JUNHO DE 2014 // ANO 3 // NÚMERO 5 REVISTA-LABORATÓRIO DOS ALUNOS DO CURSO DE JORNALISMO DA ESPM-SP
AUTORITÁRIOS CINQUENTA ANOS APÓS O GOLPE CIVIL-MILITAR DE 1964, PAÍS ENFRENTA A HERANÇA DA DITADURA MACHISTAS EPISÓDIOS DE ASSÉDIO MORAL E SEXUAL FAZEM PARTE DO COTIDIANO DE MILHÕES DE BRASILEIRAS IGNORANTES LEI DE PROTEÇÃO ÀS MULHERES SOFRE CRÍTICAS E AMEAÇAS NO BRASIL, DIZ MARIA DA PENHA
HUMANOS DIREITOS
Justiceiros que praticam linchamento e incentivam a violência se multiplicam no país, enquanto a sociedade polarizada tenta resolver seus problemas à força. Até quando?
e
REVISTA-LABORATÓRIO DO CURSO DE JORNALISMO DA ESPM-SP Nº5 - 1º SEMESTRE DE 2014
Presidente J. Roberto Whitaker Penteado Vice-presidente Acadêmico Alexandre Gracioso Vice-presidente AdministrativoFinanceira Elisabeth Dau Corrêa Vice-presidente Institucional Hiran Castello Branco Vice-presidente de Marketing e Comunicação José Francisco Queiroz Diretor de Graduação-SP Luiz Fernando Garcia Diretor Acadêmico-SP Ismael Rocha Júnior Coordenadora de Jornalismo-SP Maria Elisabete Antonioli Revista Plural revistaplural-sp@espm.br
EDITORIAL
EU E OS OUTROS O inferno são os outros. A máxima cunhada pelo filósofo existencialista Jean Paul Sartre surgiu pela primeira vez na peça de teatro “Entre Quatro Paredes” (Huis Clos, no original francês), escrita em 1944. No drama, as almas de três personagens encontram-se num inferno que nada tem a ver com aquele da tradição cristã. Um inferno composto apenas por uma sala vazia, fechada, sem espelhos. Cada um dos três terá de se ver pelo olhar do outro, portanto. Estão condenados à convivência. Setenta anos, uma Guerra Mundial e um oceano inteiro separam Huis Clos do Brasil atual, mas ainda assim a metáfora parece adequada para descrever os dias de muito som e fúria – e pouco sentido aparente – que têm marcado o país. Linchamentos, marchas pedindo intervenção militar, discursos
Editor Prof. Renato Essenfelder Revisão Profa. Maria Elisabete Antonioli Prof. Paulo Ranieri Prof. Edson Capoano Tratamento de fotos Prof. Erivam de Oliveira
pró-tortura, crimes de homofobia, encoxadas e estupros, agressões
Alunos Anita Efraim Bianca Giacomazzi Carla Fernandez Cintia Azuma Cláudia Costa David Frare Débora Brotto Fernanda Botteghin Gabriela Beraldo Rodriguez Guilherme Machado Isabela Souza Ivan Trimigliozzi Luísa de Sena Gouvêa Almeida Mariana Stocco Marina Ayub Pricilla Kury Comazzetto
tre, um duplo drama. Por um lado, se o ser humano é radicalmente
Fotografia de capa Fernanda Botteghin
lançaram às ruas na desafiadora aventura da reportagem. Agora
Agência de Jornalismo ESPM-SP agenciadejornalismo-sp@espm.br Rua Dr. Álvaro Alvim, 123, Vila Mariana São Paulo, SP Tel. (11) 5085-6713
ção multimídia. Em vários textos você encontrará um QR Code que
Projeto gráfico Márcio Freitas
em nosso Portal de Jornalismo: jornalismosp.espm.br/plural.
A fonte Arauto, utilizada nesta publicação, foi gentilmente cedida pelo tipógrafo Fernando Caro.
mídias para esse debate é imprescindível. Os tempos são interes-
a jornalistas, decapitações em presídios, entre inúmeras outras atrocidades, multiplicam-se no noticiário. O inferno são os outros. Apedrejam os mensageiros, espancam os negros pobres das periferias, esquecem que os bandidos, por piores que sejam, são, também, humanos. A constatação de que o inferno são os outros sintetiza, para Sarlivre, jamais poderá ser completamente dominado – dominado em sua consciência. (E quantos de nós não gostaríamos de dominar o outro, dizendo-lhe o que e como fazer alguma coisa?). Por outro lado, é o outro, essa criatura infernal, quem nos denuncia, quem nos arranca de um confortável estado de autoengano. Na sala sem espelhos não se criam Narcisos. Meu olhar sobre mim passa, necessariamente, pela perspectiva do outro. No contexto brasileiro atual, o inferno são os outros aponta para uma terceira via, igualmente incômoda. A de que o outro, ignóbil, intolerante e brutal, espelha também um pouco de nós. Nesta edição da Plural procuramos refletir sobre questões ligadas às violações aos direitos humanos no Brasil. Nossos alunos se ainda mais desafiadora, já que Plural estreia sua primeira edipode ser acessado de qualquer smartphone para ampliar sua experiência de leitura com vídeos, áudios e textos que continuam a discussão iniciada aqui. Também estreamos o site da revista, abrigado A discussão está longe de terminar, por isso o suporte de várias santes. Milhões de brasileiros outrora (ainda mais) invisíveis lotam as ruas, parques, shoppings, e mostram seus rostos. Não querem mais ser os outros. Parecem dizer: - Nós somos como vocês.
RENATO ESSENFELDER
ÍNDICE
4/5
FOTO MARCELO CAMARGO/ABR
página 18
REPORTAGEM DE CAPA De onde surge a vontade de fazer justiça com as próprias mãos? Conheça as causas e consequências dos linchamentos que se espalham pelo Brasil, além de opiniões de especialistas no assunto. A equipe da Plural também foi às marchas da Família com Deus pela Liberdade e Antifascista, que aconteceram em São Paulo, para saber quem apóia o justiciamento.
página 6 CONSTITUIÇÃO A Carta Magna realmente protege os Direitos Humanos? Confira a reportagem com especialistas e descubra mais a respeito das falhas existentes.
página 8 PRECONCEITO A sociedade brasileira é preconceituosa e ainda age com violência quando se depara com a diferença. Veja histórias de pessoas que sofreram com isso.
página 16 DEVOÇÃO À VIDA Ela trabalhou por uma condição de vida melhor para crianças e idosos. Ainda hoje seu legado se mantém. Conheça a trajetória de Zilda Arns, a médica missionária.
FOTO TÂNIA RÊGO/ABR
página 10
FOTO FABIO RODRIGUES POZZEBOM/ABR
página 48
página 48
página 10
MARIA DA PENHA
BASTA DE ASSÉDIO
A cearense que deu nome à lei de proteção às mulheres contra a violência doméstica conta sua trajetória e os desafios de sua luta.
Por que a igualdade de gêneros ainda não é uma realidade no Brasil? Conheça histórias de mulheres que sofreram com o assédio sexual ou a discriminação e que lutam por igualdade.
página 26 BASTIDORES Pautas, entrevistas, textos. A pressão dos prazos. Fracassos e sucessos. Conheça os bastidores da realização deste número da revista Plural.
página 28 QUADRINHOS HQ relembra o caso do menor acorrentado a um poste no Flamengo, no Rio de Janeiro, no início do ano.
ACERVO PESSOAL/TESSA LACERDA
página 38
página 38
HERANÇA MALDITA Ainda hoje podem ser sentidos os resquícios da ditadura que impôs o medo por mais de 20 anos no Brasil. Confira depoimentos de quem foi afetado pelos anos de chumbo.
página 32 ESCOLA DO HORROR Tortura e abusos assolam as penitenciárias brasileiras. Veja quais são os principais problemas e desafios do sistema prisional brasileiro.
página 52 MORDAÇA O Brasil é considerado, pela Anistia Internacional, o país ocidental mais perigoso para jornalistas exercerem o seu trabalho. A liberdade de expressão é ameaçada constantemente.
6/7
A LEI E OS DIREITOS Embora a Constituição cidadã de 1988 proteja os direitos humanos, oferta de saúde, moradia, educação e segurança ainda é precária na maior parte do Brasil
ANITA EFRAIM DAVID FRARE MARIANA STOCCO
Constituição Cidadã, cujo apelido vem
Segundo Cássio, a Constituição de
do foco nos direitos do brasileiro, opri-
1988 contempla todos os itens propos-
midos pelas décadas de repressão, como
tos na Declaração Universal dos Direitos
o direito de votar diretamente para pre-
Humanos, adotada e proclamada pela
»»» Os direitos à alimentação, à saúde,
sidente. A Constituição de 1988 abran-
Assembleia Geral das Nações Unidas em
à moradia, à educação e à segurança
geu, de diversas maneiras, a Declaração
1948. “Nem poderia ser diferente. O Bra-
são os mais desrespeitados no Brasil,
Universal dos Direitos Humanos.
sil, desde 1945, é membro da ONU e um
segundo Cássio Andrade, professor
Carolina Souza, que é advogada e pro-
de seus fundadores”, comenta. “A Cons-
de legislação da ESPM-SP e advogado
fessora de direitos humanos da PUC-
tituição, como lei maior de um Estado,
da Advocacia Geral da União (AGU).
-SP, afirma que, até a Revolução Fran-
tem obrigação de conter aquilo que é
Ele acrescenta que há políticas sociais
cesa (1789), o governo era quem mais
previsto na Declaração Universal dos
que tentam mudar essa realidade.
desrespeitava os direitos humanos. “A
Direitos Humanos”, completa Carolina.
“Nossa história é recente, tendo sofri-
Revolução Francesa traz uma mudan-
Há, porém, críticas sobre a eficiência do
do um impulso mais considerável a
ça de paradigma, de uma realidade que
Estado em efetivar os direitos previstos
partir do século 19. Como toda nação
tinha um Estado absolutista, tirano.
aos brasileiros.
relativamente jovem, ainda se ressen-
Traz novas concepções, como a ideia
Rene Ivo Gonçalves, engenheiro e
te da falta de maturidade, o que expli-
do Estado de Direito, que é o Estado em
coordenador da ONG Centro Gaspar
ca, em parte, o estágio atual de sua
que todos, sem exceção, são submetidos
Garcia de Direitos Humanos, acredi-
evolução civilizatória”, afirma.
à lei, seja o governante, seja a socieda-
ta que o governo não é capaz de suprir
Com o fim da ditadura militar o Brasil
de.” As reivindicações do povo francês
as necessidades dos moradores de rua,
ainda precisava dar mais um passo em
no século 19, liderado pela burguesia,
por exemplo. “As ONGs têm papel fun-
direção à democracia: mudar a Consti-
deram origem ao que, hoje, conhecemos
damental na ajuda à população menos
tuição. Em 1988 foi escrita a chamada
como direitos humanos.
favorecida”, opina. A ONG no início
Poder Judiciário, precisam ser fortalecidos, com especial investimento em pessoal capacitado e em tecnologia da informação. A segunda medida, a médio e longo prazos, exigiria o cumprimento espontâneo e consciente de toda a legislação, não somente a de direitos humanos, bem como o enriquecimento das pessoas e do próprio Estado. “Para que isso ocorra é necessário o investimento racionalizado e maciço em educação e em desenvolvimento científico”, afirma. Carolina Souza destaca a necessidade de conscientização da população sobre seus direitos. “Quanto mais democráde acordo com o Mapa da Violência 2013.
tico o Estado, mais este terá possibili-
notou que o jeito de ajudar aqueles que
Para a analista sênior do Instituto Sou
dades de cumprir os direitos humanos.
não têm direitos era outro: mostrar que
da Paz, Carolina Ricardo, o país preci-
Um regime democrático não tem uma
podem consegui-los. As pessoas que
sa avançar muito na questão da segu-
estrutura pronta e perfeita, é preciso ter
procuram o Centro Gaspar Garcia, nor-
rança pública. “Temos altas taxas de
atuação da sociedade para funcionar.”
malmente, chegam com um problema
violência, homicídios, violência fami-
Conforme Cássio, a jovialidade da
e sem saber como solucioná-lo. Lá, são
liar e doméstica. O governo brasileiro
democracia no Brasil pode ser um dos
orientados por profissionais e conse-
não vê a segurança como direito huma-
motivos pelos quais a procura por direi-
guem organizar-se.
no, vê como uma necessidade secundá-
tos ainda é tão pequena na sociedade. A
promovia ações assistencialistas, mas
O cumprimento dos direitos huma-
ria”. Apesar de a Constituição garantir
advogada Carolina Souza diz que as dis-
nos fica ainda mais complicado em regi-
de forma sólida os direitos humanos,
crepâncias sociais levam a um distan-
ões mais afastadas das grandes cidades.
Carolina entende que o papel do brasi-
ciamento da população em relação ao
“Temos nesse caso a ausência do Esta-
leiro muitas vezes se restringe a exigir
conhecimento das leis.
do e a ausência de mecanismos básicos
novas leis. “Nós temos a cultura de lidar
Já para Santini, ainda falta muito
para a garantia de direitos”, diz Daniel
com temas polêmicos sempre achando
para que a Constituição de 1988 possa
Santini, coordenador de jornalismo da
que fazer uma nova lei resolve. O desafio
ser reconhecida como uma verdadeira
ONG Repórter Brasil. O professor Cássio
é olhar para as leis que existem e fazê-
Constituição Cidadã.
concorda: “Tantas vezes, a depender da
-las saírem do papel”, completa.
Paralelamente, no contexto da glo-
região do país e do grupo social afetado,
Cássio Andrade elenca duas medidas
balização e da inserção do Brasil no
tais direitos são absolutamente negli-
para a melhoria no cumprimento dos
mundo, especialistas lembram que o
genciados. O Brasil do sertão nordesti-
direitos. A primeira seria o aperfeiço-
papel crescente do Brasil no contex-
no não é o mesmo Brasil do Sul”, explica.
amento dos aparelhos de Estado com
to internacional faz com que sua voz
competência para implementar políti-
sirva de exemplo a outros países, mas,
Guerra urbana
cas públicas essenciais, especialmente
ao mesmo tempo, torne-se alvo de olha-
Os números da violência no Brasil são
nas áreas de subsistência (alimentação)
res mais críticos em relação aos direitos
superiores aos de zonas de guerra.
e saúde. “Para tais hipóteses, as parce-
humanos. Para Carolina Ricardo, o pro-
Enquanto no Iraque morreram cerca
rias com o setor privado, sob eficiente
blema é muito complexo e não tem solu-
de 184 mil pessoas em dez anos de con-
supervisão do Estado, podem ser muito
ção simples. “As pessoas precisam par-
flito, segundo dados do Iraq Body Coun-
úteis e, até mesmo, necessárias.” Além
ticipar mais politicamente e os governos
ter, no Brasil 450 mil pessoas foram víti-
disso, ele afirma que os aparelhos esta-
precisam se abrir de fato para atende-
mas de homicídios no mesmo período,
tais de repressão, como as polícias e o
rem as necessidades da população.”
8/9 O jornalista Gean Gonçalves, que foi vítima de homofobia | FOTO PRICILLA COMAZZETTO
CONCEITOS PERIGOSOS Racismo institucional, estrutural e cultural é parte da formação da sociedade brasileira e precisa ser combatido, afirma ex-ministra dos Direitos Humanos Maria do Rosário
CLÁUDIA COSTA PRICILLA COMAZZETTO
Cinquenta anos depois, contudo, o Bra-
violência tão perversa quanto aquela que
sil e o mundo ainda lutam diariamente
move as desigualdades raciais ainda no
contra o preconceito.
nosso país. Precisamos, portanto, reco-
»»»“Eu tenho um sonho de que meus
Em entrevista exclusiva à Plural, a ex-
nhecer essas violações para enfrentá-las
quatro filhos um dia viverão numa
-ministra dos Direitos Humanos Maria
e darmos um basta definitivo nas discri-
nação onde não serão julgados pela
do Rosário afirma que é importante reco-
minações e violências.”
cor de sua pele, mas sim pelo conteú-
nhecer a cultura preconceituosa do bra-
O sociólogo Felipe Padilha concorda
do de seu caráter.” No dia 28 de agosto
sileiro. De acordo com ela, o país não tapa
que “o Brasil é muito racista. Você pega
de 1963, diante de milhares de pessoas
o sol com a peneira e sabe que vive con-
as estatísticas e vê que pessoas de pele
em Washington (EUA), Martin Luther
tradições. “O país sabe, por exemplo, que
mais escura ganham menos. Historica-
King pronunciou seu mais famoso dis-
conta com o importante instrumento da
mente, é óbvio que somos preconceituo-
curso pelo fim da discriminação racial
Lei Maria da Penha, mas não fechamos
sos, racistas, machistas, homofóbicos”.
e do preconceito.
os olhos para a violência que ainda atin-
Segundo ele, “qualquer pessoa tem
Defensor dos direitos dos negros,
ge mulheres e meninas. Assumimos a
[preconceitos]. Preconceber as coisas é
Luther King foi a pessoa mais jovem a
responsabilidade diária de superarmos
uma capacidade da inteligência huma-
receber um prêmio Nobel da Paz. Foi
o racismo institucional, estrutural e cul-
na”. O problema, afirma, é quando esse
consagrado em 1964, em reconheci-
tural que compõe a formação da socie-
instrumento é usado para fazer víti-
mento à sua liderança pelo fim do pre-
dade brasileira e que nos desafia para
mas entre aquelas que são considera-
conceito racial nos Estados Unidos.
que possamos pôr um ponto final numa
das diferentes em relação à maioria.
