parecia, mas
xuais tenham receio de se assumir. No
vive, mais dificuldade ele tem, inclusi-
nossa relação começou a estremecer
Brasil, os homoafetivos ainda encon-
ve de como ele vai abordar isso com seus
muito”, conta.
tram problemas na garantia de seus
conhecidos, com seus amigos, com seus
direitos. De acordo com dados de uma
familiares”, explica.
pesquisa realizada pela Elancers, com-
Aos poucos, Matheus começou a se sentir agredido. Seus pais procuravam uma “cura” e um motivo para a
panhia de sistemas de recrutamento e
Indiferença
condição do filho. Conduziam inter-
seleção, uma em cada cinco empresas
Dois meses após ter seu primeiro
rogatórios, queriam encontrar algum
não emprega homossexuais. Quando
relacionamento sério homossexual,
erro. Enxergavam um egoísmo no filho
se trata de segurança, os números não
Matheus revelou sua condição a seus
que, segundo eles, só pensava em si
melhoram: em 2014, foram registrados
pais. De imediato foi compreendido de
mesmo. A família via sua homossexu-
218 assassinatos de LGBTs (Lésbicas,
forma acolhedora, em um momento no
alidade como um problema. O que os
UMA EM CADA CINCO EMPRESAS NÃO EMPREGA HOMOSSEXUAIS. ALÉM DISSO, EM 2014 FORAM REGISTRADOS 218 ASSASSINATOS DE LGBTS NO PAÍS outros pensariam da condição sexual
apoio da irmã, que também é homos-
fossem compreendê-lo da forma como
de Matheus?
sexual assumida, o que abriu as por-
eles haviam compreendido.
Ao mesmo tempo em que se sentiam
tas para que ele se aceitasse melhor.
incomodados, os pais de Matheus opta-
“Depois que eu contei para a minha
forma com a qual meus pais recebe-
vam, muitas vezes, por ignorar o que
irmã, eu contei para os meus melhores
ram isso me ajudou muito. Eu não pre-
o filho sentia. Não gritavam ou briga-
amigos. Quando eu comecei a ver as rea-
ciso mais esconder quem eu sou. Quan-
vam com ele, mas a indiferença o feria.
ções das pessoas mais próximas a mim,
do eu era menor, era muito tímido, não
“Eu os queria ao meu lado, precisava do
que surpreendentemente me acolheram
gostava de sair, tinha um pouco de difi-
apoio deles. Eu ainda tinha problemas
de uma forma natural, eu me aceitei de
culdade de me relacionar com pessoas
para me aceitar e o desinteresse deles
vez”, diz.
novas. Hoje em dia isso mudou”, comen-
“O fato de eu ter me assumido e a
não ajudava em nada. Nós brigávamos
Quanto à recepção das pessoas mais
porque eles queriam me proibir de fazer
próximas, Rafael acredita ter tido sorte.
Atualmente, Rafael sabe que não pre-
as coisas. Depois tudo voltava ao nor-
No começo, observou uma relutância
cisa mais esconder sua personalidade e
mal”, diz ele.
ta o estudante.
por parte de seus pais – que já descon-
que representa o filho que seus pais gos-
“Eu tive a sensação, sem dúvida, de
fiavam de sua homossexualidade –,
tariam de ter. “Eu namoro há três anos
que eles achavam que tudo ia passar.
totalmente ligada ao receio da discrimi-
e percebo o carinho no relacionamen-
Principalmente quando eles queriam
nação que o filho receberia fora de casa.
to dos meus pais com o meu namora-
que eu mudasse de terapeuta. Eles acre-
Os pais temiam que outras pessoas não
do. Eles gostam muito dele, convidam-
ditavam que isso mudaria alguma coisa.
-no para almoçar e para sair. O próprio
Meu pai chegou a pedir para eu não
fato de eles verem meu namorado como
me relacionar com ninguém enquan-
parte da família é um motivo que me
to ele estivesse vivo, que foi uma das
faz saber que eles me aceitam”, conta
coisas mais difíceis que eu escutei. Ele
Rafael.
não queria presenciar as minhas rela-
Após alguns anos, Matheus acha
ções”, conta.
estranho um dia ter tido uma relação
Para o professor de sociologia Fábio
conturbada com os pais. Com sua autoa-
Dias, as relações sociais ainda são ali-
ceitação, o apoio dos pais foi uma conse-
cerçadas por um ideal muito intole-
quência. Sua homossexualidade já não
rante quando se trata de algo diferen-
é mais vista como um problema dentro
te dos padrões estabelecidos. “O modo
de casa. “Isso não é mais um incômodo
como alguns pais e mães recepcionam
entre nós. Hoje eu consigo ter uma segu-
a homossexualidade de seus filhos é
rança maior sobre quem eu sou. Inclu-
a prova de que a valiosa promessa de
sive, meu namorado está sempre aqui
liberdade tão presente no ideário de
em casa”. Quanto à Júlia, o fracasso em rela-
algumas revoluções históricas não vingou. Pelo contrário, o que presenciamos em alguns casos da relação entre família e filhos homossexuais é a abominável permanência da sombra de um passado que se tentou abolir”, analisa. Apoio Homossexual assumido há três anos, o estudante Rafael Torrezani sempre esperou um relacionamento sério para que pudesse se revelar a seus pais com a certeza de que precisava. Sempre teve
“O próprio fato de eles verem meu namorado como parte da família é um motivo que me faz saber que no fundo eu sou do jeito que eles me aceitam”
cionamentos passados não se repetiu
Rafael Torrezani, estudante
sar com eles. Nossa relação é a melhor
mais com seus pais. Sua relação com eles, como ela mesma compara, mudou da água para o vinho. “Nós estamos em uma fase muito boa, que eu não imaginava alcançar. Eles têm os problemas familiares deles, mas a gente sempre conversa sobre meus sentimentos e meus relacionamentos, sobre coisas que eu nunca imaginei poder converdo mundo!”
30/31
A transexual Giu Nonato afirma que é mais difícil se relacionar com “pessoas em uma realidade privilegiada” do que com indivíduos que, como ela, não têm o mesmo acesso a educação e emprego | FOTO DEBORA NEVES
“ ESTAMOS FORA DA ZONA DE AFETO” Jovens transexuais explicam as diferenças entre as relações afetivas dessa minoria JULIANA CÂNDIDO LUIZ FELIPE SIMÕES LYDIA AGUIAR NADJINE HOCHLEITNER
em encontrar pessoas que entendam
ficar fora dessa estatística, muitos não
e aceitem sua identidade de gênero.
têm salários satisfatórios.
Estão sozinhos em meio a um ambiente de discriminação.
A transexualidade é definida por uma circunstância em que o indivíduo não
»»» De um lado, pessoas que buscam
Os transexuais não desfrutam dos
se identifica psicologicamente com seu
poder exercer sua individualidade.
mesmos privilégios e nem obtêm res-
sexo biológico. A explicação estereo-
Do outro, a opressão de uma socie-
paldo da sociedade da mesma maneira
tipada é de uma mulher presa em um
dade que impõe limites de identida-
que os cisexuais, pessoas em que não há
corpo masculino ou vice-versa. Mas
de. Vivendo – ou sobrevivendo – em
conflito entre o sexo biológico e o modo
muitos membros da comunidade tran-
um mundo permeado de preconcei-
como se sentem e encaram psicologi-
sexual, assim como estudiosos, rejei-
to e estereótipos, os transexuais aca-
camente. De acordo com a Articulação
tam essa formulação e consideram que
bam marginalizados. Diante disso,
Nacional de Transgêneros (Antra), cerca
os homens e mulheres transexuais tam-
onde encontram afeto? Atravessan-
de 90% dos transexuais e travestis se
bém podem adotar uma série de orien-
do dia após dia quase sempre sem
prostituem. Não existe nenhum outro
tações sexuais alternativas, assim como
apoio de parentes, amigos ou institui-
grupo que esteja tão entranhado nesse
os cisexuais. Mas o afeto que os jovens
ções, os transexuais têm dificuldade
meio. Dentre os poucos que conseguem
cis encontram em suas casas, escolas e
“SEMPRE ACHEI QUE ERA UMA MENINA E QUE TINHA ALGO ERRADO COMIGO. SEMPRE ACHAVA QUE UMA FADA IA ME TRANSFORMAR”
outras trans. Desde o início, contou com auxílio de um diretor do Hospital das Clínicas e de um grupo de apoio durante sua transformação e preparação para cirurgia. O atendimento em grupo foi essencial para a sua decisão. Ao contrário das histórias compartilhadas pela maior parte da comunidade transexual, Nanci teve máximo apoio de sua mãe. Quando jovem, antes de passar pela transgenitalização, Nanci se sentia pressionada a contar para os homens que é transexual. Tinha receio em relação ao sexo, medo do preconceito. “Eu saía com homens, então o cara gostava de mim e ficava querendo sair várias vezes, aí eu pensava: ai meu Deus, vou cozinhar esse cara até quando?”, descreve. Mas as mulheres transexuais também têm vontade de encontrar um compa-
Manifestação contra o preconceito durante Parada LGBT | FOTO NADJINE HOCHLEITNER
nheiro, uma pessoa para cuidar e ser cuidada. Têm ânsia de encontrar uma
trabalho, com carinho, amor, respeito e
nome, pelo seu gênero. Você não pode
pessoa que entenda e ofereça o apoio
cumplicidade, raramente é experimen-
usar o banheiro para fazer xixi. Então
que não tiveram em algum momento
tado por uma pessoa trans.
