68
POSTO
transgressรฃo latina: a prรกtica da decolonialidade
out | 2020 v. 01 n. 02
POSTO68 Volume 01 . Número 02 São Carlos - SP Outubro 2020 ISSN 2675-7230 s Corpo Editorial t Adriano Caro Florio Ana Luiza Vieira Gonçalves Bárbara Barbosa Machado Felipe Leme de Andrade Giulia Ravanini Silva s projeto gráfico t Adriano Caro Florio Bárbara Barbosa Machado s arte Na capa t
Mayara M. Serra
Revista Semestral
POSTO68
transgressรฃo latina: a prรกtica da decolonialidade
outubro 2020
Adriano Caro Florio Estudante de arquitetura e urbanismo pelo IAU-USP, ao longo do curso descobriu um vasto campo de atuação e investigação da profissão, tendo interesse pelas relações entre cultura, arte e cidade. Atualmente faz parte, também, da equipe do Centro Cultural USP São Carlos.
Ana Luiza Gonçalves Estudante de arquitetura e urbanismo pelo IAU-USP, realizou três iniciações científicas acerca da temática de remoções e regularização fundiária - PIBIC e FAPESP -, sob orientação da professora Cibele Rizek. Realizou estágio de pesquisa no laboratório EVS-RIVES da ENTPE, Universidade de Lyon, França. Realizou estágio na assessoria técnica USINA-ctah. Foi indicada pelo IAU-USP ao prêmio - Meninas na Ciência - da SBPC.
corpo editorial
Bárbara Machado Entusiasta do diálogo entre cidade, arte, dança e teatro, desenvolveu pesquisa sobre espaços teatrais e participou da produção cultural de diversos eventos de arquitetura, arte e teatro. Interessada em produção gráfica e na exploração de outras formas de representação e comunicação. Atualmente reside em São Paulo. estudante de arquitetura e urbanismo pelo iau-usp.
Felipe Leme Estudante de arquitetura e urbanismo pelo IAU-USP. Desenvolveu pesquisa nos temas cidade, arte e cultura, sob orientação do professor Fábio Lopes de Souza Santos. É representante discente junto à Comissão de Cultura e Extensão - CCEx. Fez parte da Comissão Organizadora da V e VI Semana de Arquitetura e Urbanismo - SEMANAU.
Giulia Ravanini
Estudante de arquitetura e urbanismo pelo IAU-USP. Fez pesquisa de iniciação científica em representação digital de Patrimônio Arquitetônico sob orientação da professora Simone Vizioli, com financiamento do Programa Unificado de Bolsas. Realizou intercâmbio no Politecnico di Milano, campus Mantova, onde fez estágio no grupo de pesquisa He.Su.Tech realizando o levantamento fotogramétrico da Basílica de San Marco, em Veneza. Fez parte da Comissão Organizadora das II, III e IV SEMANAu.
POSTO68
editorial A revista POSTO68 surge de uma necessidade de criação de locais de debate com relação à pautas contemporâneas e críticas sobre a nossa sociedade. Em seu primeiro número, a POSTO68 buscou retomar as manifestações e organizações políticas do ano de 1968 em todo mundo, pensando esse contexto como uma experiência coletiva de crença no poder popular. O evento de lançamento da revista foi realizado no Postão - ambiente de troca, de debate, de democracia - do Instituto de Arquitetura e Urbanismo - escola do corpo editorial da revista - no dia 13 de março, apenas três dias antes da determinação de quarentena em decorrência da pandemia de Covid-19 no Brasil. O contexto da pandemia trouxe consigo uma série de obstáculos para o desenvolvimento das discussões entre o corpo editorial, não apenas pelo distanciamento físico - com o qual já havíamos lidado em nossa edição piloto - mas principalmente pela condição de falta de perspectiva com relação ao mundo e, em especial, ao Brasil. A divulgação da edição piloto também foi muito dificultada pela questão do isolamento social, bem como pela avalanche de informações que tomou as redes sociais durante o período da pandemia. Apesar de tudo isso, a nossa condição enquanto latino americanos(as) foi se desenvolvendo como uma questão central para imaginar e propor alternativas políticas, sociais e culturais em uma sociedade infectada pelo imperialismo e pelo colonialismo. A noção de colonialidade pode ser entendida como um conjunto de efeitos e as estruturas sociais remanescentes do período colonial. Nesse sentido é possível dizer que a colonialidade como prática política, econômica, dos corpos e da mente - sobrevive ao colonialismo - um período histórico. Entender essa estrutura como parte constituinte das lógicas do capitalismo global e da exploração humana e da natureza é essencial para a superação do sistema e a possibilidade de se imaginar um novo mundo. Outra interpretação possível é a de que a colonialidade se coloca como o reverso da modernidade, uma outra forma de ler a modernidade e as transformações ocorridas na América Latina. Essa é uma interpretação complexa não apenas da colonialidade, mas também do que se entende como modernidade, sendo um dos elementos que aglutinam os debates desenvolvidos por grupos que buscam pensar os processos e as possibilidades de superação da colonialidade. Um dos principais nomes para entender esse debate epistêmico no cenário intelectual contemporâneo da América Latina é o sociólogo peruano Aníbal Quijano que teve importante papel no deslocamento e na subversão necessárias para o rompimento com estudos e leituras tradicionalmente eurocêntricos sobre as Américas ao desenvolver o conceito de colonialidade do poder no ano de 1989. Entendido como padrão de dominação global, a colonialidade do poder possui dois eixos centrais: um sistema de dominação editorial
cultural, aquele de produção e reprodução de subjetividades; e um sistema de exploração social global, de controle do trabalho pelo capital. Sendo assim, a colonialidade do poder tem por base a assimetria de poder; a subalternização das práticas e subjetividades; a racialização dos corpos e das populações. Como já era colocado por Foucault, o racismo se caracteriza como uma relação de controle que “pressupõe a distribuição da espécie humana em grupos, a subdivisão da população em subgrupos e o estabelecimento de uma censura biológica entre uns e outros.”1 Segundo Ramón Grosfoguel, sociólogo porto riquenho, o conceito de colonialidade do poder compreende a raça e o racismo como o principal organizador de todas as hierarquias do sistema-mundo moderno/colonial.2,3 Vários processos - os quais não serão trabalhados em detalhes nesse editorial - aconteceram até o Grupo Modernidade/Colonialidade se constituir como ele é hoje. Vale destacar, no entanto, que o primeiro grupo que trata dos temas da modernidade, colonialidade e colonialismo foi o Grupo Latino-Americano de Estudos Subalternos, nos anos 1990, a partir da reimpressão do texto Colonialidad y modernidadracionalidad, de Aníbal Quijano. Um manifesto foi publicado em 1993 na revista Boundary 2, tendo como principal referência o Grupo de Estudos subalternos do sul Asiático, que se origina nos anos 1970. No entanto, por conta de divergências teóricas, vindas principalmente de Walter Mignolo e Ramón Grosfoguel, o grupo foi desfeito ainda na segunda metade dos anos 1990. A crítica feita por Mignolo e Grosfoguel, de forma sintética, se pautava em um entendimento de que os dois Grupos de Estudos Subalternos - o latino-americano e o do sul asiático - não conseguiram aprofundar e radicalizar uma crítica ao eurocentrismo. Já a partir de 1998, com encontros realizados por exmembros e novos pensadores, o Grupo Modernidade/ Colonialidade foi aos poucos sendo estruturado. De acordo com Luciana Ballestrin (2013) “Com pouco mais de dez anos de existência, o grupo compartilha noções, raciocínios e conceitos que lhe conferem uma identidade e um vocabulário próprio, contribuindo para a renovação analítica e utópica das ciências sociais latino-americanas do século XXI.” Muito mais do que fazer uma cronologia dos grupos, das teorias e pensamentos, destaca-se a relevância do “giro decolonial”, cunhado por Nelson Maldonado-Torres, a partir de 2005. O termo designa um “movimento de resistência teórico e prático, político e epistemológico, à lógica da modernidade/colonialidade”.4 É possível afirmar que a ideia da decolonialidade já estava presente no conceito desenvolvido por Quijano de colonialidade do poder, ainda que de forma transversal e, em suma, os estudos decoloniais envolvem diversas dimensões relacionadas com a colonialidade: poder, saber, ser, gênero e da natureza. Segundo Zulma Palermo5, professora da Universidade Nacional de Salta na Argentina, estamos submetidos a um POSTO68
1 MBEMBE, Achille. Necropolítica: Biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte. São Paulo: edições n-1, 2020, p. 17. 2 GROSFOGUEL, Ramón. Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-coloniais: transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 80, 2008, p. 115-147. 3 A Teoria do Sistema-Mundo foi desenvolvida por Immanuel Wallerstein, sociólogo estadunidense, sendo uma chave de leitura do mundo de acordo com o sistema dominante. Desse modo, na chave de leitura da colonialidade e da colonialidade do poder, à ideia original de Wallerstein, podem ser acrescentados os termos moderno/ colonial, uma interseccionalidade entre Wallerstein e Quijano. Ou até mesmo como Ramón Grosfoguel provoca “sistema-mundo europeu/euro-norte-americano moderno/capitalista/colonial/ patriarcal, referindo-se ao homem heterossexual, branco, patriarcal, cristão, militar, capitalista e europeu que chegou às Américas. 4 BALLESTRIN, Luciana. América Latina e o giro decolonial. Revista Brasileira de Ciência Política, n. 11, 2013, p. 89-117. 5 Zulma Palermo é uma das duas mulheres que compõe o Grupo Modernidade/Colonialidade, a única outra é Catherine Walsh.
5
6 PALERMO, Zulma. A opção decolonial como um lugar-outro de pensamento. [Entrevista concedida a] Tereza Spyer, Mariana Malheiros e María Camila Ortiz. Epistemologias do sul, Foz do Iguaçu, v. 3, n. 2, p. 44-57, 2019. 7 PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. Apresentação da edição em português. In: LANDER, Edgardo (org.) A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latinoamericanas. Colección Sur Sur, CLACSO, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina, 2005. p. 3-5. 8 Carlos Walter Porto-Gonçalves é professor da área de Geografia na Universidade Federal Fluminense e membro do Grupo de Trabalho “Hegemonias e Emancipações” do CLACSO (Conselho Latinoamericano de Ciências Sociais). 9 idem. 10 Carta de Pêro Vaz de Caminha. 1 de Maio de 1500. Portugal, Torre do Tombo, Gavetas, Gav.8, mç.2, n.º 8. Disponível em: < http:// purl.pt/162/1/brasil/obras/carta_ pvcaminha/index.html >.
tipo de conhecimento universalizante e monológico - que, por sua vez, tem suas bases no projeto da Modernidade/Colonialidade de produção científica universal e totalizante. Para ela: “A construção do poder/saber pelo imaginário moderno/colonial subordinou e subordina as outras formas de viver-pensar-conhecer, a partir do momento em que são consideradas inferiores em todas as ordens e, muito especialmente, nesta última, do conhecer”.6 A Geopolítica do conhecimento, sob o olhar preponderante do eurocentrismo, caracteriza o conhecimento produzido fora dos centros hegemônicos como regionais ou locais, reduzindo a um “saber-de-lugar-nenhum”.7 Dessa forma, a colonialidade do saber nos mostra as relações intrínsecas entre a colonialidade do poder e a subjugação dos sujeitos por meio de uma dominação do conhecimento, dos saberes e das culturas. A identificação da colonialidade do saber abre caminho para um maior diálogo entre as diversas epistemes - saberes de diferentes lugares. Para o professor Carlos Walter Porto-Gonçalves8, a colonialidade do saber, na medida em que identifica a sobrevivência de pensamentos entre lógicas e códigos distintos, sinaliza para interculturalidades - muito mais do que um multiculturalismo - para diálogos de saberes - muito mais do que reconhecimento.9 Em uma perspectiva ampliada dos sentidos ou aspectos da colonialidade do poder, busca-se entender como a colonialidade do saber, do ser, da natureza e do gênero agem no sentido de construir uma subjetivação dos indivíduos e do coletivo latino americano. A colonialidade de gênero remonta ao momento em que o colonizador adentrou nas terras americanas, como pode ser observado na descrição de uma nativa presente na carta de Pero Vaz de Caminha: “E uma daquelas moças era toda tingida de baixo a cima, daquela tintura e certo era tão bem feita e tão redonda, e sua vergonha tão graciosa que muitas mulheres de nossa terra, vendo-lhe tais feições envergonhara, por não terem as suas como ela”.10 Ao longo dos cinco séculos desde o início da colonização, as relações de gênero foram modificadas de acordo com os avanços do projeto colonial europeu, pautado no uso da violência desde sua origem. Consolidouse, assim, o controle e autoridade na produção de conhecimentos pelo sistema patriarcal. Ser mulher na América Latina é um ato de resistência. As informações disponíveis sobre violência contra a mulher, feminicídio e turismo sexual são preocupantes e desanimadoras. Dados do CEPAL apontam que 14 dos 25 países com as taxas mais altas de feminicídio são latino
editorial
6
americanos e o Brasil lidera o ranking.11 Diante desses dados, fica evidente como discurso misógino por parte do presidente Jair Bolsonaro conseguiu espaço nas mídias e no eleitorado brasileiro. Além disso, 98% dos crimes de violência contra a mulher não são julgados e passam impunes. O medo marca a vida das mulheres latinas Notícias sobre desaparecimentos e feminicídios frequentemente estão nos portais de mídia, são poucas as cidades em que uma mulher se sentiria confortável andando sozinha a noite, e direitos básicos sobre o corpo feminino, como o aborto, são negados em quase todos os países latinoaericanos. Com essa impunidade naturalizada, o feminino é comercializado e violentado das mais diversas formas. “Historicamente, a caracterização das mulheres europeias brancas como sexualmente passivas e física e intelectualmente frágeis as colocou em oposição às mulheres colonizadas, não-brancas, inclusive as mulheres escravizadas, que, ao contrário, foram caracterizadas ao longo de uma vasta gama de perversão e agressão sexuais e, também, consideradas suficientemente fortes para aguentar qualquer tipo de trabalho.” (LUGONES, 2008).12
María Lugones (2008)13, filósofa argentina que faleceu em julho deste ano, argumentava que a colonialidade do poder deveria ser complementada por um eixo de colonialidade referente ao gênero, uma vez que o eixo da colonialidade sozinho não seria capaz de englobar todos aspectos de controle político e econômico, devendo contar então com a complementação de um eixo ligado ao estudo do gênero, a partir de noções de interseccionalidade - o cruzamento entre as dimensões de gênero, raça e classe. “Somente ao perceber gênero e raça como tramados ou fundidos indissoluvelmente, podemos realmente ver as mulheres de cor. Isso significa que o termo “mulher”, em si, sem especificação dessa fusão, não tem sentido ou tem um sentido racista, já que a lógica categorial historicamente seleciona somente o grupo dominante – as mulheres burguesas brancas heterossexuais – e, portanto, esconde a brutalização, o abuso, a desumanização que a colonialidade de gênero implica.” (LUGONES, 2008)14
A filósofa argentina também escreve que o termo mulher colonizada chega a ser uma contradição, já que o termo ‘mulher’, no sentido completo da palavra, era reservado às mulheres brancas europeias, enquanto as nativas indígenas ou africanas escravizadas passaram a assumir o papel de mercadoria e propriedade. “Quando se diz que o português inventou a mulata, isso nos remete exatamente ao fato de ele ter instituído a raça negra como objeto; e mulata é crioula, ou seja, negra nascida no Brasil, não importando as construções baseadas nos diferentes tons de pele.”15, escreveu Lélia Gonzalez, intelectual, política, professora e antropóloga brasileira, que foi pioneira do feminismo negro global. O pensamento de Gonzalez está centrado em uma análise do
POSTO68
11 CEPAL. “La medición del feminicidio o femicidio: desafíos y ruta de fortalecimiento en América Latina y el Caribe”. 2019. Disponível em: <https://oig.cepal.org/sites/ default/files/femicidio_web.pdf>. Acesso em: 19 de Setembro de 2020. 12 LUGONES, María. Revista Tabula Rasa, nº 9, jul-dez de 2008, Bogotá: Universidad Colegio Mayor de Cundinamarca, p. 73101. Tradução do espanhol de Pê Moreira. Disponível em: <https://bazardotempo.com.br/ colonialidade-e-genero-por-marialugones-2/>. Acesso em: 20 de Setembro de 2019. 13 idem. 14 idem. 15 GONZALEZ, Lélia. Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984, p. 223-244.
7
16 DE CASTRO, Susana. Feminismo Decolonial. Princípios: Revista de Filosofia, Natal, v. 27, n. 52, jan.abr. 2020. 17 A música “Garota de Ipanema” foi escrita em 1962 por Vinícius de Moraes (1913-1980) e por Tom Jobim (1927-1994). De acordo com o Grupo Universal, que administra os direitos da música, ela é a segunda mais tocada de todos os tempos, só perdendo para Yesterday dos Beatles no quesito comercialização e regravações. 18 A fundadora do movimento, Azucena Villaflor, se tornou uma das vítimas ao ser sequestrada, torturada e assassinada em 1977. Até hoje as mães realizam semanalmente protestos na Praça de Maio em Buenos Aires, onde se localiza a residência oficial do presidente. Atualmente existe um monumento em homenagem a Villaflor no local.
racismo e do sexismo através das conformações destes em relação ao modo de produção capitalista. Gonzalez utiliza do conceito de ‘massa marginal’ para explicar como as populações negras e de mulheres chegaram ao mais baixo nível na participação da força de trabalho, gerando um espaço de caráter desigual, racista, sexista e dependente dos países colonizadores. A exploração dos corpos não-brancos é refletida também na relação de solidariedade entre homens e mulheres inseridos no sistema colonial, já que o homem colonizado também busca exercer um domínio sobre as mulheres. Como explica Susana de Castro (2020, p.218)16 “A dominação patriarcal surge no colonialismo como forma de dar a ilusão ao nativo de que ele detinha também algum tipo de poder”. Isso é visto, por exemplo, na produção cultural interna dos países latino americanos, em que dificilmente mulheres são vistas além do seu papel de musa sensual. No caso da cultura brasileira, Niemeyer comparava as curvas de seus edifícios com a curva da mulher brasileira, dizendo que estas eram sua maior inspiração, e uma das músicas mais reconhecidas de todos os tempos, “Garota de Ipanema”, escrita por dois homens17, um de 35 e o outro de 49 anos, narra a maneira de caminhar de uma adolescente de 17 anos. A partir dos anos 1960, diversos movimentos eclodiram, tanto sociais quanto artísticos, questionando o papel de gênero da mulher. Um dos movimentos políticos que mais ganhou notoriedade foi o das “Madres de Plaza de Mayo”, fundado em 1977 por mães cujos filhos desapareceram durante a ditadura argentina. As mulheres envolvidas faziam protestos politicamente subversivos e dinâmicos, como publicar o nome dos desaparecidos em jornais argentinos de grande renome, trazendo atenção internacional para as violações dos direitos humanos cometidas pela ditadura, o que fez com que o movimento se tornasse alvo de perseguições.18 Mais recentemente, podemos destacar as manifestações do “Ni una a menos” que tomaram as ruas de mais de cem cidades Argentinas e Uruguaias entre 2015 e 2016, após dois casos brutais de feminicídio de adolescentes. As manifestações, que reivindicavam direitos para as mulheres, tomaram dimensões raras vezes vistas, chegando a atrair quase 200.000 pessoas a tomar as ruas de Buenos Aires. As manifestações do “El Nueve nadie se mueve” (Ninguém se mexe no dia 09), que ocorreram este ano no México no dia internacional da mulher, tinham como objetivo mostrar a importância da mão de obra feminina. Destaca-se a organização da Marcha Mundial das Mulheres, um movimento feminista e anticapitalista internacional que busca transformar as relações de exploração baseadas no gênero através da luta contra a dominação patriarcal capitalista, entendendo a necessidade de uma mobilização plurinacional e multisituada - com núcleos e marchas no Brasil e
editorial
8 em outros países latino americanos. No campo da arte, movimentos como o do “Polvo de Gallina Negra”, que ganhou força no México dos anos 80, era caracterizado por narrativas geralmente ignoradas pelo sistema cultural da época, como a de artistas feministas de mulheres indígenas ou negras, participantes de grupos ativistas e de coletivos feministas. “Ao navegar pelos movimentos sociais dominados pelos homens e pela classe média e pelo mundo da arte da década de 1970, eles estabeleceram as bases para futuras galerias alternativas e espaços culturais, que exploraram a arte além dos estereótipos normativos e binários raciais e de gênero que dividem.” (Vittori, 2018).19
Enquanto colonialidade da natureza, é possível identificar como as primeiras representações pictóricas e literárias do território latinoamericano povoaram o imaginário do “Velho Mundo” - da mítica El Dorado à inesgotável Potosí. O sentido primeiro mercantil da colonização impôs a lógica capitalista de exploração e destruição da natureza com a retirada de pau-brasil, do ouro e da prata. A separação entre homem e natureza, transposta da Europa para as nossas terras, entrou diretamente em conflito com a interpretação e pertencimento dos povos indígenas à terra.20 A exemplo disso, o escritor Eduardo Galeano21 descreve que a principal montanha de Potosí (cidade localizada na atual Bolívia), Sumaj Orcko ou Cerro Rico, antes adorada pelos povos nativos enquanto um “ser”, tornou-se a principal riqueza e fonte de prata da coroa espanhola no século XVI. As visões conflitantes entre “civilizadores” e povos indígenas são tratadas também por Ailton Krenak22, quando este faz referência ao Rio Doce como ente ou ancestral, aquele que rege a vida e o cotidiano. Desse modo, a natureza, ao olhar e ação do homem branco, é tratada como “recurso natural”, fonte de valor e mercadoria dentro das lógicas da acumulação capitalista. A partir disso, é possível compreender a Colonialidade da Natureza, segundo os estudos decoloniais, enquanto o conjunto das formas de dominação e exploração da natureza que persistem ao processo colonizador reproduzindo lógicas ainda vigentes. Para Galeano, a colonização dos territórios na América Latina - a “região das veias abertas” - foi (e ainda é) marcada pelo processo contínuo de retirada e exploração da natureza até seu total esgotamento. Ao final de cada ciclo econômico (pau-brasil, cana-de-açúcar, mineração, café, borracha, etc), a terra é exaurida e as populações dependentes são destinadas à miséria. Ademais, todos os ciclos foram responsáveis por realizar genocídios contra os povos indígenas junto do tráfico de negros escravizados, marcando também duas lógicas coloniais complementares - a América como lugar de produção e a África como o lugar de reprodução.23 Hoje, o contínuo desmatamento na Amazônia e os maiores incêndios da história no Pantanal promovidos pelo agronegócio, bem como o rompimento da barragem em Minas Gerais, com destaque especial para Brumadinho (2019), podem ser lidos enquanto projetos - e não desastres. Evidenciam políticas ecocidas e genocidas articuladas pelas elites locais e a serviço do capital internacional. Jair Bolsonaro, o ministro Ricardo Salles e a bancada ruralista (ou bancada do boi) no Congresso deixam claras as diretrizes adotadas rumo a um novo movimento de reprimarização da economia brasileira - processo que se repete em diversos países latinoamericanos - e ao desmonte de órgãos institucionais de proteção ao meio ambiente e povos indígenas. O minério, o açúcar e, depois, a soja, o gado, o gás, o petróleo e o etanol exerceram papel fundamental nas repúblicas latinoamericanas pós
POSTO68
19 VITTORI, Stefania. The Black Female Artists Who Pioneered Alternative Art Spaces in Mexico. Contemporary And, 2018. Tradução Nossa. Disponível em <https://www. contemporaryand.com/magazines/ the-black-female-artists-whopioneered-alternative-art-spacesin-mexico/>. Acesso em: 20 de Setembro de 2019. 20 MIGNOLO, Walter D.. COLONIALIDADE: O LADO MAIS ESCURO DA MODERNIDADE. Rev. bras. Ci. Soc., São Paulo, v. 32, n. 94, e329402, 2017. 21 GALEANO, Eduardo. As Veias Abertas da América Latina. Porto Alegre, L&PM, 2019. 22 KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Cia. das Letras, 2019. 23 ALENCASTRO, Luiz Felipe. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo, Companhia das Letras, 2000.