“HISTORICAMENTE, É ÓBVIO QUE SOMOS PRECONCEITUOSOS, RACISTAS, MACHISTAS, HOMOFÓBICOS” Embora mais comum e flagrante
o agressor se tornou violento e tentou
O jornalista conta que desistiram
no Brasil, o preconceito de raça não é
acertar a sua nuca. “Meu amigo esta-
de registrar a ocorrência e que apenas
o único. Temos preconceito contra os
va ao meu lado. Ele percebeu e colocou
dois dias após o ocorrido ele enviou um
mais pobres, contra imigrantes, contra
a mão por trás das minhas costas e me
e-mail para a ouvidoria da Secrtaria de
homossexuais e diversos outros grupos.
deu um impulso. Nisso, eu só senti o
Direitos Humanos, responsável por
A ciência também se ocupa de pesqui-
braço dele [o agressor] me encostando.
acompanhar casos de violência homo-
sar o tema. “O preconceito é um tipo de
Se fosse com toda a força, eu provavel-
fóbica no Brasil. Comenta que, após isso,
emoção. É igual à intuição. Você tem a
mente teria desmaiado”, conta.
a ocorrência foi registrada.
intuição baseada nas experiências que
Quando foram à delegacia fazer um
você teve anteriormente”, explica o
BO, se depararam com uma situação
Xenofobia
neurocirurgião Delcidio Coletta Junior.
que os frustrou mais ainda. “O aten-
Cursando faculdade de Engenharia
O especialista cita um estudo ameri-
dente estava mais preocupado em
Automobilística na França há dois anos,
cano de 2003. “Nos Estados Unidos, tes-
entender quem nós éramos, o que está-
Bettina Vettori conta que todo dia há
taram 30 pessoas brancas e essas pes-
vamos fazendo, se tínhamos um rela-
alguma brincadeira de mau gosto que
soas tinham que dar conceitos positivos
cionamento, se morávamos juntos. Per-
a deixa sem graça.
e negativos para as imagens que viam.
guntas de cunho pessoal que eu já tinha
“Eu estudo em uma faculdade em que
O tempo que demoravam para asso-
declarado para ele.” Para Gonçalves, o
90% da população é masculina. No meu
ciar os conceitos é o que foi considera-
funcionário estava buscando algo para
primeiro dia de aula, eles chamaram as
do como preconceito. Não queriam dizer
justificar a agressão.
meninas na frente do auditório para se
que quem tinha preconceito detectado
apresentarem: nome, idade e escolha
por esse trabalho era preconceituoso
de curso. Fui lá e, em seguida, alguém
no dia a dia, porque ele pode dominar
acrescentou ‘e de onde vem’.”
essa preconceito racionalmente. Essas
Bettina não gostou da ideia, pois já
mesmas pessoas depois faziam entre-
viveu inúmeras situações nas quais
vista com um negro e com um branco. O
dizer que é brasileira a “transformou”
que perceberam foi que as pessoas que
em prostituta, travesti, objeto sexual.
eram mais preconceituosas se sentiam
A estudante de 20 anos, Renata
mais cansadas e seus cérebros se esgo-
Evelyn Almeida Melo afirma ter sofri-
tavam.”
do preconceito por ser do nordeste. Segundo a baiana, vários comentários
Homofobia
a atormentaram. “Tive que aguen-
Nos últimos anos no Brasil, vários
tar brincadeirinhas idiotas quando
casos de homofobia têm deixado a
morei no Espírito Santo. Lá, no colé-
população alarmada e chocada com a
gio, sempre tive que ouvir coisa do tipo
violência.
‘baiano é preguiçoso’ ou ‘você é baia-
Gean Gonçalves, jornalista e homossexual assumido, conta que um dia estava voltando do cabelereiro na rua Augusta, acompanhado de um amigo, e, ao passarem em frente a um bar, um dos frequentadores do local começou a agredi-lo verbalmente. “Aquilo me marcou demais. Ele dizia que a minha existência o incomodava e o deixava com o desejo de me agredir”, desabafa. Quando tentou seguir seu caminho sem dar atenção às provocações,
“Aquilo me marcou demais. Ele dizia que a minha existência o incomodava e o deixava com o desejo de me agredir”
na? nem parece, você nem é negra!’,
Gean Gonçalves, jornalista
defendeu dizendo que eu era mais esfor-
ou pessoas maldosamente rindo do meu sotaque, achando que eu falava errado.” “Houve até um episódio em que eu faltei na aula porque estava doente e um professor perguntou para minha amiga o motivo da minha falta. Então, uma menina falou ‘ela é baiana, deve estar dormindo ainda’, mas minha amiga me çada que a maioria da turma.”
10/11
FOTO GABRIELA BERALDO RODRIGUEZ
A CULPA NÃO É DELAS 20% das brasileiras afirmam ter sido vítimas de violência doméstica, em geral praticada pelo companheiro; formas mais sutis de discriminação são ainda comuns
ESPÍRITO SANTO, BAHIA E ALAGOAS SÃO OS ESTADOS COM MAIS CASOS DE ASSASSINATOS DE MULHERES.
“Gostosas! Imagina na cama!” BIANCA GIACOMAZZI CINTIA AZUMA DÉBORA BROTTO LUÍSA SENA
Constrangidas e com medo da situação, as amigas silenciaram. Já era a terceira vez que Luciana se calava naque-
»»» O despertador de Luciana tocou às
le dia. Sem disposição para ir ao bar,
6h, como de costume. Era uma sexta-
tomou o metrô para casa. Encostou-se
-feira de fevereiro e em São Paulo fazia
na porta do vagão para evitar assédio.
27°C pela manhã, em mais um dia típi-
Chegando em casa, desabou na cama.
co de verão. Luciana não pensou duas
Amanhã começaria tudo de novo.
vezes e vestiu short e uma regata para sobreviver ao resto do dia. Enquanto preparava seu café da manhã, ligou a
»»» Luciana é uma personagem fictí-
televisão para ver as notícias.
cia, mas poderia não ser. Todos os dias
“Homens criam grupo de encoxado-
milhares de mulheres passam por situ-
res em rede social para divulgar histó-
ações semelhantes. Segundo dados
rias de abusos a mulheres em metrôs da
divulgados pela pesquisa do DataSena-
capital.” Ao ouvir a reportagem, Lucia-
do sobre violência doméstica e familiar
na, preocupada, trocou o short por uma
contra a mulher, uma em cada cinco bra-
calça jeans e a regata por uma camisa.
sileiras reconhece já ter sido vítima de
Preferiu passar calor a sofrer qualquer
violência doméstica ou familiar provo-
tipo de abuso no caminho para o curso
cada por um homem. Dentre elas, 78%
de inglês.
foram agredidas por companheiros ou
Ao chegar à aula, encontrou seu namorado. - Finalmente! É a primeira vez em
ex-companheiros.
(Ipea), 5.664 mulheres são assassinadas de forma violenta a cada ano. Em
Luciana se sentiu humilhada, mas
outras palavras, uma mulher morre a
não disse nada. Tentou não se abalar,
cada 6 minutos. Espírito Santo, Bahia e
afinal, aquele era um dia importan-
Alagoas são, respectivamente, os esta-
te para ela. Decidira, enfim, pedir um
dos com maior número de ocorrências.
aumento no trabalho.
A cada uma hora e meia, também segun-
nunca fui promovida, mesmo traba-
de Campos, casos de violência contra a
lhando mais e melhor que os meus cole-
mulher ocorrem em função da socieda-
gas. Acho que mereço um aumento.
de em que vivemos. “Nós vivemos em um país machista, por mais que se fale
Você é ótima funcionária, mas é
que muita coisa mudou. A mulher é vista
mulher.
como objeto, sendo que não há nenhu-
De novo, Luciana engoliu a indignaVoltando para a casa, ao final do
das mulheres agredidas ainda convivem com o agressor
14%
delas ainda sofrem algum tipo de violência
+ PLURAL NA INTERNET
violência masculina no Brasil. Segundo o psicólogo Oswaldo Antunes
ção e ficou calada.
31%
do o Ipea, uma mulher morre vítima de
- Alberto, estou aqui há três anos e
- Luciana, eu não discordo de você.
é o número de mulheres que já foram agredidas, segundo pesquisa nacional
Segundo pesquisa de 2013 do Insti-
comentou.
chamou seu chefe.
13, 5 mi
tuto de Pesquisa Econômica Aplicada
semanas que não vem pelada –, ele
Mais tarde, chegando ao escritório,
VIOLÊNCIA
Use um leitor de QR Code e confira reportagem em vídeo sobre violência contra a mulher.
ma comoção das pessoas em função de um abuso”, diz. Por mais que muitos enxerguem tais
expediente, parou para um happy hour
abusos como uma doença mental ou
com as amigas. No caminho do bar,
como um instinto animal do homem, o
um homem cruzou com elas e gritou:
psicólogo esclarece que a parte emocional do homem é ligada
A LEI MARIA DA PENHA COÍBE A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER, SEJA ELA POR AGRESSÕES FÍSICAS, PSICOLÓGICAS, SEXUAIS, PATRIMONIAIS OU MORAIS também ao papel da mulher na sociedade. “Pode ser visto como sintoma de uma doença emotiva, mas também tem a facilidade e a impunidade: a imagem da mulher sendo mais fraca, e a facilidade que se tem para fazer tais atos, pois ninguém faz nada. Quando
12/13
uma mulher é espancada ou violentada, ninguém toma uma atitude, a menos que seja alguém conhecida”, explica. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2012 o número de ocorrências de estupro no país foi de 50.617, número maior que os casos de homicídio doloso com 47.136 ocorrências. O Estado com o maior número de estupros é Roraima, seguido de Rondônia e Santa Catarina. Violência O caso de Paty Ayumi Matsuda, hoje com 18 anos, mostra que a violência contra a mulher começa ainda na infância. Aos 12 anos, estava em um ônibus e percebeu a presença de um homem sentado no fundo do veículo. Preferiu sentar distante. “O rapaz levantou e ficou andando pelo corredor, até que parou ao meu lado e perguntou o horário. Eu, mesmo assustada, respondi que eram 8h”, diz. “Ele colocou uma arma na minha barriga e me mandou ficar sentada. Fez questão de se sentar na janela, para ninguém desconfiar”, conta. O homem colocou a mão na perna de Paty, e sua mochila logo em cima, para que ninguém
Ao sair do veículo, ela desmaiou no
conseguisse ver o abuso. “Meu olho esta-
colo da mulher que havia dado sinal e
va cheio de lágrimas, estava agonizan-
acordou um tempo depois recebendo
do enquanto ele tentava saber da minha
ajuda da mesma.
vida. Estava com muito medo.”
A jornalista Luiza Pastor, 57 anos, foi
Ele abriu a bermuda e disse “coloca sua
estuprada por um menor de idade em
mão aqui dentro”. Neste momento, uma
1976. Com medo de represálias da pró-
mulher que a estava olhando deu sinal
pria polícia, não registrou boletim de
para o ônibus parar. E, entre a pressa do
ocorrência. “Estávamos na ditadura e
homem para que a mão de Paty chegas-
era a época em que estudante de jorna-
se a ele logo e a porta se abrir, ela levan-
lismo da USP tinha mais medo da polí-
tou e saiu correndo do ônibus numa rea-
cia do que do bandido”, diz.
ção momentânea.
O incidente ocorreu no escritório em
“TIVE QUE OUVIR OS POLICIAIS DIZENDO QUE SE EU ERA CONTRA SUA MORTE [DO ESTUPRADOR], TALVEZ TIVESSE GOSTADO” Instituto Médico Legal (IML). Assistente social da 2ª DDM, Maria Auxiliadora de Castro, conta que as mulheres agredidas vêm buscar o atendimento policial como se fosse a única coisa a fazer. “A vítima não tem noção da relação de submissão que ela tem com o agressor, do que ela passou para chegar àquele ponto. Ela precisa de apoio para refletir sobre a própria história.” Apesar do aumento do número de denúncias, Dora, como é conhecida a assistente social, afirma que muitas mulheres tentam retirar as queixas que fizeram. “A lei não permite que a queixa seja retirada, mas existem muitas que voltam para tentar. Se o caso já gerou um inquérito, ele vai seguir adiante. E somente na presença de um juiz ela irá poder resolver se o agressor deverá ser processado ou não”. “Muitas delas o fazem em função da relação de dependência com o agressor, ou pelo medo que sentem. Elas sofrem muito e há muito tempo e, como muitas ainda vivem com os agressores, voltam para tentar a retirada a mando deles”, explica a assistente social. As DDMs têm tanto funcionários homens quanto mulheres, mas quem trabalha no atendimento e na execução
Grupo faz passeata no Rio de Janeiro em defesa dos direitos das mulheres | FOTO
TÂNIA RÊGO/AGÊNCIA BRASIL
do boletim de ocorrência são somente as mulheres. “O pior inimigo da mulher é a falta de
diminuir a maioridade penal. “Tive que
informação. Às vezes, ela se informa
sala com uma arma em mãos. Um segu-
ouvir os policiais dizendo que se eu era
com alguém que sabe ainda menos do
rança do prédio a encontrou minu-
contra sua morte, talvez tivesse gosta-
que ela. É necessário que ela venha para
tos depois. Luiza explodiu de nervoso,
do”, desabafa ela.
a delegacia, onde vai saber o que fazer
que trabalhava. O agressor entrou na
medo e vergonha. Dias depois recebeu
e será adequadamente encaminhada.”
uma intimação para que fosse reconhe-
Como solucionar
cer o garoto, já que o segurança havia
São Paulo tem nove Delegacias de Defesa
Violência psicológica
feito a denúncia por ela. Quando Luiza
da Mulher (DDM), localizadas nas cinco
Medo e vergonha são dois sentimentos
chegou à delegacia, os policiais estavam
regiões da cidade. As DDMs registram
comuns entre vítimas de abusos varia-
comentando sobre o garoto já ter apare-
ocorrências, investigam e apuram cri-
dos. A estudante I., que não quis se iden-
cido lá outras vezes e que não tinha jeito:
mes de violência contra a mulher, tam-
tificar, conta que seu ex-namorado, antes
matá-lo seria a solução. Luiza foi contra
bém realizando encaminhamento jurí-
delicado e atencioso com ela, transfor-
a morte do garoto, assim como é contra
dico e em processos para exames do
mou-se completamente depois do início
da relação entre os dois. Ciumento, ele exigia que ela não saísse da sala nos intervalos de aula da escola. Quando, enfim, decidiu terminar o namoro, I. passou a sofrer inúmeras ameaças. Seu companheiro a chanta-
14/15
geava. “Ele dizia que iria acabar com a minha vida. Não podia arriscar”, conta a estudante. O ciúme e as ameaças se tornaram tão violentos que a própria escola interviu. “Eu não tinha coragem de explicar tudo o que se passava para os meus pais, mas eles sabiam que algo estava errado. Enquanto isso, a escola fez o que pode”, diz. Ela explica que, em época de provas, por exemplo, ele era colocado em uma sala separada dela. A situação piorou, e logo a escola começou a reter o agressor em sala até que I. já tivesse voltado para sua casa, depois das aulas. “Chegou num ponto absurdo e ninguém ficava ao meu lado. As pessoas achavam que eu queria estar com ele”, conta. No último dia de aula, houve briga e agressão física. “Ele me agarrou pelo braço de tal forma na frente de todos que fiquei com ainda mais medo.” Ao chegar em casa, com hematomas, seu pai pediu a ela que registrasse um boletim de ocorrência, mas ela relutou e deixou para lá. Depois do término, passou a frequentar terapia. A vergonha e o medo também podem ser observados em casos mais corriqueiros do dia a dia. Camila Ferrari, hoje com 23 anos, conta que há 5 anos passou por situações de abuso em ônibus e na rua. “Nas várias vezes em que homens mexiam e encostavam em mim no transporte público eu não dizia nada, apenas tentava me afastar.” Hoje, ela diz não se calar mais. “Há poucos dias passei novamente por essa situação e falei para o homem tirar a mão de mim, que estava me incomodando. O homem me fez parecer uma louca.”
Inscrição em poste na rua Joaquim Távora (zona sul) | FOTO BIANCA GIACOMAZZI
Trotes disseminam cultura machista em universidades Trotes universitários podem ser uma
mulheres dos engenheiros. Segundo
forma de integrar alunos ou celebrar
Nathália, apesar do centro acadêmi-
o começo de uma nova fase da vida.
co ter se pronunciado contra o trote, a
Por outro lado, podem ser também
maioria dos alunos o defendeu. “Num
uma forma de tortura ou de humi-
curso em que cerca de 2% dos alu-
lhação aos alunos que acabaram de
nos são mulheres, já senti na pele o
ingressar na faculdade.
machismo vindo dos colegas”, diz ela.