muitas abandonam os estudos.”
de sua vida. Nem sempre as mulheres
Nanci, de 45 anos, a primeira mulher
Além das dificuldades que os tran-
têm essa sorte, mas não é por isso que
trans a passar pela transgenitaliação no
sexuais enfrentam para ingressar em
deixam de buscar o afeto em outras coi-
Hospital das Clínicas, tem opinião polê-
escolas, utilizarem o nome social e con-
sas, como Nanci, que está solteira, mas
mica sobre o assunto: “Vejo essas pes-
viverem com os cisexuais no início de
se sente feliz e satisfeita exercendo a
soas que se prostituem falando que é a
seus processos de transformação, esse
profissão que gosta e cuidando de sua
única opção, mas essa é a opção mais
período também pode ser caracterizado
mãe. Alcançou a casa própria, seu carro
fácil. É questão de você se sentir bem
pela falta de aceitação de si mesmo. Mui-
e busca conquistar seus sonhos a cada
fazendo, e eu nunca fui para esse lado”.
tas vezes, sem entender os seus verda-
dia que passa.
“Quando eu me assumi como mulher
deiros sentimentos e corpos, com medo
Ika Carneiro, de 21 anos, está em um
trans para os meus pais, meu pai me
da reação dos familiares, os jovens se
relacionamento com um homem transe-
disse: se você quiser ser mulher, vai ser
afastam de tudo.
xual que, apesar de não ser um namoro
mulher fora de casa. Dentro da minha
Segundo Nanci, o processo de ganhar
sério, traz serenidade a ela. “Vivemos
casa você não vai ser mulher”, desabafa
confiança é árduo. “Sempre me identifi-
em um mundo onde o afeto é negado
Ariel Nolasco, de 21 anos. “Então o único
quei como menina, e é muito complica-
para nós. Eu me relaciono com pesso-
jeito de eu estar dentro da minha casa
do porque na cabeça de uma criança ela
as trans porque nós conseguimos nos
era vestida de menino, vivendo uma
não sabe o que está acontecendo. Então
entender. Mas é lógico que a solidão que
vida que não era a minha. Eu precisei me
sempre achei que era uma menina e que
nós passamos quando percebemos que
submeter a isso para não ir para a rua.”
tinha algo errado comigo. Sempre acha-
estamos fora da zona de afeto de qual-
Ariel ouvia de seus pais que tinha que
va que uma fada ia me transformar, mas
quer pessoa é difícil, mas eu estou feliz
ser homem de verdade. “Começa pela
o tempo foi passando e nós descobrimos
com a pessoa que está comigo porque
exclusão escolar, sabe? Na escola você
que a fada não vem.”
nós conseguimos nos entender e cons-
não é bem-vinda, não te tratam pelo seu
Nanci teve sorte em comparação a
truir afetos muito mais legítimos.”
32/33 Família comemora em Brasília o Dia Nacional da Adoção | FOTO ANTONIO CRUZ/AGÊNCIA BRASIL
UM NOVO COMEÇO Crianças e adolescentes adotados ganham uma segunda oportunidade de formar família e reestruturar suas vidas ao serem acolhidos em um lar definitivo
Mas sua história, que parecia destina-
respectivamente, até o abrigo para que
da a um final infeliz, mudou em dezem-
conhecessem Eduardo. Era para ser ape-
bro de 2014, quando a enfermeira Már-
nas um primeiro contato entre todos eles,
cia Vieira, de 52 anos, foi até o abrigo
ainda não havia uma ideia concreta sobre
Cantinho da Meimei, em São Bernardo
a adoção, mas a conexão foi imediata.
do Campo, para doar pertences de seus
Márcia lembra que, ao final do encontro,
filhos mais velhos. Então ela soube da
perguntaram a Cyro como ele se sentia.
»»» Eduardo estava classificado como
existência de Eduardo e reacendeu o anti-
“Ah, é meu irmão, né? ”, teria dito, segun-
inadotável. Em um abrigo para crian-
go sonho de adotar uma criança. “Já era
do relato da mãe, com lágrimas nos olhos.
ças de até quatro anos de idade, o meni-
uma ideia que eu tinha quando eu estava
O irmão mais velho se recorda do pri-
no era o único com 13. Além da idade, o
casada, que quando os meninos estives-
meiro momento com o caçula. “Quando
fato de ser negro agravava a sua situa-
sem mais velhos, eu adotaria uma crian-
a gente se conheceu, eu vi que ele gostava
ção. O tempo estava contra ele: a cada
ça”, lembra.
de videogame e futebol, então a gente já
ISABELLA SARAFYAN LAURA STABILE MARINA CASSIOLATO RENATA MENDES
dia que passava, diminuía a oportunidade de encontrar uma família.
Uma semana depois, levou seus
começou a conversar”, conta. Apesar de
filhos Cyro e Beatriz, de 25 e 21 anos,
tímido, Eduardo logo abraçou Cyro e deu
ATUALMENTE, CERCA DE 36 MIL CRIANÇAS BRASILEIRAS VIVEM EM ABRIGOS, SEGUNDO O CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ)
risada. “Ele sempre foi muito quieto, mas
Portas
eu sempre tive afinidade com criança,
No abrigo, Eduardo dormia com mais
então sempre tentei deixar tudo o mais
20 bebês e crianças de até 4 anos. Ao
leve possível. Queria deixar bem claro
chegar à nova casa e perceber que teria
que, para mim, ele sempre vai ser um
um quarto só para ele, a primeira coisa
irmão. É como se ele tivesse nascido da
que fez foi entrar e fechar a porta. Em
minha mãe”, conta o mais velho.
13 anos, era a primeira vez que pode-
A partir de então, Eduardo foi se reen-
ria fazer isso, era a primeira vez que ele
contrando com a esperança. O processo
tinha sua própria porta. Com isso, a pri-
da mudança do antigo para o novo lar foi
vacidade foi sua primeira descoberta.
rápido, mas gradual. Como era matricu-
Tudo o que imaginamos ser tão sim-
lado em uma escola em São Bernardo do
ples, tão corriqueiro e tão parte do coti-
Campo, na Grande São Paulo, o menino
diano, para ele era uma surpresa. O garo-
passou a conviver com a família apenas
to também não sabia ao certo o que era
aos finais de semana.
um elevador, desconhecia inúmeros
Assim que sua guarda provisória foi
tipos de comida e jamais pisara em um
oficializada, em abril de 2015, Eduar-
cinema. Outras portas se abriram: Edu-
do ganhou uma nova família e a chan-
ardo também aprendeu a usar o compu-
ce de construir um futuro melhor. Caso
tador e ganhou seu primeiro celular.
permanecesse no abrigo, ele teria que
Todos os dias ele vem descobrindo o
ir embora ao completar 18 anos ou, na
mundo e a si mesmo. Está conquistan-
melhor das hipóteses, conseguiria um
do, a cada dia, independência e confian-
emprego dentro do próprio lar. Agora,
ça próprias. Ele vai e volta sozinho da
em sua nova escola, na qual tem uma
escola. “Ele vai à padaria comprar as coi-
educação de qualidade, Eduardo tem
sas. Antes, não sabia nem como pedir,
muito mais oportunidades pela frente.
agora ele já sabe, a gente ensinou”, rela-
A falta de esperança e de estímulo
A criança abandonada pode ter muitas dificuldades, mas isso muda facilmente com uma adoção, que a faz se sentir confiante em seu novo lar e perceber que aquelas pessoas da nova família querem estar com ela. Denise Maia, psicóloga especialista em crianças
ta a mãe.
também influenciava na vida escolar.