9 24 GALEANO, Eduardo. As Veias Abertas da América Latina. Porto Alegre, L&PM, 2019. 25 FERNANDES, Sabrina. Ecossocialismo a partir das margens. Jacobin Brasil, 2020. Disponível em: <https://jacobin. com.br/2020/07/ecossocialismo-apartir-das-margens/>. Acesso em: 10 set 2020. 26 Nesse sentido, é essencial diferenciar o projeto moderno dos movimentos artísticos modernistas latino americanos. Para a compreensão do projeto moderno, ou de “modernização”, na primeira metade do século XX na América Latina, é importante ressaltar algumas relações das quais se destacam a aposta dos Estados e elites no desenvolvimento capitalista, o reforço da concentração fundiária, os investimentos na industrialização que daria origem também às primeiras grandes metrópoles. Junto à isso, no plano político e ideológico, buscou-se forjar identidades nacionais, a partir da repressão de povos e da homogeneização cultural. Sendo assim, o projeto moderno ou modernizador na América Latina, se construiu forçosamente nos moldes capitalistas, em um modelo excludente que aprofundou desigualdades. O modernismo na América Latina, como movimento artístico, inegavelmente possui raízes na Europa pós Primeira Guerra e teve aqui uma produção também restrita à elite “intelectual” do período. No entanto, por mais que possam ser tecidas diversas críticas, enquanto manifestações artísticas, as produções modernistas trataram de pensar e refletir criticamente sobre os processos de modernização e suas contradições que se instauraram no território. É possível pontuar, portanto,: a Semana de Arte Moderna de 1922, Tarsila do Amaral e Anita Malfatti no Brasil, Frida Khalo e o Muralismo mexicano (José Orozco e Diego Rivera), Joaquim Torres-Garcia no Uruguai e Sul Solar na Argentina, entre muitos outros como parte de um movimento artístico que se insurgia contra a corrente imperialista da modernidade. 27 MBEMBE, Achille. Necropolítica: Biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte. São Paulo: edições n-1, 2020.
independência, nos projetos desenvolvimentistas, nas ditaduras e nos atuais governos neoliberais. Mesmo após quase dois séculos de independência das metrópoles europeias, nossas florestas e rios são colonizados, explorados e destruídos - em nome da exportação de “solos e subsolos”24 para os EUA, Inglaterra, França e China. Para a socióloga Sabrina Fernandes25, tal panorama revela que: “(...) não é por acaso que os maiores e mais impactantes movimentos sociais da América Latina estejam ligados à terra e ao território, à proteção ambiental, à soberania alimentar e a uma forte oposição a empresas multinacionais, investimentos estrangeiros e seu histórico de negociações perniciosas com governos de direita — e, algumas vezes, da esquerda moderada”. (FERNANDES, 2020)
Sendo fundamental, para isso, compreender a importância dos movimentos camponeses, ribeirinhos, quilombolas, de povos indígenas e ecossocialistas. Desse modo, se coloca um horizonte de disputa traçado cotidianamente através de lutas e denúncias, seja a partir das ações do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) - maior movimento social do mundo, que luta desde a década de 1980 pela reforma agrária no Brasil - e das resistências e cosmovisões indígenas (Davi Kopenawa, Ailton Krenak), seja da antropologia (Eduardo Viveiros de Castro) e do ecossocialismo (Michel Löwy), e do conceito filosófico andino Sumak Kawsay (ou “Bem Viver”), e que compõem e apontam outras perspectivas frente à colonialidade capitalista da natureza. A colonialidade da natureza se insere nos processos que - como já dito não se encerram com o fim da colonização. É sob essa égide - iniciada já no período colonial, com as grandes navegações, no contato com as populações indígenas latino americanas, com o tráfico de negros escravizados, com a ocupação européia nos países latinos, e que se mantém até os dias de hoje - que começa a se desenhar a colonialidade do ser. Essa forma de colonialidade se lança sobre o indivíduo, sobre as formas de sociabilidade e o estabelecimento de padrões que partem de um outro referencial que não é o afro ameríndio, mas do europeu - e hoje do norte americano, com artigo masculino, nos dois casos. Nessa lógica de colonialidade, o racismo - e o processo de racialização - se colocam como um de seus principais pilares e mecanismos. Na questão da colonialidade do ser, a criação de um padrão europeu, não apenas de beleza, mas de vestuário, de comportamento, de produção artística etc. se impõe como sobre os corpos e as cidades. Nessa mesma chave, se insere o mito da democracia racial, do discurso da miscigenação, o genocídio e etnocídio indígena e a imposição do cristianismo como regra - consolidada pela catequisação dos indígenas em toda América Latina, a repressão racista das religiões de matriz africana, o embranquecimento e despolitização das culturas populares etc. Todo esse processo se coloca na lógica do projeto moderno26 de construção de uma identidade nacional no Brasil, no que pode ser entendido como um embranquecimento das cultura popular e da população em si nesse sentido o quadro “A redenção de Cam” (1895), de Modesto Brocos se coloca como uma das mais eficientes obras para analisar de forma crítica a miscigenação no Brasil. O autor camaronês foucaultiano Achille Mbembe27 é, nesse sentido, uma referência central para o entendimento de uma perspectiva decolonial
editorial
10 da raça e das formas de governo. A partir de uma releitura crítica da governabilidade em Foucault, Mbembe propõe o conceito de necropolítica como o governo de morte a partir da biopolítica. A proposição de Mbembe é uma importante forma de análise do contexto de colonialidade do ser, a partir do corpo - da biopolítica - como forma de controle, de governo. A partir disso, é possível entender que a análise sobre a questão da colonialidade do poder engloba as lógicas da subjetivação dos povos e dos indivíduos. Para além dessa análise das subjetividades, existem outras chaves de leitura com relação à questão da colonialidade. Aqui destaca-se a perspectiva do marxismo anticolonial, cujas principais experiências virtuosas se deram na África e Ásia. Na chave de leitura anticolonial, entende-se o colonialismo como uma forma de dominação do capital, como já era enunciado na obra marxiana. Partindo de uma análise ligada à corrente leninista, se coloca a necessidade de pensar o marxismo anticolonial dentro da chave da luta anticolonial, que a precede. Isso porque o século XX não inaugurou as lutas anticoloniais, o século XX inaugurou processos de lutas anticoloniais vinculadas às correntes marxistas - em especial ao leninismo. Um projeto político que se estruture a partir do marxismo anticolonial entende a discussão anticolonial inserida nas lógicas de dominação do capital. Em outras palavras, a questão que está colocada é a de que ainda que um país seja formalmente independente, o capital continua construindo uma lógica de dominação dos povos, que deve ser combatida a partir de um projeto político, econômico e social que tenha o fim da dominação pelo capital como elemento chave. Uma vez que existe uma relação direta entre aqueles que detêm o capital, os meios de produção e as estruturas de dominação imperialistas, a superação da exploração só é possível com a superação do imperialismo em si. Tanto as noções da colonialidade do poder e dos estudos decoloniais, quanto as discussões sobre o marxismo anticolonial se colocaram como chaves de leitura importantes sobre o tema, possibilitando uma análise mais abrangente. O processo de elaboração deste número da revista se constituiu como uma jornada intensa de estudo por parte do corpo editorial, que não tem - e nem se propõe a ter - uma visão consensual sobre as chaves de análise aqui colocadas. A chamada aberta se insere nesse mesmo contexto, possibilitando que materiais de diferentes matrizes teóricas e gráficas fossem apresentados, tornando possível uma análise do colonialismo e do imperialismo multisituada. Afinal, o objetivo da POSTO68 é possibilitar um ambiente de debate, a partir de uma perspectiva de ruptura com as lógicas de dominação e exploração do capitalismo contemporâneo. Sendo assim, o corpo editorial buscou ampliar as formas de leitura da temática, valorizando a produção iconográfica que proponha debater as lógicas de colonialidade e colonização em seus diferentes aspectos. Em seu segundo número, a POSTO68 se propõe a valorizar e difundir símbolos, releituras e formas de análise feitas em linguagem não verbal, entendendo a importância da construção de uma identidade que rompa com a colonialidade e que busque por símbolos outros, representando uma transgressão, uma forma de resistência e reinterpretação da sociedade latino americana A submissão da imagem latino-americana, tanto das cidades quanto dos
POSTO68
11 28 Filósofo argentino, grande nome da Filosofia da Libertação e do pensamento latino-americano. 29 Indica-se pesquisa sobre o Debate de Valladolid, disputa que se deu na Espanha entre 1550 e 1551 sobre a existência ou não da alma dos indígenas. Essa disputa provocou um questionamento sobre o direito à colonização, suspendendo os processos de escravização e catequização dos povos indígenas da América espanhola por alguns meses. No entanto, os interesses da coroa pelas riquezas das terras latinas sufocaram o debate filosófico sobre esse contato com o outro. Entretanto, o debate foi o elemento central de estruturação da catequização indígenas dos jesuítas, que acreditavam que poderiam salvar-lhes a alma - e portanto, que ela existia. Com isso, reforça-se o processo de desumanização do indígena e a imposição do homem branco como o centro, a referência da sociedade ocidental. 30 BELTING, Hans. Imagem, mídia e corpo: uma nova abordagem à iconologia. Ghrebh: Revista de Comunicação, Cultura e Teoria da Mídia, São Paulo, v. 1, n. 8, p. 32-60, jul. 2016. Disponível em: <http:// www.cisc.org.br/portal/jdownloads/ Ghrebh/Ghrebh-%208/04_belting. pdf>. Acesso em: 20 set 2020. 31 No Pateo do Collegio, marco inicial da cidade de São Paulo, há o monumento “Glória Imortal aos Fundadores de São Paulo”, na base da escultura estão representados indígenas realizando trabalho braçal a mando de Padre Afonso Braz, construindo casas e a igreja.
corpos, é resultado do projeto de colonização que se institui desde o primeiro contato do homem branco e os povos que habitavam a América. O projeto colonizador, se constitui pela submissão da imagem do sujeito - dos corpos, da cidades, as organizações sociais, as práticas culturais latino americano às imposições do Império, estabelecendo a construção do indígena como o outro. A produção textual, imagética e a forma de se relacionar com esses povos sempre vieram no sentido de reforçar a colonização, na medida que essa deriva de dois elementos centrais: a de que o homem branco europeu é detentor da ciência e da racionalidade e a de que ele tem o dever de reproduzir e proliferar esse conhecimento - essa suposta verdade - usando-a como justificativa para a conquista e a dominação. Enrique Dussel28 destaca que a crença europeia de superioridade constitui um ego cogito (do pensamento cartesiano), baseando-se na racionalidade e avanço tecnológico e bélico, o que justificaria classificar os povos americanos como não humanos29 (e como consequência reforçar as imagens de selvageria e atraso), uma vez que o humano seria medido pela ciência e racionalidade. Dessa constatação deriva-se o ego conquiro, que é a ação de colonização através da transmissão da ciência considerada real e correta aos que não a possuíam e, portanto, eram classificados como selvagens (no mesmo sentido que os jesuítas trouxeram a religião para salvar ao menos a alma dos povos indígenas). Dessa maneira, a conquista européia das Américas se coloca não apenas pela imposição de verdades e de uma racionalidade universal, mas também pela imposição de imagens, símbolos, princípios e crenças. Essa sobreposição e aterramento constitui uma nova subjetividade e um imaginário, um corpo colonizado. Hans Belting trata da colonização das imagens e, consequentemente, da colonização dos corpos ao citar a importação das imagens europeias para a colônia espanhola como prática política do país. Essa ação tinha como finalidade, segundo o autor, incluir ícones estrangeiros nos sonhos dos indígenas30, exemplificando a importância que a dominação na esfera do inconsciente teve no processo de colonização da América espanhola. No caso brasileiro, é possível pensar a catequização através dos sermões dos jesuítas de forma análoga. Os padres jesuítas, que até hoje são ícones na história e na literatura brasileira31 cumpriram papel central no processo de apagamento e desconstrução da subjetividade e cultura indígena. Em “O Espelho Índio: Os Jesuítas e a Destruição da Alma Indígena” Roberto Gambini traz como disparador um exemplo bastante ilustrativo da colonização do imaginário: o depoimento de um indígenaque descreve que em seu sonho ele foi crucificado de cabeça para baixo por homens brancos, e conta que teve medo, mesmo acordado. Outro aspecto importante que refere-se à imagem está ligado ao processo de construção desse ser selvagem perante à sociedade. Se por um lado o ego conquiro age no sentido de colonizar as imagens mentais dos povos nativos e a verdade do homem europeu, por outro, o ego cogito tenta se colocar o mais distante possível do que é não europeu e não racional ao moldar o arquétipo do ser exótico, mitológico e primitivo perante a sociedade europeia. Ronald Raminelli, em seu texto Imagens da colonização (1996), destaca o descompasso dos relatos textuais produzidos pelos Jesuítas e as imagens produzidas no período que circulavam na Europa, as últimas representavam um ser sem especificidades, caracterizado pelo selvagem, exótico, seres sub-humanos. Essas alegorias européias representam o homem32 latino
editorial
12
americano, mas sim um estereótipo do homem primitivo frente aos olhos do civilizador, revelando o projeto de criação de um homem universal que é branco e europeu e desumanizando a figura do latino americano, visto como selvagem, não dotado de capacidades intelectuais e extremamente sexualizados - em especial no que diz respeito à construção da imagem da mulher latina, coloca como sensual, excêntrica, vulgar. Esse descompasso sempre reforça a existência do outro e a racialização dos indivíduos, possibilitando as diversas formas de dominação, estruturando os projetos coloniais e eliminando toda a possibilidade de compreensão de uma nova realidade cultural.
32 Homem aqui é trazido não como uma determinação de gênero, mas como uma generalização do ser humano latino americano. Entende-se, no entanto que existe uma diferenciação bastante significativa das formas de subjetivação e na construção imagética do ser homem e do ser mulher, uma vez que, sobre a mulheres, incide também a lógica do patriarcado e de dominação, que constroem dinâmicas específicas - relacionadas à concepção de interseccionalidade.
As representações indígenas na grande mídia continuam reforçando o suposto exotismo e um símbolo fenotípico fixo a respeito da “figura” do indígena. A noção moderna de superioridade e os constantes processos de apagamento da identidade dos povos nativos deram base para as ações de colonização da América, mas não se limitaram ao milênio passado e continuam impregnando o imaginário a respeito da cultura e imagem latino-americana, estereótipos tropicais, sexualizados, ilegais, subalternos e submissos aparecem no cinema, na televisão, em textos, reportagens, pinturas, todos tipos de representação. O n.02 da revista POSTO68 busca sobrepor essas diferentes chaves de análise e situar a disputa pela América Latina como prática de subversão, de transgressão. Essa proposta tem relação direta com o objetivo editorial da revista, uma vez que acreditamos que é central que nos coloquemos de forma assertiva frente ao contexto do capitalismo contemporâneo. A POSTO68 é uma revista pensada para ser lida em versão impressa, em um formato que se contrapõe às leituras rápidas e simplistas das redes sociais e da era da pósverdade na qual estamos inseridos. Entretanto, não queremos que o acesso ao amplo acervo aqui reunido se limite a quem pode pagar por ele e, por isso, a revista fica integralmente disponível de forma digital. O conteúdo apresentado neste número da revista foi submetido por autores(as) e artistas de diferentes estados e cidades brasileiras por meio de uma chamada aberta de trabalhos. Na tentativa de uma organização coerente de todo o material - artigos, poemas, séries fotográficas, colagens etc. - além do conteúdo fixo da revista - que estará presente em todos os números das revistas - elaborados pelo corpo editorial, é feita uma organização em eixos temáticos. O eixo Colonização traz os trabalhos de Maria do Val da Fonseca, Wesley Lima Brito, Guilherme Vinícius de Morais e Mayara Maruiti Serra - que também está na capa deste número - a partir de uma leitura da colonização latino americana em suas subjetividades mais essenciais. No eixo de Luta pela terra se encontram trabalhos que partem da disputa pela terra, do papel e formas de atuação - e seus limites - da arquitetura e do urbanismo, dos movimentos sociais, de coletivos, de políticas públicas, alguns deles alinhados às lutas anticoloniais. Nele se concentram o artigo de Julia Lot, Hugo Pereira, Tiago Lourenço e o ensaio de projeto de Caio
POSTO68
13
Carvalho dos Santos, bem como o artigo do Escritório Casulo, além de entrevista com a arquiteta mexicana Fernanda Canales, um perfil do COMUNAL TALLER e um artigo discutindo o Programa Favela Bairro no Rio de Janeiro, de elaboração do corpo editorial. O eixo de Identidade relaciona a questão do território com a colonialidade do ser, a partir dos trabalhos de Gabriela Pecantet Siqueira, Flávio Augusto Duarte Ferreira, Marina Coelho de Souza e Sofia Fortunato Ribeiro da Costa, além dos projetos de Andrea M. Cruz Mejía e Camila Caetano. Nesse eixo se encontra também a entrevista realizada com o designer soteropolitano Filipe Cartaxo. O eixo do Corpo se relaciona fortemente com as proposições ligadas à colonialidade do ser e do gênero, discutindo o papel e o lugar dos corpos marginalizados nas lógicas de exploração imperialistas. Nesse eixo se inserem os trabalhos de Nataly Gossler, Rayana Wara Campos Armond, Veridiana Emília Godoy, Luiza Fonseca de Souza, Fernanda Evelyn Vilaça dos Santos e Nara Raysa de Souza. O eixo de Transgressão parte de uma noção de questionamento das estruturas imagéticas da colonialidade e da produção cultural bastante ligado à colonialidade do saber, a partir do trabalho de Wesley Lima Brito, de um texto sobre as representações da arte latino americana da professora Amanda Saba Ruggiero e uma entrevista com o cientista social argentino Ezequiel Gatto. Para fechar esse número, propomos um quadro de referências de arquitetura latino americana, pensando na necessidade de descolonizar nossos referenciais eurocêntricos no campo da arquitetura e urbanismo, entendendo que existe uma rica produção ainda pouco visibilizada. Como em nossa edição piloto, a revista se encerra com uma linha do tempo do período entre os dois números, buscando enquadrar os processos descritos na revista dentro do contexto contemporâneo, em especial entendendo o contexto da pandemia de Covid-19, a crise política e da democracia brasileira, o contexto de milicialização do Estado e o enrijecimento do neoliberalismo autoritário que se impõe sobre a realidade brasileira que não pode ser ignorado para se pensar as formas de transgressão. Desejamos a todas e todos uma boa leitura,
Corpo editorial da POSTO68.
editorial
SUMÁRIO 16Cidade em versos “brancos” Maria do Val da Fonseca
18Homem Tupi
Wesley Lima Brito
20sou abordagens repletas 22Colonialidade Guilherme Vinícius de Morais
Mayara M. Serra
26 Luta pela Terra Urbana como resistência popular
73 Contrafluxo, um lar74 para refugiados
Feminismo decolonial Gabriela Pecantet Siqueira
TFG_
Camila Caetano
81
Latino Americana TGI_ Terra-água: Revelar identidade de Puerto Córtes
Júlia Lot Silva Hugo Leonardo da Silva Pereira Tiago Castelo Branco Lourenço
38Arquicidade -
Um ensaio de projeto na Maré
Caio Carvalho dos Santos
50 O programa Favela-Bairro no Rio de Projeto_
Andrea Michelle Cruz Mejía
Sofia Costa
Vitor Halfen Ana Luiza Gonçalves Felipe Leme
56 62
Perfil_ Comunal Taller Giulia Ravanini
Ensaio_ Escritório Casulo
68
Beatriz Costa Juliana Santana Rafaella Amarante
Entrevista_ Fernanda
Canales
por Giulia Ravanini
92
Onde eu estou, eu sou Marina Coelho de Souza
94
Entrevista_ Filipe
Janeiro: entre pioneirismo e Cartaxo contradições
90
América para americanos
por Bárbara Machado
99
O Monstro de Três Cabeças Flávio Duarte
100LATINOAMERICANA A que colonizador 104 pertencem os nossos Nataly Gossler
corpos?
Rayana Wara Campos Armond
109Exploração
Fernanda Evelyn Vilaça dos Santos
110Eu sou a Vênus
Veridiana Godoy
cara, minha roupa 112Minhae meu bairro não são
delito: Representações
130
GRIN
Wesley Lima Brito
132
Construções da arte latino-americana entre representar e apresentar Amanda Saba Ruggiero
144
Entrevista_ Ezequiel Gatto
sobre violência policial e por Adriano Caro Florio estigmatização da juventude marginalizada a partir do grafitti em Buenos Aires Luiza Fonseca de Souza
A marginalização entre 122 ruas e esquinas:
o racismo dentro da perspectiva urbanista e seus impactos nos corpos pretos na cidade de Belém do Pará Sâmyla Eduarda Moreira Blois Alves Nara Raysa de Souza
152
quadro de referências
Ana Luiza Gonçalves Bárbara Machado
154linha do tempo Adriano Caro Florio Bárbara Machado
16
Fotografias e colagens realizadas pela autora. Manaus e SĂŁo Paulo.
POSTO68
Cidades em versos brancos
,,
,,
Versos “brancos”, são versos livres São versos soltos, são versos ocos Cidades são poesias performáticas Desconfianças pragmáticas De vidas sistemáticas Há quem se olhe no espelho e veja uma imagem jocosa De sua própria história em prosa Assombrada pelo seu monólogo interno Inferno subalterno renegado Genocídio instaurado Que cresce em cima De índio torturado Nasce em cima De rio canalizado Ergue-se em cima De negro escravizado Continua Na tentativa de doutrinação Como Macuxi em época chuvosa Me separo em pedaços Porque depois que a tempestade passar Algo de mim deve restar No momento Sem previsão Seringueira sangra Amor em vão
Maria do Val da Fonseca *
* Arquiteta e Urbanista por formação, pesquisa a relação entre os dados provenientes de mídias locativas e o espaço urbano. Possui prêmios em diferentes técnicas de representação, foi curadora de exposição sobre fotografias urbanas (2018) e participante de exposição fotográfica (2018). Atualmente é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Design da UFPR.
18
Homem Tupi
Wesley Lima Brito
* Wesley Lima Brito, nascido em São Paulo, tem 24 anos, formado no curso Técnico em Redes de Computadores - no Centro Educacional e Assistencial Pedreira - (CEAP), atualmente cursando Artes Visuais no Centro Universitário Belas Artes de São Paulo. Atualmente sua linha de pesquisa se desdobra em três áreas: Arte sonora - onde aborda experimentações acerca de seu cotidiano, gravações sonoras, paisagens sonoras, intervenções, instalações, performances e obras audiovisuais. Cultura Indígena - abordando aspectos culturais indígenas por meio de releituras e apropriações (obras que trazem características ilustrativas/figurativas, narrativas e conceituais) e por fim, a Cidade - onde aborda a rotina, movimento, tempo, deterioração de espaços, pixações e contrastes sociais.
POSTO68
19
Homem Tupi Calcogravura 36x25cm (suporte) - Papel Hanemmuhle 280g 12x19cm (mancha grรกfica) Wesley Lima Brito * 2019
sou abordagens repletas no fim da beira do dia, vejo a composição de sua existência. o fulgor do estresse da manhã, a tranquilidade da noite remota. facetas reencontradas que se aderem, que se recomponhem e que mutuamente trabalham para um a seguir. pensar no meu pertencer a essa coexistência, é enxergar o todo profundo. composição essa, bonita e simples. neste lado da janela, vejo mãos que trabalham construindo firmes paredes, pés que brincam e correm em ruas movimentadas e vozes que falam, depois exclamam e por fim gritam para todos terem cuidado. desse primeiro andar, observo bravas pessoas que lutam por o jantar à noite, observo a beleza de seus rostos cansados em superfície. eles fazem construções íntegras, sendo antes sua própria integridade. raízes que entendem o valor do chão, que respeitam sua história e a do consequente, que não esquecem dos contos de seus ancestrais quando pequenos da resistência. essa luz quente do sol se perde com o frio do vento do litoral atlântico. depois do terreno de minha casa, vejo paz e revolta misturadas. não há necessidade de mais cenários, pois múltiplos têm. no entanto, em rotina, há conhecimento sendo criado e arte enaltecida. mas propriamente a arte, bem, ela é tão livre... conhece bem a liberdade. de se reproduzir, de se cuidar e de se manter. de repente conheço seus esboços, suas lutas e seu querer da força a se própria continuar. pensar em arte é pensar que também sou uma. que vive em dimensão e textura, que reflete na nuance a fugacidade momentânea do meu corpo que constantemente muda. tempo brinca tanto com isso... sabedoria perdurada por séculos! por isso, não vejo porquês estado a perder se não de nos recriar, inovar e se expandir. pois arte conjunta é sobre ser: significados vazios profundos, sem amarras de desgostos e que chega para todos. por novos aspectos metamorfoseados que persuadem e nos convida. suas histórias que trazem povos constituídos nelas, a persistência para futuros presentes e que lá se encontrem: novo condizer. porém, é também estar só. sendo subjetiva, vivencia dias que se cala, que se esconde e que por fim nem adianta falar com ela, pois não diz mais. e quem nada compreende, produzir novos caminhos, é entender que florescimento está a cada instante. que abraçar todas as suas derivas é importante, enaltecendo pessoas dispostas a transmitir e a retrabalhar para uma progressão, pois potencialidade é dependente de esforço. parece que dessa janela, penso em tudo, mas nada me pertence, porque não existe termos de nenhuma posse. escritas na parede à tinta que revelam a vontade de ser escritor, montagens e colagens que expõem o gosto por imaginação e livros em estantes que mostram o profundo amor à literatura. mas tudo misturado, o que aponta a pouca gerência minha nas esferas. quarto é identidade, casa é integração. nesse quarto, vejo quem eu sou. nesse quarto, vejo como profundo sou. repleto de abordagens, como arte é.
Guilerme Vinícius de Morais * * Nascido em Recife, futuro estudante de Letras. Possuo uma página no Instagram chamada @heyscrita, em que fala sobre processos e comportamentos emocionais, Literatura, Arte, Filosofia, Sociologia e Expansão Consciente.
POSTO68
Independência editorial se faz com interdependência A Elefante existe graças a seus leitores e leitoras. Venha conosco e amplifique as discussões sobre América Latina, feminismo, antropologia, descolonização e alternativas. Assine nossa newsletter e fique por dentro das notícias e dos lançamentos. Cupom para sua primeira compra: POSTO68_2020
editoraelefante.com.br @editoraelefante
22
COLONIALIDADE
POSTO68
Mayara M. Serra
Ser: Categorias de ordem. Nação, Social e Gênero Tinta acrílica azul sob rocha, tinta de tecido dourado e pó metálico sob rocha, tinta guache preta e branca sob rocha Mayara M. Serra 2020
Dominação cultural Esfera efervescente, água, rochas e vidro Mayara M. Serra 2020
23
24
POSTO68
25 Saber: narrativas hegemônicas Tinta acrílica azul, tinta de tecido dourado, pó metálico, tinta guache preta e branca sob rocha Mayara M. Serra * 2020
Trabalho desenvolvido a partir dos estudos sobre a “colonialidade de poder”, termo desenvolvido por Aníbal Quijano em 1989, que “exprime a constatação simples [...] de que as relações de colonialidade nas esferas econômicas e política não se findaram com a destruição do colonialismo.” (Ballestrin, L. América Latina e o giro colonial, 2012). As imagens produzidas na série buscaram representar algumas estruturas fundamentais para a manutenção da hierarquia mundial, a qual marginaliza as narrativas dos povos dominados (como a América Latina) e os submete às estruturas políticas, sociais e culturais que colaboram com a manutenção da dominação eurocêntrica e ocidental.
* Mayara Serra é Arquiteta e Urbanista, graduada pelo Instituto de Arquitetura e Urbanismo USP. Já atuou na área de design gráfico, cenografia, educação e estuda crítica da arte e curadoria.
26
Luta pela terra urbana como resistência popular latino americana n
Hugo Leonardo Pereira ** Júlia Lot Silva *** Tiago Castelo Branco Lourenço ****
Resumo:
A centralidade do proletariado como grupo social protagonista na resistência ao capitalismo é substituído, desde os anos 1960, por inúmeros sujeitos com pautas variadas nos mais diversos territórios da América Latina e que tem o espaço urbano como o lugar privilegiado das lutas, marcando a disputa por terra como uma das centralidades dessa resistência. Estas lutas quase sempre não se encontram e não se ajudam mutuamente, sendo necessário o esforço a posteriori para evidenciar agendas correlatas. Entretanto, nos momentos enquanto elas se estabelecem isto é pouco explorado. Este texto procura estabelecer relações lançando luz sobre continuidades e descontinuidades no tempo e no espaço que observamos desde as barriadas limeñas a partir dos anos 1940, passando pelas poblaciones no Chile entre os final dos anos 1950 até o golpe militar de Pinochet em 1973 e as ocupações urbanas belorizontinas nos anos de 2010. Palavras-chave: Movimentos Sociais Urbanos; Moradia; Autonomia; América Latina.