A violência e o sexismo presentes
Também neste ano, calouras da
em muitos trotes espantam. Como
Faculdade Cásper Líbero tiveram que
no caso da estudante Nathália Trä-
simular sexo oral com um pepino e,
sel Kives, 20 anos. No trote de Enge-
por vezes, com um veterano esfre-
nharia Metalúrgica da Universidade
gando um legume em sua cara. Em
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS),
2013, na USP de São Carlos, alunos
em 2014, os “bichos” foram obriga-
mostraram seus genitais para hostili-
dos a passar em frente ao prédio do
zar feministas que protestavam con-
curso de letras cantando uma músi-
tra o “Miss Bixete”, concurso em que
ca de teor machista, que dizia que o
calouras são expostas para que os
local era “um puteiro” e, as alunas,
veteranos elejam a mais bonita.
Divulgação de vídeos íntimos na internet provoca até suicídios “Revenge porn” é o termo utiliza-
mas na semana seguinte já tinha
do quando fotos ou vídeos íntimos
outra menina com o mesmo tipo de
de uma pessoa são divulgados sem a
história e me esqueceram”, afirma.
sua autorização, como uma forma de
Em 2013, o caso de Fran teve gran-
“vingança”. Esse ato acontece pre-
de repercussão. A universitária de 19
dominantemente com mulheres, que
anos aparece fazendo sexo oral em
também acabam sendo as mais con-
um vídeo que viralizou na internet.
denadas pela sociedade. Foi o que
Surgiram também fotos ofendendo e
aconteceu com Mariana (nome fic-
ridicularizando a garota. O fato aba-
tício). A estudante colocou um pier-
lou a vida de Fran, que se mudou com
cing no mamilo e tirou uma foto, em
seus pais de Goiânia, onde vivia.
que também aparecia seu rosto, para
No mesmo ano, duas meninas
mostrar às suas amigas. Dois meses
menores de idade se suicidaram por
depois, foi avisada de que a foto havia
conta de fotos e vídeos íntimos divul-
vazado em outro grupo de amigos.
gados na internet.
Duas semanas após entrar na facul-
“Revenge porn” é considerado
dade, Mariana descobriu que a foto
crime. O culpado é aquele que posta
se espalhou entre outras universida-
os vídeos e as fotos, e também quem
des. “Não sabia lidar com a situação e
ajuda na divulgação. Dentre os arti-
entrei em desespero, mas ao mesmo
gos do Código Penal, os de número 139
tempo estava de consciência limpa,
e 140 dizem respeito a isso. Art. 139 -
pois sabia quem eu era”, diz.
Difamar alguém, imputando-lhe fato
Nesse período, a estudante perce-
Jovens que participaram de trotes machistas e violentos em suas faculdades aparecem em vídeos divulgados por veteranos. Elas são submetidas a situações humilhantes e embaraçosas | FOTOS REPRODUÇÃO DA INTERNET
ofensivo à sua reputação; Art. 140 -
beu que recebia olhares diferentes
Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dig-
das pessoas. “Foi um momento tenso,
nidade ou o decoro.
+ PLURAL NA INTERNET
Use um leitor de QR Code e veja depoimento em vídeo de vítima de assédio sexual.
foto arquivo agência brasil
CARLA FERNANDEZ FERNANDA BOTTEGHIN MARINA AYUB
“Zilda lutou pela construção de um mundo melhor que começa na construção do ser humano. Ela contribuiu extraordinariamente à saúde, educa-
16/17
ção e bem-estar das mães e das crianças carentes”, escreve a irmã de Zilda, Otília Arns, formada em letras e autora do livro “Zilda Arns – A Trajetória da Médica Missionária”. Zilda Arns Neumann nasceu em 25 de agosto de 1934, em Forquilhinha, Santa Catarina. Pediatra e sanitarista, iniciou os seus trabalhos na área humanitária em 1959, quando formou-se em Medicina pela UFPR, sempre com o objetivo de diminuir a mortalidade infantil. Em 1982, James Grant, então diretor-executivo da Unicef, procurou o cardeal Dom Paulo Evaristo Arns solicitando que a Igreja ajudasse a salvar a vida de milhares de crianças no mundo. Dom Paulo levou o pedido à sua irmã Zilda.
p
Fundação Em 1983, Zilda fundou a Pastoral da Criança em conjunto com o cardeal Dom Geraldo Majella Agnelo, presidente da
PERFIL: ZILDA ARNS
UMA VIDA DE DEVOÇÃO
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) na época. A Pastoral da Criança é uma organização comunitária de atuação nacional que tem o seu trabalho baseado na solidariedade e na partilha do saber, como afirma Otília Arns em seu livro. “O seu objetivo é promover o desenvolvimento integral das crianças pobres, da concepção aos seis anos de idade, em seu contexto familiar e comunitário, a partir de ações preventivas de
Zilda Arns, a médica missionária, dedicou grande parte de sua vida para ajudar ao próximo e contribuiu para a formação da Pastoral da Criança e do Idoso
saúde, nutrição, educação e cidadania, realizadas por mais de 240 mil voluntários capacitados”, completa Otília. Para demonstrar o quanto a missão de ajudar crianças carentes era importante
foto divulgação/Pastoral da Criança
para sua irmã, Otília relata que Zilda
fundou e coordenou a Pastoral da Pes-
rezou para o Espírito Santo e pediu ins-
soa Idosa, tendo como objetivo auxiliar
piração. Uma vez que a médica pensava
os idosos no controle de vacinação e na
que o trabalho feito pela Igreja deveria
identificação de doenças por meio do
ser altamente replicável, barato, atraen-
trabalho de líderes e voluntários.
te e impulsionado pelo amor fraterno, Projeto
ela reorganizou na mente todas as suas experiências vividas até então.
“Estamos implantando um novo projeto em São Paulo. Antes, trabalháva-
Ícone
mos mais com a criança desnutrida e
Fernando Franco Braga Talarico, pro-
hoje buscamos nos aprofundar também
fessor e doutorando em História Social
na criança obesa, devido ao aumento
pela FFLCH-USP, afirma que a missioná-
do índice de sobrepeso infantil”, conta
ria pode ser considerada um importan-
Aparecida Gonçalves.
te ícone dos direitos humanos no Bra-
A formação do voluntariado se dá
sil. “O humanismo de Zilda, bem como
através de apostilas e cursos que o pre-
o de seu irmão, Dom Paulo, beneficia-
param para acompanhar e orientar as
ram a Igreja Católica.”
famílias. Cada voluntária observa, no
O historiador também comenta que
máximo, quinze crianças até os seis
Dom Paulo dialogou com o rabino Henry
anos de idade, uma vez por mês. “Caso
Sobel e muitas outras lideranças reli-
observem algum problema, a instrução
giosas, em um ecumenismo raras vezes
é encaminhar para uma entidade espe-
obtido, e contribuiu decisivamente para
cializada no assunto.”
a derrota da ditadura civil-militar. “Não
Zilda Arns recebeu diversos prêmios e distinções por seu trabalho. Dentre eles,
é preciso dizer mais que isso.” De acordo com dados do quarto tri-
destacam-se: o Opus Prize (EUA), no ano
mestre de 2013 fornecidos pela Pastoral
de 2006; “Heroína da Saúde Pública das
da Criança, no Brasil todo são 1.251.923
Américas”, concedido pela Organização
crianças e 70.891 gestantes acompa-
Pan-Americana de Saúde (OPAS) no ano
nhadas mensalmente pela ONG. Ainda
de 2002; Prêmio Social da Câmara de
segundo os dados do quarto trimestre
Comércio Brasil-Espanha em 2005.
de 2013, são 200.926 voluntárias atuan-
A médica faleceu em 12 de janeiro
tes nacionalmente. Para Aparecida Gonçalves de Jesus, coordenadora da Arquidiocese de São
de 2010, em Porto Príncipe, no Haiti. A
+ PLURAL NA INTERNET
Paulo (à qual a Pastoral da Criança é
cidade havia sido atingida por um terremoto. Zilda estava na capital para apresentar o trabalho da Pastoral.
ligada), Zilda Arns “faz muita falta”.
O final de seu último discurso dizia:
“Ela era como uma mãe, muito cari-
“É a solidariedade e a fraternidade aqui-
nhosa, e toda a metodologia criada por
lo que o mundo precisa mais para sobre-
ela continua sendo seguida da mesma
viver e encontrar o caminho da paz.
forma”.
Como os pássaros que cuidam de seus
Aparecida ressalta que Zilda tinha um olhar muito carinhoso pelo voluntariado e sempre incentivava os atos humanistas. “Todas as vezes que pensávamos em desistir, pensávamos nela.” Em novembro de 2004, a médica
filhos ao fazer um ninho no alto das
Use um leitor de QR Code e veja entrevista em vídeo de Zilda Arns ao programa “Roda Viva”, da TV Cultura, em 2001.
árvores e nas montanhas, longe dos predadores, ameaças e perigos, e mais perto de Deus, deveríamos cuidar de nossos filhos como um bem sagrado, promover o respeito a seus direitos e protegê-los”.
18/19
foto Fernanda Botteghin
POR UM POUCO DE
Aumento dos casos de linchamento no Brasil preocupa especialistas e acende debate sobre a falência do poder público na defesa dos direitos humanos
CARLA FERNANDEZ FERNANDA BOTTEGHIN MARINA AYUB BIANCA GIACOMAZZI CINTIA AZUMA LUISA DE SENNA
»»»Um infrator, em geral um jovem, rouba um cidadão. Comete um delito. O que deveria ocorrer, a partir disso, é a ação das autoridades policiais e um posterior julgamento. É o que consta no artigo 345 do Código Penal (exercício arbitrário das próprias razões), que tipifica o crime de fazer justiça com as próprias mãos. No entanto, não é o que, de tempos para cá, vem ocorrendo. Os casos de linchamento estão aumentando no Brasil. O sociólogo José de Souza Martins, que documenta esses casos no país há mais de 20 anos, disse em entrevista em fevereiro ao jornal Folha de S.Paulo que, atualmente, há uma média de um linchamento por dia no Brasil. Segundo o sociólogo, uma “ligeira intensificação
de ocorrências” aconteceu nos últimos tempos. Os infratores são feridos por civis que se autodenominam “justiceiros”, e desejam fazer justiça com as próprias mãos. Não é uma cena rara, principal-
20/21
mente nas grandes capitais. Um exemplo disso é o caso do jovem negro amarrado a um poste e agredido no Rio de Janeiro, após tentativa de furto no dia 31 de janeiro deste ano. A medida divide opiniões. Há grupos que apoiam a justiça com as próprias mãos, uma vez que, segundo eles, há uma sensação de impunidade, e grupos que são contra agressões, preferindo o julgamento das autoridades. Para Carolina Lima, professora da graduação e pós-graduação em Direito na PUC-SP com ênfase em Direitos Humanos, o que os indivíduos conhe-
consciência da sociedade sobre o seu
professora da PUC-SP sobre o histórico
cidos como “justiceiros” realizam é
papel, que deve ser cada vez mais ativo.
de violência no país. Para ela, os direi-
extremamente prejudicial para a socie-
Como tentativa de diminuir a violên-
tos humanos no Brasil foram, desde o
dade, porque gera um ciclo de violência.
cia no país, Carolina ressalta a impor-
seu início, colocados como favores ou
“Eles estão se igualando aos infratores
tância de uma educação pautada no
como caridade. Não nasceram, como na
e violando a lei, praticando crimes de
humanismo, na cidadania, na alterida-
Europa, em meio a lutas.
lesão corporal e ofensa moral.”
de e na tolerância, e destaca a impor-
Para Fernando Franco Braga Tala-
tância desse tipo de ensinamento ser
rico, professor de história no D’Incao
iniciado desde as escolas de base.
Instituto de Ensino e doutorando em
A professora afirma que, a partir da constituição do Estado Democrático de Direito, o monopólio da justiça pertence
Carolina cita o filósofo alemão The-
História Social pela Faculdade de Filo-
ao poder Judiciário. “Ele vem estrutu-
odor Adorno e seu estudo “Educação
sofia, Letras e Ciências Humanas (FFL-
rado de princípios, e o respeito à digni-
após Auschwitz”, que questiona o que
CH-USP), o fenômeno de civis dese-
dade da pessoa humana é o principal.”
é preciso fazer para que a barbárie da
jando que infratores sejam punidos e
Para não desrespeitar as leis ao pre-
Segunda Guerra Mundial não ocorra
sofram agressões é parte de uma heran-
senciar um abuso, Carolina ressalta que
novamente. Ela afirma que atos desu-
ça nacional. “O Brasil não sofreu uma
o caminho correto é entrar em conta-
manos similares se manifestam quan-
revolução burguesa como os países em
to com as autoridades policiais para
do verificamos os presídios brasileiros
que as forças produtivas e o Estado de
que elas tomem medidas. No entan-
e os atos de barbárie urbana (leia texto
Direito desenvolveram-se plenamente.
to, a professora ressalva: “Vivemos em
à pág. 32). “É a violência se repetindo
Nossa revolução burguesa foi interrom-
um estado burocrático que acaba sendo
de outra forma, em outro contexto e em
pida no meio do caminho. Por isso, nos-
ineficiente e incompetente e que não dá
outra época.”
sas instituições não são propriamente contemporâneas, são arcaicas.”
conta de manter a segurança pública, gerando a insatisfação da sociedade”.
História
Talarico comenta que é preciso mobi-
Ainda em relação à ineficiência da
“O Brasil não viveu uma revolução bur-
lização civil para pressionar os pode-
segurança pública, ela afirma que o
guesa como os países da Europa. Tive-
res públicos a cumprirem com seus
Estado não vai resolver todos os pro-
mos apenas alguns movimentos como a
deveres como solução para a violên-
blemas na área; é necessário uma
Inconfidência Mineira e a Baiana”, diz a
cia brasileira. “Juízes, promotores,
A violência que parte da sociedade contra os infratores ocorre no anonimato. É assim que se pode começar uma guerra civil.” Caminhada pela Vida e pela Paz, em SP |
FOTO MARCELO CAMARGO/AGÊNCIA BRASIL
policiais, legisladores, todos os mem-
de 30 anos é que as famílias não inte-
bros do poder público não cumprirão
ragem e procuram minimizar as difi-
seus exercícios constitucionais, se não
culdades com os filhos comprando bens
forem constrangidos a isso pelos que
materiais para eles em vez de se com-
portam deveres e os sustentam com tri-
prometerem com a educação.
butos.”
Agop Kayayan, sociólogo
“Esse poder monetário gera violên-
Em relação ao sentimento de impuni-
cia, pois não há limites para se con-
dade da sociedade, que pode vir a cata-
quistar algo, até mesmo violar regras
lisar mais violência, o historiador diz
e atitudes tornam-se os meios mágicos
que os civis não podem e nem devem
construídos por uma fantasia de que
substituir as instituições públicas –
tudo posso”, comenta Cristina, que
mas sim exercer pressão sobre elas.
também observa essa atitude entre universitários adeptos de trotes violentos.
Comportamento A psicóloga Cristina Barleta afirma que
Potencial brasileiro
as raízes da violência podem ser asso-
Para o sociólogo libanês Agop Kayayan,
ciadas à impunidade e à ausência da
ex-diretor do Fundo das Nações Uni-
família enquanto responsável pelos
das para a Infância (Unicef) na América
valores que se desenvolvem na pessoa.
Central e no Brasil e fundador da ONG
“O poder se faz claro através do dinhei-
Instituto dos Direitos da Criança e do
ro e não da responsabilidade e com-
Adolescente, o Brasil não está desenvol-
promisso. E as pessoas acabam fazen-
vendo todo o seu potencial, tanto políti-
do justiça com as próprias mãos pois as
co, econômico e social quanto em recur-
leis não são cumpridas e nem encara-
sos humanos, o que gera a violência. Ele
das com a seriedade que lhes compete.”
diz que o brasileiro “está acostumado a
Atrelado a isso, o que a psicóloga tem observado em seu consultório há mais
não olhar para o outro”. Kayayan afirma que essa violência está também ligada à baixa qualidade do
22/23
ensino no Brasil. Em relação à sensação de impunidade, o sociólogo diz que, quando
desviar para a violência.
um cidadão é agredido e o governo não
Para o antropólogo e professor da
toma medidas, um ciclo de violência se
ESPM-SP Eduardo Benzatti, o ethos do
inicia. “É a reação das massas frente a
povo brasileiro está fundado na vio-
uma injustiça. E a violência que parte
lência. Ele afirma que o brasileiro sabe
da sociedade contra os infratores ocor-
sublimar sua violência, mas, quando se
re no anonimato. É assim que se pode
sente ameaçado, ela se revela de forma
começar uma guerra civil.”
potencializada e perigosa. “Basta ver o
O papel da ONU no Brasil, diante
número de mortes em brigas de trân-
dessas ondas de violência, segundo
sito e os índices de violência na perife-
Kayayan, é fazer com que a discrimina-
ria aos fins de semana. Isso não mos-
ção pare, desmarginalizando os grupos.
tra cordialidade nenhuma”, lembra o
“O sistema das Nações Unidas advoga
antropólogo.
com o governo e com toda a sociedade.