Com o passar do tempo, Eduardo
O menino, enquanto cursava a sexta
começou a entender que aquela era, de
série do Ensino Fundamental público,
fato, sua própria casa, sua própria vida
mal sabia escrever e apresentava mui-
e sua própria família. O que antes ele
tas dificuldades em matemática. “Quan-
conhecia como coletivo, agora é singu-
do chegou na nossa casa, ele já não ligava
lar. Passou do abandono para ser queri-
para a escola e não fazia mais os deveres,
do. E, além das descobertas materiais,
porque não tinha ninguém que olhasse”,
hoje ele conhece também outros senti-
conta Márcia.
mentos. Eduardo se apropriou do con-
Hoje, depois de sete meses, com a
forto, da liberdade, do pertencimento e
ajuda de um professor particular e de
da afinidade, sensações que ele nunca
uma psicóloga, suas notas vêm evoluin-
havia experimentado com muita pro-
do, assim como ele. E agora já sonha:
fundidade.
Eduardo quer ser engenheiro. Junto com Márcia, Cyro e Beatriz, o mais novo dos
Lembranças
Vieira está completando algumas lacu-
Apesar do presente feliz, Eduardo car-
nas que, até então, não conseguia pre-
rega consigo o fardo do passado. Com
encher.
um pai alcoólatra e agressivo, ele e seu irmão autista foram
34/35
TUDO PARECIA SER MUITO ASSUSTADOR PARA UMA CRIANÇA QUE, DURANTE TODA A SUA VIDA, VIRA AMIGOS SENDO DEVOLVIDOS AO ABRIGO APÓS ADOÇÕES FRACASSADAS deixados também pela mãe. Sua avó, que era a única capaz de
abandono. Entretanto, esse trauma
ajudá-lo, estava sempre doente, até que
pode ser diminuído quando a criança é
o levou ao abrigo.
adotada por uma família afetiva, que a
Enquanto conviviam com os pais bio-
entenda e a acolha. Normalmente, essas
lógicos, ele e seu irmão eram alvo de
são crianças com necessidade de acom-
violência física pelo próprio pai. O irmão
panhamento psicológico, assim como
era quem mais apanhava, mas Eduar-
suas novas famílias, que precisam de
do também sofria, pois estava lá para
orientação durante o processo de adap-
ver tudo. Hoje, com os mesmos olhos
tação. Os pais adotivos precisam estar
que enxergavam a violência, o menino
disponíveis e atentos à criança.
tímido de São Bernardo consegue vis-
Quando adotada, a criança passa a
lumbrar uma família completa que pro-
perceber e aceitar que apesar do fato de
porciona carinho e afeto.
ter sido rejeitada pelos pais biológicos,
Quando surgiu a possibilidade de ser
teve pais “de coração”, que a escolhe-
adotado, houve muita pressão em torno
ram. Esse é o primeiro passo em dire-
dele. Márcia conta que no próprio abrigo
ção à reparação. O trabalho psicológico
diziam: “Esta é sua última chance, não
e uma escola adequada também são fun-
dê problema, não faça nada de errado”.
damentais para a superação do trauma.
Tudo parecia, então, ser muito assusta-
Por outro lado, a psicóloga esclare-
dor para uma criança que, durante toda
ce que às vezes, mesmo em um abrigo,
a sua vida, vira amigos sendo devolvi-
alguma cuidadora acaba desenvolvendo
dos ao abrigo após adoções fracassadas.
um laço afetivo especial com uma crian-
Algo realmente pavoroso.
ça. Assim ela se sente olhada, escutada, atendida e cuidada, e é isso que a ajuda a se fortalecer para ser capaz de lidar com
“Ele sabe que teve um passado, mas a gente está vivendo assim: daqui para a frente” Márcia Vieira, mãe adotiva de Eduardo
Afeto
os vínculos futuros, e principalmente
A psicóloga Denise Maia, especialis-
com essa rejeição inicial.
ta em crianças, afirma que hoje em dia
Sem se sentir acolhida, a criança pode
percebe-se cada vez mais a importân-
ter dificuldades na escola, no estabele-
cia do vínculo afetivo, seja por parte da
cimento de vínculos e na autoestima.
figura dos pais ou dos cuidadores em
Entretanto, Denise afirma que a criança
lares adotivos. É essencial que a crian-
possui mecanismos para lapidar todo o
ça se sinta acolhida desde a barriga da
sofrimento pelo qual passou e lidar com
mãe, uma vez que a construção dos
o trauma do abandono. Apesar de um
laços afetivos acontece desde o primei-
modelo e da presença da família serem
ro momento da criança durante a vida
fundamentais, a criança não terá neces-
uterina. Entretanto, essa é uma situa-
sariamente uma personalidade igual à
ção idealizada. A realidade é que, atu-
dos pais biológicos.
almente, cerca de 36 mil crianças bra-
Em relação à situação dos lares ado-
sileiras vivem em abrigos, segundo o
tivos, o ideal, dentro do possível, é que
Conselho Nacional de Justiça (CNJ), sem
se possa orientar melhor os cuidado-
contar os incontáveis casos de crianças
res para que sejam bem formados, diz
vítimas de violência doméstica.
a especialista, e incentivar que olhem
Denise explica que uma criança ado-
para cada criança individualmente. Isso
tada já traz dentro de si um sentimen-
porque elas costumam ser muito sen-
to de rejeição, de abandono, indepen-
síveis e empáticas, uma vez que tra-
dentemente da situação que levou ao
zem uma ferida psicológica. Em uma
situação de convívio com várias crianças em abrigos, podem ser cuidadoras umas das outras, pois se encontram em posição de semelhança.
Caminho Cada dia é um passo novo na adaptação à nova vida. A mãe conta que Eduardo chegou bastante limitado, era tímido, retraído e carregava muitos medos. Com afeto, toda a família o ajuda a reconstruir e reestabelecer suas relações pessoais. “Ele sabe que teve um passado, mas a gente está vivendo assim: daqui para frente”, diz Márcia. O contato com os irmãos é mais natural, porque, até então, Eduardo considerava todas as crianças do abrigo como sendo seus irmãos. Já com a mãe, a construção da intimidade é mais vagarosa. “A gente está se conhecendo, sem tentar forçar nada”, conclui a mãe. Para o futuro, a expectativa de Márcia é que Eduardo supere os traumas do passado e seja feliz, tenha sua própria família. A mãe quer garantir ao filho mais oportunidades para poder sonhar. As pessoas que convivem com a família costumam dizer que Eduardo deveria ser grato a eles, mas Márcia garante que o filho dá muito mais do que recebe. “A minha palavra para ele é gratidão”, confessa, emocionada. Ela viu a experiência da adoção como uma oportunidade para melhorar como pessoa, deixando de lado a possibilidade de ter uma vida superficial. Eduardo chegou à casa nova com um saco de lixo contendo algumas peças de roupa. Tudo o que ele tinha de material cabia ali. Com o tempo, esse saco fica cada vez mais cheio, não só de pertences, mas de novos planos para o futuro. Existem muitos Eduardos no Brasil. O dessa história reencontrou a
No alto, Márcia Vieira, mãe de Eduardo; acima, fotos do menino e de seus novos irmãos | FOTOS MARINA CASSIOLATO
esperança. “Parece que já era para ser”, diz o irmão mais velho.
36/37 A pequena Louise Brown foi o primeiro bebê de proveta do mundo, nascida na Inglaterra em 1978 | FOTO REPRODUÇÃO DE ARQUIVO
O DIREITO DE CONHECER O PAI Crianças inseminadas artificialmente lutam para mudar lei que protege o anonimato de doadores de esperma
presença masculina pode vir de um irmão mais velho, de um tio, de padrinhos ou até de um avô. “Nós somos seres que temos aspectos masculinos e femininos. Precisamos desenvolver ambos. A criança precisa dessa figura masculina para ter o outro lado do entendimento.” No caso de o filho não ter a presença de uma figura paterna em sua casa diariamente, a presença constante da família é ainda mais importante para suprir a ausência. Isso a ajudará a saber separar
Roberta à mesa. Sentam-se. Agora a
os sexos e entender as diferenças entre
família está toda reunida: a filha e suas
homem e mulher. Afinal, cada um tem
duas mães. Laura sempre viveu em um
características e diferenças que os sepa-
ambiente aconchegante onde teve todo
ram e que têm que ser reconhecidas para
»»»Laura está em seu quarto colori-
o amor que qualquer criança deseja de
aumentar sua visão de mundo.
do sentada no chão, ao lado da cama.
seus pais. Inseminada artificialmen-
Dalberto também defende que a famí-
Em sua mão direita está um carrinho.
te, nunca se queixou da falta de um pai
lia seja aberta com o filho sobre seu nas-
Alguns outros brinquedos estão joga-
conhecido.
cimento e sobre o pai. A conversa fran-
JÚLIA FERESIN THIAGO MORTEIRA THAISA GIANNAKOPOULOS
dos no chão, fora do armário. Patrícia
Para o psicólogo Carlos Dalber-
ca e honesta trará benefícios a ambos
Menezes, a mãe, observa-a da porta do
to, é importante que a criança convi-
os lados, aumentando a confiança entre
quarto. É hora do almoço.
va com uma figura masculina, mas ela
eles. “A criança tem que saber como ela
não necessariamente será o pai. Essa
veio ao mundo. Os pais muitas vezes têm
Quando chegam à sala, encontram
O CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA DÁ RESPALDO AOS MÉDICOS E DOADORES E É A FAVOR DO SIGILO DA IDENTIDADE
medo, uma insegurança de fazer isso.
utilizado e que houver gestação. Tam-
Se a criança tiver sido gerada por duas
bém querem garantir benefícios aos
pessoas, tem todo o direito de conhe-
doadores, como o não direito dos filhos
cer o pai. Caso contrário, se for por um
à herança depois da sua morte.
banco de esperma, os pais devem sentar com a criança e explicar a sua histó-
Questão Jurídica
ria”, completa.