* Este artigo foi desenvolvido com base em discussões realizadas no Grupo Extensionista UNSCORRE – Autoprodução Social do Espaço na RMBH (Região Metropolitana de Belo Horizonte), projeto que investiga e atua na RMBH baseando-se em trabalhos de extensão universitária e pesquisas de docentes e discentes de diferentes áreas do conhecimento que têm acompanhado comunidades de baixa renda, sobretudo em lutas por moradia nas cidades da RMBH. O projeto é sediado no Grupo de Pesquisa MOM-UFMG (Morar de Outras Maneiras) e no Departamento de Projetos da Escola de Arquitetura da UFMG. ** Graduando em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Sergipe, pesquisador no grupo Morar de Outras Maneiras (MOM-UFMG) e extensionista no UNSCORRE. Email: hugoleonardofjb@gmail.com *** Arquiteta e Urbanista pelo Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP-São Carlos), pesquisadora e extensionista no UNSCORRE. Email: julialotsilva@ gmail.com ****
Maquetista, Licenciado em História pelo Unicentro Newton Paiva e Arquiteto e Urbanista pela PUC Minas, Mestre e doutorando em Arquitetura e Urbanismo pela UFMG, Professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da PUC Minas e do Departamento de Projetos da Escola de Arquitetura da UFMG, pesquisador no grupo Morar de Outras Maneiras (MOM-UFMG) e coordenador do grupo UNSCORRE. E-mail: tcblourenco@gmail.com.
POSTO68
27
Introdução
A resistência dos setores populares latino americanos ocorre com o passar das décadas, em um tempo de longa duração. Condição que atestaremos ao apresentarmos o processo histórico em uma faixa temporal que abrange quase um século de duração, com semelhanças nas estratégias de resistência e luta pela terra urbana em diferentes países. Esta trajetória será feita a partir dos setores populares nos últimos 80 anos, com o intuito de buscar seu “projeto histórico”. Os cortes temporais são decisivos por permitirem desvelar a agenda subjacente às ações visíveis, às grandes lutas e às mobilizações maciças, permitindo ainda traçar conexões entre os vários ciclos de luta que, à primeira vista, não teriam nenhuma relação. Comparar a situação dos setores populares urbanos em 1900, ou em 1950, com a de 2000, permite-nos deduzir o caminho em que estão transitando. Mudanças lentas devem ser compreendidas em tempos longos (Zibechi, 2015, p.90). Um aspecto, apontado por Zibechi, ao qual também nos atentaremos no estudo dos setores populares da América Latina é a diferença entre a posição dos dominados em relação às estratégias dos dominadores - aqui incluídos os profissionais arquitetos. Os dominados não planejam sua trajetória de luta e resistência. O seu projeto histórico é construído à medida em que é vivenciado, o que acaba por dificultar trocas durante os processos. Sendo assim, retomar essas experiências se torna importante para esclarecer possibilidades de vínculos que não ficam claras durante o processo histórico.
28 Lima e as barriadas1 A configuração dos elementos centrais da sociedade atual peruana, segundo Matos Mar (1986), se deu através da intensificação das barriadas, em várias cidades peruanas, especialmente em Lima. Esse processo tem início a partir do terremoto2 de 1940, acelerando o processo de migração massiva de camponeses (DRIANT, 1991) e se intensifica na década de 50, inaugurando um curso expressivo de urbanização, com uma forte migração para Lima de uma população proveniente da Cordilheira dos Andes, especialmente da porção sul do país nos limites com a Bolívia. É o início da formação das barriadas limeñas, evento urbano que marcará desde então o desenvolvimento urbano da capital do país. Este desborde popular, na interpretação de José Matos Mar (1986), fica evidenciado nas ocupações de prédios e terras urbanas pelas camadas populares de origem andina, indicando um fenômeno que coloca esses grupos sociais como protagonistas de um processo que vai além de uma manifestação que pode ser tratada somente como subalterna. Até a década de 1950, as cidades peruanas tinham um desenvolvimento que era controlado pelas vias oficiais. A partir deste momento, temos uma ruptura e uma transformação expressiva das cidades, mudança promovida pela população de baixa renda proveniente dos meios rurais (Matos Mar, 1986, p.76-77). As cidades do Peru não estavam preparadas para atender as demandas daquela população campesina. Está, então, começa a transformar e produzir uma nova cidade, promovendo rupturas com a lógica institucional da cidade criolla3. As barriadas e as ocupações de prédios vazios nos centros históricos para moradia são uma grande expressão espacial desta nova cidade que se construía. No caso peruano outras manifestações também se dão no transporte e na organização de empresas que atuam na clandestinidade, em paralelo aos preceitos oficiais, situações analisadas também por Hernando De Soto4 (1987) no seu livro “El Otro Sendero”. Esse processo de migração massiva para as cidades, especialmente para os centros urbanos localizados na costa do Pacífico - com destaque para o que ocorreu desde então em Lima -, começa na década de 1940, quando se inicia, também, um processo de modernização da economia peruana. Esta, muito influenciada pelos efeitos da 2ª Guerra Mundial (19391945) e, posteriormente, pela guerra da Coreia (1950-1953), que levaram ao desenvolvimento do mercado interno e a construção de uma malha viária que facilita a comunicação das províncias com os centros urbanos. Esse processo de modernização da economia peruana coincide com o governo de Manuel Arturo Odría Amoretti entre 1948 e 1956. Esse “estouro” popular começa desde então a pressionar uma nova lógica de funcionamento do mercado imobiliário de Lima, com alterações no seu funcionamento tanto na oferta de unidades para aluguel, quanto no uso de áreas livres no entorno da cidade e nas bordas do Rio Rímac, que se forma nas encostas da Cordilheira do Andes e atravessa a cidade de Lima de Leste para Oeste em direção ao oceano Pacífico. Entre 1945 e durante a década de 1950 formaram-se 119 ocupações de terrenos na capital peruana (Matos, Mar, 1990, p.29). No Peru entre os anos 1960 e 1980, as barriadas passam a ser incorporadas como parte das políticas públicas de acesso à moradia nas cidades do país.
POSTO68
1 Definição apresentada pela Oficina Nacional de Planeamiento y Urbanismo (ONPU) em 1956: “[...] los barrios formados sobre tierras invadidas, y que no se conforman a un plan trazado preconcebido o que lo tiene muy rudimentario, carecen de los servicios públicos y sociales más elementares [...]” (Driant, 1991, p.16-17). 2 “El terremoto de Lima y Callao de 1940 se produjo el 24 de mayo de 1940, a las 11:35 de la mañana (hora local), asolando Lima, la Provincia Constitucional del Callao y zona costera del departamento de Lima, en Perú. Hubo también un tsunami. [...]” https://es.wikipedia.org/wiki/ Terremoto_de_Lima_y_Callao_ de_1940 Acesso em 10 de junho de 2020. 3 Criollos são os colonos brancos nascidos na América e descendentes dos espanhóis. Eles faziam parte da classe dominante da América Espanhola. As cidades formadas durante a colonização espanhola eram muito influenciadas pela concepção espacial espanhola. Após a independência dos países da região essas cidades passam a sediar e expressar o poder deste criollo que exerce o domínio político e econômico dos novos Estados Nacionais que se formam, essas cidades tem em sua concepção uma lógica criolla, que remete a concepção espanhola e ocidental e dialogam pouco com a concepção espacial dos povos originários da América. 4 Hernando De Soto é um economista peruano que se tornou uma das referências para o neoliberalismo. Ele estudou várias atividades econômicas do Peru e avaliou que sua pouca aderência as institucionalidades eram um indicativo que o Estado peruano e sua estrutura burocrática dificultavam a inclusão de boa parte da população. O seu livro “El Otro Sendero” é uma de suas obras mais famosas onde ele defende este ponto de vista. Seus trabalhos e sua concepção já foram muito criticadas por vários estudiosos sobre o assunto, mas ele continua sendo uma importante referência que ainda influencia vários políticas habitacionais neoliberais em todo mundo.
29 O golpe de Estado ocorrido em 3 de outubro de 1968 instaura o governo do general Juan Velasco Alvarado e incorpora as barriadas como parte da política estatal. Um ano depois, ocorre a reforma agrária de 1969. Porém, o fluxo migratório da população rural para Lima não se alterou. O processo de urbanização e industrialização que o país vivenciava assumia contornos irreversíveis. Lima se apresentava entre os camponeses peruanos como uma possibilidade de fuga da miséria e de melhoria da qualidade de suas vidas. Os governos militares de Velasco (1968-1975) e Moralez Bermúdez (1975-1980) apoiaram a produção habitacional das camadas pobres que chegam até as cidades. Entretanto, este apoio não significou uma ação consistente e efetiva na implementação de uma política pública de moradia, condição apontada por Gustavo Riofrío quando classifica essa ação estatal como política de dos caras, que se manterá em outros momentos da produção de moradia de baixa renda no Peru, durante os governos da redemocratização com Fernando Belaúnde Terry (1980-1985) e Alan Gabriel Ludwig García Pérez (1985-1990). Essa política de dos caras, segundo Riofrío, marca a produção habitacional no Peru desde os anos 1960, já no primeiro governo de Belaúnde (1963-1968). Coloca-se, com um suposto apoio do Estado, na instalação das camadas pobres camponesas que chegam às cidades. Porém, este apoio não se efetiva numa atuação pública de produção habitacional, é “uma política de deixar as barriadas agirem por si só, ordenando o processo, travestindo-o com uma demagogia da auto-ajuda” (Riofrío, 1978, p.38). Esta condição vai instalando uma característica que marca Peru, uma ilegalidade institucionalizada, que deixa sua marca na paisagem das cidades, segundo Driant (1991), de uma obra sempre inacabada. Com a redemocratização nos anos 1980 essa condição tem pouca alteração. A dificuldade de financiamento público para produção de habitação social e a inexistência da atuação do setor privado em ofertas para este fim levou a continuidade das barriadas nas cidades do país e à institucionalização do discurso do John Turner quanto a habitação de interesse social, numa ação estatal que resolve parte do acesso à terra urbana com o programa HUP (Habilitaciones Urbanas Progressivas): “[...] Estas compreendem o traçado dos lotes, movimentos de terra necessários para nivelar os mesmos, torres de água para cada 40 lotes, iluminação pública e pelo menos um jardim de infância. O restante da qualificação será realizada a cargo dos licitantes selecionados.” (Driant, 1991, p. 155)
Neste momento, as barriadas não são mais uma manifestação de uma cultura andina que chegou às cidades pela costa do pacífico como Matos Mar observou nas primeiras manifestações do evento urbano nos anos 1940. Agora são compostas por moradores com uma cultura urbana já consolidada, inclusive, com práticas que dialogam com a do mercado imobiliário urbano e que explora da terra urbana para composição da renda. As novos barriadas são compostas por inquilinos das primeiras barriadas (Driant, 1991, p.190191). Esta situação demonstra um descompromisso das políticas públicas para moradia no Peru, evidenciado na crítica de Riofrío quando intitula uma série de artigos publicados no vespertino La República em junho de 1986 citados por Driant: “La vivienda, um debate ausente”. As ações foram pontuais e o problema sempre tratado de forma isolada, sem considerar outros aspectos
30 que determinavam as deficiências das barriadas e sua necessidade como solução para acesso à terra urbana no Peru. As poblaciones chilenas como possibilidade de emancipação política O Chile passa, entre os anos 1930 e 1970, assim como outros países da América Latina, por forte crescimento econômico, que levou ao grande afluxo de chilenos das áreas rurais para as cidades. Essa nova condição exigia uma política habitacional que não aconteceu, ocasionando as chamadas poblaciones através da pressão popular na busca por acesso a moradia. Iniciou-se um novo procedimento com uma postura mais combativa por parte dessas camadas populares, que chegavam a Santiago nesta luta pelo acesso à terra urbana, exemplificado por Mario Garcés (2015, p. 35) na Población La Victoria. Já que o Estado não conseguia formular e implementar uma política habitacional para atender essas novas populações que chegavam às cidades chilenas - a criação da CORVI (Corporación de la Vivienda) em 1953, acabou se mostrando ineficaz devido aos baixos salários e instabilidade no trabalho dos camponeses migrantes -, essas camadas populares se organizaram e ocuparam um terreno para garantir o acesso à terra urbana em outubro de 1957, nas proximidades do centro de Santiago: “[...] em outubro de 1957 ocorreu a ocupação de um terreno na zona sul de Santiago, iniciando uma nova maneira dos pobladores se posicionarem frente ao Estado. [...] a primeira reação do governo foi de caráter policial [...]. La Victoria estava inaugurando, em 1957, uma estratégia que foi ganhando prestígio e desenvolvimento nos anos seguintes: se o Estado não atendia às demandas por moradia dos pobladores, os mesmos, organizadamente, podiam tomar terras e levantar suas próprias poblaciones.” (Garcés, 2015, p.35-36)
No final dos anos 1950 inicia as tomas de sitio ou operaciones de sitio em Santiago e outras cidades do Chile como Valparaíso e Concepción, pressionando o Estado a disponibilizar terras urbanas para as populações de baixa renda para que estas possam acessar moradia nas cidades chilenas. A Población La Victoria, é o evento inaugural deste processo. Manuel Castells (1973) considera as tomas de sitio um movimento decisivo para transformação revolucionária da sociedade chilena. Para Mario Garcés (2015) os acampamentos de sem teto5 em Santiago, do final dos anos 1950 até o golpe contra Salvador Allende, foram a força social mais influente do Chile, levando, no início dos anos 1970, à eleição da Unidade Popular e à formação do governo Allende. As tomas de sitio iniciadas com a Población La Victoria já havia levado, em 1965, à criação do Ministerio de la Vivenda y Urbanismo, evidenciando a mobilização que o tema promovia no país entre os setores populares (Garcés, 2015, p.34). No final dos anos 1950 e início dos anos 1960, há um esforço na formulação de políticas habitacionais no governo de Jorge Alessandri, porém ainda são ações sem grande impacto, o que leva ao surgimento de outras tomas de sitio. Consequências essas que se repetiram no governo da sequência, entre 1964 e 1970, de Eduardo Frei Montalva do PDC (Partido Demócrata Cristiano). As poblaciones promovidas pelo governo se assemelhavam a ações também ocorridas no Peru: disponibilização de terras para construção de habitações, sem maiores investimentos na construção de estruturas urbanas para garantir a qualidade das moradias.
POSTO68
5 Sem teto ou Sem casa são setores da população que moram de aluguel, em coabitação com parentes e participam de processos de luta por moradia nas cidades latino americanas. Em Belo Horizonte, o termo “sem casa” foi muito utilizado entre lideranças e entidades de luta pelo direito à cidade.
31 6 Loteamentos regulares são aqueles aprovados nos órgãos públicos e, portanto, conformes à legislação urbanística municipal e à legislação federal. Nessa última, é particularmente relevante a Lei 6.766 de 19 de dezembro de 1979 (chamada Lei Lehmann), que obriga o loteador a oferecer, além do lote (porção de terra com acesso direto ao logradouro público), toda a mesoestrutura básica de vias públicas, escoamento das águas pluviais, iluminação pública, esgotamento sanitário, abastecimento de água potável, energia elétrica pública e domiciliar.
Quando Salvador Allende chega ao governo, a cidade de Santiago, segundo Garcés (2015, p. 37), se encontrava tomada por ocupações urbanas. Durante sua campanha, ele se compromete a elaborar novas políticas habitacionais para atender aos movimentos dos sem casa, que se encontravam bastante mobilizados, sendo este um dos setores sociais que mais contribuiu para o ambiente de sublevação que se observava no país nos momentos que antecederam o golpe de Estado liderado por Augusto Pinochet. A organização política dos pobladores foi um aspecto importante na experiência de luta pela terra urbana no Chile neste período. Foi um instrumento de luta e de formação de um poder local, uma experiência de formação de cidadania entre os seus moradores. Nas poblaciones houve também a participação de partidos políticos de centro esquerda e esquerda na sua composição política contribuindo para o processo de organização interna. Como pode se imaginar existiam diferenças importantes entre as várias organizações políticas que se envolveram com as poblaciones neste período, com diferenças que passavam por uma valorização de um processo de institucionalização daquela luta política e outras que defendiam a formação política interna dos assentamentos. Os anos 1960 e no governo de Salvador Allende entre 1970 e 1973, foram de maior mobilização dos sem casa no Chile, com grandes avanços na formulação de políticas públicas para a habitação e de formação política dos envolvidos com as poblaciones. A luta dos sem-casas em Belo Horizonte Este processo de “institucionalização” das barriadas em Lima nos anos 1980 tem coincidências importantes ocorridas no Brasil, como a formação de loteamentos periféricos nas periferias urbanas no mesmo período. Na Região Metropolitana de Belo Horizonte, ocorreram nos anos 1980 e 1990 também os loteamentos associativos, que junto com os periféricos formaram vários bairros populares nas cidades da região, muitas vezes com um apoio dos poderes públicos municipais. O loteamento periférico é um evento urbano brasileiro que consiste num empreendimento imobiliário realizado por pequenos proprietários de terra em áreas rurais no entorno dos grandes centros urbanos do país, onde se promove o parcelamento dos terrenos e a venda dos lotes para trabalhadores pobres que chegam às cidades. Tais loteamentos, embora sejam quase sempre irregulares6, pressupõem a propriedade da terra pelo agente que os promove. Quando esse agente é um loteador privado, cujo objetivo é o lucro imobiliário, os moradores compram os terrenos (informalmente), sem participar de nenhuma ação política (Chinelli, 1981). O surgimento dos loteamentos periféricos coincide com alguns arremedos de política pública habitacional para os pobres brasileiros nos anos 1970. Em 1975, o BNH lança os programas alternativos que apoiavam a autoconstrução e a ajuda mútua. Estes tiveram pouca relevância na produção habitacional brasileira, entretanto, indicam uma postura do governo militar brasileiro (1964-1985) que se alinhava com as proposições do também governo militar peruano (1968-1980). Ambos seguiam as diretrizes preconizadas pelo Banco Mundial e o Banco Interamericano do Desenvolvimento, que visavam com estas políticas abrandar o ambiente de revolta que a precariedade habitacional poderia proporcionar. A apropriação deste discurso por essas instituições internacionais foi muito inspirada no debate levantado por John F. Turner a partir de sua atuação como arquiteto nas barriadas no Peru nos anos 1960.
32 “[...] O arquiteto britânico John F. Turner introduz o tema da auto-ajuda no debate e na agenda dos organismos internacionais a partir de seu trabalho nas barriadas peruanas nos anos 1960. Ele mostra, de modo bastante pragmático, que as necessidades cotidianas costumam ser melhor atendidas por moradias e espaços urbanos que a população mais pobre cria para si mesma do que por conjuntos habitacionais e outros expedientes do Estado (Turner, 1976). [...]” (Kapp; Campos; Magalhães; Lourenço, 2014, p.28-29).
Nos anos 1980, com o fim do governo militar brasileiro, cria-se um vácuo quanto às políticas habitacionais. Com a incorporação do BNH à Caixa Econômica Federal a política habitacional fica sem guarita dentro das instituições estatais e é “empurrada” para os estados e municípios, que começam a desenvolver alternativas para garantir essa produção habitacional, como testemunha o documento do Partido dos Trabalhadores que expõe “O modo petista de governar”: “A estruturação institucional deve corresponder a uma maior alocação de recursos municipais para o setor de habitação popular, independentemente da luta pela obtenção de recursos federais. O fato é que o município não pode ficar dependente apenas da existência de financiamentos externos, posto que estes estão sujeitos a critérios políticos e são, como vimos, concedidos apenas para um certo tipo de intervenção (produção de unidades prontas), enquanto a ação petista deve trabalhar com a ideia da diversidades de intervenções.” (Bittar, 1992, p.46)
Na Região Metropolitana de Belo Horizonte, nos anos 1980 e 1990, ocorreu os loteamentos associativos realizados por movimentos de luta por moradia atuantes na região, que se assemelhavam aos loteamentos periféricos, também ocorridos nas cidades da RMBH. Os loteadores associativos eram formados por associações de sem casa que compravam fazendas em cidades da região e realizavam os seus parcelamentos. “[...] E esperávamos encontrar na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH) loteamentos feitos pelos clássicos loteadores privados. Mas no trabalho de campo constatamos que vários dos loteamentos iniciados nas décadas de 1980 e 1990 haviam sido produzidos por associações. Percebemos também que esses loteadores associativos tiveram pelo menos duas peculiaridades: a busca do valor de uso da moradia e da cidade, em vez de lucro ou renda fundiária; e experiências de gestão independentes do capital privado e do Estado.” (Kapp; Campos; Magalhães; Lourenço, 2014, p.27)
O evento dos loteamentos associativos da RMBH acompanha a “distribuição de lotes” que foi realizada em Belo Horizonte alguns anos antes durante a gestão do prefeito Sérgio Ferrara (1985-1988). Neste momento o Estado brasileiro e os organismos internacionais colocam que a sociedade civil e suas organizações assumam a responsabilidade pelos resultados de uma política habitacional. Não há ainda uma consistência e sistematicidade de uma política para o setor, conforme testemunha uma liderança dos movimentos de sem casa: “Se eu não me engano, era a Secretaria de Governo mesmo. Não tinha nenhuma Secretaria de Política Habitacional não. Você fazia a inscrição, era contemplado, tínhamos uma relação direta com as associações de bairro. Sei que era um projeto assim que, em tese, construiu uma quantidade de casas, mas ninguém sabe de fato. Como que as pessoas eram escolhidas pra “cair dentro” dessas moradias.” (Amorim, 2014)
Esse ambiente de um ativismo desarticulado, que levou ao surgimento de ações como os loteamentos associativos e a pressão sobre o poder público municipal para distribuição de lotes, contribui para uma crise destas ações e a incorporação de parte de suas lideranças em partidos de esquerda. Com a eleição destes partidos para as gestões municipais a partir do final dos anos
POSTO68
33 7 A Ocupação Corumbiara recebeu esse nome em homenagem ao conflito que ocorrerá em 1995 entre camponeses sem terra e as forças militares do Estado de Rondônia. Deste conflito morreram 10 pessoas, 8 camponeses sem terra, incluído uma criança de 9 anos de idade, e 2 policiais. O conflito ficou conhecido como Massacre de Corumbiara. Existem divergências sobre os números de mortos neste conflito, oficialmente é reconhecido pelo governo local que morreram no conflito 16 pessoas, porém os camponeses sem terra acreditam que morreram mais de 100 pessoas na ocasião.