Benzatti acredita que o homem bra-
A ONU tem a missão de trazer conhe-
sileiro é cordial somente quando há
cimento técnico de qualquer lugar do
algum interesse envolvido e enquan-
mundo para solucionar problemas de
to ele não for colocado contra a parede,
um determinado país.” A organização,
fazendo dessa cordialidade um aspec-
para Kayayan, tem a vantagem de ser
to simplesmente aparente. Por isso,
apartidária, o que é favorável para unir
fazer justiça pelas próprias mãos pode
os indivíduos.
ser uma saída considerada pelos bra-
O sociólogo comenta que os proble-
sileiros. “Não concordo que somos um
mas de uma sociedade só podem ser
povo pacífico. Se fizerem uma pesquisa,
solucionados se houver cooperação das
é provável que a maioria no país apoie
autoridades com a população. Ele afir-
os justiceiros. A mediação do Estado,
ma que quando o Brasil quer enfren-
da cultura e da conversa, passa longe
tar seus problemas, o país consegue
da gente”, comenta.
superá-los. “Um exemplo é a AIDS. O
O antropólogo afirma que, se nos per-
país hoje é referência no tratamento da
guntarmos por que somos assim, por
doença. Também pode ser referência
que temos essa índole violenta, encon-
em outras áreas, se desejar.”
traremos a resposta nos problemas sociais. “Não há paz sem distribuição
Cordialidade
de renda. Um país que é tão miserável
No livro “Raízes do Brasil”, de 1936, o
socialmente não pode ter um povo psi-
historiador Sérgio Buarque de Holan-
cologicamente sadio”.
da descreveu o brasileiro como um
Benzatti fala sobre as atitudes toma-
Não vejo a polícia como violenta. A atitude de tais justiceiros é bem mais cruel do que seria a de um policial”
homem cordial. A expressão gerou e
das quando alguém flagra um homem
gera até hoje confusão. Cordial remete
abusando de uma mulher no metrô. “Se
e é entendido pelo senso comum, como
fôssemos seguidores da ordem, da lei
gentil, pacífico. Mas essa não é a única
e dos direitos humanos, levaríamos o
leitura possível para o termo. O cor-
sujeito para as autoridades e não faría-
dial de que Sérgio falava era, na ver-
mos justiça com as próprias mãos”.
Roberto Mantovan, ex-coronel da PM
dade, relativo à raiz latina cordis, que
O acadêmico comenta ainda que se há
significa coração. Nessa leitura, cordial
um lado positivo nos linchamentos que
seria aquele que é movido pelo coração
ocorrem no Brasil, é que eles revelam
- emocional e impulsivo. O comporta-
o verdadeiro caráter violento da nossa
mento pode, portanto, facilmente se
sociedade. “É preciso muita cultura,
Com uma ampla pauta de reivindicações sociais, milhões de brasileiros foram às ruas em 2013 | muita educação, civilização e leis para reprimir tudo isso”, finaliza Benzatti.
“Aquilo que acontece no Rio de Janei-
FOTO DOUGLAS CLEMENTINO
de forma repressiva, o MP vai gerar ou
ro, por exemplo [o linchamento no Fla-
não uma acusação do crime, e o Judi-
mengo], é uma aberração. A gente tem
ciário aplicará ou não uma punição”,
Polícia militar
que defender um Estado legalista, fazer
explica o coronel. “Quando tal processo
Segundo estatísticas da Secretaria de
aquilo que está na lei, e isso deve ser
não acontece da forma correta, acabam
Segurança Pública de São Paulo, os
praticado principalmente pelos ser-
ocorrendo situações em que a justiça é
homicídios em fevereiro deste ano caí-
vidores públicos que trabalham nessa
feita com as próprias mãos”.
ram 3,4% no Estado em relação ao mesmo
área”, afirma o repórter, ao enfatizar
No entanto, ele afirma que o descon-
período de 2012. No entanto, os recentes
que jamais podemos assumir um papel
tentamento da sociedade não é só com
casos de infratores amarrados a postes
que cabe ao Estado.
a aplicação desse sistema, mas também
deixam claro que a violência está sendo
O coronel da reserva da PM Rober-
com a situação política do país. “É um
usada como uma das soluções para a
to Mantovan diz não ver os agresso-
reflexo. Quando se percebe a impuni-
criminalidade. No começo de 2014, os
res como justiceiros. “São pessoas
dade de forma geral, o próprio governo
municípios de Itajaí e São José (SC), o
que estão descontentes com o sistema
não dá o exemplo. É um país sem exem-
bairro do Flamengo, no Rio de Janeiro,
e a segurança pública do Brasil. Como
plos e a tendência é só piorar”, diz.
e o bairro Santo Antônio, em Belo Hori-
houve vítimas de roubo ou furto, as pes-
“Não vejo a polícia como violenta. A
zonte, foram palco de cenas brutais con-
soas se rebelam e resolvem atuar por
atitude de tais justiceiros é bem mais
tra assaltantes.
conta própria, o que tem se tornado algo
cruel do que seria a de um policial. A
comum. No entanto, é incabível.”
atuação da polícia visa trazer uma res-
O jornalista André Caramante, perseguido e ameaçado de morte diversas
Hoje, aos 62 anos e aposentado, Man-
posta para a sociedade, apesar de haver
vezes devido ao conteúdo publicado
tovan defende o atual sistema de segu-
excessos de alguns”, defende o coronel
em suas matérias na Folha de S.Paulo,
rança do país. “Há um sistema defini-
da PM. “O Estado é obrigado a dar segu-
relatando situações de abuso policial,
do por Polícia Militar, Polícia Civil,
rança ao cidadão; ele não pode ficar sem
acredita que não é porque o Estado está
Ministério Público e Judiciário. A PM
segurança, que é necessária para que se
falhando que devemos falhar também.
funciona de forma preventiva, a Civil,
preserve a ordem pública”.
FOTOS: BIANCA GIACOMAZZI
marcha da família
“
24/25
A violência tem tomado conta da nação, e, nesse caso, dá para entender quando amarram um bandido ao poste Bruno André, 28
“
Quando alguém invade sua casa ou mexe com a sua família, por exemplo. Nesse caso, eu teria total liberdade de fazer justiça com as próprias mãos contra essa pessoa.
“
Eu já perdi um filho para assaltantes. Eu não prego fazer justiça com as próprias mãos nem para aquele que matou o meu filho.
“
A partir do momento em que estão violando a minha segurança, eu passo por cima de quem está me afetando. Luiza Helena Ruiz, 26
Mara Montezuma, 68
Lincoln Ribeiro, 28
É LEGÍTIMO FAZER JUSTIÇA COM AS PRÓPRIAS MÃOS? A Plural foi às marchas pela Família com Deus e Antifascista para saber a opinião dos manifestantes
“
Eu acredito que estamos num processo de evolução. É contra os meus princípios. Almir Gonçalves de Sousa, 54
“
Uma vez que o país não tem justiça, o povo está cansado de esperar e não acontecer nada. Lisa Negre, 72
“
Temos direito à defesa a ameaças à integridade física, mas não concordo com a aplicação disso, como nos linchamentos.
“
Se o cidadão pode andar armado para se defender, ele não está pensando em justiça, e sim em sobrevivência.
Alessandra Simões, 44
André Zangari, 30
FOTOS: CINTIA AZUMA
marcha antifascista
“
Fazer justiça com as próprias mãos depende muito da situação. Hoje não deveria, pois existem leis que cuidam disso. Só se pode em casos de legítima defesa.
“
“
As as pessoas deixam de acreditar na lei e na justiça. Eu não sei o que é pior: cometer um ato criminoso ou buscar vingança.
Só podemos fazer justiça com as próprias mãos para nos defendermos de um opressor e quando estiverem nos oprimindo.
Kelly Estivalli, 36
Daniel Santos, 20
Thiago Augusto, 18
“
“
Não se pode fazer justiça com as próprias mãos. Devemos lutar para que a sociedade tenha consciência. Edson Dorta, 42
+ PLURAL NA INTERNET
Use um leitor de QR Code e veja reportagem em vídeo sobre a marcha da Família com Deus pela Liberdade.
O principal direito humano é a qualidade de vida. Assim, não se pode fazer justiça com as próprias mãos, a não ser que seja legítima defesa.
A justiça é o maior valor da sociedade. Não podemos fazer justiça com as próprias mãos. Às vezes os direitos se chocam e um direito seu fere o do outro.
“
“
Ernesto Richler, 72
Celina Nascimento, 51
Levy Santana, 32
Em nenhum momento pode-se fazer justiça com as próprias mãos. Você precisa ter uma base teórica e jurídica para fazer justiça, e nenhuma pessoa vai ter isso nas próprias mãos.
UM OLHAR SOBRE O PROCESSO DE REPORTAGEM
26/27
BASTIDORES
DIREITO DE APRENDER O tema dos direitos humanos no Brasil divide opiniões; a pluralidade de vozes desafia estudantes de jornalismo
MARINA AYUB
debatemos conceitos de ética jornalística. Demos um salto quantitativo e
»»»Gabriel García Márquez, em um
qualitativo em nossa (futura) profissão.
famoso discurso na Sociedad Intera-
Fomos, enfim, jornalistas.
mericana de Prensa (SIP), em 1996,
Experimentamos os mais diver-
disse: “Toda a formação deve se sus-
sos sentimentos em todas as etapas.
tentar em três vigas mestras: a prio-
Primeiro, a escolha do tema: direi-
ridade das aptidões e das vocações,
tos humanos. O Brasil – e o mundo –
a certeza de que a investigação não é
vivem um período conturbado, e mui-
uma especialidade dentro da profis-
tas vezes nos esquecemos do significado
são, mas que todo jornalismo deve ser
da democracia e do direito da pessoa
investigativo por definição, e a cons-
humana. A Plural deste semestre teve
ciência de que a ética não é uma con-
como objetivo retratar, refletir e reper-
dição ocasional, e sim que deve acom-
cutir um pouco desse cenário.
panhar sempre o jornalismo, como o zumbido acompanha o besouro”.
O aspecto desumano dos presídios brasileiros, os linchamentos e as agres-
Esta edição da Plural materializa
sões moral e física contra infratores,
o discurso do escritor. Exercitamos
os resquícios da ditadura, entrevistas
nossas vocações, colocamos em prá-
com acadêmicos e especialistas e mais.
tica a possibilidade da investigação e
Muito mais. Exploramos os ícones que
a reportagem não foi prejudicada. Ele também afirma que a experiência da Plural fez com que se sentisse mais preparado para outros desafios. Isabela Souza conta que o maior aprendizado foi saber mais da história do país pelas pessoas que vivenciaram a época da ditadura. “Saber com detalhes o que aconteceu com cada torturado e também ter a visão da parte dos militares me fez refletir sobre o que aconteceu naqueles anos sombrios. A parte mais difícil foi ser imparcial.” A jornalista Eliane Brum, em seu livro de ficção “Uma Duas” escreve: “Como pode a vida absorver tanto horror e seguir adiante”. Nós, os futuros profissionais de comunicação, e aque-
Ao lado, as alunas Mariana Stocco (esq.) e Anita Efraim (com o gravador); acima, Bianca Giacomazzi | FOTOS ISABELA SOUZA
les já consolidados, absorvemos histórias que nos fazem refletir. Absorvemos, por vezes, o horror. Mas ele deve ser contado, deve ser pensado, deve ser combatido. Isabela conta sobre como foi ouvir de
lutam a favor dos direitos humanos,
Para Anita Efraim, o incentivo a nos
uma senhora de 70 anos que ela foi estu-
mas também descobrimos os eventos
desinibirmos e darmos o primeiro passo
prada por 10 oficiais da ditadura mili-
e personalidades que agem no sentido
para entrevistar alguém foi um ponto
tar. “São coisas que só indo para a rua a
contrário, incitando o ódio.
interessante do processo. Anita conta
gente vai escutar e aprender. São coisas
que procurar contatos como o de Ivo
pesadas e tristes. E aí nos perguntamos
Experiências
Herzog e de especialistas em direitos
se é o que queremos fazer para nossas
Carla Fernandez e Fernanda Botteghin,
humanos e criar as oportunidades para
vidas. Mas é o que eu quero. Eu apren-
que escreveram a matéria da capa da
as reportagens foi essencial.
di a ouvir os diferentes lados.”
edição e também o perfil da médica
“Mas também houve dificuldades,
missionária Zilda Arns, concordam que
como entrevistar pessoas de cujas opi-
uma das melhores partes da experiên-
niões eu discordo. No momento da
cia é ver o resultado do trabalho jorna-
entrevista, é preciso excluir totalmen-
lístico. Carla afirma: “Uma das maiores
te o nosso lado pessoal e deixar de lado
dificuldades foi editar e escolher uma
as ideologias. Profissionalismo é o que
determinada quantidade de conteú-
importa na situação”, comenta.
do para publicar. Conseguimos muito material bom”.
Sistema carcerário
Para Fernanda, a história de Zilda
Já Guilherme Machado comenta que
Arns foi comovente. “É muito interes-
uma das maiores dificuldades para a
sante poder conhecer mais sobre uma
reportagem sobre presídios foi a greve
pessoa tão altruísta.”
dos agentes penitenciários em São
“Foi difícil escolher somente algumas
Paulo que durou 15 dias e terminou no
pautas para trabalhar, todas eram muito
dia 26 de março. “Só conseguimos visi-
relevantes”, conta Fernanda. As futuras
tar um presídio militar. Lá é uma rea-
jornalistas também comentam sobre a
lidade diferente. Não é o tipo de presí-
experiência de escrever matérias mais
dio que tentamos mostrar na matéria.
longas, realizar a edição e diagramar.
De maneira geral, o sistema carcerário
“Criei grande expectativa para partici-
brasileiro está em péssimas condições.”
par da revista e, no fim, ver o resulta-
No entanto, Guilherme diz que, com
do nas mãos é muito gratificante”, diz
a grande quantidade de informações
Carla.
que foi adquirida no presídio militar,
+ PLURAL NA INTERNET
Use um leitor de QR Code e confira depoimentos em vídeo dos alunos que fizeram esta edição.
28/29
30/31
FOTO PADRE VALDIR SILVEIRA
32/33
A FÁBRICA DO CRIME Direitos humanos são frequentemente violados nas penitenciárias brasileiras
sileiras. Jornais publicaram que um
A Pastoral Carcerária trabalha no
presídio no município de Pedrinhas,
auxílio aos detentos e vem, desde então
no Maranhão, era palco de diversos
,levantando dados sobre a realidade
1. “Presos filmam decapitados em peni-
atos de violência. Casos de agressões
dessa população em todo o Brasil. Den-
tenciária no Maranhão; assista ao
entre presos e policiais, decapitações
tre suas ações está orientar o preso e sua
vídeo” – Folha de S. Paulo 07/01/2014
e fugas eram frequentes. O complexo
família durante todo o tempo de reclu-
2. “CPI já havia identificado sinais de
logo se tornou famoso e um exemplo
são e durante a reintegração social. Há
tortura na penitenciária de Pedrinhas”
da ausência do Estado nas penitenci-
três anos, essa entidade trabalha tam-
– O Estado de S.Paulo 08/01/2014
árias brasileiras.
bém com um projeto de práticas restau-
GABRIELA BERALDO GUILHERME MACHADO IVAN TRIMIGLIOZZI
3. “ONGs denunciam nas Nações Uni-
A barbárie em Pedrinhas não foi, con-
rativas, que pretende ensinar detentos
das mortes no Complexo de Pedrinhas”
tudo, um caso isolado. Em todo o Brasil,
e funcionários a lidarem com sua situa-
– Carta Capital 10/03/2014
não há um único presídio civil que siga
ção e sentimentos. O programa melho-
integralmente a Lei de Execução Penal
rou o relacionamento entre presos e
»»» O ano começou com uma série de
(LEP). Com isso, a reintegração social
seus familiares. Além disso, a pasto-
denúncias sobre penitenciárias bra-
plena dos detentos é impossibilitada.
ral age junto às instituições prisionais
Paulo (Sindasp), um dos principais problemas para os agentes de segurança em presídios paulistas é o fato de terem suas condições limitadas por conta da superlotação. “O governo não dá apoio nenhum, pois ele vê a gente como um depósito de gente”, argumenta. Os agentes, diz, aprendem durante seu treinamento que a atividade prisional promove a reinserção do indivíduo à sociedade, mas na prática o preso não recebe o devido apoio. A superlotação torna quase impossível solucionar outros problemas das prisões. O precário cumprimento da lei culmina em violações aos direitos humanos dentro dos presídios. “Presídio é o local da garantia da violação de direitos humanos”, sentencia o padre Silveira, que já viajou todo o país visitando locais de encarceramento. O descumprimento da lei começa com a alocação dos presos: os provisórios, os condenados e os em regime semiaberto, que deveriam ficar separados, compartilham a mesma cela. Por causa disso, um preso condenado ao regime semi-aberto frequentemente permanece no regime fechado. Não há também separação por tipo de condenação. “Um homem acusado de roubar galinhas
Central de Triagem de Cremação, em Belém, no Pará |
FOTO PASTORAL CARCERÁRIA
acaba dividindo a cela com um chefe de quadrilha”, exemplifica o padre.
na cobrança do cumprimento das leis
brasileiros, na época com 548 mil pre-
penais.
sos. Esse dado não foi divulgado no rela-
Mulheres
tório de 2013.
Presídios femininos são instalados
O presidente nacional da Pastoral, padre Valdir Silveira, tem uma opinião
Com o déficit de vagas, agrava-se o
clara sobre os presídios no país. “É uma
maior problema das prisões brasilei-
coisa ruim, cara e violenta para toda a
ras: a superlotação. Esse fator pode ser
sociedade.” Para ele, o presídio é um
observado em todos os presídios do
local de organização criminosa, que
país. A situação se torna pior pelo mal
facilita a formação de quadrilhas. “O
funcionamento do Judiciário, que atra-
Estado garante o reduto para organi-
sa os processos. De acordo com dados da
zar os presos”, opina.