O Conselho Federal de Medicina dá res-
Nem todas as crianças têm o desejo de
paldo aos médicos e aos doadores e é
correr atrás do pai. Laura é fruto de uma
a favor do sigilo da identidade. Na sua
fertilização in vitro e nunca quis conhe-
resolução nº 2.013/13, dispõe que “obri-
cer o progenitor. Mesmo com idade sufi-
gatoriamente será mantido o sigilo sobre
ciente para saber que a sua família pode não ser considerada tradicional, até hoje
Patrícia e a filha, Laura | FOTO ACERVO PESSOAL
a identidade dos doadores de gametas e embriões, bem como dos receptores.
nunca tratou do assunto ou se sentiu
Em situações especiais, as informações
prejudicada por isso.
sobre doadores, por motivação médica,
Já o jovem Fábio, que pediu para não
podem ser fornecidas exclusivamente
revelar seu sobrenome, é filho de mãe
para médicos, resguardando-se a iden-
solteira. Desde pequeno teve curio-
tidade civil do doador”.
sidade sobre a identidade de seu pai.
Mas a Constituição brasileira não é
“Quando fui tirar a minha identidade
clara quanto ao tema. Por um lado, há o
foi a primeira vez que senti um vazio na minha história”, conta. Em sua carteira de RG consta apenas o nome da sua mãe no espaço referente à sua filiação. Fábio nasceu no meio da década de 1990, quando milhares de mulheres buscaram a gravidez por meio de espermas de doa-
“Quando fui tirar minha identidade foi a primeira vez que senti um vazio na minha história” Fábio, filho de mãe solteira
direito do doador de esperma à sua privacidade, direito de permanecer anônimo. Por outro lado, há o direito do filho à personalidade, ou seja, a conhecer o pai biológico. O juiz Vitor Moreira Lima afirma que os direitos têm uma escala de importância. O direito a saber da identidade
dores. Ele conta que a mãe utilizou um doa-
do pai, na opinião dele, prevalece. “É
dor de uma clínica de fertilização. Tinha
um caso que divide a jurisprudência. Eu
informações só sobre altura, peso, cor
entendo que o direito à paternidade é
dos olhos, cabelo, tom de pele e idade.
um dos direitos à personalidade, sendo
A falta de dados não foi um empeci-
irrenunciável e não podendo ser nega-
lho para a escolha. “Ela queria alguém
do por terceiros”, relata.
que se parecesse com ela e com a famí-
Há alguns meses Fábio entrou na Jus-
lia, acho que ficaria muito chateada se
o anonimato já foi abolido quando
tiça contra a clínica de fertilização onde
eu tivesse puxado o doador e não fosse
os filhos maiores de 18 anos desejam
a sua mãe realizou o procedimento. O
parecido com ela”, relata Fábio.
conhecer a identidade dos doadores.
processo ainda está em andamento e provavelmente demorará anos para ser
Ele mora sozinho desde os 17 anos,
Fábio encontrou o apoio em ONGs e
quando saiu de Campinas, interior de São
grupos de apoio aos filhos que buscam
Paulo, e veio para a capital paulista fazer
essas informações. Mais do que ape-
Enquanto isso, ele se uniu a grupos
faculdade de arquitetura e buscar o pai.
nas nomes e dados, essas instituições
que buscam medidas para regulamen-
Há mais de um ano começou a procu-
buscam uma mudança na Constitui-
tar e atualizar esse debate. “Não preci-
rar na internet formas de tentar desco-
ção e uma alteração no sistema de doa-
sei de um pai para me criar. Não vai ser
brir a identidade do doador, que, no Bra-
ção de esperma no país. Querem proi-
agora que vou precisar de um. Só quero
sil, é uma informação sigilosa. No Reino
bir o anonimato do doador e que ele seja
saber da existência dele e que ele saiba
Unido, na Noruega e na Alemanha,
notificado cada vez que seu esperma seja
da minha”, conclui.
julgado em definitivo.
38/39
AMOR SEM LIMITES Afeto supera preconceitos e dificuldades diárias nas relações dos deficientes físicos
FERNANDO TURRI MARCO CARUSO MURILLO PAROLINI THIAGO VIDAL YURI BONET
Logo no primeiro encontro, André da
naquele dia e sabiam que, como diversas
Silva levou um pequeno vaso de azaléia
vezes já acontecera, estavam expostos a
e uma caixa de bombons em formato
situações chatas e embaraçosas. O pro-
de coração a Ermycleide Alcantara, ou
blema não era só a incerteza da chuva
apenas Cleide, como é chamada pelos
ou o atraso do ônibus parado no meio
conhecidos. As flores simbolizavam a
do trânsito.
Um salto.
paixão, e o chocolate adoçava o encon-
Um baque aos 17 anos. Ou aos 19.
tro romântico.
– Você é Deus?
“Nossa, você é uma guerreira”, diz o desconhecido.
Cleide e André combinaram de se
“Nossa, que corajosa”, afirma o outro.
encontrar em um restaurante de Uber-
Cleide e André são deficientes físicos,
»»»É difícil acreditar que pode acon-
lândia, pequena cidade situada no Tri-
namoram há mais de quatro anos, noi-
tecer, assim, de repente. De uma
ângulo Mineiro, onde ele mora. Entra-
varam há um, e pretendem se casar em
hora para outra, tudo muda: os pla-
ram no local para o encontro da mesma
2017. Ela tem os pés tortos congênitos,
nos na faculdade, a carreira, a via-
forma que os outros casais. “Meu bem,
uma anomalia em que o bebê nasce com
gem marcada no final do ano. André
as pessoas estão olhando”, avisa Cleide.
um ou os dois pés torcidos. Ele desen-
e Ermycleide tinham 28 anos. Eliane
Ela acena e sorri.
volveu retinose pigmentar, doença
tinha 49. Adelino, 56. Apaixonar-se é repentino, ninguém espera.
Eliane e Adelino Ozores esperavam o
degenerativa e sem cura que afeta a
ônibus. Optaram por não pegar o carro
capacidade da retina em transformar a
eles estavam todos ali, com a água na altura do pescoço. Ou seja, uma profundidade boa. Quando eu mergulhei, tinha um banco de areia. Como se tivesse uma plaquinha com meu nome lá e o banco de areia me esperando. Foi quando eu tive uma lesão na cervical. E parou tudo”, relembra Adelino. Foi assim que seus movimentos corporais foram prejudicados. Tornou-se tetraplégico. Teve que se adaptar à nova realidade, que já o acompanha há 40 anos. Além da primeira impressão Engana-se quem pensa que o número
Adelino Ozores preside a instituição Entre Rodas & Batons, em que Eliane é diretora | FOTO ACERVO PESSOAL
de deficientes físicos na cidade de São Paulo é pequeno. Cerca de 28,6% da população do município têm algum tipo de deficiência visual, auditiva ou motora. São mais de 3,4 milhões de pessoas, de acordo com o Censo de 2010. No Bra-
luz visível em impulso nervoso ao cére-
sil, esse número chega a 45,6 milhões, o
bro. Um baque aos 17 anos: a doença se
que corresponde a 23,9% da população.
agravou e André teve uma perda quase
Um dos grandes problemas que esta
total da visão.
parcela enfrenta na hora de se relacionar é que tais características a rotu-
praia de Itararé, em São Vicente, o rumo
“Ou a gente muda essa maneira de olhar o diferente, ou realmente a gente vai caminhar para um abismo, onde cada um segue o seu caminho e as pessoas não se relacionam, não se olham, não se cuidam”
de sua vida mudou.