1980, estas lideranças passam a compor a administração estatal. Neste momento inaugural da redemocratização das instituições brasileiras ocorre a eleição para a administração municipal de cidades da RMBH de partidos políticos de centro esquerda, ocasião coincidente com o agravamento da crise econômica no país marcada por altos índices inflacionários. Para superar esta crise econômica uma das soluções vislumbradas era a de uma administração pública dentro dos preceitos do neoliberalismo, onde o Estado diminuía sua atuação dentro do mercado, se dedicando mais às questões que são necessárias à sociedade e que não geram retornos financeiros. Apesar da eleição de agentes políticos preocupados com a construção de um “Estado de bem estar social no Brasil”, estes têm que ter responsabilidade fiscal e regular as contas públicas para conter a inflação da economia brasileira. Neste contexto as administrações municipais adeptas da Reforma Urbana têm sua mobilidade reduzida para ampliar os direitos sociais dos pobres da cidade. Esta situação é agravada com uma cultura política em que a participação na gestão pública por parte da sociedade se dá dentro de procedimentos que não incluem as camadas populares como parte fundamental na tomada de decisão e suas interlocuções. A insatisfação com a não inclusão desses setores da população teve como uma das manifestações a ocupação Corumbiara7 na região do Barreiro, no Vale do Jatobá em 1996. Esta ocupação foi organizada pela Liga Operária (LOP) e o PCR (Partido Comunista Revolucionário), e desta ocupação seria formado o MLB (Movimentos de Luta em Bairros, Vilas e Favelas). A ocupação Corumbiara é citada por Mônica Bedê em um estudo que analisa a trajetória da política habitacional de Belo Horizonte, ela vê naquele evento uma modalidade de luta por moradia incomum para os padrões observados até então no contexto da cidade: “Em março de 1996, último ano do governo da Frente BH Popular, realizase uma ocupação coordenada por lideranças de um movimento denominado Luta Popular por Moradia – LPM, apoiado pela Liga Operária Camponesa, que também acontece num terreno reservado como área verde de um loteamento, só que particular. O acampamento é batizado de Corumbiara, em homenagem a uma ocupação de mesmo nome ocorrida no ano anterior em Rondônia, onde o confronto com a Polícia local resulta na morte de uma criança. Os participantes são 379 famílias associadas de núcleos do movimento dos sem casa de Belo Horizonte que participam do OPH, inclusive, mas avaliam que os recursos municipais disponibilizados para atender o movimento por moradia não são suficientes para a resolução do problema habitacional da população de baixa renda na cidade. A ocupação se desenvolve de uma forma extremamente organizada, seguindo demarcação regular de lotes e incorporando estratégias de defesa incomuns no caso de ocupações urbanas, tais como cercamento da área, vigilância constante e revista de visitantes. A Prefeitura tenta negociar a desocupação da área evitando envolver a Polícia Militar, até por se temer um confronto mais grave em função da forte organização do movimento. A tentativa de desocupação não obtém sucesso e o assentamento acaba por se consolidar naquele mesmo local, à revelia do poder público, com cada família assumindo a construção de sua própria casa.” (Bedê, 2005, p.221-222)
Este caso é um contraponto a política habitacional que se buscava construir na cidade de Belo Horizonte desde a gestão de Patrus Ananias (1993-1996), e que se estenderia por outras gestões da cidade com Célio de Castro (1997-2000) e Fernando Pimentel (2001-2008). A tentativa de construção de uma política habitacional negociada a partir das vias institucionais se apresentou como um desafio para alguns militantes do movimento sem casa, já que a ocupação era uma ação direta de ruptura com esta via institucional,
34 um enfrentamento direto inaugurado em 1996 com a ocupação Corumbiara. Este enfrentamento entre setores dos movimentos de luta por moradia de Belo Horizonte e as instituições municipais marcaria uma relação pautada pela repressão e pouco diálogo entre as partes, devido a constante presença do aparato policial: “Essa política habitacional que foi até avançada no início ela faliu. E a Vila Corumbiara já no início mostrou que essa política ela tava já fadada ao fracasso. [...] E a Vila Corumbiara ela nasce, e ela já bota em xeque essa política habitacional. Houve uma repressão gigantesca, embora num governo popular, mas teve muita repressão, batalhão de choque.” (Péricles, 2013)
Posteriormente, nos anos 2000, começaram a ocorrer ocupações em prédios. Foram elas a ocupação Caracol em 2006, as Ocupações João de Barro I, João de Barro II e João de Barro III durante o ano de 2007. Após esse período, houve a retomada das ocupações urbanas horizontais com a ocupação Camilo Torres em 2008 e, apesar de reinaugurar este processo, foi com a ocupação Dandara em 2009 que este modelo de ocupação começa a ganhar visibilidade, se destacando no contexto da cidade nas lutas por moradia. Apesar de ter sido a segunda ocupação horizontal depois da reinauguração desta modalidade, ela irá influenciar outras ocupações que irão ocorrer posteriormente, conforme salienta Frei Gilvander ao referirse ao “efeito Dandara” e sua influência nas ocupações que têm ocorrido na cidade desde então: “Acho o que está animando muitas essas ocupações tidas como espontâneas, é o que eu chamo de “efeito Dandara”. Espalhou nacionalmente, internacionalmente, o êxito da Dandara, que não é só Dandara, é o êxito da Camilo Torres, é o êxito da Eliana Silva, é o êxito da Guarani Kaiowá, juntas, elas estão mostrando, sinalizando para os pobres do Brasil que quando a gente faz essa conjugação de forças, empoderar os pobres internamente, contar com movimentos sociais populares legítimos e idôneos, com um grupo de arquitetos, um grupo de advogados populares, montando uma rede de apoio, trazendo as muitas forças vivas da sociedade, isso faz uma grande diferença.” (Moreira, 2013)
A partir destas ocupações, temos nos anos 2010 uma sequência de várias ocupações urbanas na cidade, promovidas pelas mesmas organizações políticas que participaram desta retomada como as Brigadas Populares (BPs) e a Comissão Pastoral da Terra (CPT), e a retomada e reorganização de ações semelhantes por outras organizações como o Movimento em Bairros Vilas e Favelas (MLB) e o Lutas Populares. Considerações Finais As barriadas limeñas marcaram a produção do espaço urbano no Peru com manifestações de uma cultura andina que não foi incluída como parte da nação criolla, e hoje caracteriza espacialmente uma nação que ainda não conseguiu estabelecer um diálogo entre seus pares. As poblaciones chilenas foram importantes como possibilidade de emancipação dessas classes populares não incluídas no processo de formação do Chile, quando começam a apresentar avanços e possibilidades de uma construção acordada com diferentes setores do país, são bruscamente abortadas com o golpe militar de Augusto Pinochet, deixando feridas que ainda não se curaram. As ocupações urbanas de Belo Horizonte ainda estão em aberto, observar
POSTO68
35 as trajetórias de nossos hermanos pode ser um exercício para o avanço das possibilidades na formação destes territórios de resistência. As barriadas limeñas, as poblaciones chilenas e as ocupações urbanas belorizontinas contam 80 anos de história das lutas populares pela terras urbanas na América Latina, eventos que indicam continuidades e descontinuidades que precisam ser estudados para pensarmos caminhos que estes territórios de resistência tem construído no continente, com seus avanços e retrocessos, frutos de contradições que marcam as sociedades latino americanas. Referências BEDÊ, Mônica Maria Cadaval. Trajetória da formulação e implantação da política habitacional de Belo Horizonte na gestão da Frente BH Popular 1993/1996. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Instituto de Geociências, Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2005. BITTAR, Jorge (Org.). O modo petista de governar. São Paulo: Partido dos Trabalhadores Diretório Regional de São Paulo, 1992. CHINELLI, Filippina. Os Loteamentos de Periferia. In: Habitação em questão. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2ª edição, 1981. DE SOTO, Hernando. El Outro Sendero: La Revolución Informal. Lima: Instituto Libertad y Democracia, 1987. DRIANT, Jean-Claude. Las barriadas de Lima: historia e interpretacion. Lima: DESCO, 1991. GARCÉS, Mario. El movimiento de pobladores durante la Unidad Popular, 1970-1973. Concepción: Universidad de Concepción/Atenea, núm. 512, julio-diciembre, 2015, pp. 33-47. KAPP, Silke; CAMPOS, Rebekah; MAGALHÃES, Pedro Arthur Novaes; LOURENÇO, Tiago Castelo Branco. Loteadores associativos: uma contextualização. Emetropolis. Revista eletrônica de estudos urbanos e regionais, n. 16, p. 26-35, 2014. MATOS MAR, Jose (Org.). Desborde Popular y crisis del Estado: El nuevo rostro del Perú en la década de 1980. 3ª Edição. Lima: IEP Ediciones, 1986. MATOS MAR, Jose. Las migraciones campesinas y el proceso de urbanización en el Peru. Lima: UNESCO, 1990. RIOFRÍO, Gustavo. Se busca terreno para próxima barriada. Espacios disponibles em Lima: 1940-1978-1990. Lima (Peru): Editora DESCO – Centro de Estúdios y Promoción Del Desarrollo, 1978. ZIBECHI, Raúl. Territórios em resistência; cartografia política das periferias urbanas latino-americana. Rio de Janeiro: Consequência Editora, 2015. Entrevistas AMORIM, Lacerda dos Santos. Entrevista Lacerda dos Santos Amorim. 13 fev. 2014. Entrevista concedida a Tiago Castelo Branco Lourenço. MOREIRA, Gilvander Luís. Entrevista Frei Gilvander Luís Moreira. 18 dez. 2013. Entrevista concedida a Tiago Castelo Branco Lourenço. PÉRICLES, Leonardo. Entrevista Leonardo Péricles. 20 dez. 2013. Entrevista concedida a Tiago Castelo Branco Lourenço.
36
POSTO68
37
Lista de algumas das principais ocupações ocorridas a partir do ano 2010 (nome da ocupação e as organizações políticas que protagonizaram sua organização e o ano da sua realização).
38
arquicidade - um ensaio de projeto na maré
Caio Carvalho dos Santos *
De quantas discussões a respeito de metodologia de ensino de projeto você participou durante a graduação em Arquitetura e Urbanismo? Acredita em uma continuidade metodológica projetual que forme profissionais capacitados para trabalhar de maneira segura? Talvez, uma das maiores inquietações que assolam os estudantes, e futuros profissionais, de nossas escolas, seja justamente a consequência dessa falta de crítica e debate na academia; uma desestimulante tendência a um distanciamento entre campo teórico e prático da profissão. Se esta retórica dicotômica ainda é aceita e propagada dentro das próprias instituições de ensino, logo, romper com tal lógica que empobrece a discussão torna-se fundamental para a compreensão tanto da abordagem teórico-prática, sugerida como à-priori para as estratégias de intervenção propostas a serem apresentados no decorrer desse ensaio, quanto para o entendimento da própria narrativa posta em debate, que estabelece uma lógica recíproca e convergente entre objeto arquitetônico e cidade. A decisão de romper com valores enraizados em lógicas de ensino de projeto e teoria, não se apresenta apenas como uma negação a tais práticas, mas sim como uma compreensão e subversão das mesmas. A proposta do ensaio não se apresenta excludente em relação às escolhas bibliográficas ou de referencial projetual, mas sim reinterpreta suas condicionantes através de uma perspectiva transversal ao modo de produção da “cidade formal” em periferias de países “em desenvolvimento”.
*
Carioca e morador da Zona Norte do Rio de Janeiro. Realizou formação técnico/ acadêmica cursando Edificações pela FAETEC-RJ. Formou-se pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ em 2019 com trabalho final de graduação de cunho teórico/prático, que originou o desenvolvimento deste ensaio proposto. Atualmente faz parte como arquiteto/tutor convidado do Ateliê Aberto DPA FAU-UFRJ.
POSTO68
39
_arquicidade (arquitetura política) No dicionário (Priberam, 2020), o termo ‘neologismo’ é explicado como: “[...]Palavra nova, ou acepção nova de uma palavra já existente na língua. [...]”. Possuem fins comunicativos ou pejorativos, mas são mais usados para facilitar o entendimento de fenômenos ou acontecimentos. Aqui, o termo ‘arquicidade’ é construído através de uma perspectiva que considera indissociáveis fenômenos de construção arquitetônica, sejam individuais ou coletivas, com fenômenos de construção de cidade, seja através de agentes privados ou públicos. A lógica convergente entre arquitetura e cidade (arquicidade), deriva do estudo produzido por Aureli (2011), através da possibilidade de uma Arquitetura Absoluta, dinâmica a partir da qual é possível traçar uma perspectiva de arquitetura realmente política enquanto forma, seja enquanto espacialidade, ou como dispositivo de suporte urbano de relações sociais. Através de uma análise a respeito da forma arquitetônica em si, Aureli (2011) tenta apresentar à-priori uma interpretação unitária entre arquitetura e cidade, ou seja, uma análise a respeito de uma síntese unilateral, o que para o autor significa um fator fundamental para entender a forma da arquitetura como um princípio da ideia total de cidade. Para o autor, o sentido de ‘pureza’ da arquitetura serve para denominar algo que permanece com sua própria finalidade, mesmo sendo ela separada de outras partes. Através desse ato de separar e ser separada, a forma arquitetônica revela sua essência política formal e também a essência da cidade, sendo essa uma composição de partes separadas. A partir disso, é possível perceber como é fundamental o caráter de potencialidade que existe no desenho e no projeto arquitetônico, ainda que compreendendo suas dicotomias e entendendo o mesmo como apenas um elemento no meio de muitos outros, e não de forma individual e/ou hierárquica. O conceito que conhecemos de urbanização não se estabeleceu como um aparato de integração e conexão, mas sim de fechamento e de formas estratégicas de manutenção de desigualdade, que não se propõe apenas em suavizar o espaço urbano, mas também, dialeticamente prolifera enclaves, barreiras, e aparatos de controle e segregação social. Ou seja, o avanço da urbanização como um aparato de governo é marcado precisamente pela constante dialética entre integração e segregação. (2011) Sendo assim, integração e segregação não são fenômenos consequentes, mas sim dois fenômenos simultâneos que reforçam um ao outro no espaço urbano. Logo, a possibilidade de uma arquitetura absoluta consiste na mutação dessa relação dialética, não como parte do princípio de um gerenciamento urbano, mas como uma forma que transborde este princípio. Ou seja, uma tentativa de estabelecer um senso de cidade como lugar de confronto político e recomposição de partes. O que se propõe aqui é que possamos entender o projeto de arquitetura como um aparato (device) que possa expor as dicotomias urbanas e relações de segregação no lugar, sem negar sua contradição enquanto intervenção, e que possa oferecer uma possibilidade de mutação entre as relações dialéticas
40 da cidade, estabelecendo um espaço de “confronto” político e social. A fim de dialogar com este recorte teórico, que a princípio tende a compreender uma postura projetual do arquiteto ainda como “autor”, ou um agente essencialmente acadêmico, o entendimento de fenômenos como autoconstrução e mutirões são fundamentais para compreender a relação do projeto de arquitetura com a sociedade, e principalmente em áreas “suburbanas” ou “periféricas” de cidades lanito-americanas. Através de estudos em cidades como Rio de Janeiro, São Paulo e Santiago, Caldeira (2015) compreende as ações do Estado enquanto políticas de produção de moradia e construção do espaço urbano, mas sempre relacionando a forma e espacialidade das construções com o contexto em que a mesma está inserida. Ou seja, a premissa essencial que tangencia tanto a linha de raciocínio teórico de Aureli e Caldeira é a mesma: a indissociável relação entre arquitetura (construção) e cidade (política). Caldeira elucida as diferentes formas de construção da cidade capitalista em “periferias” de cidades de países “sub-desenvolvidos”. Para isso, ela identifica os agentes envolvidos em cada contexto urbano abordado, analisa o cenário político da cidade e país, relacionando com a lógica econômica vigente e com as medidas estabelecidas por parte do Estado, para por fim compreender as transformações e mutações urbanas geradas. Como dois argumentos fundamentais para construção do raciocínio, a autora entende que, primeiro: urbanização periférica consiste em um conjunto de processos relacionados, ou seja, as diferentes formas de produção da forma urbana. E segundo, que urbanização periférica não produz apenas heterogeneidade na cidade ao longo do tempo, mas também se difere muito de uma cidade para a outra. Ou seja, Urbanização Periférica não se trata de um meio específico de urbanização, mas uma caracterização de como funcionam as diferentes estratégias de produção da cidade nas periferias. Para a estruturação de seu raciocínio, Caldeira elege tópicos específicos para entender a realidade de produção da cidade. Dois deles ajudam a compreender melhor a relação entre espaço construído individual e espaço urbano, sendo eles: “agentes e temporalidade”; no qual aponta categoricamente as pessoas, os moradores que ocupam, que produzem e ‘urbanizam’ uma área através do tempo, como o agente fundamental de produção da cidade, principalmente das ditas periferias; e “lógicas transversais”; onde a autora reafirma a importância da sociedade quando categoriza estratégias políticas de regularização de lotes e casas, bem como programas de ‘urbanização’ de áreas já ocupadas e de incentivo ao crédito para construção, compreendendo a ação do Estado apenas como uma resposta à um fenômeno de consolidação urbana. Se por um lado o peso do projeto de arquitetura oferece possibilidades de formatação do contexto urbano consolidado, de modo que o mesmo possibilite potenciais subversões de relações e realidades, por outro, a força da construção do espaço urbano reside justamente na ação dos agentes que constroem a cidade. Sendo assim, seria honesta uma perspectiva teóricoprojetual que responda a essas demandas, uma metodologia que considere tanto as potencialidades do desenho enquanto pensamento, quanto a atuação política enquanto dispositivo de fortalecimento de uma comunidade.
POSTO68
41 _o recorte
Para a escolha do objeto de estudo foram consideradas questões sobre dicotomias e segregações sociais presentes na cidade do Rio de Janeiro nos dias de hoje. Logo, para ilustrar a heterogeneidade espacial de uma cidade como o Rio de Janeiro, foi escolhida a favela Nova Holanda e suas comunidades vizinhas da Maré, área consideravelmente próxima ao Centro da cidade (aproximadamente 10km), que forma um dos maiores complexos de favelas de todo o país. O recorte conforma um contexto urbano predominantemente residencial, com algumas áreas de serviços, com maior fluxo de moradores, frequentadores e trabalhadores de comércio varejista presentes na comunidade. Contudo, a área se configura espacialmente enclausurada, consequência das diversas atuações do Estado em macro-escala, que teoricamente prezam por uma melhor conexão e integração no espaço urbano metropolitano, contribuindo, entretanto, para a manutenção de dicotomias presentes em áreas de pouco interesse político, como nas favelas cariocas. Algumas dessas infra estruturas que delimitam o recorte de estudo são: os eixos rodoviários urbanos da Avenida Brasil - a maior do Rio de Janeiro -, a Linha amarela - eixo de conexão expressa para a Zona Oeste da cidade - e a mega-estrutura recente do sistema de BRT, além das delimitações físicas provocadas pelo Canal do Fundão e reforçada pelo eixo rodoviário da Linha Vermelha.
Mapa localização metropolitana/Mapa localização comunidade
Tais fissuras e barreiras urbanas interferem não só na paisagem da cidade mas também no modo como as periferias são vistas pelo imaginário social, onde a realidade de violência e conflitos armados parecem legitimar a manutenção deste cenário, com mais força policial e menos investimento em setores como de educação e lazer dentro da comunidade. Para compreensão etnográfica e social do recorte de estudo escolhido,
42 foi usado o Censo Maré (2014) como instrumento técnico de apoio ao Ensaio. Após o estudo do Censo e sua compatibilização com outras variáveis que tangenciam a discussão, foram identificados tópicos importantes e potencialidades apresentados pela pesquisa, como a grande população da comunidade, de maioria jovem, o potencial econômico/financeiro do território, possibilidade de regularização de domicílios existentes, etc. Também foram identificados no território equipamentos culturais e educacionais que ajudam a suprir uma parte do déficit do direito à cidade dos moradores da Nova Holanda, e por sua vez se estabelecem como dispositivos urbanos potentes a serem considerados em intervenções posteriores na comunidade, como espaços de lazer, comércio, escolas, áreas ociosas para possíveis ocupações, etc. _ desenho-pensamento Enquanto proposta de construção metodológica, o ensaio baseia-se na quebra de paradigmas e possíveis flertes com cenários possivelmente utópicos, questões importantes a serem exploradas em um ensaio teóricoprático. É importante compreender que, por não se tratar de um desenvolvimento de projeto de arquitetura, tais estratégias desenvolvidas aqui se propõem mais a questionar e possibilitar um debate sobre novas dinâmicas sociais potencializadas pela implementação de dispositivos de desenho arquitetônico, do que necessariamente estabelecer certezas e dogmas. Esta posição teórica é reforçada através da representação ilustrada de ambos os métodos desenvolvidos neste ensaio, os quais são encarados aqui não como resposta, mas sim como argumentação gráfica. Sobre os métodos desenvolvidos, é possível identificar uma escala principal de atuação em cada um deles, sendo um mais relacionado a questões de construção em escala comunitária, com métodos construtivos leves e maleáveis, e outro com maior preocupação em relação à grande escala, a nível urbano e com maior participação do Estado. Enquanto representação gráfica do objeto arquitetônico, é fundamental ressaltar que apesar da discussão a respeito da imagem ser importante para o desenvolvimento dos métodos, a prioridade de escolhas projetuais dos dispositivos implementados se baseou na leitura das situações espaciais existentes, e como essas situações podem ser transformadas através de dispositivos que estabeleçam suportes físicos para potencializar suas relações sociais. Contradizendo posturas românticas a respeito do território da favela, que faz parte da cidade capitalista tanto quanto bairros mais nobres, tais dispositivos, em ambos os métodos desenvolvidos, não se agarram a fundamentações legislativas estritamente formais, como afastamento de testada ou limites de lote, entendendo que estas violações ou subversões propositais tendem a gerar mais potencialidades para a paisagem urbana do que consequências negativas. Contudo, a necessidade de amarrar essas pontas, que flertam com realidade e abstração, exige uma interpretação um pouco menos agressiva. Talvez seja possível justificar tais violações e subversões através de um questionamento utópico interdisciplinar, induzindo a um diálogo entre
POSTO68
43 arquitetura e literatura. “Ela está lá no horizonte. [...] Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.” (GALEANO, 2001, pág. 230, tradução livre) Para questionar esta compreensão de utopia através de uma perspectiva de estudo urbano, Lefebvre (2013) levanta o debate sobre Utopia Experimental, questão já implicitamente relacionada ao discurso do autor na reivindicação do ‘direito à cidade’, que não necessariamente significa tomar a cidade para si, ou simplesmente o direito de se viver na cidade, mas sim a construção de novas formas de significação da mesma, de acordo com nossos desejos. “[...]Atualmente, quem não é utópico? Só os práticos estreitamente especializados que trabalham sob encomenda sem submeter ao menor exame crítico as normas e coações estipuladas, só esses personagens pouco interessantes escapam ao utopismo.[...]” (LEFEBVRE, 2013, pág. 110) A utopia não é apenas uma maneira de burlar a realidade ou se distanciar de debates práticos, mas sim uma perspectiva que se abre para questionar uma realidade dura e aparentemente resistente à alterações. Reaproximando de nosso imaginário latino-americano, seria impossível deixar de mencionar o Realismo Fantástico, gênero literário que logrou, por meio de sua construção alegórica e folclórica, tecer uma crítica social de fundamental importância para o contexto político da época, mesmo que de maneira absolutamente fantasiosa e utópica. Em uma das obras do gênero, “Cien Años de Soledad” (2003), Gabriel Garcia Marques constrói variadas situações que confrontam uma perspectiva política desanimadora do cenário de intervencionismo militar, na segunda metade do século XX na América Latina, através de fenômenos fantasiosos e folclóricos, que mesmo não sendo possíveis do ponto de vista material (real), dialogam e são aceitas na realidade subvertida que fora criada. Tais apropriações de fatos para construir uma alegoria sobre a própria realidade no qual se baseia é, ao mesmo tempo, potente enquanto crítica utópica e também sensível com a própria cultura, pois se utiliza de dispositivos e ferramentas folclóricas e regionais da própria sociedade para construir uma realidade não só reconhecível, mas também crível. O paralelo que se traça a respeito dos ideais considerados pela crítica arquitetônica tanto de Lefebvre no debate sobre Utopia Experimental (2013), quanto da perspectiva artístico-literária do Realismo Fantástico, é que para se construir uma perspectiva de utopia, a crítica à realidade e à manutenção da mesma é fundamental, mesmo que a desconstrução de paradigmas tidos irrefutáveis coloquem a obra em uma posição de estranheza, afinal, a utopia serve para isso; continuar caminhando. Sendo assim, a argumentação gráfica por meio do desenho de arquitetura ganha espaço através da consolidação de dois estudos de estratégias de projeto no mesmo objeto de recorte, sendo um estabelecendo um protagonismo maior de agentes comunitários de pequena escala e outro considerando o Estado como agente fundamental para qualquer estratégia de reestruturação urbana.
44
estratégia_1 _arquitetura em escala p Ressignificação Conhecida como um dos principais investimentos da época da expansão rodoviarista na cidade do Rio de Janeiro (1940-1950), a Av, Brasil já foi cenário de um período de considerável atividade comercial no eixo Rio-Petrópolis. Foram herdadas desta época fábricas e galpões que serviam ao setor comercial, mas que atualmente se encontram quase que totalmente ociosos, ou muitos mesmos já ocupados por famílias para fim de habitação. No recorte é possível identificar algumas sobreposições de tecidos urbanos ao analisar o mapa de ressignificação e observar uma “franja” de lotes formalmente divididos, imediatamente à direita da Av. Brasil, e abrigando construções vazias e/ou subutilizadas, em contraste com o tecido urbano mais “conurbado” em grande parte da comunidade. Por outro lado, em consequência de investimentos urbanos na avenida para criação de eixos exclusivos de ônibus (2016-atualmente), a maioria das passarelas que conectavam os lados opostos da avenida foram retiradas e substituídas por estruturas provisórias de andaimes metálicos, onde se estabelecem diversos tipos de comércio e apropriações durante o horário comercial, período de maior movimento no dia. Essa presença de dispositivos tão contrastantes físico e espacialmente, como galpões industriais abandonados e passarelas provisórias super-ocupadas, não nos ilustra uma característica apenas do território em estudo, mas também um fenômeno característico de muitas periferias de países “sub-desenvolvidos”, onde o território urbano está sujeito a diversas transformações de usos, e consequentemente morfológicas através do tempo.
Mapa ressignificação
Esta estratégia visa, além de combater a monofuncionalidade imposta ao modelo tradicional de ocupação da cidade capitalista, compreender uma nova perspectiva na forma de atuação projetual na cidade, considerando elementos existentes, físicos ou sociais, e os potencializando, a partir da apropriação de edifícios em vacância. Identificação Para este ensaio foram identificadas diversas potencialidades de atuação na comunidade, desde intervenções comerciais informais feitas nas calçadas, quando o lote imediatamente a sua frente está em vacância,
POSTO68
Mapa identificação
45 até a localização de instituições culturais, polos artísticos, associações de moradores e áreas livres, como verificado a partir do Censo Maré (2014). Contudo, a maioria desses equipamentos não estabelece uma rede de conexão cultural, tampouco formal com a comunidade. Apesar de extremamente influentes no cenário político da comunidade, acredita-se que tais equipamentos culturais e de educação, ainda que pulverizados no tecido do bairro, poderiam estabelecer um significado imagético mais forte nos moradores, e a partir disto, fortalecer as noções comunitárias e políticas dos mesmos. Conexão Partindo da localização e ressignificação das estruturas em vacância, obsoletas ou mono-funcionais presentes no recorte e a identificação de espaços de lazer e culturais que já servem como equipamento de apoio à comunidade, foi proposta uma estrutura linear de andaimes metálicos (mesma estrutura das passarelas), ora justapostos à fachada das casas, ora ocupando e ativando espaços isolados e/ou subutilizados. Dessa forma, o dispositivo permeia o tecido consolidado da comunidade e produz vasos de capilaridade conectando as potencialidades internas ao passo que oferece mais pontos de conexão com o lado oposto da Av. Brasil.
Mapa conexão
Colagens - _arquitetura em escala p
46
estratégia_2 _arquitetura urbana
Se é justamente a similaridade de características sociais, culturais e físicas que permitem estabelecer uma visão utópica de crítica e projeto de arquitetura a partir da realidade de uma dessas favelas, então é esta mesma similaridade que possibilita uma abordagem de replicabilidade do sistema de projeto proposto. Tal estudo de metodologia se propõe a estabelecer uma perspectiva de ferramenta de combate ao processo de valorização imobiliária do solo urbano, compreendendo que o que for proposto para o contexto da Nova Holanda possa ser reinterpretado para outras comunidades cariocas. Sem ignorar o contexto de espaço urbano capitalista, considera-se então como fundamental - no que tange ao discurso crítico de direito à cidade e uma resposta ao déficit de moradia popular nos grandes centros urbanos compreender a premissa de adensamento urbano em áreas com potencial para receber investimento, possibilitando uma postura profissional coerente. _atos de reestruturação urbana A nível de construção de sistema projetual, foram identificadas 3 estratégias para atuação dentro do tecido consolidado da Nova Holanda, as quais foram pensadas para funcionar de forma independente uma da outra, apesar de sua potencialidade máxima residir justamente em um trabalho conjunto. Cada uma das três estratégias, apesar de independentes, possibilitam traçar uma perspectiva diferente da que é apresentada atualmente no espaço construído da comunidade, onde os edifícios são estáticos e a realidade está impregnada por um modelo urbano formal que engessa a potencialidade imagética do projeto na comunidade. Estruturalmente, cada estratégia, nomeadas como ‘atos’, apresenta um sistema próprio para responder às problemáticas iniciais implícitas as suas questões, mas já propiciando dispositivos que potencializem os outros atos, e consequentemente, justifiquem a aplicação do sistema.