Pastoral Carcerária, 40% da população
O governo federal investiu no núme-
prisional é formada por presos provi-
ro de unidades prisionais em todo país
sórios. Segundo o padre Silveira, o país
e , paralelamente, cresceu o déficit de
pratica uma política de encarceramen-
vagas prisionais. Em 2013, de acor-
to em massa. Hoje o Brasil tem a quarta
do com o Departamento Penitenciá-
maior população carcerária do mundo,
rio Nacional (Depen), aumentou 6,5%
atrás apenas dos Estados Unidos, China
a população carcerária brasileira, che-
e Rússia.
gando a 584 mil detentos em dezembro
De acordo com Luciano Rodrigues,
do ano passado. O relatório de 2012 do
diretor administrativo da sede regio-
Depen afirma que em dezembro daquele
nal de São Paulo do Sindicato dos Agen-
ano faltavam 237.313 vagas nos cárceres
tes de Segurança Penitenciária de São
em prédios de antigas penitenciárias
É uma coisa ruim, cara e violenta para toda a sociedade Padre Valdir, presidente nacional da Pastoral Carcerária
34/35 A cena de presos em celas superlotadas é comum no Brasil |
FOTO PASTORAL CARCERÁRIA
masculinas e de antigas unidades da
das mães às vezes um dia após o parto.
Fundação Casa (antiga Febem). De acor-
A Conectas também menciona o fato de
do com a Lei de Execução Penal, essas
existirem 508 unidades prisionais com
Visitas
instituições deveriam ter uma estrutura
mulheres encarceradas no país; dessas,
“De acordo com a lei, somente o delator
diferenciada, apropriadas para grávidas
só 58 são exclusivamente para mulhe-
do crime pode pagar por ele. No entan-
e filhos das detentas. Doentes mentais
res, enquanto as demais são mistas.
to, no Brasil, a família paga junto”, cri-
sentido, diz o padre.
também não recebem espaço adequa-
As deficiências na assistência à saúde
tica o presidente da Pastoral Carcerá-
do nos presídios e acabam ficando junto
são graves. O número de óbitos por falta
ria. Ele se refere às visitas aos presos e
com todos os presos. Assim, não rece-
de atendimento e de remédios é alto
às revistas vexatórias pelas quais pas-
bem tratamento médico adequado.
mas, segundo o Padre Valdir, são regis-
sam ao chegar aos presídios. Os visitan-
Segundo relatório da Conectas (ONG
trados em geral como morte natural
tes passam por revistas em suas partes
que trabalha na proteção dos direitos
nos documentos oficiais. Presos tam-
íntimas, violando até mulheres e crian-
humanos), em dezembro de 2012 exis-
bém sofrem pela falta de produtos bási-
ças no processo. Algumas instituições
tiam apenas 15 ginecologistas para aten-
cos de higiene, que eles só conseguem
adotaram scanners corporais ou a revis-
der todo o sistema prisional feminino
por meio da família e de negócios com
ta do preso, no lugar do familiar. No
do país. No mesmo texto são mostrados
outros presos.
entanto, são medidas ainda novas, em
outros problemas relacionados a mulhe-
A lei também obriga que todo preso
geral restritas a presídios de São Paulo,
res presas. Por exemplo, embora exista
tenha acesso ao trabalho e à educação.
no Brasil uma lei que garante que o bebê
No entanto, são raras as penitenciárias
Segundo uma pesquisa do Núcleo de
pode permanecer com a mãe até o perí-
que oferecem efetivamente essas opor-
Estudos de Violência da USP, quando
odo mínimo de seis meses de vida (que
tunidades. Em 2012, a lei passou a exi-
um suspeito é preso no Brasil, ele espe-
pode vir a ser estendido até sete anos de
gir que todos os presídios tivessem salas
ra em média quatro meses até conhe-
idade), bebês acabam sendo retirados
de aula, mas quase nada foi feito nesse
cer seu defensor público, em um Centro
maior cidade do país.
PIORES PRESÍDIOS DO PAÍS* » Presídio Central de Porto Alegre de Detenção Provisória (CDP). Durante
por um crime. “A questão é que essas
esse tempo, o preso pode perder recur-
pessoas já vêm de um cenário de exclu-
sos de defesa, como uma testemunha
são e pertencem a grupos mais vulne-
que desaparece. De acordo com a Cons-
ráveis da sociedade”, opina. “Existe um
tituição, as pessoas devem ser tratadas
histórico social que coloca aquelas pes-
como inocentes até prova em contrário
soas ali”, completa.
mas, na prática, a situação se inverte com frequência.
Para a Conectas, é necessário mudar a política carcerária. Em 2011 foi cria-
“Há um abandono total dos presídios”,
da a Lei nº 12.403, que prevê medidas
conta Rafael Custódio, coordenador do
de detenção que substituem o encarce-
programa de justiça do Conectas. Segun-
ramento. Dentre elas estão tornozelei-
do ele, não há fiscalização das condi-
ras eletrônicas para prisão domiciliar e
ções das prisões por parte do governo.
proibições de sair aos fins de semana.
Defensores públicos, que têm como fun-
Outro aspecto essencial para a ONG,
ção visitar os presídios, e juízes, que são
no combate ao encarceramento em
os responsáveis pelos presos, raramen-
massa e, portanto, aos maus tratos nas
te são vistos pelos detentos.
prisões, é a descriminalização do porte
» Presídio Masculino de Londrina » Central de Triagem de Cremação Belém do Pará/ Presídio de Balsas do Maranhão » Unidade Prisional de Coari - Rio Solimões, Amazonas *segundo denúncias realizadas pela Pastoral Carcerária
“A polícia é muito eficiente para levar
e uso de drogas. Esse posicionamento
até a prisão, mas o Estado não é eficiente
parte do fato de que 25% dos presos do
para cuidar e prestar defesa ao encarce-
país foram indiciados por algo relacio-
rado”, comenta Custódio. Por esse moti-
nado a drogas. O índice aumenta para
vo, seria necessário um serviço jurídi-
60% entre as mulheres. “É um crime
co melhor e uma política diferente de
que na grande maioria das vezes não
encarceramento para que se mantives-
envolve violência”, conta Rafael Custó-
se preso apenas quem fosse devidamen-
dio. O que é preciso, de acordo com o
te condenado. “O medidor de qualidade
coordenador, é investigar os verdadei-
Homens
social aponta que a polícia boa é aque-
ros caminhos do tráfico e os reais donos
la que prende muito”, diz o coordena-
da droga. “Ninguém que entra em um
55%
dor. “O poder público sabe disso, então
presídio hoje acredita que a política de
incentiva o encarceramento.”
guerra às drogas está dando certo.”
PERFIL DO PRESO BRASILEIRO
94% 18-30 anos
43,8% Pardos
Pesos e medidas
Tortura
Há outra reflexão que precisa ser feita
Casos de tortura e violência em unida-
em relação ao sistema prisional brasilei-
des de detenção brasileiras são comuns.
ro. “Em nosso país, os crimes que nor-
O livro Relatório Sobre Tortura, da Pas-
malmente a classe média comete não
toral Carcerária pulicado em 2010, apre-
dão cadeia”, afirma Custódio. “Aqueles
senta informações do banco de dados da
mais praticados pelas classes inferio-
Pastoral (1997- 2009) e aponta que das
res têm penas mais altas”. Por exem-
211 violências identificadas, 59 eram na
plo, o atraso no pagamento de impostos
penitenciária (masc/fem), 31 no presídio,
gera parcelamento da dívida, enquan-
38 na carceragem, 23 na cadeia pública
to pequenos furtos se revertem em anos
e as demais em outros locais como Casa
de prisão.
de Detenção e Casa de Custódia.
O coordenador conta ainda que, para
Excessos por parte de policiais mili-
muitas pessoas, o sofrimento das pes-
tares ocorrem em casos de rebeliões
soas dentro das prisões não é algo tão
e fugas, por exemplo, nas quais exis-
ruim, dado que os presos estão pagando
te uso abusivo de balas de borracha e
10%
Analfabetos
60%
Ensino Fundamental incompleto
25%
Presos por tráfico de drogas *dados do Ministério da Justiça divulgados em 2012, quando a população carcerária no Brasil era de 548 mil pessoas
36/37 Celas do primeiro estágio de encarceramento no presídio militar Romão Gomes, em Guarulhos |
FOTO GUILHERME MACHADO
de bombas de efeito moral. Também é
penitenciários, o diretor regional do Sin-
afirmado no livro “Relatórios Sobre Tor-
dicato dos Agentes de Segurança Peni-
tura”, que crimes praticados por agen-
tenciária do Estado de São Paulo, Lucia-
Presídios militares
tes penitenciários são normalmente em
no Rodrigues, afirma que não há como
O presídio militar Romão Gomes, na
situações de castigo, após conflitos ou
haver abusos por parte de agentes em
zona norte de São Paulo, apresenta
na aplicação de sanções disciplinares,
um presídio superlotado, uma vez que
condições bem diferentes da maioria
existindo situações nas quais os presos
eles se sentem intimidados pelo grande
dos presídios brasileiros. Dirigido pelo
são colocados em celas isoladas, sendo
número de presos. “Imagina você sozi-
major Márcio Necho da Silva há 27 anos
que, quanto mais inacessíveis os espa-
nho cuidar de 800 presos. O funcionário
na polícia e há seis meses no comando
ços, mais os detentos ficam vulneráveis
se expõe quando assume uma unidade
do presídio, o Romão Gomes segue a
a maus-tratos e torturas.
prisional”, diz. Rodrigues cita um presí-
Lei de Execução Penal à risca, e oferece
importantes”, declara.
O levantamento aponta que dos 211
dio em Pinheiros no qual estima-se uma
condições de trabalho dentro do próprio
casos de tortura registrados pela Pas-
média de 500 presos para cada agente. O
presídio. Além de oficinas como horta,
toral no país, 71 ocorreram no Estado de
administrador diz ainda que o governo
marcenaria, suinocultura e lava rápido,
São Paulo, 30 no Maranhão, 25 em Goiás
pouco auxilia os agentes.
três empresas empregam o trabalho dos
e 12 no Rio Grande do Norte. Os dados
Para Rafael Custódio os agentes são
internos, que fabricam velas, compo-
também mostram que, dos 211 ocorri-
sobrecarregados e negligenciados pelo
nentes eletrônicos para carros e emba-
dos, foram 134 casos de tortura, 33 rea-
Estado. Ele acrescenta também que
lagens de papelão. “Por ser um presídio
lizadas por policiais militares e 39 por
esses profissionais são mal pagos e
militar, o cumprimento da Lei de Exe-
agentes penitenciários. Outros casos de
que falta estrutura material e recursos
cução Penal é obrigatório. Dos internos,
tortura também foram realizados por
humanos para que realizem seu traba-
90% trabalham. As regras no presídio
policiais civis e seguranças privados.
lho. “Os agentes são o contato direto do
proporcionam melhores condições de
preso com o Estado e, por isso, são tão
vida e de conduta do interno. Não temos
Em relação à ação dos agentes
problemas de fuga, motim ou qualquer tipo de violência”, aponta o major Necho da Silva. Presos em flagrante, em prisão preventiva ou por medida de segurança, as infrações cometidas são as mais diversas. Dos 169 internos, 99 são acusados de homicídio, 17 de estupro e 11 de roubo. Os demais são crimes como corrupção, porte ilegal de arma e sequestro. Bem diferentes daquelas encontradas em presídios civis, as melhores condições oferecidas pelo presídio militar estão ligadas ao cumprimento da lei. O diretor afirma que a lei permite que o interno reduza sua pena de acordo com suas horas de estudo e trabalho, reduzindo-a em até três dias por semana de trabalho. No regime semiaberto, as empresas e faculdades que os internos frequentam mandam relatórios diários ao presídio, comprovando se o inter-
Grade que cerca parte do presídio Romão Gomes |
FOTO GABRIELA BERALDO
no realmente cumpre suas funções”. Necho comenta que o serviço reservado da PM também comprova se o interno está trabalhando e, se for verificada
visitantes e, no terceiro, quatro visitan-
a ausência do interno, isso é informa-
tes. Necho ressalta que desde o primei-
do ao juiz, que retira seus benefícios .
ro estágio o interno já trabalha indepen-
Já o Regimento Interno do Tribunal de
dentemente de ter sido condenado ou
Justiça Militar abre espaço para regras
não. “Alguns acusados começam a tra-
que não estão previstas na Lei de Execu-
balhar antes mesmo de condenados, já
ção Penal. O Romão Gomes tem regime
visando reduzir sua possível pena.”
dividido em três estágios e com diferen-
Dos internos, atualmente 149 foram
tes limitações. A não ser por determina-
julgados pela Justiça comum e os outros
ção do juiz, os estágios devem ser cum-
20 pelo Código Militar, pois cometeram
pridos por todos os internos. Segundo
o crime durante o serviço. Nos casos de
Necho, são observados a conduta e o
homicídio, o crime contra a vida é sem-
aspecto psicológico do interno, fatores
pre julgado pelo tribunal do júri.
que determinam a passagem de estágio.
+ PLURAL NA INTERNET
Em relação aos presídios civis, o
O primeiro estágio é cumprido em
major Necho aponta que todos deve-
uma cela comum e permite dois visi-
riam seguir a Lei de Execução Penal, e
tantes por fim de semana. O segun-
a ressocialização é difícil pela ausência
do e terceiro estágios são cumpridos
de trabalho, as péssimas condições de
em um alojamento-cela, que apresen-
vida e pela periculosidade dos indiví-
ta melhores condições de convívio em
duos. “Quanto mais tempo a cabeça do
um espaço maior. A diferença entre eles
interno estiver ocupada, menos ele pen-
está nas visitas, sendo no segundo três
sará em fazer besteira”, conclui.
Use um leitor de QR Code e veja o videoclipe oficial da música “Diário de um Detento”, dos Racionais MCs.
38/39
FOTO MARIANA STOCCO
HERANÇA MALDITA Resquícios de práticas da ditadura militar persistem na sociedade brasileira mesmo 50 anos após o golpe de 1964
JOVENS NEGROS E POBRES SÃO A MAIOR PARTE DAS VÍTIMAS DA VIOLÊNCIA POLICIAL NO BRASIL
Apresentou seus documentos, mas ANITA EFRAIM DEBORA BROTTO ISABELA SOUZA MARIANA STOCCO
mesmo assim acabou sendo levado à base da UPP. Mais tarde, quando sua mulher, Bete, chegou à delegacia, a polícia dizia já
História 1** (os nomes foram trocados)
tê-lo liberado. Amarildo sumiu. As
»»» Eram cinco jovens entre 21 e 26
câmeras de segurança da base policial
anos. Acreditavam na esquerda e na
não funcionaram naquela época. O sis-
possível mudança do país. Até que tudo
tema de rastreamento do carro em que
deu errado.
o assistente de pedreiro foi levado indi-
Em uma madrugada, Eduardo, um
ca que a viatura deixou a favela e rodou
dos cinco guerrilheiros, recebeu um
por vários pontos da cidade. Sete meses
telefonema. A irmã e a mãe de Antô-
depois, a Justiça decretou a morte pre-
nio, amigo de Eduardo, pediram para
sumida dele.
que ele fosse até o prédio dele, no Rio
Até hoje, ninguém foi preso e nem se
de Janeiro, que estava rodeado de car-
sabe o real paradeiro do corpo de Ama-
ros patrulha.
rildo, que deixou seis filhos.
PROCESSOS A Comissão sobre Mortos e Desaparecidos Políticos enviou 475 processos à Comissão Nacional da Verdade
O apartamento estava todo revirado. Um tenente apareceu diante dos três e abriu a porta do elevador. Antônio esta-
Apesar das semelhanças, as duas histó-
va estirado no fundo do fosso. A mãe
rias têm 50 anos de diferença. Em uma,
recuou ao ver a cena. Seu ímpeto era o
o Brasil era regido por uma ditadura.
de pular também, suicidar-se. A mãe
Em outra, por uma democracia. O golpe
ficou em choque e só foi se recuperar
de 1964, que depôs o presidente João
nos anos de 1980.
Goulart, transformou a realidade bra-
Roberto segue desaparecido até hoje.
sileira e, até hoje, suas características
Rubens estava na célula que havia
aparecem enraizadas em diversas ins-
sequestrado um americano logo após a
tituições e na própria cultura nacional.
Copa do Mundo de 1968. A namorada de
A violência policial é marcante na
Jonas tinha visto o noivo levar choques
sociedade. Talvez não enxergada por
nas genitálias e passou pelo mesmo.
todos, mas vivenciada, principalmente,
“Não é brincadeira. Não tem papo”.
por moradores da periferia. A criação do
No dia em que o AI-5 foi decretado, a
termo Polícia Militar é de 1946. A Rota
praia de Ipanema estava uma loucura.
(Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar)
“Ninguém tinha a mínima ideia do que
foi criada em plena ditadura para perse-
ia acontecer.”
guir e tirar de cena os militantes esquer-
Apesar das dificuldades, nós da CNV conseguimos cumprir um objetivo fundamental, que é criar um tempo de verdades” Rosa Maria Cardoso, coordenadora da Comissão Nacional da Verdade.
distas. Segundo o Informe 2013 divulga-
História 2
do pela Anistia Internacional, no início
»»» Era uma noite de julho na cidade
do ano, os Estados brasileiros continu-
maravilhosa. A favela da Rocinha seguia
aram a realizar práticas policiais discri-
sua rotina normal mesmo enquanto a
minatórias e repressivas para enfren-
polícia realizava a Operação Paz Arma-
tar a violência, resultando na morte de
da para combater o tráfico de drogas, em
milhares de pessoas.
que 30 pessoas acabaram presas. Ama-
O aspecto racial foi destacado pela
rildo estava na porta de um bar quando
Anistia Internacional: homens negros
foi abordado pelo policial Cara de Maca-
e jovens faziam parte de um número
co, como é conhecido na comunidade.
desproporcional entre as vítimas, principalmente no Norte
“A QUESTÃO DA DEMOCRATIZAÇÃO AINDA NÃO ATINGIU AS ENTRANHAS DO PODER JUDICIÁRIO”
e no Nordeste do país. Os homicídios cometidos por policiais continuaram a ser registrados como “autos de resistência” ou “resistência seguida de morte” no Rio de Janeiro e em São Paulo. Segundo a Anistia, poucos casos de suspeita
40/41
de violência policial são efetivamente investigados, apesar de todas as evidências de uso de força excessiva. Um caso emblemático: José Guilherme Silva, 20 anos, foi acusado pela polícia de ter participado de um assalto em 14 de setembro de 2013 na cidade de Limeira. Abordado pela polícia, foi revistado e encaminhado para a delegacia, mesmo sem portar armas. Ele foi algemado com as mãos cruzadas para trás e posto no porta-malas da viatura. No trajeto, segundo a versão da polícia, o jovem sacou um revólver calibre 38 e se matou com um tiro na cabeça. Até hoje os pais do jovem não conseguiram provar que o filho foi assassinado e os policiais envolvidos permanecem nas ruas. Conforme a Anistia Internacional, no Estado de São Paulo foram registrados 3.539 homicídios em 2013 por policiais – um aumento de 9,7% em relação a 2012. Só no mês de novembro do mesmo ano mais de 90 pessoas foram assassinadas por policiais. Além da violência policial, a impunidade no país é outro resquício reforçado pela ditadura militar. De acordo com o
Vladimir Safatle, filósofo e professor
exemplarmente os que implementa-
historiador Marco Antonio Villa, a rede-
da Universidade de São Paulo, afirma
ram e deram suporte à ditadura civil-
mocratização do Brasil, feita por José
que “está na moda” dizer que a dita-
-militar”.
Sarney, vice-presidente de Tancredo,
dura só aconteceu realmente de 1969
“Quem diria que em 2014, 50 anos
não efetuou um acerto de contas com
a 1979, quando vigorou o Ato Institu-
depois, nós estaríamos discutindo se
o passado. A transição mal feita levou a
cional número 5, AI-5. Antes e depois
houve ou não uma ditadura militar no
falhas no sistema Judiciário. “A ques-
teria acontecido um “regime autoritá-
país.” Para ele, era de se esperar que
tão da democratização ainda não atin-
rio”, mas nada que se comparasse a uma
agora estivéssemos vendo cartas aber-
giu as entranhas do poder Judiciário. E
verdadeira ditadura. “Afinal, até exis-
tas das Forças Armadas pedindo per-
aí é onde a coisa é mais escabrosa”, afir-
tia partido de oposição”, ironiza. Para
dão por terem protagonizado um dos
ma Villa, que justifica o fato com exem-
ele, essas análises trazem “um verda-
momentos mais sangrentos da história
plos sobre juízes que, hoje, vendem sen-
deiro negacionismo histórico, a fim de
brasileira e também de grupos empre-
tenças e não são punidos.
desqualificar a necessidade de punir
sariais, por terem financiado o golpe.
OS JORNAIS PUBLICAVAM SOMENTE O QUE O GOVERNO DITATORIAL PERMITIA
jornalistas e ativistas políticos. A professora Denise Fabretti, da ESPM-SP, conta que o AI-5 rompeu com toda a estrutura institucional do país, como as divisões de poderes em Executivo, Judiciário e Legislativo. “A partir do AI-5, o Congresso vai para recesso e o Executivo passa a fazer as leis”, afirma. Além disso, o ato impede a concessão de habeas corpus para os presos políticos acusados de crime contra a ordem econômica e social. ECONOMIA A economista e professora da ESPM-SP Cristina Helena de Mello conta que quando o golpe de 1964 foi dado, pensava-se em como corrigir a questão econômica da época: “Não se tratava só e apenas de uma discussão entre esquerda e direita, tratava-se de tentar propor soluções para uma inflação crescente, um déficit externo crescente e uma desorganização grande, no sentido da impossibilidade de repartição do produto social do trabalho na sociedade”. Cristina acredita que o horizonte de crescimento econômico no Brasil, atualmente, está ameaçado. Ela também considera que questões econômicas importantes estão entrando na pauta da sociedade ainda sem a
“Mas, até agora, não se viram obrigados a um mínimo mea culpa.” Contrário à interpretação de Safatle,
Evento realizado no dia 31 de março de 2014, no pátio do antigo DOI-Codi. Familiares e torturados participaram da homenagem aos mortos pela ditadura | FOTO ISABELA SOUZA
Marco Antônio Villa diz que é possível
devida ponderação de seu significado. “Quando você enfrenta o limite de crescimento, também enfrenta uma questão social muito séria, de autoperpetuação social. Vemos o desencadeamento dos rolezinhos, de discussões sociais, de
afirmar que de 1964 a 1968 coexistiram
a fase mais severa da ditadura. As
pessoas que são contra o Bolsa Família
formas autoritárias e democráticas de
prisões, torturas e desaparecimen-
sem sequer saber o que é e quanto ele
governo no país. Para ele, o governo
tos aumentaram vertiginosamente. O
custa para nós, discussão sobre taxas de
não poderia ser considerado autoritá-
AI-5 dava novos poderes ao presiden-
juros e ninguém sabe o que é.”
rio quando havia eleições, mesmo que
te, entre eles o de proibir manifesta-
indiretas, e com a efervescência cultu-
ções, decretar estado de sítio, legislar
IMPRENSA
ral da época.
por meio de decreto-lei e cassar direitos
A maioria dos veículos de comunica-
o
políticos por dez anos, entre outros. A
ção da época apoiou o golpe. Leonar-
5, em 13 de dezembro de 1968, inaugura
censura afetava sindicalistas, artistas,
do Trevisan, professor da ESPM-SP
Segundo Villa, o Ato Institucional n
42/43 Mensagens de protesto no pátio do DOI-Codi em evento realizado em São Paulo. |
FOTO ANITA EFRAIM
e jornalista, afirma que os meios de
Os militares mortos, que chegaram
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciên-
comunicação são empresas e têm con-
a ser torturados por aqueles que par-
cias Humanas da Universidade de São
tas a pagar, por isso a briga com o Esta-
ticipavam da luta armada da esquer-
Paulo (FFLCH) a advogada e professora
do custava caro. “Eu não sei se essa rela-
da revolucionária, tinham suas mortes
universitária Rosa Maria Cardoso, coor-
ção melhorou. Eu sei que mudou, mas
anunciadas e eram homenageados pelo
denadora da CNV entre maio e agosto de
melhorar é outra história. Hoje, a mídia
Estado. Os militantes da esquerda que
2013 afirmou que “apesar das dificulda-
tem medo de banco, dos grandes con-
eram mortos pelo regime tinham seus
des, nós da CNV conseguimos cumprir
glomerados. Eu não sei o que é melhor.”
óbitos anunciados com desculpas, men-
um objetivo fundamental que é criar um
Mariluce Moura teve seu marido
tiras – como uma troca de tiros entre
tempo de verdades”. Para ela, além do
assassinado e torturado por agentes em
companheiros que nunca acontecera –,
caráter de descobrir novas coisas sobre
Recife em 1972. Era jornalista e militan-
lembra Mariluce.
o período, a Comissão tem um dever
te de esquerda, foi presa em Salvador e
de plantar a ideia do “nunca mais” na
torturada durante a gravidez. Ela relata
COMISSÃO DA VERDADE
população, para que esse tipo de vio-
que a informação que poderia ser publi-
A tentativa de compensação das vítimas
lência não se repita. A criação de uma
cada pelos meios de comunicação che-
da ditadura foi a criação da Comissão
Comissão gerou o desdobramento em
gava pronta: o Estado mandava o que
Nacional da Verdade, institucionalizada
cerca de 100 outras comissões, estadu-
poderia ser divulgado. “Era decidido o
pela lei 12.528 de 2011. A Comissão tem
ais, municipais, de entidades de profis-
que podia ou não sair no jornal. Não se
como objetivo apurar as violações de
sionais liberais, de sindicatos, de uni-
podia contar tudo”, relata Mariluce, que
Direitos Humanos entre 1946 e 1988. Em
versidades e outras. Apesar do trabalho
desistiu de cobrir a área policial devido
2012, a Comissão sobre Mortos e Desa-
da CNV, ainda há muitas dúvidas sobre o
à censura pesada. Como a disseminação
parecidos Políticos enviou 475 proces-
período, principalmente a respeito dos
da informação era parcial, os militares
sos à Comissão.
corpos de pessoas desaparecidas.
contavam sua versão dos fatos.
Em mesa de debate realizada na
“A mídia em geral tem noticiado de
de sindicância para investigar o uso de
professor na Brown University e Ph.D.
instalações militares para a prática de
em história latino-americana e nos
graves violações de direitos humanos.
Estados Unidos. O profissional divul-
O comunicado foi emitido em 1º de abril
gou, em palestra na FFLCH, o projeto
de 2014. As sindicâncias foram pedi-
Opening The Archives, parceria entre
das pela CNV no dia 18 de fevereiro do
a Brown e a Universidade de Maringá,
mesmo ano.
no Paraná. O site disponibiliza dez mil
A Comissão da Verdade cumpriu um
documentos com a visão americana em
dos seus maiores objetivos: revogar
relação aos acontecimentos da ditadura
o silêncio sobre o tema. Porém, ela é
militar no Brasil.
contestada por segmentos conserva-
Ele afirma que nenhuma das infor-
dores da sociedade. “Por que só atacar
mações nos documentos é inédita. Os
o lado militar? Houve anistia e ela foi
arquivos já estavam disponibilizados
para todos. Agora ela não é mais? Tem
em bibliotecas dos Estados Unidos. Um
Comissão da Verdade só para os mili-
dos exemplos utilizado por Green é a
tares? A Dilma também matou e rou-
repercussão do AI-5 no governo ameri-
bou”, questiona Cristina Piviani, uma
cano. “Quando aconteceu, houve uma
das organizadoras da Marcha da Família
crise dentro do departamento de Estado
por Deus, que aconteceu em São Paulo e
americano, porque o Brasil estava che-
outras cidades em 22 de março.
gando à caracterização de uma dita-
O general Luiz Eduardo Rocha Paiva
dura militar e os militares negavam.”
contesta a validade da Comissão base-
Os Estados Unidos se questionavam se
ado nos seus membros, que deveriam
deveriam continuar apoiando essa dita-
ser imparciais. “Alguém que militou na
dura.
maneira estrondosa as novas descober-
luta armada é imparcial para designar
tas da época da ditadura, da prepara-
os membros da Comissão Nacional da
CONTEXTO HISTÓRICO
ção do golpe e do próprio golpe”, afir-
Verdade?”, questiona Paiva, referindo-
Para Sidney Leite, professor da ESPM-
ma Rosa. Ela elogia o reconhecimento
-se à presidente Dilma Rousseff.
-SP, o golpe teve no Brasil o mesmo peso
das Organizações Globo em admitir
que a Revolução Francesa teve na histo-
seus erros e promover a manutenção da
LEI DA ANISTIA
riografia da França. Ele afirmou que a
democracia, em detrimento do julga-
O tema mais polêmico envolvendo a
renúncia de Jânio Quadros gerou uma
mento dos motivos que levaram à ade-
Comissão da Verdade é a revogação da
crise muito grande, já que o vice-presi-
são ao regime de 1964. “Se fôssemos
Lei da Anistia, a única no mundo que
dente João Goulart tinha um currículo
atribuir má fé a quem repensa condu-
beneficiou os dois lados, perseguidos e
que desagradava os militares.
tas equivocadas, estaríamos anulan-
perseguidores. Ieda Axel Rudi de Seixas,
A crise seria resolvida com a implan-
do a possibilidade de mudança em con-
segurava a foto de seu pai no ato contra
tação do parlamentarismo. “Foi instau-
dições mais justas”, explica. “Por isso,
a ditadura que ocorreu no antigo DOI-
rado do dia para a noite. Essa solução
seria muito importante que as Forças
-Codi em São Paulo no dia 31 de março.
tirou o poder do presidente da Repúbli-
Armadas, por quaisquer motivos que
“Meu pai é um dos mortos aqui no DOI-
ca o entregou ao primeiro ministro e ao
fossem, pedissem perdão à sociedade
-Codi. Ele foi baleado nesse pátio, junto
Congresso”, conta Sidney.
brasileira”, finaliza a especialista.
com meu irmão. Eu fui abusada sexu-
Sidney enfatiza a nomenclatura do
almente no banheiro ali em cima, tinha
golpe. Não foi apenas um golpe mili-
FORÇAS ARMADAS
uns dez homens; o principal era dele-
tar, mas envolveu muitos outros gru-
Segundo o portal da Comissão da Ver-
gado”, relata a aposentada. “Eu não dei
pos, além dos militares. “Essa forma
dade, o ministro da Defesa, Celso Amo-
anistia para ninguém. Os torturadores
cínica de dizer que o golpe foi militar
rim, comunicou à Comissão que as For-
estão por aí”, desabafa.
é uma forma de tirar as responsabili-
ças Armadas instauraram comissões
O americano James Naylor Green é
dades de figuras da política nacional,
ATO INSTITUCIONAL NO 5
da sociedade civil, inclusive de muitos
pela gola da camisa e me acertou um
empresários, e também dos militares”,
direto na boca. Eu vi o sangue esgui-
assegurou o professor.
chando. Levei as mãos aos lábios e virei saco de socos, chutes e pancadas. Devo
violência no doi-codi
ter desmaiado.”
44/45
Se as paredes do DOI-Codi, localizado no bairro do Paraíso, em São Paulo, falas-
contenção de danos
sem, contariam histórias de horror.
O coronel Ricardo Jacob, 56 anos, entrou
Os sobreviventes da repressão têm
para a escola da Polícia Militar em 1974.
dificuldade de colocar em palavras as
Ele alega que, naquela época, não sen-
suas vivências. Marcius Cortez, recifen-
tia pressão e autoritarismo, pois sua for-
se, emigrou para São Paulo e em 1969
mação não era focada na rua. Segundo
tornou-se mais uma vítima da violên-
ele, “a polícia é escrava do governo. Se
cia no local. Foi considerado criminoso
for de esquerda, seremos de esquerda
por participar de uma “vaquinha” para
e se for de direita, seremos de direita.”
ajudar um empresário publicitário que estava exilado na Alemanha.
Para ele, chamar a época de regime ou ditadura é uma questão de ideolo-
Em livro, narrou sua experiência. A
gia. “Foi uma união de forças erradas,
chegada ao DOI-Codi foi traumática.
com pessoas e opiniões erradas que fez
“Veio outro agente de segurança, um
com que tudo acontecesse”, diz, refe-
sujeito com cara de sapo, bigodinho
rindo-se aos comunistas. O coronel, que
fino, olhos pequenos, magro, mas bar-
discursou durante a Marcha da Famí-
rigudo, que me mostrou que eu devia
lia com Deus pela Liberdade, justifica
cruzar a porta escura. Eu o obedeço e
a violação dos direitos humanos para
logo estou no fim de um corredor com-
evitar “maiores danos”. “Numa situa-
prido. Subitamente entram pela mesma
ção excepcional, como um homem com
porta dois outros homens que me cer-
uma bomba, entre acariciar e bater, não
cam e me espancam. Primeiro fui puxa-
é muito difícil se decidir”, conta.
do pelos cabelos e levei uma cabeçada
“Quem está na ‘Comissão da Menti-
que me deixou zonzo. Foi quando o mais
ra’ não participou dos movimentos da
forte deles, um japonês, me agarrou
época, apenas ouviu falar”, diz. Para Jacob, a Comissão da Verdade só analisa as ações de militares, e não as mortes de soldados em serviço. O coronel afirma ser uma comissão “revanchista”, mas reconhece erros dos militares. “O caso de Vladimir Herzog [jornalista assassinado em 1975] foi um erro de cálculo absurdo. Houve excesso em diver-
Se o bandido solta a arma ele sai andando, se não, sai deitado”
sos casos da época”, diz.
Ricardo Jacob, coronel da PM
1978, é que se o bandido solta a arma ele
“Se hoje há violação dos direitos humanos, está errado”, diz o coronel. Para ele, os criminosos devem voltar a ter medo da polícia. “Uma das coisas que aprendi quando saí da escola, em sai andando, se não, sai deitado.”