Eliane Ozores, psicóloga
casada com Adelino.
A deficiência física de Cleide dificultou não só a sua locomoção, mas trouxe diversas outras consequências, frutos do preconceito. Para os médicos, ela não andaria. Até os quatro anos de idade, Cleide apoiava-se apenas em seus joelhos. “Você é Deus?”, perguntou Cleide, quando criança, ao médico, conforme conta sua mãe lembrando-se da situação no consultório. Aos 19 anos, Adelino servia ao exército como muitos garotos de sua idade. Ele costumava viajar ao litoral, onde seu grupamento se reunia para os treinamentos. Em uma dessas viagens para a
lam em relação à sociedade e acabam sobressaindo ao primeiro olhar. Assim, as pessoas são privadas de se conhecerem de uma forma mais profunda, completa e humana. “As pessoas acabam explorando a imagem do coitadinho, aquele que sofre, que está à margem da sociedade. Ou então vão para o outro extremo, transformando essa pessoa em super-herói, como se todos os dias ela superasse um obstáculo, um desafio”, analisa Eliane Ozores, psicóloga especializada no acompanhamento de deficientes com lesão medular e, inclusive,
Um salto. Após seguir seus colegas
Antes de se mudar para São Paulo e
de exército em uma atividade na beira
ficar noiva de André, Cleide morava na
do mar, preparou-se para acompanhá-
Paraíba e teve outros relacionamentos
-los. “Fui mergulhar de uma pedra. E
que não deram certo. Um dos motivos?
Preconceito. A pressão veio, não apenas da família do garoto, mas também da sua própria. “No meu primeiro namoro nós sofremos muito, porque ele era negro, e a minha família era meio resistente. A dele também, mas porque eu
40/41
era deficiente”, conta Cleide, exemplificando que o preconceito pode estar em qualquer lugar. A passagem só de ida de Cleide para o São Paulo era de sua irmã, que estava indecisa. “Meia noite, a viagem era às seis horas da manhã. Eu joguei as minhas coisas em uma mala e falei: ‘Eu vou no seu lugar’. Vim sozinha”, relembra ela. Em uma famosa casa noturna da cidade, Cleide conversava com um rapaz quando, momentos depois, ele percebeu a sua deficiência. Mesmo interessado na conversa, ficou bravo e a deixou de lado. “Eu acostumo, mas não aceito”, desabafa Cleide, que, mesmo enfrentando situações como essas, não deixa de sair para se divertir. A primeira vez que falou com André foi por um bate-papo online da Renovação Carismática Católica, movimento da Igreja Católica. Apesar da distância entre Uberlândia e São Paulo, as horas de viagem nunca foram um problema. “Eu percebi que ela era uma mulher muito bela”, conta André, lembrando da primeira vez que se encontraram
André, cego, e Cleide, deficiente motora, noivos há um ano | FOTO ACERVO PESSOAL
na estação Santa Cruz do metrô de São Paulo e se dirigiram a um restaurante próximo. A conversa estava tão boa, diz André rindo, que eles foram os últimos
Aceitação da família
casa eu não quero. É muito para mim’.
a deixar o local, já de noite.
O relacionamento de deficientes físicos,
Então, a gente percebe que isso também
André está cursando o último ano da
tanto entre si, como com as pessoas que
é uma relutância muito grande da famí-
faculdade de Educação Física e pretende
não possuem deficiência, acaba tornan-
lia”, conta Eliane.
seguir na área acadêmica. Assim que se
do-se um desafio ainda maior quando
Cerca de 35%, dentre as 5,9 milhões
formar, sonha se casar com Cleide, que já
a família tem dificuldade em aceitá-lo.
de mulheres da cidade de São Paulo,
é formada em Música. Para ela, ao mora-
Eliane conta o caso de uma paciente que
possuem algum tipo de deficiência.
rem juntos, os dois terão necessidades
adquiriu paraplegia ao levar um tiro e
Enquanto nos homens este número
distintas para serem independentes. Ao
que gostava de outro rapaz cadeirante.
cai para aproximadamente 26% dos 5,3
mesmo tempo, um pode ajudar no que o
A mãe não aprovava. “Ela dizia: ‘Eu não
milhões, de acordo com o Censo de 2010.
outro tem dificuldade para fazer.
quero. Duas cadeiras de rodas na minha
Além
de
mais
numerosas
na
A DEFICIÊNCIA, PRINCIPALMENTE A LESÃO MEDULAR, É EXTREMAMENTE MAL EDUCADA, PORQUE ELA ENTRA NA SUA VIDA SEM PEDIR LICENÇA E NÃO SAI NUNCA MAIS população com deficiência, elas são
gestão. O intuito da organização é lutar
uma colega de trabalho, uma compa-
também mais generosas, segundo Elia-
não apenas pela igualdade social para
nheira para o resto da vida. “Eu falo que
ne. A psicóloga diz que é mais comum
deficientes, mas também pela igualdade
ela me resgatou da solteirice. Eu estava
a mulher cuidar de seu companhei-
de gênero das mulheres. Rodas repre-
solteiro havia 56 anos”, brinca.
ro quando este adquire deficiência do
sentam o movimento, Batom, a femini-
André se sente completo. Compar-
que o homem cuidar de sua parceira
lidade. Paralelamente, ele realiza proje-
tilha dos mesmos interesses com sua
na mesma situação. Normalmente,
tos na prefeitura da cidade de São Paulo
cara metade, sua alma gêmea. Ainda
eles acabam deixando a mulher com a
ligados à acessibilidade.
com pouco tempo para ficarem jun-
família dela. O mesmo serve para defi-
As dificuldades que sempre atrapa-
tos em dias de trabalho, ele mostra o
cientes congênitos, que nascem com a
lharam a rotina de Adelino parecem,
quão recompensador é estar com a pes-
limitação física: menos homens se rela-
atualmente, não ser mais tão incômo-
soa que ama. “A gente tem as mesmas
cionam com mulheres deficientes do
das. Encontrou em Eliane uma amiga,
ideias, pensamos parecido. Queremos
que o contrário.
buscar um mundo melhor, queremos
“Se a gente pensar no universo da
buscar coisas melhores. E é superagra-
pessoa com deficiência, você acaba pre-
dável, superamável estar junto com a
cisando suprir necessidades e cuidados
Eliane”, relata.
do dia a dia. Os homens têm um pouco
Ainda assim, os deficientes físicos não
mais dessa dificuldade. E isso também
são os que mais têm dificuldades de se
está diretamente ligado à nossa cultu-
relacionar. “A gente vê muito mais cegos
ra. Nós, mulheres, crescemos brincan-
que se casam com pessoas videntes e o
do com bonecas, a gente aprende a dar
cadeirante que se casa com uma pes-
banho, a alimentar, a trocar fralda. E os
soa que não tem uma deficiência física.
meninos, não”, avalia a psicóloga.
Esses seriam os casais mais comuns”,
Porém, Eliane acha que devemos
afirma Eliane. O deficiente que mais
tomar cuidado ao julgar uma pessoa
sofre com relacionamentos, segundo
que não se vê em condições de cuidar
a psicóloga, é o intelectual. “A família,
do companheiro que adquire uma defi-
que muitas vezes superprotege, não
ciência sem antes saber o que a motivou
quer que ele se relacione, que ele tenha
a fazer essa escolha. “Antes de a gente
uma atividade, uma vida sexual saudá-
afirmar que alguém foi desumano, é
vel”, explica a psicóloga. Dentre os deficientes físicos, os sur-
preciso entender quais são os processos emocionais e psíquicos daquela pes-
tituto Entre Rodas & Batom, onde Ade-
“No meu primeiro namoro nós sofremos muito, porque ele era negro, e a minha família era meio resistente. A dele também, mas porque eu era deficiente”
lino é presidente e Eliane é diretora de
Ermycleide Alcantara
soa para tomar uma decisão”, ressalva. Entre Rodas & Amor O relacionamento de Eliane com seu marido Adelino exemplifica a sua percepção: uma mulher sem deficiência com um companheiro tetraplégico. Eles se conheceram pela internet, ele por ser um dos primeiros militantes na luta pelos direitos dos deficientes e ela pelo seu trabalho como psicóloga na área. Hoje, eles trabalham juntos no Ins-
dos, ou deficientes auditivos, são os que mais frequentemente acabam se relacionando com um parceiro da mesma comunidade. “Eles se fecham muito em si, por conta até de uma limitação na comunicação”, conta. Eliane acredita que os avanços que têm sido desenvolvidos ultimamente, principalmente os tecnológicos, são importantes. Porém, a cultura das pessoas ainda precisa mudar. “Ou a gente muda essa maneira de olhar o diferente, ou realmente a gente vai caminhar para um abismo, onde cada um segue o seu caminho e as pessoas não se relacionam, não se olham, não se cuidam.”