Ato 1 - Vazios projetados Ato 2 - Fachada Espessa Ato 3 - Treliças suporte _ato 1 - vazios projetados A fim de questionar com o desenho as problemáticas geradas pelo modo de produção da cidade capitalista, onde os edifícios são construídos, ocupados, abandonados e destruídos, numa lógica cíclica onde o mercado da demolição é mais rentável do que o da construção, foram identificados uma série de estruturas de galpões abandonados ou em vacância no recorte, principalmente nos lotes mais próximos ao eixo viário da Avenida Brasil.
POSTO68
Ato 1 - antes/depois
47 Além de não trazerem benefícios econômicos diretos ou indiretos à comunidade, por não estabelecerem mínimas dinâmicas de entrada e saída de pessoas, suas fachadas não apresentam nenhum tipo de vida social, com exceção de algumas ocupações irregulares nas testadas dos lotes ociosos. Sendo assim, tais galpões identificados e reestruturados apresentam uma alternativa de ocupação funcional que possam ajudar a responder às demandas internas da comunidade, como espaços de cultura e educação, centros de comércio ou trabalho, ou até alguma função de órgão público . _ato 2 - fachada espessa Através de uma estrutura mista de pilares-postes contraventada por uma estrutura horizontal em treliça metálica, este dispositivo de fachada espessa cumpre, à priori, duas possibilidades de apropriação principais, ambas de cunho privado, ainda que uma atenda a interesses coletivos. Uma dessas funções é a possibilidade de um novo espaço de varanda justaposto às fachadas das residências, possibilitando novas formas de se interagir com o espaço público e também novas modificações espaciais nas casas. A outra função principal se justifica através da observação e interpretação da espacialidade existente. Apropriações físicas permanentes de alvenaria nas calçadas dão a tônica à espacialidade pública da comunidade. Estas construções, apesar de funcionais e de significarem um potencial considerável de relações sociais através de pequenos comércios privados, não respeitam a lógica coletiva de ocupação espacial. Ou seja, a ocupação da fachada espessa no nível térreo é uma resposta a questões locais por oferecer módulos de ocupação para comércio individual.
Ato 2 - antes/depois
_ato 3 - treliças de suporte Compreendendo o debate já iniciado a respeito da necessidade de adensamento populacional em uma área abastada de infra-estrutura viária e com potencial construtivo, a perspectiva de uma intervenção de projeto em tal área consolidada deve ser mais do que nunca encarada de modo crítico e utópico, mesmo que considerando a realidade construtiva e explorando ao máximo as possibilidades de compreensão da cidade. O terceiro ato se destina a intervir diretamente no tecido consolidado da comunidade, através de uma estratégia de verticalização em estrutura metálica, independente das construções existentes, para assim permitir o espraiamento interno de residências e a criação de um núcleo vazio dentro dos quarteirões da comunidade. Para tal, propõe-se um dispositivo em estrutura modular em treliça metálica implantado acima das edificações existentes e apoiadas estruturalmente nos dispositivos que constituem o ato 2, primeiro ocupando o nível do terraço das casas existentes, gerando uma verticalização para mudança das famílias que antes ocupavam o miolo das quadras, e posteriormente uma possibilidade de um novo módulo de estrutura treliçada que proporciona uma perspectiva de verticalização para adensamento populacional. A criação de um núcleo interno vazio que gera um espaço de ocupação
Ato 3 - antes/depois
48 coletiva, além de incentivar mais possibilidades de encontros e consolidar relações de vizinhança, também possibilita a entrada de sol nas residências de miolo de quadra e responde à problemática em relação à salubridade e ventilação natural das casas, uma vez que permitiria a abertura de novas esquadrias e a criação de novas fachadas. Este vislumbre a respeito das consequências espaciais geradas é um indicativo importante a respeito de como é compreendida a relação debatida no ensaio entre arquitetura e cidade, pois ilustra uma consideração sobre como o tecido urbano reage, ou poderia reagir, a uma intervenção arquitetônica de cunho coletivo, ainda que, inicialmente, essas reações não significassem partes ativas do projeto.
Ato 1
Ato 2
Ato 3
conclusão É possível discutir o que significa a implementação desses dispositivos em escalas diferentes em um recorte consolidado da cidade. Se por um lado a perspectiva de uma atuação arquitetônica que agregue valor de troca e imobiliário à uma comunidade ainda é uma realidade presente no sistema capitalista com consequências severas como especulação imobiliária e gentrificação urbana, talvez a alternativa ou resposta à essa problemática se baseie em considerações como questões de consciência sobre o trabalho e mão-de-obra na produção da arquitetura, e consequentemente na construção da moradia. De todo modo, ambas as estratégias especuladas apresentam uma característica em comum: a perspectiva de promover unidade imagética construtiva, entendendo assim que, para a especulação de um imaginário
POSTO68
49 coletivo, é preciso que sua forma política e tectônica promova o debate de tal questão, e ainda a possibilidade de entender o dispositivo arquitetônico como um suporte de relações sociais através de elementos físicos, como que entendendo os limites da arquitetura e potencializando apropriações e ocupações pelas pessoas. No que tange ao debate levantado sobre o estudo de metodologia de projeto através da aproximação entre o pensamento teórico e a prática projetual, é importante esclarecer que, apesar da inquietação inicial para pesquisa ter partido de uma resposta aos métodos de ensino das escolas de arquitetura, o ensaio não invalida ou exclui outras formas de pensar, praticar ou estudar projeto, ao contrário, o mesmo compreende o valor do processo como fator principal para o desenvolvimento de qualquer metodologia, e não apenas seu produto. Por fim, é fundamental também compreender a perspectiva utópica na construção metodológica do projeto de arquitetura. Não sendo absolutamente a utopia uma consideração apenas a respeito de simulações a partir de realidades palpáveis ou possibilidades construtivas, mas sim sobre a compreensão de novas perspectivas de atuação profissional e a busca de novas possibilidades, a alegoria criada transversalmente com as estratégias de projeto ensaiadas tendem a estabelecer uma provocação a respeito de como está sendo encarado o ofício da arquitetura atualmente, principalmente em cidades de países ‘sub-desenvolvidos’, onde a grande maioria das construções ativas e produções espaciais acontecem de forma ‘irregular’ ou ‘informal’, e de forma quase inversamente proporcional, os profissionais da área, em sua maioria, tendem a atuar em um nicho seleto de obras de interesse privado de classe média alta. Referências AURELI, Pier Vittorio. The Possibility of an Absolute Architecture. MIT Press de 2011. BRENNER, Neil. Seria o “urbanismo tático” uma alternativa ao urbanismo neoliberal? E-metropolis, 2015 CALDEIRA, Teresa P. R. Peripheral urbanization: autoconstruction, transversal logics, and politics in cities of the global south. Society and Space, 2016. CORRÊA, Roberto Lobato. O Espaço Urbano. 3ª Ed. São Paulo: Editora Ática. S.A, 1995. GALEANO, Eduardo. Las Palabras Andantes. 5ª Ed. Buenos Aires: Catálogos, 2001. GARCÍA MARQUEZ, Gabriel. Cien Años de Soledad. 5ª Ed. Barcelona Penguin, 2014. LEFÈBVRE, Henri. A produção do espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (do original: La production de l’espace. 4e éd. Paris: Éditions Anthropos, 2000), 2006. CENSO DE EMPREENDIMENTO MARÉ 2014. Redes de Desenvolvimento da Maré e Observatório das Favelas, 2014. “neologismo”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2020, https:// dicionario.priberam.org/neologismo [consultado em 17-09-2020].
O programa Favela-Bairro no Rio de Janeiro: entre pioneirismo e contradições Vitor Halfen * Ana Luiza Gonçalves
PROJETO
Felipe Leme
O programa Favela-Bairro foi uma das mais significativas experiências de urbanização de favelas e se insere num contexto de inflexão do pensamento e da gestão sobre assentamentos precários ou irregulares, resultado tanto da generalização dessa forma de ocupação nas cidades, quanto do fracasso das violentas políticas de erradicação frente à luta dos moradores para garantir seus direitos. Não é possível discutir um programa de urbanização de favelas na escala - temporal e de abrangência - do Favela-Bairro, sem entender, mesmo que brevemente, o processo de formação das favelas cariocas. A mais antiga favela do Rio de Janeiro, o Morro da Providência, de acordo com o que dizem as histórias e o imaginário popular carioca, começa a se formar com um grupo de soldados retornados da Guerra de Canudos, que ocuparam o local em 1897. No entanto, é provável que ocupações semelhantes tenham ocorrido em outros locais nos anos anteriores1. O fato é que o assentamento passou a ser chamado de Morro da Favela e, com a expansão dessa forma de ocupação pela cidade, o nome passou a designar em geral esses assentamentos.
*
Mestre em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Arquiteto e urbanista da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).
POSTO68
51 A razão exata do nome em si não é clara, mas tem relação com Canudos. Na Bahia, a palavra favela era usada para denominar uma planta que se espalhava em torno do arraial, como é descrito por Euclides da Cunha em “Os Sertões”, e a mesma vegetação teria sido encontrada no morro carioca, batizando-o. Havia também um Morro da Favela nos arredores de Canudos, que foi local estratégico no confronto, podendo ter sido adotado pelos soldados egressos como designação. O termo favela se generalizou e poucas décadas depois já aparecia normalmente nos jornais para referir às ocupações irregulares sobretudo nas encostas dos morros do Rio de Janeiro. O episódio que relaciona a origem da favela a Canudos permaneceu no imaginário coletivo, constituindo um mito de origem2 que pode explicar o nome, mas não revela as reais determinações do fenômeno urbano e social da favela. Na segunda metade do século XIX, a ocupação dos morros e áreas de encostas passa a se colocar como uma das poucas alternativas de moradia para a população pobre, sobretudo de negras e negros libertos3. Teve peso neste processo a Lei de Terras de 1850, que impedia o direito à propriedade da terra aos escravizados e à população negra em geral, mesmo após a Abolição. As soluções de moradia que restavam para aqueles sem acesso à terra eram os cortiços, as ocupações de terras urbanas vazias – que dariam origem às favelas – e os quilombos, forma pré-existente de resistência de negras e negros libertos que, após 1888, permaneceu como alternativa de moradia, dando também origem a algumas favelas4. A segregação socioespacial das negras e negros libertos e da população pobre em geral se intensifica ainda mais com as políticas higienistas, num processo de perseguição e derrubada dos cortiços da região central.5 Com isso, muitas dessas famílias passam a viver nos morros da cidade, em especial no morro da Providência, que se adensa, no morro de Santo Antônio e no morro do Castelo, elemento central do processo de urbanização da cidade do Rio de Janeiro, por sua localização estratégica. Ainda nas reformas realizadas no início do século XX pelo engenheiro Pereira Passos, são feitos cortes no Morro do Castelo para a construção de edifícios públicos e abertura da atual Avenida Rio Branco. O desmonte completo do morro tem início em 1920 e marca um novo ciclo de segregação socioespacial e favelização no Rio. As políticas públicas e habitacionais do Rio de Janeiro, de maneira geral, tiveram violento impacto sobre as populações de baixa renda, sobretudo com políticas de remoção, pautadas no discurso de higienização e embelezamento da cidade, como é visto desde as reformas de Pereira Passos e passando a utilizar mais recentemente alegações relacionadas ao “risco”6. Bem como no restante do país, durante a Ditadura Civil-Militar (19641985) houve uma combinação entre projetos habitacionais (em especial com o programa do BNH7), produzindo unidades em áreas isoladas da infraestrutura urbana e de baixa qualidade arquitetônica. Tímidos processos de urbanização de favelas e processos de remoção, interrompendo toda a discussão sobre reforma urbana que povoava o debate no período pré golpe civil-militar. No caso específico das favelas, o regime autoritário agiu para desintegrar o processo crescente de organização política construído pelos próprios favelados e de ressignificação positiva de sua identidade. Nesse período, foram muitos os casos de perseguição, tortura e assassinato de lideranças da Federação da Associação de Favelas do Estado da Guanabara (Fafeg).
1 ABREU, Mauricio de Almeida. Reconstruindo uma história esquecida: origem e expansão inicial das favelas do Rio. Espaço e Debates, São Paulo, v. 14, n. 37, p. 34-46, 1994. 2 O mito de origem da favela a partir da relação com a Guerra de Canudos e a obra de Euclides da Cunha é uma leitura de: VALLADARES, Licia do Prado. A invenção da favela: do mito de origem a favela.com. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005, p. 22-36. 3 Consideramos aqui como negros libertos, todo e qualquer negro escravizado que conquistou sua liberdade, seja pela fuga ou por um título de alforria, buscando afirmar a noção de liberdade como algo inerente ao ser e não como algo que pode ser dado a esses homens e mulheres pela bondade dos senhores de escravos. 4 A importância dos quilombos no processo de formação das favelas é um dos aspectos invisibilizados pelo mito de origem. Sobre a importância do quilombo como espaço de resistência e sua transmutação em favela ver: CAMPOS, Andrelino. Do quilombo à favela: a produção do “espaço criminalizado” no Rio de Janeiro. 5ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012. 5 É importante ressaltar que os cortiços e quilombos urbanos ainda existem na região central do Rio de Janeiro. No entanto, houve sim uma redução no número e no tamanho dos cortiços, em especial após as reformas higienistas realizadas pela gestão do prefeito de Pereira Passos (1902-1906). 6 Sobre o discurso do risco (ambiental, de segurança, etc.) nas favelas, ver CAMPOS, 2012, op. cit. Em que pese os avanços nas políticas de urbanização e regularização fundiária, recentemente o Rio de Janeiro viveu um novo ciclo de violentas remoções vinculadas aos megaeventos na cidade, com o caso paradigmático da Vila Autódromo, em especial pela resistência dos moradores, além do próprio Morro da Providência, dentre outros. Sobre isso, ver: FAULHABER, Lucas; AZEVEDO, Lena. SMH 2016: remoções no Rio de Janeiro Olímpico. Rio de Janeiro: Mórula, 2015.
52 Contraditoriamente, foi justamente nesse contexto que se deu a primeira experiência de urbanização de favelas na cidade, com a criação da Companhia de Desenvolvimento de Comunidades (CODESCO), na gestão do prefeito Negrão de Lima (1965-1970), de viés ambíguo, mas com maior compromisso social que o governo federal. A CODESCO realizou um projeto pioneiro para urbanização de três favelas, tendo sido implementado em duas. A mais emblemática foi a intervenção em Brás de Pina, em 1969, tendo como princípio orientador a permanência dos moradores no local, ainda que realocados internamente e um processo de intensa participação dos moradores junto aos técnicos durante as decisões e no desenho das casas e dos espaços e equipamentos urbanos8. Contudo, o contexto político da época esvaziaria o projeto a partir de 1971 e a CODESCO seria extinta em 1975. Nas décadas de 1970 e 1980, poucas políticas habitacionais e de urbanização em favelas de maior vulto foram realizadas, e o próprio BNH passou a focar nas classes média e alta. Nesse contexto, apenas iniciativas pontuais de provisão de infraestrutura básica ocorreram, tendo papel central a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (SMDS), criada em 1979, por meio do Projeto Mutirão, além de regularização fundiária através do programa Cada Família Um Lote9. Embora distantes de uma solução para os problemas, apontavam a necessidade de reconhecimento, consolidação e integração do espaço das favelas, em oposição à política de remoção. O debate pela reforma urbana, bem como do direito à cidade e da urbanização de favelas, é retomado no contexto de elaboração da constituição de 1988. Por outro lado, esse período histórico é marcado em grande medida e em nível global pelo neoliberalismo, fazendo com que o empresariamento passasse a ser parte constituinte da gestão urbana10. Esse novo momento do capitalismo fez com que as parcerias público privadas, por exemplo, passassem a ser amplamente usadas pelo poder público, como forma de tentar viabilizar um estado de bem estar social via mercado. No entanto, o acirramento das desigualdades sociais, quando se analisa o caso brasileiro, evidencia o fracasso desse modelo em garantir direitos sociais à população de baixa renda e em reduzir as disparidades socioeconômicas. Foi nesse contexto ambíguo, de redemocratização e de crescimento das lutas por reforma urbana – no qual a urbanização de favelas aparece como elemento importante – e de crescimento da hegemonia do neoliberalismo que começou a se desenhar o Favela-Bairro. Sendo assim, apesar de seu pioneirismo na forma e na escala dos projetos de urbanização das favelas cariocas, o programa não se isenta de contradições, como veremos, reproduzindo em muitos casos a lógica de exclusão, segregação e gentrificação vigente no Rio de Janeiro. O Plano Diretor da Cidade do Rio de Janeiro, sancionado em 1992, é considerado paradigmático enquanto proposta de integração ampla das favelas à cidade “formal”. O programa de urbanização e regularização fundiária de favelas é colocado como prioridade da política habitacional dentro do Plano Diretor, que se configura em importante marco institucional e instrumento legal na implantação dessa política. Tem-se assim, a problemática das favelas como uma questão municipal.11 O Plano Diretor também determinou a “inclusão das favelas nos mapas e cadastros da cidade” – uma tentativa de superar a grave negligência que POSTO68
7 Banco Nacional da Habitação (1964-1986). 8 Sobre a experiência pioneira de urbanização da favela de Brás de Pina ver: SANTOS, Carlos N. F. Movimentos urbanos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1981, p. 31-94. 9 Para um histórico mais detalhado das políticas públicas em favelas ao longo do século XX ver: BURGOS, Marcelo. Dos parques proletários ao Favela-Bairro. As políticas Públicas nas favelas do Rio de Janeiro. In: ZALUAR, Alba; ALVITO, Marcos. Um século de favela. Rio de Janeiro: Editora
FGV, 1998. 10 Essa discussão é feita de forma aprofundada em HARVEY, David. From managerialism to entrepreneurialism: the transformation in urban governance in late capitalism. Geografiska Annaler. Series B, Human Geography, Vol. 71, No. 1, The Roots of Geographical Change: 1973 to the Present. (1989), pp. 3-17. 11 MENDES, Izabel Cristina Reis. Programa favela-bairro: uma inovação estratégica? Estudo do programa favela-bairro no contexto do plano estratégico da cidade do Rio de Janeiro. 2006. Dissertação (Mestrado em Projeto, Espaço e Cultura) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006, p. 116.
53 estes espaços da cidade sofriam e ainda sofrem nos registros oficiais12 – além de determinar diretrizes fundamentais como a “necessidade de assegurar a participação dos moradores no processo de urbanização; a recomendação para ‘preservar a tipicidade da ocupação local’; e o esforço para ‘integrar as favelas aos bairros’”13. Além disso, a definição de favela contida no plano adotava apenas critérios físico-espaciais, morfológicos e infraestruturais, sem estabelecer juízos morais preconceituosos a respeito de seus moradores, como foi frequente ao longo de todo o século14. Portanto, verifica-se uma importante inflexão na abordagem das favelas por parte do poder público. Em 1993, já na gestão do prefeito César Maia (1993-1997), mais um passo é tomado em direção à consolidação das diretrizes do plano através da criação do Grupo Executivo de Assentamentos Populares (GEAP), visando elaborar as “Bases da Política Habitacional”. Por orientação do GEAP, no mesmo ano foi criada a Secretaria Municipal de Habitação (SMH), que passaria a ter papel central na gestão das políticas. O GEAP propôs ainda um conjunto de programas habitacionais, dentre eles o Favela-Bairro. Nele, partindo da carência de infraestrutura das áreas favelizadas, buscou-se implementar de forma progressiva e gradual melhorias em termos de serviços básicos de infraestrutura, requalificação dos acessos e regulamentação fundiária. Dentro dessa política, o programa Favela-Bairro apresenta como objetivo construir ou complementar a estrutura urbana principal (saneamento e democratização dos acessos) das favelas consolidadas e oferecer condições sociais e ambientais de transformação e integração da favela como bairro da cidade, visando atender as favelas de médio porte (entre 500 e 2500 domicílios).15
12 Sobre o recente apagamento do nome de diversas favelas em mapas de aplicativos online, ver: SOUTHWICK, Natalie. A Importância e os Desafios de Colocar as Favelas no Mapa. RioOnWatch, 2016. Disponível em: < https://rioonwatch.org. br/?p=23070 >. Acesso em: 3 de outubro de 2020. 13 BURGOS, 1998, op. cit., p. 48-49. 14 BURGOS, 1998, op. cit., p. 48 15 MENDES, 2006, op. cit., p. 117. 16 Parque Royal, Canal das Tachas, Parque Proletário do Grotão, Serrinha, Ladeira dos Funcionários, Caminho do Job, Morro dos Prazeres, Morro da Fé, Vila Cândido, Chácara de Del Castilho, Mata Machado, Morro União, Três Pontes, Conjunto Residencial Fernão Cardim e Andaraí.
O programa parte de um reconhecimento de que não havia uma definição clara quanto ao modo de realizar as intervenções, dado o insuficiente acúmulo técnico de experiências anteriores, inclusive nos órgãos públicos. Assim, uma das primeiras etapas foi a realização do Concurso Público para Seleção de Propostas Metodológicas e Físico-Espaciais Relativas à Urbanização de Favelas no Município do Rio de Janeiro, com o objetivo de coletar diferentes propostas metodológicas de intervenção nas 15 primeiras favelas16, compondo um repertório a ser utilizado pelo programa. Não há conhecimento sistematizado sobre o que fazer nas favelas. Se houvesse normas claras sobre como projetar em favelas e que estas condicionassem o desenho, o Concurso seria outro: de provimento de cargos para contratar profissionais para desenvolver um trabalho para o qual existe uma metodologia própria no poder público. O Concurso é uma convocação para as equipes que tenham ideia do que fazer. A boa proposta metodológica será a daquela equipe que for capaz de otimizar a ponto de resolver o máximo com um mínimo de homens/hora, com soluções metodológicas capazes de enfrentar problemas complexos, com a menor
Favelas atendidas pela primeira fase do Programa Favela-Bairro.**
54 relação custo /benefício para todos: sociedade, favelados, órgãos públicos e técnicos. (Concurso Favela-Bairro: Encontro em 19/04/94, Perguntas e Respostas. 1994.)17 Reside aí uma das particularidades do Favela-Bairro em relação a maior parte dos programas anteriores, nos quais os projetos eram executados pelas equipes técnicas dos órgãos públicos. Se por um lado a participação de escritórios particulares de arquitetura e urbanismo ampliou o leque de contribuição para as soluções técnicas e metodológicas, não podemos desconsiderar o contexto neoliberal de encurtamento do estado que produziu o esvaziamento da expertise técnica de prefeituras e secretarias como consequência da desidratação das políticas públicas nos anos anteriores. Embora impulsionado inicialmente pelas diretrizes do Plano Diretor, em 1995, o programa foi incorporado ao Plano Estratégico da Cidade do Rio de Janeiro, adaptando-se a uma concepção de planejamento e de gestão da política urbana distinta daquela preconizada pelos movimentos a favor da reforma urbana e consubstanciada nos artigos constitucionais. Passa a prevalecer, gradativamente, o ideário do planejamento estratégico e do empresariamento, resultado do já mencionado contexto de ascensão do neoliberalismo na década de 199018. No final de 1995, a prefeitura assinou um contrato de 300 milhões de dólares com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), que responderia por 60% dos recursos e a prefeitura pelo restante. Esse acordo impulsionou de forma significativa o programa, que institucionalizou-se através do Programa de Assentamentos Populares (PROAP), no âmbito do qual o Favela-Bairro era a principal dentre três frentes e cujos recursos seriam aplicados na urbanização de 60 favelas. A projeção do FavelaBairro e dos outros programas terá grandes consequências políticas, com o secretário municipal de urbanismo, o arquiteto e urbanista Luiz Paulo Conde, alçado a sucessor de César Maia, sendo eleito prefeito (1997-2001) e dando continuidade aos programas. A parceria com o BID seria renovada em 2000 com o PROAP-II, aportando mais US$ 300 milhões para urbanização de mais 89 favelas19.
17 SILVA JUNIOR, Luís Régis Coli. O Programa FavelaBairro e as políticas habitacionais do Banco Interamericano de Desenvolvimento. Dissertação (Mestrado em Planejamento Urbano e Regional). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006, p. 58. 18 Para uma análise da produção de falsos consensos e esvaziamento político no contexto de elaboração do Plano Estratégico da Cidade do Rio de Janeiro ver: VAINER, Carlos B. Os liberais também fazem planejamento? Glosas ao “Plano Estratégico da Cidade do Rio de Janeiro. In: O. Arantes; C. Vainer; E. Maricato (Org.) A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis: Vozes, 2000, pp. 105-119. 19 SILVA JUNIOR, 2006, op. cit., p. 60-70. 20 Para uma discussão mais aprofundada sobre as consequências desse processo no caso do Programa Favela-Bairro, ver: SILVA JUNIOR, 2006, op. cit.