O Ato Institucional Nº 5 foi instituído em 13 de dezembro de 1968, dando início ao período mais sombrio da ditadura. Confira alguns artigos: » Art. 2º - O Presidente da República poderá decretar o recesso do Congresso Nacional, das Assembléias Legislativas e das Câmaras de Vereadores, por Ato Complementar, em estado de sítio ou fora dele, só voltando os mesmos a funcionar quando convocados pelo Presidente da República. » Art. 3º - O Presidente da República, no interesse nacional, poderá decretar a intervenção nos Estados e Municípios, sem as limitações previstas na Constituição. » Art. 7º - O Presidente da República, em qualquer dos casos previstos na Constituição, poderá decretar o estado de sítio e prorrogá-lo, fixando o respectivo prazo.
“Precisamos esclarecer o que aconteceu no Brasil” »»» Até os 16 anos, Tessa Moura
o período militar. Ela questiona a
Lacerda não tinha o nome do pai
resistência das Forças Armadas
A professora Tessa Lacerda na FFLCH |
em sua certidão de nascimento. A
em admitir publicamente as mor-
FOTO MARIANA STOCCO
professora da Faculdade de Filo-
tes, torturas e outras violações
sofia, Letras e Ciências Huma-
dos direitos humanos na dita-
nas da Universidade de São Paulo
dura. “Os chefes das Forças atu-
(FFLCH-USP) conta que os pais
ais não têm relação com aqueles
foram presos em 1973 por partici-
que estavam à frente do Exérci-
parem da Ação Popular Marxista-
to na época da ditadura. Mesmo
-Leninista em Salvador, na Bahia.
assim eles não admitem. Eles fin-
Gildo Lacerda foi transferido
gem que nada aconteceu”, afirma
para o DOI-Codi em Recife e teria
a professora, que compara o Bra-
sido morto em um tiroteio no cen-
sil com Uruguai e Argentina, paí-
tro da cidade. Porém, a Comis-
ses que passaram por períodos de
são de Familiares de Pernambuco
regime militar, mas cujos gover-
apurou o ocorrido com testemu-
nos se retrataram em relação à
nhos e documentos. Gildo, aos 24
época.
anos, havia sido morto sob tortu-
Tessa afirma que há muitos
ra. Sua esposa, Mariluce Moura,
documentos fechados em todo
com 22 anos, continuou presa na
o país e que eles deveriam ser
capital baiana.
divulgados. Ela acredita que um
“Quando minha mãe saiu da
posicionamento oficial do Esta-
prisão, ela não podia sair de Sal-
do mudaria a percepção sobre a
vador, mas mesmo assim ela ten-
ditadura brasileira. “Eu acho que
tou localizar o corpo do meu pai
a gente precisava encarar de fren-
para dar um enterro”, afirma
te essa história. É preciso que se
Tessa.
esclareça o que aconteceu no Bra-
O que a Comissão apurou foi que o corpo de Gildo foi enterrado três vezes em cemitérios diferentes. A professora diz que nunca conseguiram recuperar os restos mortais do pai: “Ainda assim, eu acho que nós, familiares, devemos exigir que se devolvam esses restos mortais, esse é um apelo que eu faço”. Para Tessa, o grande problema do país é o desconhecimento por parte da população sobre
sil. Trata-se do direito de justiça e de memória”, defende.
Gildo Lacerda | FOTO ARQUIVO PESSOAL
FOTO DÉBORA BROTTO
RAIO-X
46/47
Nome: Ivo Herzog Formação: engenharia naval (Poli-USP); MBA pela Universidade de Michigan Trabalho: coordenador do Instituto Vladimir Herzog
“NÃO EXISTE ESPAÇO PARA GOLPE NO BRASIL” Filho e coordenador do instituto que homenageia o jornalista Vladimir Herzog, morto em 1975 no DOI-Codi, Ivo Herzog fala das heranças ainda vivas do governo militar
ANITA EFRAIM DEBORA BROTTO ISABELA SOUZA MARIANA STOCCO
ça no caso Vladimir Herzog?
a maior delas tinha umas duzentas ou
A versão oficial já existe, tanto que a
trezentas pessoas. É um processo até
gente já recebeu uma certidão de óbito
curioso, porque eles são a favor daque-
retificada. O que precisa ter é identifi-
le regime que proibia manifestações.
»»»Ivo Herzog é filho do jornalista
cação e punição daqueles envolvidos na
Então como é que eles fazem manifes-
Vladimir Herzog, torturado e morto
morte do meu pai. Eu acho que seria o
tações a favor de um regime que proí-
na ditadura militar. Atualmente, é
fim de um tormento, o fim de uma sen-
be aquilo que eles estão fazendo? É um
coordenador do Instituto Vladimir
sação de injustiça. E a certeza que isso
contrassenso. Mas é uma coisa inte-
Herzog, cujo objetivo é o de desen-
abriria o caminho para que outras famí-
ressante. Acho que é importante ter
volver projetos culturais e educacio-
lias também pudessem ter justiça no
essas pessoas que pensam diferen-
nais com foco nas questões de direi-
caso de seus familiares.
te. A democracia prevê a diversidade.
tos humanos e no desenvolvimento dos profissionais de jornalismo, entre outros. Confira a entrevista à Plural.
Com a retificação da certidão de óbito de seu pai, o que falta para haver Justi-
Um regime em que todo mundo pensa
Você acredita que há margem para que aconteça uma nova ditadura?
igual a você é um regime fascista, dita-
Não, não acho. Neste final de sema-
democracia precisa desse antagonismo,
na [22/3] houve a Marcha da Família
desse debate com pessoas que tenham
em várias cidades do país, e acho que
ideias opostas, para que se discuta essas
torial, não permite o diferente. Então a
“O PROBLEMA É QUE ELES [AS FORÇAS ARMADAS] AINDA NÃO ACREDITAM QUE HOUVE UM GOLPE” ideias, esses valores e assim se aprimo-
O milagre econômico vem um pouco
do. Houve empresas que deram apoio de
re o processo da sociedade. Mas eu real-
depois, já na década de 1970. Na reali-
logística, mas que logo saíram dessa e
mente não acho que exista espaço para
dade, existia aquela propaganda sobre
começaram a se proteger. Então, a gente
um golpe militar no Brasil.
o medo do comunismo. Essa é uma das
tem que entender, colocar no contex-
épocas mais ricas em termos de conteú-
to. Mas tem grandes empresários que
Você acredita que ainda há censura na imprensa?
do, de transformações. O grande empre-
apoiaram até o final e financiaram a
sariado estava assustado e estava com
Operação Bandeirantes (OBAN), que
De fato, há. Existe um grande museu
medo das grandes reformas econômi-
tinha como objetivo dizimar os oposito-
em Washington, chamado Newseum,
cas que já vinham desde a época de
res, como fez com o Partido Comunista.
que é só sobre imprensa. Ele tem um
Juscelino. Quando se cria uma situa-
mapa mundial que mostra se o país tem
ção favorável na direção desses inte-
total liberdade de imprensa, parcial ou
resses econômicos, há esse apoio civil
se falta liberdade. E o Brasil está como
dos empresários e das classes média e
parcial. Quando fui lá, até fiquei sur-
média-alta.
Como você vê a retratação desses grandes veículos? Eu acho que é importante. O mundo muda. O que não pode é deixar de saber
preso e depois fui tentar entender o
O que se entende hoje é que mesmo
as coisas que efetivamente acontecem.
por que de estarmos dessa maneira. E
esses civis foram, até certo ponto, tra-
Mas também não é só pra fazer um
a gente sabe que estamos dessa manei-
ídos. Entra um governo militar de
mea culpa, é para trazer também o que
ra. Nós temos a questão do filho do Sar-
maneira muito mais truculenta do
aconteceu. Eu acho que talvez esse seja
ney censurando o Estadão. A gente tem
que era esperado e que olha mais para
o maior desafio. Por exemplo, a Folha
artista que quando vai sair uma maté-
a questão deles do que de certos gru-
mostrar seus caminhões que foram
ria sobre ele, consegue mandatos judi-
pos empresariais. A gente tem vários
cedidos para a OBAN, não ter medo
ciais que proíbem a veiculação da maté-
empresários conhecidos que apoiaram
dessa história. As pessoas confundem
ria. Então existe sim, infelizmente, uma
o golpe e que na sequência entraram
o conhecimento da história com vingan-
censura. A Lei de Imprensa caiu no Bra-
para um processo de oposição, porque
ça, com revanchismo. O conhecimento
sil há alguns anos, mas deveria haver
não era aquilo que eles queriam. Eles
da história é uma ferramenta para evi-
uma regulamentação, o que não é cen-
não queriam um AI-5, que tira todos os
tar que os erros se repitam, para que a
sura. Por exemplo, direito de resposta
direitos das pessoas, queriam a prote-
gente evolua como cidadão.
não está regulamentado.
ção do Estado e o Estado pode tudo con-
A falta de uma lei – as pessoas con-
tra o indivíduo. Então é muito complica-
fundem muito isso – é confundida com
O senhor acha que falta uma retratação oficial das Forças Armadas?
a irresponsabilidade de que você pode
Com certeza. O problema é que eles
publicar o que quiser. Um bom jorna-
ainda não acreditam que houve um
lista é aquele que tem um bom senso
golpe. Eles falam em Revolução de 64.
ético, que sabe até onde pode ir. Isso não
Pior que isso é que eles ensinam isso até
dá para legislar, mas espero que falem
hoje nas escolas e eu acho que isso é uma
muito disso nas faculdade de jornalis-
coisa muito mal resolvida, pois dentro
mo. O bom jornalista é aquele que con-
desse processo a gente cria a polícia
segue fazer uma boa matéria sem des-
mais violenta do mundo. Uma polícia
respeitar o contexto, o entorno. Existem
discriminatória. Na época da ditadura,
poucos bons jornalistas hoje em dia,
nos 21 anos, entre mortos e desapare-
infelizmente.
Os grandes veículos de comunicação, na época da ditadura, foram em alguns casos cúmplices do governo. Como você considera a relação da aceitação da população civil e o contexto de milagre econômico da época?
cidos oficiais são em torno de 450 pes-
As pessoas confundem o conhecimento da história com vingança, com revanchismo”
soas, mortas por agentes do Estado. De 1985 para cá, são 29 anos, são 10 mil mortos e desaparecidos, assassinados pela polícia no Brasil. Enquanto a gente não mexer nessa estrutura de polícia, nessa estrutura militar, nós vamos viver em um mundo muito complicado.
p&r
48/49
ENTREVISTA: MARIA DA PENHA
NENHUMA MULHER ESTÁ LIVRE DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA INSPIRADORA DA LEI QUE LEVA O SEU NOME, MARIA DA PENHA DEDICOU A VIDA À CAUSA DA MULHER E ALERTA: GESTORES E JUÍZES MACHISTAS MINAM A LEGISLAÇÃO
farmácia e bioquímica, Maria da Penha hoje coordena o instituto que leva o seu
A sra. foi vítima de agressões sistemáticas de seu ex-marido. Como foi isso?
nome. Uma de suas principais missões
Ele era uma pessoa querida, muito
»»»Enquanto dormia, dentro de
é zelar pela defesa e cumprimento da
bem vista por todos da nossa turma,
casa, em São Paulo, ela foi vítima de
Lei Maria da Penha, promulgada em
prestativa. Mostrava-se educado. Era
um tiro nas costas e ficou paraplégi-
2006 pelo então presidente Luiz Inácio
tudo o que toda mulher sonha para
ca. O agressor era o seu então mari-
Lula da Silva, que criminaliza a violên-
casar, uma pessoa muito companhei-
do, que simulou um assalto no intui-
cia doméstica.
ra. Só que depois da sua naturaliza-
PRICILLA COMAZZETTO GABRIELA BERALDO
to de matá-la. Mais tarde, sofreu
Alerta e ativa aos 69 anos de idade,
ção [o marido era colombiano, profes-
uma segunda tentativa de homicídio.
Maria da Penha diz que a lei é siste-
sor universitário], que aconteceu uns
Desta vez, o ex-companheiro tentou
maticamente ameaçada pela “cultura
quatro anos depois de eu estar com ele,
eletrocutá-la.
machista” de juízes e gestores públicos
ter namorado com ele, ter casado e ter
e que é preciso defendê-la para evitar
a minha filha [a primeira de três que o
um imenso retrocesso.
casal teve], ele mostrou a sua verdadeira
A partir de então, a luta da cearense Maria da Penha pela própria vida se tornou também uma luta contra a agressão às mulheres de todo o país. Nascida em 1945 e formada em
Confira a seguir a íntegra da entrevista concedida com exclusividade à revista Plural.
face, porque conseguiu a naturalização. Então eu não mais conseguia entender aquela pessoa que eu havia conhecido.
viajando e eu saí de casa com as crianças e fui para a casa dos meus pais.
Como surgiu a Lei Maria da Penha? Depois que eu saí de casa, a Comis-
RAIO-X Nome: Maria da Penha Idade: 69 anos Origem: Fortaleza, Ceará Ocupação: Fundadora do Instituto Maria da Penha Formação: Graduada em Farmácia e Bioquímica na Universidade Federal do Ceará; mestre em Parasitologia em Análises Clínicas pela USP Livro: “Sobrevivi, Posso Contar” (1994)
FOTO FABIO RODRIGUES POZZEBOM/ ABR
são Interamericana de Direitos Humanos recebeu a nossa denúncia e enviou ofícios ao Brasil solicitando uma posição sobre o meu caso. Em nenhum momento o Brasil respondeu. Então foi feito um relatório cobrando mudanças legislativas no país para evitar a alta impunidade e alto índice de assassinato de mulheres. Em virtude dessa recomendação da Organização dos Estados Americanos (OEA) o Brasil teve que trabalhar uma lei – baseada inclusive em tratados internacionais já assinados. Foi criada a lei 12.340, que foi chamada de Lei Maria da Penha como uma homenagem simbólica a mim, por ter sido o meu caso e a minha persistência, a minha luta por justiça, que resultaram na criação da lei.
Dar nome à lei é uma grande responsabilidade, não? Muito compromisso, muita responsabilidade. Eu praticamente não tenho
Ele se tornou uma pessoa muito agres-
enquanto dormia]. Passei quatro meses
mais vida pessoal. A minha vida é essa:
siva, inclusive com a própria filha. Eu
hospitalizada. Quando eu voltei para
dar entrevista, participar de encontros,
solicitei então várias vezes que a gente
casa [ela ficou paraplégica com o tiro],
contar minha história de vida nessas
se separasse, que não havia mais condi-
ainda acreditando na versão do assal-
palestras. Então eu sou totalmente vol-
ção de vivermos juntos, pois não havia
to, eu fui mantida em cárcere privado
tada para essa pauta.
mais diálogo, amor, respeito. Mas ele
e tive que providenciar um documen-
sempre recusou essa separação.
to judicial de separação de corpos para
Em maio de 1983 ele atentou contra
poder sair de casa com minhas filhas,
O que falta para que a violência contra a mulher seja erradicada?
a minha vida através da simulação de
para não caracterizar abandono do lar
A lei pensou em todos os detalhes,
um assalto. Foi descoberto depois pela
e conseguir manter a guarda.
principalmente tendo como finalidade a
Secretaria de Segurança Pública que o
Nesse período em que eu estava em
própria ação da mulher em caso de vio-
assalto foi uma simulação que ele fez
casa eu sofri uma segunda tentativa de
lência doméstica e depois a punição do
para me incapacitar.
homicídio através de um chuveiro elé-
homem agressor. Na realidade, a nossa
trico que foi propositadamente danifi-
cultura é muito machista e essa cul-
cado por ele. Eu tive a sorte de não ser
tura interfere na verdadeira aplicação
Como foi o episódio?
eletrocutada. E quando o documento
da lei. Somente no ano passado todas
Primeiro eu levei um tiro [nas costas,
judicial chegou, coincidiu de ele estar
as capitais do Brasil conseguiram ter
Só que eu não morri.
50/51
FOTOS FABIO RODRIGUES POZZEBOM/ ABR
um juizado que atenda casos de violên-
que esses professores e professoras pos-
cia doméstica. A dificuldade de criar os
sam identificar e esclarecer essa ques-
equipamentos que a lei exige para fun-
tão junto aos alunos.
cionar corretamente é enorme, porque
É importante que isso aconteça no
os gestores públicos possuem essa cul-
ensino fundamental para que as pes-
tura machista que dificulta a criação de
soas se conscientizem de que bater em
políticas públicas [de defesa da mulher].
mulher é crime, porque muitos desses
Essas políticas públicas a que me
alunos e professores foram criados em
refiro são delegacias da mulher e cen-
um ambiente de violência no qual o pai
tros de referência da mulher em situa-
batia na mãe, o avô batia na avó, e isso
ção de violência doméstica – que é um
é considerado normal para essas famí-
local em que a mulher vai se orientar,
lias que vivenciaram essa questão den-
se fortalecer e tomar conhecimento de
tro de suas casas.
como sair daquela situação, com atendimento sociojurídico e psicológico. [Sem
Outra política pública é a casa-abri-
No ano passado o Ipea divulgou que as mortes de mulheres por violência doméstica não diminuíram desde a criação da Lei Maria da Penha. Ainda assim, a sra. acha que a lei teve um impacto positivo na sociedade brasileira?
go, onde as mulheres que não podem
Essa estatística não considera que até
retornar para casa podem ficar com seus
o ano passado não existiam os equipa-
filhos menores. A outra política públi-
mentos da lei em todos os Estados, e na
ca seria a criação dos juizados. Existe
maioria dos municípios não existe [essa
sim a dificuldade por conta da cultura
estrutura]. Como você pode ver se a lei
machista dos gestores públicos, porque
deu ou não resultado se não existe a
se assim não fosse nós teríamos mais
implementação dela? Se todos os gran-
municípios equipados com essas insti-
des municípios estivessem equipados
tuições que atendem a efetivação da lei.
com essas instituições que fazem a lei
o apoio do centro] as mulheres agredidas vão diretamente à delegacia e ficam em dúvida se devem ou não denunciar o seu agressor.
funcionar, com certeza o resultado não
O que mais pode ser feito, além disso?
seria esse.