Foto: Divulgação
42/43
p&r
ENTREVISTA: MIRIAN GOLDENBERG ANTROPÓLOGA E PROFESSORA DA UFRJ
ANTROPÓLOGA QUE ESTUDA O SEXO DIZ QUE A FIDELIDADE É O MAIOR VALOR EM UM RELACIONAMENTO, AINDA QUE MUITOS TRAIAM
O DISCURSO SOBRE O SEXO NÃO MUDOU »»»A antropóloga Mirian Golden-
A sra. estuda temas como ciúmes, sexualidade, traição, novas famílias, infidelidade, todos temas delicados. Por que eles interessam?
berg nasceu na cidade de Santos, em
Em quase todos os meus textos, ana-
São Paulo. Atualmente é professora do
liso homens e mulheres que experi-
Departamento de Antropologia Cultu-
mentaram situações de transgressão e
ral e do Programa de Pós Graduação em
de desvio. Pesquisei e continuo pesqui-
Sociologia e Antropologia do Instituto de
sando indivíduos que são estigmatizados
Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, no
por serem considerados diferentes, que
Rio de Janeiro. Mirian pesquisa e escreve
sofrem por serem invisíveis, que vivem
sobre temas como fidelidade, sexualida-
relações amorosas e sexuais que fogem
de e envelhecimento. Colunista da Folha
do modelo tradicional, que estão fora do
de S. Paulo há mais de cinco anos ela já
padrão de corpo valorizado na cultura
escreveu vinte livros e diversos artigos
brasileira.
OTAVIO CINTRA ULY CAMPOS
sobre essas temáticas.
Desde “A Outra” até a pesquisa atual
Nesta entrevista ela fala sobre a rela-
sobre “A Bela Velhice”, as diferenças
ção dos brasileiros com o envelhecimen-
entre homens e mulheres e os compor-
to, das diferenças entre a traição mascu-
tamentos considerados desviantes esti-
lina e feminina e da ideia do corpo ser um
veram no centro das minhas reflexões.
capital na nossa cultura.
Analisei a trajetória de Leila Diniz, um
mito de mulher transgressora, estudei amantes de homens casados, pesquisei as militantes políticas, discuti a construção social do corpo e os padrões culturais de beleza e de juventude e, atualmente, estou pesquisando as experiências e representações
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sobre a velhice.
Os motivos para a infidelidade diferem entre homens e mulheres. Sua pesquisa mostra que as mulheres traem por falta de amor e por vingança, enquanto os homens afirmam que trair é da natureza masculina. Qual a razão dessa diferença? Ao analisar os discursos de amantes de homens casados e de homens e de mulheres que foram infiéis, constatei que a fidelidade é o principal valor e que, mesmo sendo infiéis, eles desejam
“AO ANALISAR OS DISCURSOS DE AMANTES DE HOMENS CASADOS E DE HOMENS E DE MULHERES QUE FORAM INFIÉIS, CONSTATEI QUE A FIDELIDADE É O PRINCIPAL VALOR E QUE, MESMO SENDO INFIÉIS, ELES DESEJAM QUE O PARCEIRO SEJA (OU PAREÇA SER) FIEL”
que o parceiro seja (ou pareça ser) fiel. Em “A Outra” já havia apontado que
sido infiel, preferiam acreditar que ele
a fidelidade era o principal valor das
sempre foi e sempre será fiel. Alguns dis-
amantes pesquisadas. Todas acredita-
seram que “preferiam fazer vista gros-
vam que seus amantes eram fiéis. Todas
sa”, que não queriam descobrir a infide-
disseram que eram fiéis aos amantes. A
lidade de seus parceiros.
infidelidade foi descrita como uma pato-
Chamei de “fidelidade paradoxal”
logia ou insuficiência da relação amoro-
ou de “paradoxo da fidelidade” esse
sa. Elas afirmaram que a fidelidade do
tipo de comportamento: uma espécie
amante era um valor tão fundamental
de “cegueira voluntária”, consciente e
que sem ela a relação não existiria. Elas
deliberada. Constatei que os pesquisa-
disseram que são as “únicas”, especial-
dos valorizam ainda mais a fidelidade do
mente no domínio sexual. Para elas, a
parceiro quando eles mesmos são efeti-
verdadeira Outra seria a esposa traída.
vamente infiéis. Pode-se pensar que é
Elas, as amantes, seriam a número um,
justamente porque os indivíduos são ou
a relação por escolha, por amor, não por
desejam ser infiéis que a fidelidade é um
obrigações. Foi possível perceber que a
valor tão importante.
categoria de acusação a Outra é relati-
Outro dado interessante é a justifi-
va, depende de quem acusa e de quem
cativa sobre a própria infidelidade. Os
é acusada.
homens pesquisados se justificam por
Na pesquisa quantitativa a fidelidade
terem uma natureza propensa à traição.
também foi apontada como o principal
Eles dizem trair por instinto, essência,
valor do casamento, sendo considerada
atração física, vontade, tesão, oportuni-
muito mais importante do que o amor,
dade, galinhagem, hobby, testicocefalia.
filhos, dinheiro e vida sexual satisfatória.
Nas justificativas femininas encon-
Muitos afirmaram que, mesmo saben-
trei: insatisfação com o parceiro, faltas
do que é provável que o parceiro tenha
do casamento, vingança, além de um
Fotos: divulgação
“47% DAS MULHERES E 60% DOS HOMENS PESQUISADOS AFIRMARAM JÁ TEREM SIDO INFIÉIS” número significativo de mulheres que
meros defeitos. Se é inquestionável que
disse ter traído por não se sentir reco-
nas últimas décadas houve uma grande
nhecida, valorizada, elogiada e deseja-
mudança nas relações conjugais, pode-
da pelo marido.
-se verificar que na questão da infidelidade parece existir um certo privilé-
A sra. afirma que, apesar de tudo o que já conquistaram, as mulheres ainda se sentem vítimas nas suas relações amorosas. Por que isso ocorre?
gio masculino: o homem é o único que
Apesar de muitos comportamentos
como uma vítima, que no máximo reage
não estarem tão distantes, inclusive no
se percebe e é percebido como sujeito da traição. Enquanto a mulher, mesmo quando é infiel, continua se percebendo à dominação masculina.
que diz respeito à infidelidade – 47% das mulheres e 60% dos homens pesquisadiscursos femininos e masculinos a res-
O comportamento em relação ao sexo parece ter mudado, mas o discurso, não. Por quê?
peito da questão são muito diferentes.
Os comportamentos sexuais podem
dos afirmaram já terem sido infiéis – os
Os homens justificam suas infideli-
ter mudado, tendendo a uma maior
dades por meio de uma suposta natu-
igualdade, mas o discurso sobre o sexo
reza masculina. Já as mulheres infiéis
parece resistir às mudanças. O discurso
afirmam que seus parceiros, com suas
estabelece e reafirma diferenças entre
inúmeras faltas e traições, são os verda-
homens e mulheres, até mesmo quan-
deiros responsáveis por suas relações
do os comportamentos parecem recu-
extraconjugais.
sar essas diferenças.
RAIO-X Nome: Mirian Goldenberg Origem: Santos, São Paulo Formação: Doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro Livros: é autora de 15 obras, entre eles “A Outra” (ed. Record 1997) e “SeXo” (ed. Record) 2015)
A culpa da infidelidade parece ser
Não estou afirmando que não exis-
sempre do homem: seja por sua natu-
tem diferenças no comportamento sexu-
reza incontrolável, seja por seus inú-
al feminino e masculino. O que quero sugerir é que o discurso
“PERGUNTEI ÀS MULHERES O QUE ELAS MAIS INVEJAM NOS HOMENS. A RESPOSTA MAIS CITADA FOI LIBERDADE, SEGUIDA DE ‘FAZER XIXI EM PÉ’” sobre o sexo não só reforça as diferenças existentes, como pare-
sação de não serem “homens de verda-
ce ampliar muito o significado de dife-
de”, o que pode ser notado nas respostas:
renças que não são tão grandes assim.
“Não invejo nada, sou espada”; “Inveja de mulher? Não sou boiola”; “Como
Como surgiu a sua ideia de que o corpo é um capital? Em 2000, iniciei a reflexão sobre a
46/47
construção social do corpo brasilei-
assim? Eu sou homem, não sou gay”.