A aproximação com o BID foi um dos principais responsáveis não só pela ampliação e manutenção do programa mas também pela sua transformação em modelo a ser replicado em outros locais, seguindo uma lógica de best practices frequentemente acionada pelo planejamento estratégico e no qual as agências multilaterais passam a ter papel preponderante na definição das políticas locais, sobretudo nos países subdesenvolvidos, esvaziando o conteúdo político original e os conflitos inerentes à gestão da política urbana20. Nessa primeira fase (1995 a 2000), as ações contemplaram desde a implementação de infraestrutura de saneamento e iluminação, instalação de pontes e passarelas, até a criação de praças, proporcionando espaços públicos de qualidade, creches e equipamentos esportivos. Partindo dessas diretrizes gerais, as intervenções em cada área também se
Favelas atendidas pelas demais fases do Programa Favela-Bairro, Grandes Favelas e Bairrinho.**
POSTO68
55 direcionavam a especificidades próprias - geográficas, ambientais e culturais. Buscou-se também reforçar laços e identidades nas comunidades, na medida em que houve maior participação da população em algumas intervenções. O financiamento do BID também possibilitou a ampliação do escopo inicial, que previa apenas favelas de médio porte, inaugurando duas novas modalidades. O PROAP passou a incluir também o Programa Bairrinho, através do qual foram atendidas 33 favelas de pequeno porte (até 500 domicílios). Já no âmbito do Programa Grandes Favelas foram realizadas intervenções em três favelas de grande porte (mais de 2500 domicílios)21. Essas últimas foram realizadas nas favelas Fazenda Coqueiro, Rio das Pedras e Jacarezinho22. Outro aspecto que merece destaque é a criação do projeto POUSO, ou Posto de Orientação Urbanística e Social. O projeto consistia na instalação de uma espécie de posto avançado da administração municipal situado dentro das favelas que haviam recebido algum dos programas. O objetivo do POUSO era atuar na orientação, regularização e controle do uso e da ocupação do solo. O “efeito POUSO” provocou um maior controle nas taxas de crescimento das favelas onde o projeto foi implantado23. Dentre outras consequências positivas geradas pelo Programa FavelaBairro, Cardoso et al. destacam o acúmulo de expertise técnica nos órgãos municipais e na esfera privada, superando justamente um dos entraves iniciais da política de urbanização de favelas. Esse histórico colocou o Rio de Janeiro em posição favorável para administrar intervenções de urbanização de favelas, seja pela capacidade do setor público, seja pela presença de um conjunto de agentes do setor privado que passaram a adquirir experiência nesse campo. A destacar a capacidade administrativa e a qualidade do corpo técnico constituído, a experiência acumulada de um conjunto de escritórios de arquitetura voltados para projetos de urbanização de favelas, além de um grupo de construtoras que passaram a trabalhar com a prefeitura em projetos dessa natureza.24 Mais recentemente, na gestão do prefeito Eduardo Paes (2009-2013), passou a ter centralidade na política habitacional e de urbanização de favelas o Programa Morar Carioca, que tinha por objetivo “urbanizar todas as favelas da cidade até 2020”, ainda que com algumas exceções em função da viabilidade, do “risco” e das consideradas “favelas urbanizadas”25. Concretamente, o Morar Carioca acabaria se tornando apenas um selo da administração municipal, agrupando projetos remanescentes do FavelaBairro, com financiamento do BID, e do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), na modalidade do PAC-Urbanização de Assentamentos Precários (PAC-Favelas), com recursos da união. Esse último, aliás, sendo a primeira iniciativa de grande aporte de recursos por parte do governo federal destinados à política de urbanização de favelas nas cidades do país26. Portanto, notamos que embora o Favela-Bairro não tenha sido pioneiro na urbanização de favelas, levou essa política a um patamar inédito em termos de volume de investimento, abrangência territorial na cidade e continuidade da política ao longo do tempo, atravessando quase duas décadas e quatro gestões municipais. O programa inaugurou uma frente essencial de atuação do poder público na promoção de direitos sociais fundamentais, tendo grande influência nas políticas subsequentes, ainda que suas contradições suscitem um grande campo de debate crítico que está longe de ser esgotado.
21 XIMENES, Luciana A.; JAENISCH, Samuel T. As favelas do Rio de Janeiro e suas camadas de urbanização. Vinte anos de políticas de intervenção sobre espaços populares da cidade. Encontro Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional, 18, 2019, Natal. Anais eletrônicos... Natal: ENANPUR, 2019, p. 9. Disponível em: <http://anpur. org.br/xviiienanpur/anaisadmin/ capapdf.php?reqid=561>. 22 Para um estudo de caso dos projetos de urbanização realizados pelo Grandes Favelas em Rio das Pedras e no Jacarezinho ver: MENDES, 2006, op. cit., pp. 128-166. 23 XIMENES e JAENISCH, 2019, op. cit., pp. 17-18. 24 CARDOSO, Adauto L.; XIMENES, Luciana A.; PATRÍCIO, Nuno A.; JAENISCH, Samuel T. O PAC nas favelas do Rio de Janeiro: caracterização das intervenções e arranjo institucional, pp. 116-117. In: A. CARDOSO & R. DENALDI (org.). Urbanização de favelas no Brasil: um balanço preliminar do PAC. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2018, pp. 107-137. Disponível em: https://www.
observatoriodasmetropoles.net. br/wp-content/uploads/2019/06/ AdautoCARDOSO-eRosana-DENALDIUrbaniza%C3%A7%C3%A3ode-favelas-no-Brasil.pdf. Acesso em 20/10/2020. 25 XIMENES e JAENISCH, 2019, op. cit., pp. 11-13. 26 Para análises sobre a continuidade das políticas de urbanização de favelas no Rio de Janeiro do Favela-Bairro até o PACFavelas ver: XIMENES e JAENISCH, 2019, op. cit.; e CARDOSO et al., 2018, op. cit. ** XIMENES, Luciana A.; JAENISCH, Samuel T. As favelas do Rio de Janeiro e suas camadas de urbanização. Vinte anos de políticas de intervenção sobre espaços populares da cidade. Encontro Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional, 18, 2019, Natal. Anais eletrônicos... Natal: ENANPUR, 2019, p. 9. Disponível em: <http://anpur. org.br/xviiienanpur/anaisadmin/ capapdf.php?reqid=561>.
56
PERFIL POSTO68
57
Comunal Taller Giulia ravanini
O México tem problemas habitacionais semelhantes aos vividos pelo Brasil. São países de grande área e população, com uma marcante heterogeneidade cultural, social e econômica. Ambos países passaram por um rápido e intenso processo de urbanização ao longo do século XX, que resultou em diversos problemas relacionados à habitação e ao uso da cidade. Segundo dados do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), os dois países lideram o ranking
latinoamericano no quesito déficit habitacional, sendo que o déficit habitacional no Brasil é de 33% (65 milhões de pessoas não tem uma moradia de boa qualidade) e no México de 31,1% (mais de 35 milhões de pessoas estão abrigadas em habitações de baixa qualidade)1. Em um artigo para o ArchDaily México intitulado “Arquitectura e racismo: quando el diseño se aplica como herramienta colonial”2, as arquitetas Mariana Ordoñez y Jesica Amescua comentam:
“Um exemplo claro de padronização e homogeneização de habitat é através de regulamentações descontextualizadas [regulamentações elaboradas por profissionais], o que leva a uma nova conquista por meio do projeto arquitetônico para impor formas urbanas de habitar comunidades rurais, transgredindo o simbolismo cultura e visão de mundo dos povos através de sistemas de construção tradicionais; aqueles sistemas vernáculos que reconhecem os componentes de sua casa como uma entidade viva e atribuem
58 Página anterior: Projeto “Producción Social de Vivienda: ejercicio 02”, Unión de Cooperativas Tosepan Titataniske + Comunal Próxima página: Projeto “Producción Social de Vivienda: ejercicio 02”, Parceria da Unión de Cooperativas Tosepan Titataniske e da Comunal Taller.
características sagradas a eles. (...) Negar a construção e reprodução de uma habitação vernácula para substituí-la por um modelo desenhado a partir de uma visão patriarcal dominante equivale a eliminar as línguas originais e introduzir o espanhol em todo o território.”
As autoras do texto fazem parte do Comunal Taller, escritório fundado por Ordoñez em 2015. A ideia começou em 2013, quando ela viajava pelo México para fazer o levantamento de casas vernaculares maias e das mudanças que elas vêm sofrendo, e observou como esta tipologia habitacional estava ameaçada, tanto pelo êxodo rural quanto pela chegada de técnicas “industrializadas”, adotadas pelos mexicanos por parecerem mais avançadas e modernas, porém sem estabelecer uma conexão real com o local. O trabalho das arquitetas busca ser uma alternativa ao chamado “assistencialismo”, que é a ajuda estatal aos pobres, porém sem a participação destes no desenvolvimento projetual e também ignorando os saberes técnico-construtivos tradicionais de cada região. Os projetos da Comunal Taller são baseados em uma visão não-hierárquica
do papel do arquiteto, já que a própria arquitetura é discutida como um processo coletivo, baseado no diálogo e na troca de saberes técnico-construtivos, desenvolvendo projetos apropriados para o contexto ambiental, cultural e produtivo dos povos locais. As arquitetas explicam a atuação da Comunal da seguinte forma: “Valorizamos o objeto arquitetônico pela sua capacidade de ser funcional, formal e esteticamente adequado à essência do lugar, da cultura e das pessoas, mas acima de tudo, como representação de processos de negociação entre consensos e dissidentes. Por isso, não concebemos a arquitetura como obra de autor ou como objeto estático, artístico e imutável; mas como um processo social colaborativo, vivo, aberto e em constante evolução.”3
Atualmente, a produção do escritório é dividida em quatro principais programas: “Produção e Gestão Social da Habitação”, “Educação, cultura e saberes tradicionais”, “Reconstrução social do habitat” e “Entendimento e memória territorial”. As arquitetas iniciam o processo projetual através de uma investigação com o objetivo
POSTO68
1 Banco Interamericano de Desenvolvimiento (BID). Un espacio para el desarrollo: Los mercados de vivienda en América Latina y el Caribe. 2012. Disponível em: <https://publications.iadb.org/ publications/spanish/document/ Un-espacio-para-el-desarrolloLos-mercados-de-vivienda-enAm%C3%A9rica-Latina-y-elCaribe.pdf.>. Acesso em: 05 de Setembro de 2020.
2 ORDOÑEZ, Mariana; AMESCUA, Jessica. Arquitectura y Racismo: cuando el diseño se aplica como herramienta colonial. ArchDaily Mexico, 2020. Disponível em: <https://www.archdaily.mx/ mx/941748/arquitectura-y-racismoel-diseno-como-herramientacolonial>. Acesso em: 04 de Setembro de 2020. 3 ORDOÑEZ, Mariana; AMESCUA, Jessica. Nosotras. Site oficial da COMUNAL Taller. Disponível em: <https://www.comunaltaller.com/ quienes-somos>. Acesso em: 05 de setembro de 2020.
4 FERRO, Sérgio. Entrevista com Sérgio Ferro. [Entrevista concedida a] Ana Luiza Gonçalves. Revista POSTO68, São Carlos, n.01.
59
de entender melhor o território e buscando fazer o melhor uso das técnicas construtivas locais, além de providenciar um acompanhamento social para a construção de espaços produzidos e geridos pela própria população, sendo que o locais também têm pleno controle sobre o processo construtivo. Também são realizadas oficinas para conservação e fortalecimento dos saberes e técnicas tradicionais, além de um acompanhamento de processos sociais de reconstrução, primeiramente sanando emergências por meio da construção de espaços habitáveis e da reativação da economia local, e a longo prazo através do fortalecimento da organização comunitária e da difusão dos saberes construtivos.
Em sua entrevista publicada na edição anterior da POSTO68, Sérgio Ferro disse: “Objetivamente, o arquiteto atua como um poderoso coadjuvante do capital no canteiro, independentemente de sua posição política e de seu valor como organizador do espaço” 4. O trabalho da Comunal busca ser um aliado à população. No site do escritório, por exemplo, as arquitetas disponibilizam gratuitamente um “Manual de Auto-Construcción”. Após os danos de um terremoto em Oaxaca, 90% das pessoas estavam reconstruindo suas casas sem a ajuda de um profissional especializado, resultando na maioria das vezes em habitações sem as técnicas adequadas para suportar futuros abalos sísmicos.
Para auxiliar a população, foi realizado este material como uma ferramenta gráfica que explicasse de maneira didática o processo construtivo. Reconhecendo os problemas de ser mulher no México, e também de ser mulher em um canteiro de obras, as arquitetas buscam ter uma equipe composta apenas por mulheres, também se comprometem em incentivar e facilitar a participação das mulheres locais em todo o processo projetual desenvolvido em conjunto das comunidades. Essa atenção é vista principalmente no projeto em desenvolvimento chamado “Casa da Parteira”, desenvolvido no Pueblo de Tenejapa, onde o acesso à infra-estrutura da saúde
60 é difícil e os partos ainda são realizados por parteiras. Como solução, foram projetadas e estão sendo construídas casas para três parteiras da região seguindo as indicações para tais espaços e os ideais projetuais da Comunal. Atualmente, também está sendo construída de maneira colaborativa uma escola rural, a Escuela Rural Productiva, que vai receber até 70 estudantes. A primeira etapa já foi finalizada, com duas salas de aulas e os ambientes de serviço, que já podem ser utilizados. Porém, os projetos que mais trouxeram reconhecimento ao modo de produção da Comunal foram dois exercícios de produção social de habitação. A primeira, de 2013, foi realizada em colaboração com a comunidade em oficinas de desenho participativo e em cinco oficinas técnica-construtivas, e buscou utilizar materiais naturais como pedra, madeira e duas espécies endêmicas de bambu. Contudo, o primeiro exercício não foi aprovado pela CONAVI (Comissão Nacional de Habitações) para ser replicado em outras localidades, e por isso, foi
realizado um segundo exercício de habitação, que utilizou o bambu de forma estrutural para que assim pudesse ser aprovado e subsidiado. As arquitetas comentam que existe um problema do reconhecimento das técnicas tradicionais para aplicação em larga escala, pois há uma ideia geral de que estas técnicas não são tão seguras por utilizarem materiais biodegradáveis e existe também um grande interesse das “grandes produtoras de matérias” em manter um monopólio no mercado da construção social mexicana. Ordoñez argumenta que a habitação vernacular rural é uma forma de vida e quando um tipo de construção é imposto pelo governo, dificilmente este se integra com o ambiente, e gera uma ruptura com o tecido social e a economia local5.
5 ORDOÑEZ, Mariana; LUQUE, Onnis. Mexicoʼs traditional housing is disappearing—and with it, a way of life. [Entrevista cedida a] Sarah Wesseler. The Architectural League NY, 2018. Disponível em: <https:// archleague.org/article/mexicostraditional-housing-disappearingway-life/>. Acesso em: 04 de setembro de 2020.
6 ORDOÑEZ, Mariana; AMESCUA, Jessica. Comunal: Taller de Arquitectura, las arquitectas mexicanas que debes conocer. [Entrevista cedida a] Ariel Aizenman. Vogue México, 2020. Disponível em: <https://www. vogue.mx/estilo-de-vida/articulo/ arquitectas-mexicanas-creancomunal-taller-de-arquitectura>. Acesso em: 05 de Setembro de 2020.
A iniciativa das arquitetas vem junto a uma onda de surgimento de iniciativas arquitetônicas latinoamericanas que se voltam mais para o papel social do arquiteto e que se comprometem com as comunidades e tradições
Projeto “Casa de la partera”. Parceria da rede de parteiras “Un solo corazón” e da Comunal Taller, em Tenejapa, México.
POSTO68
61
Projeto “Escuela Rural Productiva”, na comunidade de Tepetzintan, México.
locais. Entre eles estão o escritório equatoriano Al Borde e o colombiano Arquitectura Expandida. Todas estas práticas têm uma profunda conexão com as necessidades das comunidades locais, além de buscar preservar, através da arquitetura, técnicas e usos diversos. Essas iniciativas ainda estão ganhando força, porém representam uma importante resistência às pressões do mundo globalizado de padronizar técnicas e tipologias, resultando nas tão criticadas cidades genéricas.
Em um mundo em constante mudança, onde tradições centenárias são apagadas e silenciadas em um piscar de olhos e em que o impacto das atividades humanas no meio ambiente se mostra cada vez mais preocupante, é comum arquitetos e urbanistas frequentemente questionarem seus papéis. Porém, é realmente animador ver que existem iniciativas, como a da Comunal Taller, que conseguem colocar em prática uma arquitetura produzida a partir de um processo participativo
enraizado nas tradições locais, e que também buscam estabelecer um diálogo com os órgãos habitacionais mexicanos para disseminar as técnicas pelo país. Enfim, como explicam as próprias arquitetas: “Aprendemos rigorosamente o lado técnico e artístico da arquitetura, mas raramente aprendemos o aspecto mais relevante: o lado humano ( que envolve cultura, necessidades, aspirações, ideais, expectativas, direitos humanos, habitat, identidade cultural, conhecimento construtivo local , modos de vida e cosmovisão).”6
62
Escritório Casulo Arquitetura e urbanismo
Foto cedida pelas autoras
Ensaio
Beatriz Costa * Juliana Santana ** Rafaella Amarante **
* Arquiteta e Urbanista formada pelo Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (IAU-USP), campus de São Carlos. Foi pesquisadora do HABIS (Grupo de pesquisa em habitação e sustentabilidade) do IAU, como bolsista FAPESP de 2015 a 2016. Foi membro da Secretaria Acadêmica de Arquitetura e Urbanismo (SAAU) e coletivo de mulheres, participando do movimento estudantil. Trabalhou durante o período acadêmico com projetos luminotécnicos e arquitetura de interiores. Atualmente é sócia e fundadora do escritório Casulo Arquitetura e Urbanismo, atuando com projetos residenciais e interiores. ** Arquiteta e Urbanista formada pelo Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (IAU-USP), campus de São Carlos. Foi pesquisadora do grupo N.ELAC (Núcleo de Apoio à Pesquisa em Estudos de Linguagem em Arquitetura e Cidade) do IAU, como bolsista PUB de 2015 a 2016. Realizou intercâmbio acadêmico entre 2016 e 2017 na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto (FAUP). E também na mesma instituição de ensino (IAU-USP) foi membro da Secretaria Acadêmica de Arquitetura e Urbanismo (SAAU), participando do movimento estudantil. Trabalhou durante o período acadêmico com projetos luminotécnicos, design gráfico e tecnologia da informação. Atualmente é sócia e fundadora do escritório Casulo Arquitetura e Urbanismo, atuando com projetos de diferentes escalas por meio da experiência do habitar. *** Arquiteta e Urbanista formada pelo Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (IAU-USP), campus de São Carlos. Foi pesquisadora do grupo N.ELAC ((Núcleo de Apoio à Pesquisa em Estudos de Linguagem em Arquitetura e Cidade) do IAU, como bolsista PUB de 2017 a 2018. Foi membro da Secretaria Acadêmica de Arquitetura e Urbanismo (SAAU) na mesma instituição de ensino (IAU-USP), do Coletivo de Mulheres Federal e CAASO, participando do movimento estudantil e de movimentos sociais. Fez Estágio Interdisciplinar de Vivência (EIV) do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) em 2016. Trabalhou durante o período acadêmico com projetos luminotécnicos. Atualmente é sócia e fundadora do escritório Casulo Arquitetura e Urbanismo.
POSTO68
63 Introdução Pensar e projetar como uma arquiteta brasileira é possível? Temos oportunidades? E referências? Tem algum retorno financeiro viável? Conseguimos impactar a sociedade de alguma forma? São perguntas que muitas vezes parecem abstratas dentro do frenesi das universidades, mas quando nos inserimos no mercado de trabalho, são elas que nos inquietam dia após dia. Recém formadas nos jogamos na aventura de abrir um escritório e produzir arquitetura, um sonho para a maioria de nós arquitetos, mas também uma necessidade, precisávamos de dinheiro e as contratações andam em baixa há algum tempo. Como realizar o sonho de produzir uma arquitetura não mimética, autoral, com expressão, feita por mulheres, e ainda ser um agente que desenvolva uma arquitetura ancorada na lógica inclusiva e democrática do direito à cidade e à cidadania, e como ter retorno financeiro, entendendo a dinâmica social e econômica que estamos inseridos? Uma questão quase dicotômica, não temos respostas ou análises comprovadas, mas talvez esta discussão coletiva nos leve a alguns caminhos. Vamos levantar aqui três questões para aprofundar essa discussão: a primeira é a nossa formação, para entendermos de onde vêm nossas referências arquitetônicas e políticas; depois, o lugar que ocupamos na sociedade, analisando nossa jornada como mulheres universitárias e agora trabalhadoras arquitetas; e por último, como vemos isso expressamente em nossos projetos, trazendo alguns
exemplos mais práticos dessas análises. Em formação Talvez por sermos recém graduadas notamos como a nossa formação tem grande influência em nossas decisões, na forma que projetamos, o que consideramos importante e como lidamos com cada problema que enfrentamos. A vivência em todos os anos da universidade faz parte do que somos hoje, faz parte da nossa história. Foi na universidade que nós nos deparamos com nossas primeiras referências arquitetônicas, que vão muito além de Niemeyer. Na maioria dos casos, ele é o único arquiteto brasileiro que conhecemos antes da graduação, o que já demonstra o pouco contato e entendimento que nós temos sobre a profissão no Brasil, e isso por si só, já gera inúmeras questões: as boas referências de arquitetura não estão presentes no nosso dia a dia ou estão mas não temos conhecimento delas? O único arquiteto de qualidade brasileiro era um homem, branco? Arquitetura é somente para países “desenvolvidos”? Aos poucos em aulas e trabalhos, com esforço por parte da academia, fomos descobrindo que existe boa arquitetura no Brasil, para além de Brasília, feita por mulheres inclusive: o primeiro contato com uma arquitetura nacional e feminina foi em uma visita à São Paulo, logo no primeiro ano, conhecendo as grandes obras de Lina Bo Bardi (MASP, SESC Pompéia, Casa de Vidro), e aos poucos essa lista foi se expandindo com Mayumi Souza Lima, Carla Juaçaba, e por obras mais recentes, como SESC
24 de Maio com Marta Moreira, sócia e fundadora do MMBB, em conjunto com Paulo Mendes da Rocha. Inclusive compõem essa lista de arquitetas referência nossas docentes Catherine Otondo e Luciana Schenk, que trabalham com projetos urbanos e paisagísticos, os quais temos o privilégio de olhar mais de perto. O trabalho iniciado por um grupo de estudantes chamado Arquitetas Invisíveis1, vem discutindo essas questões, buscando dar visibilidade ao trabalho de muitas mulheres. Ainda que hoje reconheçamos esses trabalhos, identificamos dificuldades em reconhecer seus nomes e carreiras, as obras dessas e de muitas outras arquitetas permanecem esquecidas na sombra do tempo ou conhecidas sob o prestígio de algum grande arquiteto homem ou ainda, a ênfase que as próprias arquitetas dão a sua equipe em detrimento do seu reconhecimento individual. Mais raro ainda é o reconhecimento de arquitetos negros2 e de outras etnias, o que acarreta consequentemente em trabalhos e estudos muito pautados e referenciados na arquitetura européia e norte americana: Villas de Palladio, obras de Mies Van Der Rohe,museus de Frank Lloyd Wright, os planos de Le Corbusier. E como produzir uma arquitetura nacional que nos represente baseando-se apenas nessas tantas influências exteriores? Vamos deixar claro aqui que não tiramos a importância de estudar a arquitetura internacional, afinal, temos que olhar uma boa arquitetura onde ela estiver e conseguir trazer as questões que funcionem para o local onde estamos atuando. Talvez esse seja um dos maiores aprendizados do nosso curso e de
64 se estudar em uma Universidade Pública: solucionar problemas criticamente olhando para a realidade. Mas estamos também tentando entender as lacunas, o porque é difícil encontrar uma boa arquitetura em nossas cidades, sim, ela existe, mas estão concentradas em áreas específicas das cidades, majoritariamente nas áreas com maior concentração de capital ou interesses imobiliários. Apesar da maior parte da arquitetura estar concentrada nessas regiões, há o esforço de arquitetos e urbanistas, e até alguns gestores, em promover um contraponto a isso: uma arquitetura produzida para requalificar áreas urbanas críticas3 geralmente localizadas nas zonas periféricas da cidade, mais afastadas e marginalizadas, tornando essas áreas espaços urbanos de qualidade4, como em trabalhos mais atuais como a reurbanização da Favela do Sapê, projeto de Catherine Odonto, e os trabalhos de Hector Vigliecca para conjuntos habitacionais de interesse social (como o Parque Novo Santo Amaro), projetos que revelam esse esforço e tentativa muito presentes em nossas referências brasileiras, e isso não é trivial. Como um país periférico e inserido nas dinâmicas capitalistas de construção da cidade, no Brasil a arquitetura e o urbanismo são frequentemente vistos e colocados como atividades de luxo. Dessa forma, a arquitetura e espaços públicos qualificados estão disponíveis apenas às classes sociais mais altas. Dito isso, nota-se que os grandes nomes da arquitetura brasileira, inclusive Oscar Niemeyer, possuem uma veia política de entender a arquitetura e as cidades como parte do domínio do capital, mas também
encontrando brechas para ser resistência contra essa lógica de produção. Uma arquitetura que pode olhar para a estética mas também com forte viés político, como não poderia ser diferente em um país do capitalismo periférico. Esse anseio era notado por todo o nosso corpo docente da arquitetura, assim como nos alunos e em nós mesmas. Entretanto, não é apenas nessas ocasiões, mas no dia a dia de cada um dos fronts dessa luta, que se desenrola a guerra dos lugares. Ela está em cada resistência a despejos e remoções, em cada luta anti privatização e homogeneização do espaço, em cada apropriação do espaço coletivo como lugar da multiplicidade e da liberdade. Está, enfim, no exercício cotidiano de formulação e de luta pelo direito à cidade. (ROLNIK, 2015: 378)5
Queremos aqui ressaltar que a medida que nossa formação acadêmica avançava, tomávamos conhecimento também de uma formação outra. Logo nos percebemos como sujeitos políticos, nós três fizemos parte da secretaria acadêmica de nosso curso (SAAU) por quase toda a graduação e lá ampliamos esse debate, participamos de greves, manifestações e cada uma foi se encontrando por esses caminhos, participando de coletivos, movimentos sociais e até partidos que não discutiam apenas o ambiente universitário. Passamos a vivenciar e experienciar o que é discutir uma Política que, de fato, esteja disposta a formular um projeto de país. Nossos trabalhos acadêmicos e nossa vida política fora das salas de aula passaram a estar totalmente interligadas, buscávamos expressar nossas intenções políticas em nossos projetos, trabalhos, iniciações científicas e por fim no trabalho de conclusão de curso (Trabalho POSTO68
1 “O Coletivo Arquitetas Invisíveis é uma ação que busca promover a igualdade de gênero dentro do âmbito da arquitetura e do urbanismo, por meio do reconhecimento e divulgação da vida e obra de arquitetas desprestigiadas pela história. Criado por estudantes da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília, a primeira iniciativa do grupo foi no sentido de ampliar o repertório dos estudantes e profissionais de arquitetura e urbanismo e, ao mesmo tempo, incitar a discussão sobre gênero no meio acadêmico e profissional.” fonte: https://www. arquitetasinvisiveis.com/trajetoria 2 Francis Kéré é um arquiteto que admiramos muito o trabalho: http://www. kere-architecture.com/projects/ 3 Vigliecca, H. O Terceiro Território Habitação Coletiva e Cidade - . 2014 4 Esse projeto de como os antigos reservatórios de água na cidade de Medellin foram transformados em parques públicos é uma referência muito interessante: https://www.archdaily. com.br/br/791843/como-medellintransformou-seus-reservatorios-de-aguaem-verdadeiros-parqu es-publicos 5 ROLNIK, Raquel. Guerra dos Lugares. São Paulo, 2015. 6 https://issuu.com/beatriz.s.costa/docs/ beatriz_costa_tgi_i_2018_3 ; https:// issuu.com/beatriz.s.costa/docs/caderno_ anexo_rmc_final ; https://issuu.com/ rafaellaamarante/docs/tgi_ii; https://issuu. com/julianapsantana/docs/habitar_o_ territ_rio_-_da_fragmenta 7 FERRO, Sérgio. Arquitetura e Trabalho Livre. São Paulo. Cosac Naify, 2006
65 de graduação integrado, TGI), em que talvez tudo isso se expressou mais significativamente. Apesar de serem trabalhos individuais, os três projetos apontaram uma abordagem próxima no olhar para o coletivo: trabalhos de construção de moradia e espaços públicos em busca de qualificar áreas urbanas críticas, pesquisas para aprofundar o diálogo com o entorno, com a história e vivências específicas de cada local. Em última instância, o TGI (com todas as limitações de ser um projeto ainda muito distante da realidade) expressou nossas aspirações e inquietudes como pessoas e arquitetas, do nosso ofício e do projeto que queremos enquanto sociedade. Embora de forma muito idealista, como se propõe a ser em nosso curso, ali estavam expostos nossos princípios como profissionais e nossas referências projetuais que, coincidentemente ou não, tinham como base em sua maioria referências brasileiras e latino americanas6. Nós três, pela formação acadêmica e política, acreditamos que não é possível pensar uma arquitetura outra, ou mesmo uma subversão política que se contraponha ao sistema capitalista vigente, sem partir da nossa realidade, no solo que construímos, na realidade com que estamos lidando, na cultura e costumes do nosso povo, em como o capital atua territorialmente aqui e como nossas arquitetas e arquitetos de referência lidam com todas essas situações. Aprendemos a pensar o público não só com o olhar de arquitetos, mas também de que forma ele é possível com os conflitos existentes. Essa construção diária segue até hoje, e é o que nos propomos todos os dias.