Existe uma recomendação da OEA,
Se a mulher sofre violência domés-
ainda pouco atendida, que é introduzir
tica e não tem onde denunciar, ela está
na educação o respeito à mulher, inclu-
sujeita a ser assassinada. Não foi feito
sive capacitando a rede de docentes para
também um trabalho relativo de ver os
“SE A MULHER SOFRE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E NÃO TEM ONDE DENUNCIAR, ELA ESTÁ SUJEITA A SER ASSASSINADA.”
Estados em que a política pública foi
companheiro agressivo volte a ser o que
criada e analisar qual a diferença entre
era antes, e ela não vai se expor para
os dados anteriores e posteriores à lei.
a sua família. E talvez quando o pai, o
Cidades onde não há nenhuma delega-
grande magnata, chegue a saber que a
cia da mulher, cidades que só têm uma
filha sofre violência doméstica, talvez
delegacia da mulher e cidades, que
seja por conta de um assassinato.
geralmente são as capitais, estruturadas com delegacia da mulher, centro de referência e casa-abrigo.
Neste ano vieram à tona vários episódios de violência contra a mulher, como o caso dos encoxadores nos metrôs. O brasileiro é machista?
Diversos coletivos feministas lutam hoje pela igualdade de gêneros, como o projeto “Chega de Fiu Fiu” ou até a própria Marcha das Vadias. A sra. acredita que esse tipo de ação tenha um efeito positivo na sociedade? Na verdade eu não tenho acompanha-
Quanto mais populosa e evoluída
do esse movimento. Eu tenho me con-
a cidade, mais essa conscientização
centrado muito na questão apenas da
existe. Temos encontrado nesses locais
lei. Já quiseram desestruturar a lei, anu-
mulheres lutando pela implementação
lar a lei. Sempre há alguém que, pela
da lei. Encontramos professoras que
cultura machista, tenta minimizar a
sozinhas levantaram esse problema na
questão da violência doméstica. Então
sala de aula, recebemos inclusive reda-
a gente tem que ter uma atenção muito
ções de alunos.
especial em relação a isso e eu recebo
É importante que a gente encontre
muitas denúncias da atitude de juízes
homens e mulheres envolvidos nessa
a respeito disso. A gente tem conheci-
luta, porque só assim vamos garantir
mento de um caso ou outro de juízes,
um futuro sem violência para nossas
pessoas da Justiça, que passam a mão na
descendentes. Perante as estatísticas,
cabeça da agressor, quando se sabe que
nenhuma mulher está livre da violên-
todo e qualquer crime contra a mulher
cia doméstica. A filha de um grande
tem que ser punido.
magnata pode ser vítima de violência doméstica. E esse grande magnata não vai possivelmente tomar conhecimento
O que falaria para as mulheres que não têm coragem de denunciar o agressor?
de que a sua filha é vitima de violência
Não é porque ela vai denunciar que
doméstica porque ela quer que aquele
ela vai ser assassinada. É muito mais provável que ela seja salvaguardada no momento que ela denuncia e toma a atitude de não retornar a viver aquele ciclo
+ PLURAL NA INTERNET
da violência. Então, coragem é neces-
“TODO E QUALQUER CRIME CONTRA A MULHER TEM QUE SER PUNIDO.”
sário ter. Ela pode procurar através de outras mulheres que fizeram o mesmo percurso, ela pode procurar o centro de referência, uma associação de mulheres. Procurar se fortalecer e saber que é difícil para muitas mulheres, mas que não é impossível sair dessa situação em que você é um verdadeiro capacho na mão desse homem.
Use um leitor de QR Code e ouça a íntegra desta entrevista com Maria da Penha.
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JORNALISTAS BRASILEIROS ASSASSINADOS EM 2013
» A Internacional Press Institute (IPI) é uma rede global de profissionais de mídia dedicados à proteção, ao direito à liberdade de expressão e ao livre fluxo de notícias e informações. O portal mantém uma lista atualizada de jornalistas mortos em todas as partes do mundo. Em 2013, um total de 120 jornalistas foram mortos. Confira quem foram os jornalistas assassinados no Brasil.
RENATO MACHADO GONÇALVES 8 de janeiro de 2013
MAFALDO BEZERRA GOES 22 de fevereiro de 2013
» Radialista da Rádio Barra FM, do Rio de Janeiro. Segundo as investigações, dois homens de moto se aproximaram do jornalista e fizeram ao menos quatro disparos. Renato estava voltando de uma festa de família. Foi socorrido com vida, mas morreu no hospital horas depois.
Radialista na cidade de Jaguaribe, no Ceará, foi morto por causa de suas denúncias sobre tráfico de drogas e grupos criminosos locais. Dois homens em uma moto dispararam ao menos cinco vezes contra Bezerra. O jornalista estava andando de sua casa até o trabalho.
LIBERDADE DE EXPRESSÃO SOB AMEAÇA A violência contra jornalistas é resultado de uma mídia centralizada e baseada no interesses de poucos. O coronelismo na imprensa brasileira interfere na veiculação imparcial das notícias
ISABELA SOUZA CLÁUDIA COSTA DAVID FRARE
comentário sobre o episódio, Sheherazade diz que a ação foi “compreensível” devido à omissão do Estado, à polí-
»» Os jornalistas brasileiros são
cia desmoralizada e à justiça falha. Para
expostos a perigos físicos diariamen-
Rachel, a opção que restaria ao “cida-
te. A ONG internacional Repórteres
dão de bem”, nesse cenário, é se defen-
Sem Fronteiras considerou em 2013
der. No final da declaração, de aproxi-
o Brasil o país mais mortal do hemis-
madamente um minuto, ela sugere “aos
fério ocidental para os profissionais
defensores dos direitos humanos que se
de mídia, cargo antes ocupado pelo
apiedaram do marginalzinho preso ao
México.
poste” que façam um favor para o país
Cilene Victor da Silva, professora da
e “adotem um bandido”.
Faculdade Cásper Líbero, sofreu amea-
Cilene da Silva considerou o comen-
ças de morte após criticar as declarações
tário criminoso. “Ela [Sheherazade]
da âncora do SBT Rachel Sheherazade.
defende o fim do estado democrático
Cilene conta que ficou “chocada” com
de direito, que na verdade anula todo o
as declarações da apresentadora sobre a
processo pelas vias civilizatórias, de um
ação de “justiceiros” no Rio de Janeiro.
julgamento, uma condenação, uma pri-
No dia 31 de janeiro um grupo com cerca
são. Então, ela faz uma incitação à vio-
de 30 homens espancou e amarrou a um
lência. Aí é o segundo crime pratica-
poste um adolescente de 15 anos. Em seu
do por ela”, afirma. Após publicar suas
Protestos em São Paulo, marcados pela violência contra a imprensa | MARCELO CAMARGO/AGÊNCIA BRASIL
RODRIGO NETO DE FARIA 8 de março de 2013
WALGNEY ASSIS CARVALHO 14 de abril de 2013
JOSÉ ROBERTO ORNELAS DE LEMOS 11 de junho de 2013
CLAUDIO MOLEIRO DE SOUZA 12 de outubro de 2013
Jornalista foi morto com três tiros em Ipatinga, em Minas Gerais. Neto estava investigando as ligações entre a polícia e o crime organizado do estado mineiro. Alessandro Neves Augusto, e o policial civil Lúcio Lírio Leal foram indiciados pelo assassinato do jornalista.
Repórter fotográfico. Morto em Coronel Fabriciano, em Minas Gerais. Um homem de moto teria se aproximado e disparado contra as costas de Carvalho. O assassinato ocorreu 37 dias após a morte de Rodrigo Neto, colega de Carvalho. Não se sabe se as mortes têm ligação.
Diretor do jornal Hora H em Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro. Ornelas levou mais de 40 tiros de arma de fogo enquanto estava em uma padaria na cidade. A hipótese é de que ele foi morto em represália a denúncias que eram publicadas contra a polícia e políticos locais.
Diretor da Rádio Meridional em Jaru, cidade do estado de Rondônia. O estúdio foi invadido por um homem armado. Claudio foi morto por um disparo de arma de fogo. Um radialista foi atingido no braço, mas sobreviveu. Nada foi roubado da rádio. Não se sabe a motivação do crime.
diz Suzana Varjão, gerente de qualificação da ONG. Em relação ao estudo da ONG Repórteres Sem Fronteiras, Suzana afirma que “ainda é difícil para determinados setores aceitar o trabalho de uma imprensa livre, vigilante, que denuncia violações, expõe desigualdades, acusa opressões. E a resposta é a tentativa de intimidação, por meio de ameaças, atentados, violências várias cometidas contra os profissionais do campo”. Para ela, a discordância em relação ao trabalho do jornalista deve se manter no planos das ideias, sendo benéfica, e até imprescindível, dentro de um regime democrático. “Ou seja, criticar os jornalistas, pode. Ameaçar é inaceitável.” Liberdade de Imprensa Segundo o World Press Freedom Index (WPFI) 2014, do Repórteres sem Fronteiras, políticos regionais também são donos de veículos de comunicação no Brasil, o que é considerado o maior obstáculo para uma mídia plural e independente. O relatório destaca o sistema arcaico do coronelismo ainda existente críticas no Facebook, Cilene foi verbal-
ANDI
no Brasil. “Os coronéis possuem e con-
mente agredida por mais de 60 pessoas.
A Agência de Notícias dos Direitos da
trolam as mídias locais, como jornais
“A Rachel havia feito uma postagem no
Infância (Andi) considera as ameaças
e estações de rádios.” De acordo com a
Facebook dela pedindo que seus segui-
aos profissionais da mídia como um
ONG, no âmbito nacional dez famílias
dores entrassem no meu perfil”, relata.
dos mais graves atentados à liberdade
controlam a mídia, limitando a diversi-
Na manhã seguinte à postagem, Cilene
de expressão no país. A Andi “repudia,
dade de opiniões.
recebeu duas ligações com ameaças de
problematiza e denuncia qualquer ten-
Mas as ameaças à liberdade de expres-
morte. Aparentemente eram adolescen-
tativa de limitar o livre exercício da pro-
são não vêm apenas da concentração de
tes, diz a professora. “Uma das ligações
fissão, cobrando e apoiando políticas de
mídia, diz o relatório. O crime organi-
dizia: ‘Na frente da estação Butantã eu
defesa dos direitos desse e de outros gru-
zado e sua infiltração nos aparelhos do
te dou um tiro na testa’.”
pamentos vulneráveis da população”,
Estado ajuda a obstruir o trabalho midiá-
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tico e atrapalha investigações de crimes.
ções Internacionais da Universidade
A posição dos jornalistas em países como
Federal do ABC (UFABC) e jornalista
o Brasil é frequentemente enfraquecida
Igor Fuser conta que, quando ingres-
por causa da falta de status e de solida-
sou na área, as redações eram palco de
riedade dentro da profissão e pela sub-
“tremenda diversidade”, com esquer-
missão da mídia aos centros de influên-
da e direita, jovens e mais velhos, e que
cia e poder político.
as empresas não se preocupavam com a ideologia ao contratar jornalistas. “Isso
Violência A centralização dos veículos de comunicação em poder de poucas famílias foi
João Paulo Charleaux em evento realizado no Instituto Pólis | FOTO CLÁUDIA COSTA
tornava as redações um ambiente muito mais rico, mais estimulante”, lembra. “A mídia funciona como uma lente de
uma das motivações dos protestos ocor-
aumento em alguns aspectos da realida-
ridos em junho de 2013 em todo o país.
de e de diminuição sobre outras, ou até
De acordo com o WPFI, as manifestações
uma lente preta que omite outros fatos.
levantaram “questões sobre o modelo de
Sempre a mesma opinião sobre assun-
dominância da mídia e enfatizaram os
tos políticos, não existe um contrapon-
violentos métodos ainda utilizados pela
to”, declara o professor.
Polícia Militar desde o tempo da ditadura. Durante os protestos, ao menos 100
Jornalismo brasileiro
jornalistas foram vítimas dos atos de
Cilene da Silva, da Cásper Líbero, acres-
violência, dos quais dois terços foram
centa ao debate o problema do desprepa-
atribuídos à polícia”.
ro dos jornalistas. A professora diz que
O estudo associa as mortes de jorna-
o jornalismo no país não está preparado
listas ao alto nível de violência no país
para cobrir, por exemplo, os movimen-
e à ocupação do crime organizado em
tos sociais. “Aqui, a imprensa continua
determinadas regiões, fazendo com que
chamando manifestante de vândalo.” A
a cobertura de temas como corrupção,
jornalista diz que não vê as manifesta-
drogas e tráfico seja muito arriscada
ções como uma forma de aprendizagem.
para os jornalistas.
O que, na verdade, vai ensinar a fazer
Em debate sobre Comunicação, Cul-
jornalismo é o próprio jornalismo, ou
tura de Paz e Direito à Cidade promovi-
seja, “para retratar a realidade é neces-
do pelo Instituto Pólis, foram discutidos
sário conhecer esta realidade”.
temas relacionados a direitos humanos
Ela exemplifica que não é possível
e à importância da comunicação como um direito.
falar da periferia sem nunca ter pisado da paz. “Você tem as organizações que
nela e que muitos jornalistas hoje, den-
Para o sociólogo Hamilton Faria, não
trabalham nas guerras, como a Cruz Ver-
tro dos grandes veículos, tiveram exce-
é possível ter uma formação democráti-
melha, e aquelas que são contra ela, que
lente formação cultural e experiências
ca sem uma mídia democrática no Brasil.
são completamente pacifistas, como a
fora do país, entretanto não tiveram
“O que acontece hoje nas nossas mídias
ONU, mas que paradoxalmente usam
experiências dentro do Brasil. “O jorna-
é uma violência na produção da infor-
a força militar para impor a paz”, afir-
lismo só vai melhorar no Brasil quando
mação, não apenas a direta, mas tam-
ma ele. Para Charleaux, isso força um
nós conseguirmos agregar à essa forma-
bém uma violência simbólica, cultural,
congelamento das contradições dessas
ção cultural de qualidade um pouqui-
estrutural”, relata.
sociedades. O jornalista, então, deixa a
nho de realidade para o aluno de jor-
João Paulo Charleaux, jornalista e
pergunta: “Em que medida nós e o jorna-
nalismo”, afirma. Cilene acredita que o
coordenador da área de Comunicação
lismo devemos militar em favor da paz?”
jornalista só poderá fazer um trabalho
da ONG Conectas, de direitos humanos,
Sobre a falta de pluralidade na mídia
verdadeiro quando sair das redações e
comenta sobre a questão da imposição
brasileira, o professor do curso de Rela-
colocar o pé nos lugares mais afastados.
FOTO GUILHERME GOZZI
COLABORADORES DESTA EDIÇÃO
JUNHO DE 2014 // ANO 3 // NÚMERO 5
ANITA EFRAIM, 19, paulistana que ainda não decidiu se ama ou odeia sua cidade. É incapaz de ficar calada.
BIANCA GIACOMAZZI, 18, ainda descobrindo aonde o jornalismo e a curiosidade podem levá-la.
CARLA FERNANDEZ 20, santista, apaixonada pela cidade de São Paulo. Quer trabalhar em revistas e jornais.
CINTIA AZUMA, 18, rio-pretense apaixonada por São Paulo. Torcedora do Corinthians, ama futebol.
CLÁUDIA COSTA, 19, assisense e mexicana de coração. Filha de Jó de corpo e alma. Ama ler e escrever.
DAVID FRARE, 19, osasquense e corinthiano roxo, quer trabalhar com jornalismo econômico.
DÉBORA BROTTO, 19, sonha em conhecer o mundo. Acredita que música pode ajudar em tudo, a todo momento.
FERNANDA BOTTEGHIN, 18, tem interesse em cultura e economia. É apaixonada por teatro e literatura.
GABRIELA BERALDO, 18, interiorana e feminista. Acha que informação é a arma mais poderosa do mundo.
GUILHERME MACHADO, 18, um pouco inseguro, mas muito determinado, adora jornalismo cultural.
ISABELA SOUZA, 19, paulistana, é da Bateria ESPM e apaixonada por jornalismo literário.
IVAN TRIMIGLIOZZI, 19, paulistano apaixonado pela cidade. Sonhador pessimista, adora bacon e cinema.
LUÍSA SENA, 20, torcedora fiel do Real Madrid. Sonha em viajar o mundo e trabalhar com jornalismo cultural.
MARIANA STOCCO, 20, paulistana de nascença e carioca de coração. Apaixonada por esportes.
MARINA AYUB, 18, apaixonada por história e Oriente Médio, deseja trabalhar com jornalismo internacional.
PRICILLA COMAZZETTO, 19, catarinense, amante de arte e de esportes, está de mala pronta para um intercâmbio na Irlanda.