Qual o corpo invejado pela mulher brasileira hoje, segundo a sua pesquisa?
ro. Surpresa com a recorrência da cate-
Na pesquisa, as mulheres mais cita-
goria “o corpo” em uma pesquisa que
das como invejadas ou imitadas foram
investigava as representações sobre ser
atrizes, especialmente aquelas que são
homem e ser mulher, os modelos ideais
protagonistas das novelas exibidas na
de casamento e a importância da fideli-
TV Globo. Mas também foram aponta-
dade, constatei que “o corpo” é uma ver-
das como objeto de inveja e de imitação
dadeira riqueza em determinados seg-
algumas modelos, cantoras e apresenta-
mentos sociais.
doras de televisão.
Perguntei às mulheres: “O que mais te
A ideia de “imitação prestigiosa”, de
atrai em um homem?”. Obtive como res-
Marcel Mauss, foi fundamental para
posta: inteligência e “o corpo”. Quando
compreender a importância de determi-
perguntei aos homens: “O que mais te
nado modelo de corpo na cultura brasi-
atrai em uma mulher?”, encontrei: bele-
leira, especialmente na cultura carioca.
za e “o corpo”. Perguntei às mulheres o que elas mais ponderam: “o corpo” e beleza. Em segui-
A sra. acha que os cariocas se preocupam mais em conquistar o que a sra. chama de corpo-capital?
da, detalharam: cabelos, seios, bunda,
Minha pesquisa revelou que, entre
invejam em outras mulheres. Elas res-
barriga, pele, dentes, pernas, cintura,
muitos cariocas das camadas médias,
olhos e boca.
o capital social incorporado pelo corpo
Perguntei às mulheres o que elas mais
é de enorme importância. Para eles,
invejam nos homens. A resposta mais
“o corpo” é uma fonte de distinção, de
citada foi liberdade, seguida de “fazer
sucesso e até mesmo um meio de mobi-
xixi em pé”. Elas também invejam o fato
lidade social.
de não menstruar, não ter cólica, não ter
Pode-se pensar que, nesse universo,
TPM, não ter menopausa, não se depi-
o corpo trabalhado, cuidado, sem mar-
lar, não ter celulite, não ter estrias e não
cas indesejáveis e sem excessos é o único
engordar tão facilmente.
que, mesmo sem roupa, parece estar
Perguntei aos homens o que eles mais
decentemente vestido.
invejam em outros homens. Eles res-
Nesse sentido, além de “o corpo” ser
ponderam: inteligência, poder, dinhei-
muito mais importante do que a roupa,
ro, sucesso, “o corpo”, força física, altura,
ele pode ser considerado como a verda-
cabelo, abdômen sarado e pênis grande.
deira roupa: é “o corpo” que é exibido,
Quando perguntei aos homens o que
moldado, manipulado, trabalhado, cos-
eles mais invejam nas mulheres, quase
turado, pintado, enfeitado, escolhido,
todos responderam: “nada”.
construído, produzido, invejado e imitado. É “o corpo” que entra e sai da moda.
Por que a sra. acha que os homens dizem não ter inveja das mulheres?
A roupa parece ser apenas um mero
Pode-se pensar que por medo da acu-
ção desse corpo.
acessório para a valorização e a exposi-
WW
Sugeri que “o corpo” é um verda-
50 a 60 anos, o que mais me chamou a
para parecer mais jovens, por meio do
deiro capital no universo pesquisado,
atenção foram três tipos de discursos:
corpo, da roupa e do comportamento.
um corpo distintivo que sintetiza três
decadência do corpo, falta de homem e
Nesse discurso “vitimário”, dois
ideias: “o corpo” como uma insígnia do
invisibilidade. Elas falaram pouquíssimo
foram os eixos principais das brasilei-
esforço que cada um faz para contro-
dos filhos, dos netos e menos ainda de
ras: a decadência do corpo e a falta de
lar o próprio corpo a fim de conquistar
suas atividades profissionais. Elas apon-
homem. Foi possível constatar que, além
a boa forma; “o corpo” como um ícone
taram, predominantemente, as perdas,
de “o corpo” ser um capital, o homem ou,
da moda que simboliza a superiorida-
os medos e as dificuldades associadas ao
melhor ainda, o marido, também pode
de daqueles que o possuem; e “o corpo”
envelhecimento.
ser considerado um capital, talvez até
como um prêmio merecidamente con-
Elas disseram: “Aqueles elogios, olha-
mais importante do que “o corpo” em
quistado por aqueles que foram capa-
res e cantadas que eram tão comuns
determinados segmentos sociais e fai-
zes de alcançar uma forma física mais
desapareceram. Não me chamam mais
xas etárias.
“civilizada”, por meio de muito traba-
de gostosa. Os homens passam e não me
lho, dinheiro e sacrifício.
enxergam, parece que eu sou transparente. Não é nem que eu me tornei uma
Em uma sociedade que valoriza tanto o corpo, como é visto o envelhecimento?
Como a sra. aponta em seus estudos, em uma cultura em que o corpo é considerado um capital, no mercado de casamento, no mercado sexual e no mercado profissional, como as mulheres representam e experimentam o processo de envelhecimento? Quais são os principais medos das mulheres brasileiras com relação à velhice?
velha, simplesmente deixei de existir
O envelhecimento pode ser experi-
como mulher. Sou uma mulher invisível”.
mentado como um momento de perdas, principalmente de capital físico. No
Existe uma diferença entre o modo como a mulher brasileira se vê e como mulheres de outros países se veem?
entanto, para as mulheres que passaram
A discrepância entre a realidade obje-
to de inúmeros ganhos, realizações, con-
tiva e os discursos das brasileiras me fez
quistas, descobertas, amadurecimento,
perceber que aqui o envelhecimento pro-
cuidado, e especialmente de maior liber-
Nos grupos de discussão e nas entre-
voca um sofrimento maior, o que pode
dade e de aceitação das mudanças nas
vistas que realizei com as brasileiras de
explicar o sacrifício que muitas fazem
diferentes fases da vida.
a valorizar outros capitais, o envelhecimento pode ser vivido como um momen-
GABRIEL WAINER JULIANA MARQUES MARINA BIANCHI OTAVIO CINTRA
»»»São seis horas da manhã. Acordo.
48/49
“Sissi, venha tomar café! ”, escuto. Depois de me espreguiçar, vou à cozinha. O caminho é longo, mas vale a pena. Me lambuzo com minhas comidas importadas. Depois, tiro um cochilo, almoço filé mignon e saio para o salão com o Chico, meu motorista. Quando chego em casa, lancho, janto e vejo novela no colo da mamãe. Então, hora de dormir. São seis horas da manhã. Acordo. Não vejo meu pai. Saio da barraca. Ele está na praça. “Vamos dar uma volta, Chiquinha?”, chama. Damos a volta no quarteirão. Passamos pelos nossos amigos da banca de jornal e aí papai
Brunete Fraccaroli e sua cadela, Sissi, que tem rotina de gente| FOTO OTAVIO CINTRA
pega algumas migalhas para mim na padaria. Voltamos à nossa casa na praça. Vejo um estranho se aproximar. Avanço. “Volta aqui, Chiquinha!”, escuto. Sissi, da raça maltês, e Chiquinha, vira-lata, são cadelas com vidas distintas, mas com um componente em comum: são amadas por seus donos, a arquiteta e socialite Brunete Fraccaroli, e o morador de rua Paulo (que não
CACHORRO GENTE BOA? Humanização de animais parece positiva, mas pode causar problemas a donos e pets
informou o sobrenome), que vive nas ruas dos Jardins há 30 anos. Mas nem sempre esse amor se mani-
amar seu animal e humanizá-lo. “É nor-
famílias (e casas) menores e a diminui-
festa de modo saudável. Cães conside-
mal a pessoa se preocupar, querer dar
ção na taxa de natalidade, cães e gatos
rados membros de família, donos que
o melhor para o animal com relação a
suprem a carência afetiva de muitas
compartilham comida com seu pet ou
atendimento, cuidados, amor, alimenta-
pessoas. “O cachorro é uma compa-
já evitaram sair para cuidar do animal:
ção, higiene, tudo isso. Mas a pessoa não
nhia, é um ‘filho’, então muita gente
esses são sinais típicos de relações em
pode cobrar do animal comportamentos
acaba optando por ter pets e só depois
que há humanização do cachorro.
humanos, condutas humanas”, afirma.
pensar em ter filhos de fato. Até por-
Para a veterinária Janaína Reis, há
Mudanças sociais influenciam nesse
que é muito mais fácil ter um cachorro
uma linha tênue entre se preocupar e
comportamento. Com a tendência de
ou um gato do que ter uma criança, em
todos os aspectos, inclusive financei-
já vai para frente e não sai nunca mais.
ro”, diz a veterinária.