Mais do que aprender arquitetura, falando da profissão em si, a universidade nos trouxe também importantes aprendizados como a capacidade de solucionar diversos tipos de problemas e capacidade de lidar com diferentes situações e pessoas, seja pelo método ao qual nossos professores usavam para nos ensinar, pelas vivências que tivemos em outras atividades estudantis, ou por entender que arquitetura não é somente ciência, é também política. Mulheres e arquitetas, e agora? Nada mais angustiante e penoso do que a definição e escolha de caminhos, não só práticos mas, principalmente, teóricos, na arquitetura, quando se encara o problema com a responsabilidade devida. Desde as soluções mais diretas de qualquer caso, na escolha de uma forma ou cor, ou das propostas um pouco mais gerais, como a orientação no planejamento, o decidir de vários elementos em uma obra, até o enfoque global, a direção primeira do pensamento, as inúmeras implicações de cada atitude, embaralham a intenção e confundem o pensamento. (LEFEVRE, Rodrigo: 33)7
Assim, alimentadas por toda a formação mencionada acima, a urgência por atuar politicamente em ações que representem resistência à ordem urbana atual ultraliberal era iminente, provavelmente também presente na maioria dos arquitetos formados em outras universidades com pautas políticas como a nossa. Nos formamos com todos esses anseios e desejos em mente, em contribuir de alguma forma para disseminar a ideia de que arquitetura também é política, em nos somar aos diversos movimentos já existentes, e também de produzir uma
Feminismo decolonial, Gabriela Pecantet Siqueira, p. 73
66 arquitetura brasileira, de atuar na área, criar. Entendemos, a partir da universidade, de nossos professores e de nossos arquitetos brasileiros, que uma arquitetura brasileira está totalmente ligada a um gesto político. Nos formamos e entramos em um “novo mundo”. Agora as ideias têm que sair do papel, e nossos clientes não são nossos professores, a liberdade se restringe e as responsabilidades aumentam. Antes muito idealistas e com uma liberdade de expressão formal e política, agora o raciocínio deve partir de algo que será concretamente materializado, o que necessita de rigor técnico e formal, e que muitas vezes exige que mudemos até mesmo nossas vestimentas e modos de falar. As ambições político-sociais, apesar de muito fervorosas em nós, ainda são mais difíceis de aparecerem como antes nos projetos, e às vezes até perdidas no processo. As barreiras e desafios como recém formados já são grandes: aprender a projetar para um cliente real, vender seu trabalho, administrar dinheiro e todos os processos burocráticos de um escritório, lidar com infinitas contradições existentes no fazer da arquitetura, e como conseguir realizar tudo isso sem perder o eixo político e ainda ultrapassar essas barreiras sendo mulheres. Assim que começamos a trabalhar e estruturar o escritório, procuramos referências de escritórios atuais que estão atuando no mercado, e encontramos muitas mulheres. Dos 167 mil arquitetos, 63,10% são mulheres8, que lutam para serem reconhecidas e terem representatividade nos ambientes de trabalho todos os dias. De acordo com os dados do SICCAU9, de 2012 a 2019, apenas cerca de 45,8% das 12 RRTs (Registro
de Responsabilidade Técnica) emitidas são de mulheres, ou seja, apesar das mulheres serem a maioria dentre os profissionais, são a minoria entre os responsáveis técnicos. Por que os homens continuam a ser escolhidos na hora de coordenar um projeto? Não é só com as questões do mercado de trabalho que temos que lidar, são diversos obstáculos a cada dia no canteiro de obras, no contato com o empreiteiro e com os fornecedores. Ganhar a confiança da equipe de obra na maioria dos casos é bem trabalhoso, talvez por sermos jovens e mulheres, muitas vezes nos tratam como frágeis e ingênuas, assim mudamos nossas roupas, temos que ser mais diretas e sempre muito firmes nas decisões. O esforço de se ter a confiança de cada cliente também é triplicado quando se pensa em que lugar da sociedade você ocupa10. Segundo o 1º Diagnóstico de Gênero na Arquitetura e Urbanismo (abril de 2020), realizado pelo CAU, apenas 4,33% dos 14 arquitetos formados hoje no Brasil são negros, e 0,21 indígenas, sendo portanto, a grande maioria formada por pessoas brancas (quase 80%). Esses dados escancaram a falta de equidade racial em nossa profissão, e o silenciamento que essa enorme parcela da sociedade sofre paulatinamente. Todos os dias vivenciamos momentos que ilustram injustiças desse tipo nos nossos espaços de trabalho, principalmente nas decisões políticas, no reconhecimento do trabalho de forma nacional ou internacional. No Prêmio Pritzker das quarenta edições somente cinco premiações foram para mulheres, e ainda a maioria foram para arquitetos europeus POSTO68
8 https://caubr.gov.br/inedito-visaocompleta-sobre-a-presenca-da-mulher-naarquitetura-e-urbanismo/#:~:text=O%20 Bra sil%20possui%20atualmente%20 167.060,de%2062%25%20e%2038%25. 9 Dados do Sistema de Informação e Comunicação do CAU. Esses dados foram utilizados em uma pesquisa apresentada pelas conselheiras Rossella Rossetto e Tercia A. de Oliveira no Seminário Internacional intitulado “O perfil e a valorização das mulheres na Arquitetura”. 10 Pensando a sociedade estruturada em uma pirâmide, em que a ponta da pirâmide estão as pessoas mais privilegiadas - se por exemplo você é mulher e negra esses obstáculos são maiores.
67 e nenhuma para arquitetos(as) do continente africano, sendo o único continente sem ter uma representatividade no prêmio. Nos formamos sabendo de muitos desafios que tínhamos de enfrentar, todas essas contradições afetam nosso trabalho e estamos a todo momento tentando nos desvencilhar dessas questões, buscando contribuir e adicionar para algo bem maior que deve ser realizado em coletivo, buscando condições igualitárias nessa sociedade produzida por heranças latentes do colonialismo. Nossos projetos Não é à toa que projetamos casas com histórias, a formação que a universidade nos proporcionou nos faz olhar para cada projeto muito além do programa proposto. Olhamos para as pessoas e o que elas têm a nos dizer para aquele projeto, cada um carrega com sigo as suas angústias e inquietações, sonhos e desejos influenciados pela vivência de cada um nesse mundo cheio de contradições e paradigmas. O intuito e o sonho de projetar algo que seja verdadeiramente nosso, que representa a arquitetura brasileira e as nossas tradições é muito grande. Mas em cada projeto encontramos uma pessoa que também está há muito tempo vivendo a partir de referências internacionais, que têm seus desejos construídos e pautados pelas referências criadas pelo capitalismo, em sua maioria norte americanas. E nosso trabalho nunca vem de cima para baixo, é uma construção coletiva, com nossos clientes e fornecedores, o que nos leva a mesclar muito desses dois universos, as referências
internacionais com referências da nossa realidade brasileira. A fim de fugir de generalizações, devemos ser capazes de iluminar as diversidades de cada projeto. Projetar uma arquitetura que fuja dos padrões é desafiador e nem sempre é possível. Mas gostamos de olhar da perspectiva que os projetos também podem ter o intuito de nos libertar de questões como “cozinha é para mulheres”. As casas não devem se tornar nossa prisão, não devem ser um lugar de exclusão e sim uma possibilidade real de permitir novas relações, um espaço seguro para novos aprendizados. Com nossa experiência no mercado até agora, a maioria esmagadora das nossas contratações são feitas por mulheres, é muito comum que os homens participem mais ativamente quando as discussões aumentam de escala, por exemplo em projetos de habitação. Lutamos para que o entendimento da arquitetura não seja só discutir a estética, mas que nós mulheres participemos também das soluções funcionais e técnicas para o dia a dia das pessoas. Por fim Para tratar um pouco da nossa prática arquitetônica é importante entender que a arquitetura lida com problemas cuja definição é imprecisa; o projetista elabora esta definição e seleção de soluções; utiliza o pensamento projetual como ferramenta essencial. Esse instrumental de projeto, que adquirimos durante a formação e aprimoramos com o tempo, faz com que seja criada resiliência para administrar diversas crises que acompanham o nosso dia a dia de arquiteto. Precisamos lidar e não ter
medo da incerteza constante, com a consciência que o ato de projetar está intrinsecamente ligado à noção de que não possuímos todos os recursos necessários. Incertezas e mudanças são constantes da vida, buscamos diariamente no escritório aprender a aceitá-las e incorporálas nos nossos processos, assim como nossa consciência política. Saber que nosso trabalho é cheio de incoerências também aflige e angustia, as condições de injustiças e privilégios da nossa sociedade refletem cotidianamente nos nossos projetos, representa uma lembrança constante de que algumas pessoas serão sempre empurradas para fora do sistema. Nunca abandonamos isso por mais contraditório que às vezes possa parecer. Nosso trabalho nunca termina. É um constante montar e desmontar em que a peça fundamental é o outro. É como nas nossas primeiras aulas de desenho, nós começamos achando que vamos aprender a desenhar, mas na verdade, elas ensinam a ver. São os usuários do espaço que são a nossa medida, a nossa régua. Seguimos nessa dura empreitada, que é buscar uma arquitetura possível, e que atinja o máximo de pessoas que pudermos alcançar. Que a nossa arquitetura seja uma ferramenta de mudança.
68
entrevista
FERNANDA CANALES por Giulia Ravanini POSTO68
Foto: Carlos Juica
Fernanda Canales é doutora Cum Laude em Arquitetura pela Escuela Técnica Superior de Arquitectura de Madrid - ETSAM -, com mestrado pela Universidade Politécnica de Barcelona - UPC -, e arquiteta pela Universidade Ibero-Americana - UIA. É autora dos livros: Estructuras compartidas, espacios privados - Actar, Barcelona, 2020 -, Vivienda colectiva en México, El derecho a la arquitectura - Gustavo Gili, Barcelona, 2017 -, e Arquitectura en México 1900-2010, La construcción de la modernidad - Arquine, México, 2013. Ela foi professora visitante na Yale School of Architecture, na Architectural Association em Londres e na Universidad Iberoamericana na Cidade do México.
70
GR: Em seus projetos, é comum ocorrer uma reinterpretação de elementos tipológicos ou de técnicas de construção da arquitetura vernacular mexicana, porém se aplicando às necessidades do programa. No projeto “Casa Productiva”, por exemplo, cada unidade se adequa às necessidades do morador, podendo ser replicada em grande escala e com um orçamento baixo. Considerando estas questões, como você considera que as condições sócioculturais e técnicas do México estão presentes no seu processo de produção arquitetônica? FC: A arquitetura nasce do local, das necessidades e da realidade dos habitantes. Ela está intimamente ligada às técnicas e à cultura da sociedade. Quando proponho um projeto, tudo é determinado pelo orçamento, pelos materiais e pelo modo de vida do usuário. Busco atingir um ponto médio entre desejos e realidades. Entre ideais e resultados, portanto, questões como a luz do sol na casa ou sua futura manutenção não podem ser omitidas. Devemos pensar não só no que é visível numa casa, mas também nos serviços, no consumo de energia e nas tarefas domésticas a ela associadas. O sucesso de um projeto está provavelmente nas partes menos visíveis de uma casa, mas são elas que fazem funcionar para quem a habita e a tem por perto.
GR: Lendo sobre a história da urbanização da Cidade do México, é possível traçar diversos paralelos com a cidade de São Paulo. São cidades que tiveram um crescimento urbano exponencial, e atualmente são caracterizadas pelo espraiamento urbano, consequência das políticas rodoviaristas, e pela segregação territorial. Essa situação é vista em quase todas grandes cidades da América Latina. Qual é, na sua opinião, o papel do arquiteto frente a estes problemas? FC: Como arquitetos, limitamonos a fazer o que um cliente nos pede e o que nos paga para fazer, mas as consequências da falta de interferência dos arquitetos nas decisões urbanas e territoriais estão cada vez mais claras. Os arquitetos devem se encarregar da arquitetura, mas também são responsáveis por seus efeitos. Em outras palavras, não se trata apenas de projetar uma casa, mas também de repensar o espaço que existe entre uma casa e outra. Quem define o que existe entre uma cama, um banco e uma rua? Cidades em rápido crescimento, como São Paulo e Cidade do México, são as que mais carecem desses reflexos. Cabe aos conselhos dos arquitetos e não aos políticos tomar essas decisões e orientar o ambiente construído. Não podemos continuar a pensar em nosso trabalho como a soma de ações em pequenos lotes isolados.
POSTO68
GR: Projetos como o “Centro Cultural Elena Garrido” e as “Salas de Lectura” ocorreram por iniciativa estatal, neles existe uma forte noção da democratização do espaço público. Gostaríamos de saber como se deu a relação com os órgãos governamentais durante o desenvolvimento e implantação destes projetos? E atualmente, como se dá a gestão e o uso destes? FC: No caso do Centro Cultural Elena Garrido, sabíamos que o prédio seria inaugurado na véspera do término do mandato do presidente e do governo, e que estaria praticamente abandonado no dia seguinte. Portanto, é uma obra pensada para ser útil ao bairro e sobreviver apesar da pouca manutenção que receberia. É uma obra muito apreciada pelos vizinhos e que está aberta a quem passa pela sua frente, e a sua visibilidade tem ajudado muito na sua preservação. Foi pensado como um centro de leitura para quem nunca comprou um livro, que acolhe a todos com a exposição dos livros diretamente na rua e pelas árvores no interior que foram mantidas, estabelecendo jogos com o exterior através de terraços, varandas, pátios e pequenos jardins laterais . A calçada entra no prédio e se estende até a cidade, tornando-se peça fundamental para a região. As Salas de Leitura nasceram como um protótipo a ser
71
construído em cada um dos 32 estados mexicanos, sem supervisão arquitetônica, projetado para ser auto construído e sem previsão de manutenção. São espaços muito baratos, erguidos contra o vandalismo (não há janelas ou praticamente nada para roubar ou quebrar), e podem ser inundados até 1,20 metros. Além disso, devem ser capazes de se adaptar a pequenas mudanças, como inclusão de banheiros ou espaços para lixo. Por isso são modulares e podem ser expandidos tanto horizontalmente como verticalmente. A ideia é que o interior seja sempre visível através da treliça, de forma que sejam espaços seguros, sempre ventilados naturalmente, e que também sirvam de lâmpadas à noite para a comunidade. O Instituto Nacional de Habitação (INFONAVIT) solicitou a remodelação de apartamentos abandonados nos enormes conjuntos habitacionais para a colocação de pequenos espaços de leitura e o projeto foi convertido para ocupar os espaços desapropriados nos conjuntos habitacionais, para que se tornem verdadeiramente um espaço visível, seguro e aberto a todos. São centros da vida pública onde acontecem desde aulas de dança até batismos ou primeiras comunhões. Em muitos casos nem há livros, mas eles são a única sombra que existe no lugar para fazer a lição de casa ou sentar-se para amamentar um bebê.
Centro Cultural Elena Garro. Cidade do México, 2013. Foto: Jaime Navarro.
entrevista
72
Salas de Lectura, 2015. Foto: Jaime Navarro.
GR: Em seu livro “Vivienda Colectiva en Mexico”, você fez um extenso levantamento dessa tipologia, desde o início do século XX até os dias de hoje. Você poderia comentar sobre como ocorreu esse processo de pesquisa e quais foram os seus principais desdobramentos? FC: Levei cinco anos para fazer aquele livro porque quase todos os projetos incluídos (100 edifícios, 100 anos) eram inéditos ou apenas uma fachada havia sido publicada, mas não as plantas dos edifícios ou sua implantação urbana. Envolveu um redesenho das plantas, de forma a compreender todos os edifícios na mesma escala e orientação, e para compreender sobretudo as decisões do projeto baseadas na relação com a cidade. É um livro que permite relacionar facilmente diferentes densidades, períodos, autores, materiais e programas relacionados à arquitetura residencial.
GR: Por muito tempo o interesse internacional na arquitetura brasileira se limitou à figura de Oscar Niemeyer, vejo que no México ocorreu uma situação parecida com Luís Barrágan. Dificilmente arquitetos com outras propostas conseguiam ter mais visibilidade, muito menos mulheres. Atualmente o cenário latino-americano está se tornando mais diverso, porém, quais são os desafios ainda enfrentados pelas mulheres mexicanas que atuam no campo da arquitetura? Como você sente que sua própria produção arquitetônica é influenciada por estes desafios? FC: Até poucos anos atrás, a arquitetura era conhecida quase sempre por homens e quase sempre da Europa ou dos Estados Unidos. Isso deixou de fora muitas obras e trajetórias valiosas que precisam ser resgatadas. Atualmente o trabalho de arquitetos latino-americanos e a arquitetura feita por mulheres tem uma grande força, mas pelo menos no caso do México, nomes de arquitetas internacionalmente reconhecidos é algo que podemos contar nos dedos de nossas mãos. É um reflexo das injustiças que continuam a afetar não apenas o dia a dia de metade da população, mas a forma como as cidades são pensadas e projetadas. POSTO68
GR: Por fim, quais conselhos você daria para os estudantes ou arquitetos ou recém-formados que buscam a produção de uma arquitetura mais democrática e próxima da realidade de seus respectivos países? FC: Gosto da frase de Luis Barragán, que dizia: "Não faça o que eu fiz, mas veja o que vi". O meu conselho seria que cada um procurasse o seu próprio caminho a partir da aprendizagem acumulada de tantos outros, mas isso não é algo que se encontre nas formas dos edifícios dos referidos autores, mas sim na sensação de visitar estas obras. A arquitetura deve ser medida em relação ao corpo e a possibilidade de produzir arquiteturas mais democráticas e necessárias para nossos países está no olhar que damos a essas necessidades e a esses territórios. É algo que deve ser produzido desde o mais íntimo.
73
Feminismo decolonial Colagem digital Gabriela Pecantet Siqueira * 2020
* Mestranda em Sociologia e graduanda em Antropologia pela UFPel. Considera a colagem como uma das técnicas mais democráticas das artes visuais, pois não exige um aprendizado complexo ou o uso de materiais caros. Além disso, acredita que a técnica carrega um potencial de imersão, ressignificação, partilha e assimilação muito grande. E é justamente isso que aproxima a criação de uma colagem digital ao próprio fazer antropológico.
74
CONTRAFLUXO, UM LAR PARA REFUGIADOS
Fotomontagens. Camila Caetano.
Camila Caetano *
TFG .
trabalho final de graduação
* Camila Caetano foi Diretora de Comunicação do Centro Acadêmico de Arquitetura e Urbanismo da Unicamp (CACAU), diretora de Marketing na Associação Atlética Acadêmica Francisco Gonçalves (AAAFrango), participou da organização das Semanas Acadêmicas de Arquitetura e Urbanismo da Unicamp (SAU) nos anos de 2014 e 2015. Graduou-se em Arquitetura e Urbanismo pela UNICAMP em 2019.
Movimentos migratórios são fenômenos sociais que sempre existiram na história, em maior ou menor escala, sendo diversas as razões que norteiam esses deslocamentos. Atualmente, segundo o ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados), vivemos a maior crise humanitária da história: ao final de 2018, cerca de 70 milhões de pessoas foram forçadas a deixar seus locais de origem por diferentes tipos de conflitos, sendo essa uma das razões de migração de maior expressão no momento. Os indivíduos, quando colocados nessa condição de fragilidade, são considerados refugiados, definidos como “pessoas que estão fora de seu país de origem devido a fundados temores de perseguição relacionados a questões de raça, religião, nacionalidade, pertencimento a um grupo social específico ou opinião política e não podem ou não querem valer-se da proteção de seu país.” Segundo a Lei nº 9.474, de 22 de julho de 1997, são também refugiadas as pessoas obrigadas a deixar seu país de nacionalidade devido a grave e generalizada violação de direitos humanos. No Brasil, de acordo com a pesquisa Refúgio em Números - 4ª edição, realizada pelo ACNUR em 2019, entre os anos de 2010 a 2018 houve um aumento de 966 a aproximadamente 80 mil solicitações de refúgio no país. Nesse período, foram reconhecidos um total de 11.231 refugiados de diversas nacionalidades e as solicitações de refúgio em trâmite somam mais de 160 mil. Para um indivíduo adquirir a condição de refugiado no país, é necessária uma solicitação em qualquer Delegacia da Polícia ou autoridade migratória na fronteira, devendo o refugiado solicitar expressamente o refúgio para adquirir a proteção do governo brasileiro. O estrangeiro que solicita refúgio no Brasil não pode ser deportado para fronteira de território onde sua vida ou liberdade estejam ameaçadas e todos os pedidos são decididos pela CONARE. É importante reiterar que a posição de refugiado consiste numa condição temporária perante o governo brasileiro. Desta forma, a solicitação de refúgio pode ou não ser aceita, e o período de espera para sua confirmação
POSTO68
75 pode levar até 5 anos. Após o aceite, a garantia da condição de refugiado tem duração de 6 meses, podendo ser renovada por duas vezes. Após a passagem desse período de 18 meses, os refugiados com situação regular passam a ser considerados imigrantes regularizados, aos quais são conferidos os direitos de posse de carteira de trabalho, garantia de permanência e acesso à rede do SUS. Para além desses tempos de espera, para iniciar esse processo, é necessário que o solicitante já esteja morando no Brasil, demandando da pessoa refugiada, portanto, uma articulação prévia e contínua de moradia e suprimento das necessidades básicas enquanto estas ainda não estão sob responsabilidade do Estado. Dentre as nacionalidades dos refugiados que chegam ao Brasil, a de maior expressão no momento vêm da Venezuela, que enfrenta atualmente o maior movimento migratório da história recente da América Latina. Em Julho de 2019, somavam 3,4 milhões de venezuelanos que deixaram o país, que enfrenta um momento político e socioeconômico complexo, onde a população tem tido dificuldades em obter comida, remédios e serviços essenciais, além das ondas de insegurança e violência. Até dezembro de 2018, foram recebidas mais de 85 mil solicitações de refúgio de venezuelanos no Brasil, sendo 81% apresentadas no estado de Roraima, com o qual a Venezuela faz fronteira. Os venezuelanos têm sido recebidos em algum dos treze abrigos públicos para pessoas de perfil vulnerável atuando no estado, que são conhecidos como Rondons. A operação é conduzida pela união das Forças Armadas Brasileiras e da ACNUR. A legislação brasileira é tida como uma das mais receptivas à refugiados no mundo; ao chegarem ao país, o Estado oficialmente passa a se responsabilizar por sua proteção e integração. Porém, apesar da receptividade, na prática não são providenciadas formas de moradia e muitas vezes essas pessoas acabam tendo como destino a ocupações ou moradias irregulares. Assim, a proposta deste projeto surge como uma alternativa para essas pessoas. Considerando o processo de transição cultural pelo qual os refugiados são submetidos ao chegarem a um novo país, a ideia central do projeto é tornar essa caminhada mais sutil. Porém, a condição de refúgio a qual um indivíduo é submetido parte de um pressuposto de imprevisibilidade. Não há como saber quando, onde e quais os conflitos que os levam a deixar seus países de origem a procura de meios de sobrevivência. Não há como prever quais as culturas de origem ou a dimensão das famílias que pedem por asilo. Assim, o ponto chave do projeto consiste no respeito à diversidade. O programa arquitetônico se desmembra em dois temas principais, à partir um programa voltado para responder à demanda por habitação, usando dos conceitos de habitação flexível difundidos por John Habraken, aliado a um programa de espaço público no térreo, cujo intuito é incentivar a inserção dos refugiados na cidade de Campinas e na cultura brasileira. O terreno selecionado para a implantação localiza-se na Vila Industrial, bairro próximo ao centro da cidade. Desta forma, conta com diversos equipamentos em seu entorno, simplificando o acesso às demandas básicas como escolas, hospitais e mercados. Dada a proximidade ao centro da cidade, a Vila Industrial, que é compreendida como um bairro periférico, tem se tornado alvo da especulação imobiliária. Assim, a seleção também visa manter as características do bairro, que tem usos e perfis de moradores bastante diversificados.