Ela se sente gente”, conta a arquiteta.
Algo que Brunete não tolera é o aban-
Filhos de quatro patas
dono de animais. “Acho que as pessoas
Desde criança, Brunete queria ter um
têm que se conscientizar que os bichi-
animal de estimação. Sua mãe, porém,
nhos são gente. A responsabilidade de
nunca deixou. Foi aos 36 anos, com a
criar uma criança é muito grande”, afir-
chegada de Sissi, uma maltesa branqui-
ma.
nha, que a arquiteta realizou seu sonho. “Ela é mais que uma companheira, é
Na rua
uma filha”, declara Brunete. “Fui mais
A apenas um quilômetro do escritório
consciente quando tive a Sissi do que
de Brunete vive Paulo, um morador de
quando tive minha filha, com 18 anos.”
rua. Após o dono do ferro velho fechar o
Quando a socialite procurava um
lugar onde o mendigo trabalhava e dor-
cachorro para comprar, ela queria que o
mia, Paulo resolveu rápido o problema.
animal tivesse pelo menos duas caracte-
“Eu vou ficar por aqui [Jardins] que é
rísticas: fosse meigo e taurino. “Eu sou
melhor”, decidiu. Há 30 anos no bairro,
de touro, a minha filha é de touro, a casa
ele é bem recebido nos estabelecimen-
toda é de touro. Então a gente queria
tos da região e sempre teve seus com-
um cachorro fiel, porque taurino é fiel.”
panheiros de quatro patas. Ao longo dos
E a fidelidade de Sissi se confirmou. Ela e Brunete se tornaram inseparáveis.
Atualmente ele tem três: Chico, que
Dormem juntas, vão para o escritório da
foi abandonado por roer o sofá; Joa-
arquiteta juntas e até dividem colírios
quim, o mais novo e que foi pego dire-
e remédios. “Ela está tomando rivotril
tamente de um pet shop; e Chiquinha.
agora. Metade do que eu tomo”, detalha.
“Essa é meu grude. Se eu vou ali no bar
A outra pessoa que Sissi adotou como
da Pamplona tomar uma cachacinha,
mãe foi a babá da casa, Tata, que já está
Paulo tenta alimentar seus cachorros
te conhecem os costumes da maltesa
com ração doada, mas nem sempre con-
melhor do que ninguém. Sabem que
segue. É nesse momento que o espírito
ela só come e toma água se for em reci-
de pai fala mais alto. “Eu pego a marmi-
pientes de vidro e não gosta de repetir
tinha que os restaurantes me dão, como
suas refeições. E também que fica total-
um pouquinho e entrego o resto para os
mente sossegada quando está escutan-
cachorros”, explica.
volume alto.
Segundo o Centro de Controle de Zoonoses (CCZ), administrado pela Prefeitura de São Paulo, de 2014 a 2015 houve um aumento de 21% na adoções de cachorros na cidade | FOTOS SILVIA FALLER/ONG CLUBE DO VIRA LATA
ela vai comigo”, comenta, rindo.
na família há 30 anos. Tata e Brune-
do a emissora de rádio Nativa FM com
adoção cresce//
anos, já contou com oito cachorros.
Cansado da vida na região dos Jardins, Paulo pretende se mudar, buscar
Sissi seguiu os passos de sua mãe.
uma nova aventura. Quer ir até o Paraná
Como Brunete, ela é famosa nas redes
andando. “E os cachorros?”, pergunta-
sociais. Sua conta no Instagram tem
mos. Sorridente, ele responde. “Ué, vão
aproximadamente 2.500 seguidores e
comigo. São minha companhia.”
no Twitter são quase 14 mil. A fama de ambas proporciona convites para fes-
Troca de sentimentos
tas, desfiles e outros eventos. Já fize-
Quando a dependência entre os donos e
ram até sessões de fotos para ONGs que
os pets se torna demais, isso prejudica
incentivam a adoção de cachorro. “Ela
ambos os lados. Se, por alguma razão,
não pode ver um fotógrafo. Quando vê,
o dono se afastar do animal, ele sofrerá
A TRANSFERÊNCIA EXCESSIVA DE AFETO DOS HUMANOS PARA OS CACHORROS É UM EQUÍVOCO
com a ausência do tutor. Para as pessoas esse relacionamento causa outros danos. Segundo o psicólogo Fernando Falabella, a transferência excessiva de afeto dos humanos para cachorros é um equívoco. “Há
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quem consiga se dar muito bem com cachorros, mas que não consegue se dar bem com pessoas”, exemplifica. Se essa devoção for exagerada, pode ter reflexos na vida afetiva e social da pessoa. Se ela não tem sucesso em relações interpessoais, busca afeto no animal. A paixão pelos seus cães já trouxe coisas ruins para Brunete. Além de “morrer de saudade” da cadela quando está longe, Sissi precisa estar sempre com alguém para não se sentir abandonada, segundo a dona. Racionalmente, as pessoas entendem que é um exagero, mas elas não conseguem mudar isso. É como qual-
O morador de rua Paulo, que vive nos Jardins com a cadela Chiquinha | FOTO GABRIEL WAINER
quer outro vício. Porém, não é por má fé que os donos agem dessa maneira. Eles
alimentação natural para cachorros, a
apenas querem dar o melhor para seus
La Pet Cuisine. Juliana Bechara, veteri-
companheiros em retribuição ao amor
nária de formação, tinha a vontade de
incondicional do seu “filho” canino.
abrir um negócio próprio tendo os cães como público-alvo. Junto com sua irmã,
Mercado em ascensão
a chef Veri Noda – que já trabalhou no
Na onda dos cuidados cada vez mais
restaurante espanhol El Celler de Can
sofisticados com pets, o mercado cres-
Roca, na Espanha, eleito o melhor do
ce. Segundo dados da Associação Brasi-
mundo mais de uma vez pela revista bri-
leira da Indústria de Produtos para Ani-
tânica Restaurant – decidiram abrir o
mais de Estimação (Abinpet), o Brasil
negócio.
tem o segundo maior mercado pet do
Na produção caseira, os alimentos são
mundo. Em 2014, movimentou, sozinho,
selecionados pela chef e os pratos são
R$16,7 bilhões no país.
montados com o auxílio de uma equipe
Acessórios como adesivos, brinque-
de nutricionistas. “Nós usamos ingre-
dos, roupas, coleiras personalizadas;
dientes frescos e que são utilizados na
pet shops de luxo, que oferecem ser-
culinária humana”, conta. A não adição
viço de ofurô, massagens e acupuntu-
de compostos químicos – conservantes,
ra; sorvete, bolo e goma de mascar são
corantes e aromatizantes, por exemplo
exemplos de alimentos que antes eram
– é o principal benefício desse tipo de
apenas consumidos por pessoas, mas
alimentação natural. O perfil predo-
que já têm versão pet.
minante dos clientes da La Pet Cuisine
Há três anos foi criada a primeira empresa de São Paulo especializada em
“são as pessoas que consideram os cães membros da família”, conta Juliana.
“Eu pego a marmitinha que os restaurantes me dão, como um pouquinho e entrego o resto para os cachorros” Paulo, morador de rua
A Plural n達o termina
FOTO DONIZETE PINTO/NIS
DEZEMBRO 2015 // ANO 4 // NÚMERO 8
COLABORADORES DESTA EDIÇÃO
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2 Thiago Morteira 6 Marco Caruso 10 Fernando Turri 14 Laura Stabile 18 Juliana Marques 22 Gabriel Ficoni 26 Letícia Teixeira
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1 Rodrigo Tucci 5 Murillo Parolini 9 Gabriel Wainer 13 Marina Cassiolato 17 Uly Campos 21 Pedro D’El 25 Gustavo Torniero 29 Thayane Matos
9 21
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28
3 Luiz Felipe Simões 7 Thomas Aoki 11 Juliana Cândido 15 Renata Mendes 19 Otavio Cintra 23 Júlia Feresin 27 Tainá Valadares
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4 Thiago Vidal 8 Yuri Bonet 12 Isabella Sarafyan 16 Luiza Lourenço 20 Marina Bianchi 24 Ana Clara Maksoud 28 Nadjine Hochleitner
E OS ALUNOS-REPÓRTERES QUE NÃO ESTÃO NA FOTO: Antônia Cavalheiro, Camila Câmara,
Carolina Cunha, Chimene Araújo, Fábio Martin , Lydia Aguiar, Priscila Cukierkorn, Rafael Lemos, Shelse Alves, Thaisa Giannakopoulos.