76 A região está próxima de vias responsáveis por importantes conexões com o restante da cidade, como a Avenida João Jorge, e localiza-se nas proximidades do terminal Central, o que simplifica o deslocamento e a procura por trabalho. A altura do gabarito do entorno do terreno viabiliza a verticalização. PROGRAMA DE ESPAÇO PÚBLICO De acordo com informações obtidas junto ao Serviço de Referência aos Imigrantes, Refugiados e Apátridas de Campinas, para além da necessidade de moradia, os refugiados que vão para a cidade de Campinas carecem de espaços coletivos: apesar de procurarem uns aos outros e manterem contato, não existem espaços onde possam se encontrar. Para além disso, é de extrema importância que os refugiados se conectem entre si e com o resto da comunidade, para criarem vínculos e desenvolverem o sentimento de pertencimento ao novo país. Desta forma, o térreo terá um programa de espaço público, respondendo às demandas dos refugiados e da cidade como um todo. A partir do momento em que solicitam refúgio, os refugiados passam a estabelecer contato com o SUAS - Sistema Único de Assistência Social. O acompanhamento continua durante todo o tempo em que permanecem dentro da condição de refúgio. Ainda, os espaços atualmente designados para os serviços sociais voltados para refugiados em Campinas são precários e carecem de investimento. Desta forma, o primeiro programa definido para o térreo foi um Centro de Recepção para os Refugiados, com psicólogos e assistentes sociais, que darão o devido acolhimento aos imigrantes recém chegados. No desenvolvimento de sua teoria de Habitação Flexível, John Habraken foi além da determinação do processo construtivo: ele questiona o papel do arquiteto, como este atua em nossa sociedade. Pensando numa nova organização de cidade, onde as habitações seguem a sua proposta de Open Building - com uma estrutura fixa e preenchimento livre - os habitantes participam mais efetivamente no processo de desenvolvimento da habitação. Assim, o papel do arquiteto sai dos moldes convencionais de produção, que antecedem o uso efetivo do espaço, e a interação passa a ser participativa, praticada no decorrer do tempo, reunindo as demandas da família e traduzindo-as naquele espaço pré-estabelecido. Seguindo essa mesma proposta colocada por Habraken, para além dos serviços de assistência, será também considerada uma sala para um arquiteto, que se responsabilizará por traduzir as necessidades de cada família dentro do espaço da habitação. Os refugiados podem pertencer à qualquer nacionalidade e, portanto, possuem diferentes perfis culturais. Para promover trocas entre essas culturas, o projeto contará com espaço de divulgação artística, com um teatro de arena e um espaço de exposições e um refeitório coletivo, voltado para os moradores. Para além da conexão cultural através do compartilhamento de comidas típicas, a ideia do refeitório coletivo também surge como uma proposta de promover o contato, uma vez que o ato de comer coletivamente é uma forma de gerar interação social, como uma possibilidade do indivíduo compartilhar seu cotidiano. Desta forma, a ideia do refeitório é que seja gerido pelos próprios moradores, para que possam realizar refeições coletivas, com temáticas culturais diferentes e que possam trocar experiências. POSTO68
espaço maker 67,6m²
playground sanitário 3,7m²
despensa 3,36m²
lo colabo
reservatório de água
26,2
espaço de exposições
b
sa
teatro de arena
café
35m²
sala coletiva 22,70m²
re
57,90m²
vagas para carros
Aven
copa para funcionários 11,23m²
ida G
0
5
ener
10
sanitários 7,4m²
al C
arne
20
iro
50
77 Considerando que os refugiados chegam ao país sem muitos pertences, o projeto conta com um espaço maker para que, com o uso de tecnologias, os habitantes possam produzir seus próprios móveis: existem diversas plataformas online que disponibilizam peças de mobiliário para download. Assim, o espaço contará com uma CNC, uma cortadora que realizará o corte das peças, e uma pequena marcenaria, para a realização da montagem. Como o perfil dos refugiados é muito variável, eles podem possuir qualquer profissão e desempenhar diversas atividades. Para que possam compartilhar o conhecimento, ou até mesmo continuar obtendo uma renda fixa a partir de seu trabalho, o projeto contará com salas para cursos. Haverá também lojas colaborativas, um modelo de negócios que fundamenta-se nos princípios de economia colaborativa, através de um espaço físico único onde as pessoas possam comercializar seus produtos sem terem que investir em um ponto comercial fixo próprio. O projeto contará também com um totem para lembranças na principal fachada, um café e espaço para feiras. PROGRAMA HABITACIONAL
Rua S
ete d
a’
e Se
temb
ro entrada para caminhões
armazenamento de painéis 35m²
despensa
refeitório 104,76m²
6,05m²
cozinha coletiva
35,25m²
hall de entrada
16,00m²
sanitários 40,90m²
sala para cursos 34,31m²
sala para cursos 34,31m²
reservatório de água auditório 46,78m²
Para o programa habitacional, a proposta do projeto é proporcionar um modelo de habitação que seja capaz de receber diferentes culturas sob diferentes circunstâncias familiares. Como anteriormente mencionado, após o aceite da solicitação de refúgio, o solicitante tem direito a mais duas solicitações, tendo a duração de 6 meses para cada uma delas. Desta forma, a ideia é que a permanência de cada família no projeto acompanhe esse processo, podendo ter a duração mínima de 6 meses e a duração máxima de 18 meses, até a regularização da condição do refugiado e sua inserção completa na cidade. Porém, de acordo com o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), projetos habitacionais que respondam somente à um grupo são de caráter excludente. Desta forma, para além dos refugiados, o projeto também receberá famílias brasileiras, respondendo à demanda por habitação social, que no projeto se dará em forma de locação social, onde a propriedade do imóvel é do poder público, e os moradores pagam um valor de “aluguel” de acordo com sua renda, se propondo a beneficiar principalmente famílias de baixa renda, sem condições para a aquisição ou manutenção de sistemas de financiamento. Em resumo:
oja orativa
25m²
b’
anitário 3,7m²
playground
despensa 3,36m²
sala sala psicólogo assistente 12,70m² social
ecepção
7,65m² sala
assistente social
35m²
10,60m²
sala para atendimento familiar 11,73m² sanitários 7,4m²
sala do arquiteto 9,8m²
vagas para carros
a’
Implantação. Elaborada pela autora.
Elaborado pela autora.
reservatório de água
Visando responder à diversidade de culturas, de formatos de família e tempos de permanência, foram utilizados os conceitos de habitação flexível para o desenvolvimento do projeto, com um sistema onde os parâmetros construtivos foram desenvolvidos de forma independentes entre si e com planta livre. Habitação flexível trata-se de um modelo de habitação projetado de forma a prever alterações desde sua concepção, sendo elas de caráter social - em termos de uso e de perfil dos moradores - e construtivo. Um dos pioneiros na discussão da habitação flexível, o arquiteto holandês John
78
Corte aa’
Habraken desenvolveu a proposta da Teoria dos Suportes para se opor ao setor habitacional na Holanda nos anos 60, e propor ideias quanto à participação do usuário no projeto. Um Suporte trata-se do sistema estrutural do edifício, pensado distintamente do interior, que se refere ao design da habitação e sua organização espacial. Desta forma, é capaz de promover o empoderamento do habitante, que passa a desempenhar o papel de protagonista nas escolhas quanto à conformação da casa durante o tempo em que habitar aquele espaço, podendo realizar grandes mudanças à baixos custos. Ainda, a noção de modificação do ambiente suscita o viés da adaptabilidade da residência a qualquer perfil de habitante, independente de quais sejam suas necessidades. São diversas as formas de aplicar a flexibilidade num projeto de habitação, que devem responder às demandas do usuário à quem ele se propõe. Para este projeto, foi escolhido o modelo de produção de habitação flexível entendido como soft/hard, use/form, sendo o sistema estrutural o elemento fixo, e o preenchimento mutável, que permitirá alterações rápidas na organização das habitações. Para o desenvolvimento das habitações em si, uma vez que o projeto visa abraçar diferentes culturas, o primeiro passo foi refletir sobre o significado do ato de morar. A organização de uma habitação não só é capaz de definir e interferir nas relações sociais como também as reflete. Segundo Amos Rapoport, em seu livro House, Form and Culture (1969), o espaço da casa é a definição do ideal de vida das pessoas, de aspectos tanto físicos quanto sociais, que têm diferentes graus de impacto em cada sociedade e, desta forma, são a expressão dos valores de cada cultura e o que as tornam diferentes entre si. Para determinar as diretrizes do projeto, através de uma análise das casas em outras culturas, foram realizadas análises dos modos de morar das nacionalidades mais presentes no Brasil: sírios e venezuelanos. A cultura muçulmana acredita em privacidade máxima, desta forma, as fachadas externas possuem poucas e pequenas aberturas, e os cômodos organizamse lateralmente, dispostos ao redor de um pátio, para onde se voltam as maiores aberturas. As habitações venezuelanas se assemelham muito à organização das casas brasileiras. Essa leitura permitiu a compreensão de que um elemento comum à essas culturas (e à diversas outras) consiste na presença de um pátio ou quintal, que aparece como um elemento chave para a elaboração do projeto. O módulo habitacional foi definido através da articulação das medidas
POSTO68
Imagens elaboradas pela autora.
Corte bb’
Elaborados pela autora.
79
de diferentes mobiliários por tentativa e erro. Como conclusão, a medida de grid que mais se adequava às dimensões dos mobiliários e circulações, de forma que o usuário pudesse utilizar de maneira adequada os espaços, sem excessos, foi a de 1,25x1,25m, cuja aplicabilidade foi testada para cada cômodo da casa. Respeitando as dimensões do grid, chegou-se a uma proposta de modulação para a habitação, capaz de abrigar diferentes composições familiares. Como descrito acima, a ideia de pátio ou quintal aparece na organização espacial das habitações de diferentes culturas, assim, para além das sugestões de áreas dos cômodos, considerou-se uma área de espaço “livre” a ser utilizado como sacada ou varanda, podendo ainda ser apropriada enquanto espaço interno da habitação, de acordo com as especificidades de cada família. Desta forma, foi possível estabelecer uma sugestão de organização de um módulo de apartamento, cuja configuração abriga de uma a duas pessoas. A união de dois módulos é capaz de abrigar de 3 a 5 pessoas. A partir da definição do módulo, foi possível projetar o sistema estrutural. Quanto à materialidade, foram escolhidos a madeira e o concreto. A madeira trata-se de um material leve, que viabiliza a flexibilidade por sua adaptabilidade, sendo utilizada nos espaços passíveis de serem modificados com estruturas em MLCC e em CLT, enquanto o concreto aparece trazendo solidez para os espaços fixos presentes no térreo, marcando visualmente a distinção de usos nos pavimentos, e também no eixos de circulação vertical, funcionando como ponto de fixação e travamento para a estrutura em madeira. Para garantir maior flexibilidade, pensou-se na proposta de banheiro pronto. Trata-se um sistema pré-fabricado, onde os banheiros são produzidos de forma independente em linha de produção industrial, chegando prontos à obra, sendo necessário somente posicioná-los na área designada e conectálos às redes de água, esgoto e energia. Além do banheiro, pensou-se no uso da mesma tecnologia aplicada às demais áreas molhadas. Assim, o kit de áreas molhadas é composto por um banheiro, uma cozinha e uma lavanderia, cujo material é o gesso acartonado, e pode ser removido ou inserido no módulo habitacional, de acordo com o uso proposto. Nenhum mobiliário é fixo, o kit compõe-se somente de piso, onde estão pré determinados os pontos de esgotamento, duas paredes por onde passam as redes de abastecimento e os pontos de esgoto das pias, fechados em um pequeno shaft. A ventilação do banheiro se dá através do forro, e o kit se conecta ao sistema estrutural lateralmente, através de uma parede estrutural presente no módulo, que também desempenha a função de parede hidráulica, levando as redes de abastecimento e esgotamento para os andares superiores.
80 O sistema de fechamento também foi pensado de forma independente dos demais itens. Foi desenvolvida uma organização de grid secundária às dimensões do sistema estrutural, de forma que estas se encaixam nos vãos entre os pilares. Assim, serão utilizadas placas modulares em Painel Wall, que possui o miolo de madeira laminada ou sarrafeada, com as faces cobertas por lâminas de madeira e com acabamento externo em placas cimentícias em CRFS (Cimento Reforçado com Fio Sintético) prensadas. São produzidas industrialmente, através da prensagem especial de seus componentes à altas temperaturas, sendo reduzidas a 7 opções diferentes de placas fechadas ou com aberturas e três opções de painéis de junção de placas. As conexões acontecem por meio de uma pequena extensão lateral, permitindo que essas sejam articuladas entre si horizontal e verticalmente, nas mais diversas composições, possibilitando diversos arranjos. O kit de áreas molhadas foi projetado dentro do mesmo grid, com apenas duas paredes fixas, por onde circula abastecimento de água. Assim, o fechamento externo do kit de áreas molhadas também fica a critério do usuário, podendo ser incorporado aos demais cômodos somente retirando o mobiliário. As migrações de refugiados têm cada vez mais se apresentado como uma questão de grande relevância a todas as nações, principalmente no momento atual. Muitas delas não estão preparadas para responder a essas demandas e, em decorrência disso, somadas a todas as dores e dificuldades pelas quais os refugiados passam, acrescentam-se a xenofobia e o racismo. É imprescindível que sejam criadas formas adequadas de recebê-los; responder dignamente às demandas colocadas ao longo desse projeto, sendo uma questão urgente para a sociedade contemporânea. A junção dos elementos construtivos, associados à implantação do projeto, permitiu três possíveis formas de arranjo das edificações, que são:
POSTO68
TERRA-ÁGUA: Revelar a identidade de Puerto Cortés,
81
Honduras Andrea M. Cruz Mejía
TGi .
trabalho de graduação INTEGRADO
Natural de Honduras, Andrea Cruz é Arquiteta e Urbanista pelo Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Integrou a comissão organizadora do 6° Seminário DOCOMOMO SP. Realizou estágio na Prefeitura de Araraquara, integrando a equipe do projeto “Reforma do Patrimônio Histórico no Centro de Araraquara: Casa da Cultura Luiz Antônio Martinez Corrêa”. Colabora com o grupo PExURB, que tem por enfoque debater e construir ações para transformação do território por meio da prática universitária interdisciplinar e multiescalar. Seu objetivo é estabelecer relações entre Brasil e Honduras.
Na atualidade, podemos observar como as transformações urbanas da cidade contemporânea são de extrema importância para o entendimento dos seus problemas. A cidade que eu escolhi para fazer meu trabalho final de graduação foi Puerto Cortés, localizada em Honduras. Sou residente de Honduras e vim estudar arquitetura e urbanismo no Brasil na Universidade de São Paulo. Minha vontade inicial era de explorar as trocas de conhecimentos entre países latino americanos, o que me levou a tomar a decisão de fazer meu projeto final em uma cidade do meu país natal. Foi uma decisão desafiadora para mim, porque meu projeto seria focado em uma cultura que é minha, mas ao mesmo tempo minha formação acadêmica foi focada em outra. Primeiramente, tive uma grande vontade de trabalhar em uma cidade portuária, para entender as transformações que esses territórios atravessam. Por isso, escolhi Puerto Cortés, a cidade portuária mais importante de Honduras e o porto mais importante da América Central. Utilizando os termos “terra e água” propus uma intervenção em um espaço onde existem áreas de preservação, mar, indústria e moradia. O objetivo desta intervenção foi criar um diálogo entre estes por meio de sistemas de espaços livres,que oferecem diferentes atividades de maneira a, também, valorizar a paisagem da cidade. Conforme comecei meu levantamento, descobri a falta de dados sobre a história urbana desta cidade, o que chamou a minha atenção, visto a importância da cidade para Honduras. Embora a inauguração do porto trouxe um grande impacto para o desenvolvimento desta cidade e, consequentemente de Honduras, na prefeitura de Puerto Cortés não existiam mapas que mostrassem as mudanças morfológicas trazidas com a implantação do porto. Contudo, consegui as informações e mapas necessários através de universidades dos Estados Unidos, uma vez que os mapas disponíveis tinham sido elaborados por empresas estadunidenses. Isso me fez refletir sobre o fenômeno da descolonização das cidades latino americanas. Entendo este termo como uma perspectiva que revela situações tanto institucionais como culturais que são atingidas pelos mecanismos de poder e subordinação de países mais desenvolvidos sobre os menos desenvolvidos. Ao mesmo tempo, é difícil ignorar o fato de que Honduras recebeu ajuda de um país que queria certo controle da área para benefício próprio.
82 Por muito anos, certos estadunidenses moravam em Honduras e traziam a cultura deles para o país. Desse modo, a descolonização torna-se obscura, pois não se trata de romper com a lógica político-material do sujeito colonizado, mas também de romper um pensamento que se instaura em todas as práticas culturais do sujeito enquanto tal. Este porto foi instalado nessa área pela demanda de uma conexão mais direta e mais fácil entre Honduras e Estados Unidos. Naquela época, essa península não tinha sido povoada, já que a maior parte do solo era de característica pantanosa, o que dificulta a construção, mas com mudanças climáticas a quantidade de pântano diminuiu. Como resultado, inicialmente, a população ocupou a parte sul da cidade, a região onde ocorreu a construção do porto, com o propósito de prover facilidades para comércio e indústria nacionais e internacionais. Consequentemente, houve um grande crescimento populacional que resultou em uma expansão desordenada, onde se criaram vários vazios urbanos. A parte norte da Península foi deixada de lado pela característica do solo, o que resultou uma quebra da malha na área onde, hoje em dia, se localizam vários assentamentos informais. Com a falta de um plano diretor mais focado, tanto no uso de solo, quanto na preservação ambiental, as pessoas se instalaram em áreas de preservação da zona do norte ou à beira mar. O maior problema disso é a grande vulnerabilidade trazida para os cidadãos que moram nessa região, já que por sua localização geográfica são afetados por vários desastres naturais. No século XX, a atividade econômica internacional de Honduras aumentou consideravelmente. Entre 1913 e 1929, suas exportações agrícolas aumentaram nas vendas de banana para os Estados Unidos. Este crescimento das exportações de bananas foi apoiado por investimentos em infraestrutura para Honduras, pelas empresas bananeiras. Este investimento foi protegido pelo governo dos Estados Unidos, sempre que essas empresas se sentissem ameaçadas. Puerto Cortés também foi o ponto de partida para a Estrada de Ferro Nacional de Honduras (ferrovia interoceânica), cuja construção se iniciou em 1869. Nos anos 1920, começaram a ser criadas as primeiras vias estruturais. Nos anos 1930, foram criadas as vias que conectam a cidade com os outros departamentos.
Mapa de localização. Elaborado pela autora.
Entre os primeiros levantamentos que fiz sobre a cidade estavam o de cheios e vazios e, também, o das vias principais da cidade, para poder entender como elas estavam estruturadas e qual foi a lógica seguida ao decorrer dos anos. Observando o levantamento de cheios e vazios foi possível observar o quanto as consequências atuais vividas na península estão ligadas a esse rápido crescimento e a ausência de um zoneamento desde o começo da construção da linha ferroviária e, depois, com a instalação do porto. Ao longo das décadas de 1970 e 1980 presenciamos nas cidades latinoamericanas a emergência de lutas contra os mecanismos de expropriação urbana. Alguns avanços foram obtidos em termos de extensão do direito à cidade aos segmentos populares. Alguns desses avanços refletem as preocupações dos organismos internacionais com os efeitos regressivos da política econômica neoliberal. Nos anos 1970, em Puerto Cortés surgiu um interesse em regular o crescimento urbano do município, devido a grande migração de pessoas relacionada à oferta de trabalho gerada pelo porto. Devido à influência da exportação da banana na época, Puerto Cortés começa a se enquadrar em uma malha regular ortogonal. O primeiro instrumento de
POSTO68
Mapa de Puerto Cortés.
83 desenvolvimento urbano foi denominado “Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano de Puerto Cortés”. Posteriormente, foi aprovado o “Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano de Puerto Cortés”, validado em 1988. Estes planos tiveram como objetivo, regular o crescimento de população, que nesse momento era de 3,8% que se deu pela demanda de trabalho oferecida pela Empresa Portuária. Outra característica da península de Puerto Cortés, é o fato de estar rodeada por três diferentes corpos de água - o mar, os rios e uma grande lagoa. Embora existam leis de preservação destes corpos d’água, dificilmente estas são cumpridas, resultando em uma conexão com a cidade muito pouco explorada. Sendo assim, a água é vista como um problema e não como um potencial, o que me levou a explorar a paisagem urbana, assim como os problemas de drenagem. Há um bosque na península e sua existência foi importante para compreender os vazios urbanos existentes, também percebendo que a área norte tem um solo mais frágil que o resto da península. Há uma grande área de vegetação não só no bosque mas também nos arredores. Do mesmo modo, no setor norte da península, as inclinações do relevo são mínimas, de modo que sua topografia é considerada plana. A planificação de espaços criados perto destas áreas exige um estudo prévio para saber o tipo de risco que existem nessas zonas que estão no nível do mar. Um dos enfoques do trabalho foi reforçar a identidade local, por meio do desenho urbano que busca utilizar os instrumentos que a cidade oferece. Dentro dessa busca da identidade local, é possível citar a etnia dos Gariufas, cuja cultura é considerada patrimônio imaterial do país. Eles se localizam no norte de Puerto Cortés e as terras ao redor dessas comunidades são declaradas como Áreas de Reserva Natural Municipal. Este grupo está na área há aproximadamente 200 anos; eles estão envolvidos na pesca, agricultura e principalmente na criação de gado. A minha impressão, na primeira visita de campo, foi como se existisse uma certa barreira invisível entre os Garifunas e os outros cidadãos da cidade. É como se eles estivessem à parte. Por isso, para mim foi muito importante trazer sua cultura em meu projeto. Não de maneira a colocar eles como um objeto da cidade, mas sim para que possam perpetuar sua cultura e, ao mesmo tempo, se sentirem parte da cidade. Sei que isso é muito mais complexo do que parece, mas tentar realizar uma aproximação entre estes dois agentes era importante. Além disso, não podia deixar de notar o fato de que também deveria lidar com a questão do turismo. Consequentemente, não queria que a cultura garifunas só fosse vista como objeto para ser consumido tanto pelos hondurenhos como pelos turistas, queria fazer algum tipo de intervenção na qual eles pudessem trazer sua própria cultura sem sentir algum tipo de invasão. Para isso, eles têm que se sentir pertencentes à cidade e que não implique na perda da sua identidade original em troca da adoção de outra identidade. Atualmente, o colonialismo e a opressão continuam caracterizando Honduras. A cultura Garifuna tem sofrido, já que sua cultura e seu local de habitação não são respeitados, sentindo uma grande imposição por parte dos outros hondurenhos. A língua dos Garifuna é uma das poucas línguas étnicas ainda existentes no país. Nesta perspectiva, embora o povo Garifuna tenha passado pelo processo de independência, a sua economia é afetada devido às oportunidades de emprego se concentrarem no centro da cidade. Além disso, existem projetos previstos como: Regiões Especiais de Desenvolvimento RED (cidades modelo) que destruirão imediatamente a vida das comunidades Garífunas e Projetos de Barragens Hidrelétricas e privatização de águas e rios
84 em todas as nossas cidades. É necessário criar dentro de um plano diretor estratégias que garantam que a etnia Garifuna tenha os mesmos direitos que os outros cidadãos hondurenhos. Por isso, os Garifunas lutam por isso até os dias de hoje. Eles são obrigados a deixar sua cultura da etnia para poderem participar da cidade, sendo coercidos a deixar de lado a sua identidade para poder permanecer. Consequentemente, a descolonização nesse caso é uma aposta necessária, mas deve ser em todos os níveis, não apenas no campo político e econômico, porque senão as questões de descolonização tornam-se apenas um mero comentário para obter benefícios para determinados setores que detêm o poder ou para determinados grupos. O perímetro urbano é representado por aproximadamente 28,7% do município, enquanto a zona rural compreende 69,7% do município. Em 2012, foi criado o “Ordenamento Territorial” que tem como objetivo estabelecer um instrumento de planejamento abrangente para orientar o investimento público e privado, com objetivo de promover o desenvolvimento sustentável do município com uma perspectiva de participação da comunidade, com base numa ordenação do território que permite o uso de recursos naturais. O crescimento da cidade evidencia a necessidade de expandir o perímetro urbano a fim de promover um desenvolvimento urbano, com a serviços e equipamentos básicos necessário para melhorar a qualidade de vida da população que habitam. Puerto Cortés possui vários espaços abertos com vegetação relativamente abundante, especialmente na área de reserva da península, nas zonas úmidas à leste da Laguna de Alvarado, no manguezal na parte leste da mesma lagoa e ao longo do canal. Consequentemente, qualquer intervenção nestes lugares tem que respeitar as leis existentes no “Ordenamento Territorial”. Em Puerto Cortés poucos espaços públicos livres são qualificados, alguns dos poucos exemplos são a Praça Central, o Estádio e as praias ao sul. Nestes lugares se concentram a maior parte das pessoas nos seus momentos de lazer. Anteriormente, mencionei que me interessa falar sobre a forte relação entre o urbano e a água. No caso das praias, as do norte não são tão acessíveis quanto as que se localizam a sul. O canal e a lagoa, também não apresentam as melhores condições de assentamentos, já que os que se localizam próximos a estes corpos d’água não possuem recuo, resultando em problemas tanto para o corpo d’água, por causa da poluição, quanto para as pessoas, já que elas sofrem com enchentes em época de chuva. A cidade apresenta um grande potencial de diálogo entre água e terra, mas devido a essa situação, este é pouco explorado e muitas vezes acaba sendo ignorado. É necessário propor diretrizes que evitem que a área portuária continue atrapalhando o contato da população com a água. É necessário fazer uma proposta urbana em que a área de contato do cidadão com a água seja permitida.
Mapa de análise FOFA. Elaborado pela autora.
Puerto Cortés tem sido afetada em diferentes momentos da história por fenômenos naturais, que devem-se a vários fatores ambientais, tanto pela posição geográfica, quanto pela baixa altitude. Ciclones ou furacões são os fenômenos que mais causaram danos ao município. Juntos dos ciclones, é comum ocorrer também chuvas torrenciais, que produzem inundações que causam danos que permanecem estagnados por muito tempo. Sintetizei os fatores tanto de risco de desastres naturais quanto de conflitos de uso de solo, como também a relação com a água. Utilizei a metodologia de SWOT (Strenghts, Weaknesses, Opportunities e Threats) também POSTO68
Mapa de de cheios e vazios. Elaborado pela autora.
85 conhecida como análise F.O.F.A em português. Esta metodologia é uma ferramenta de planejamento estratégico na gestão de projetos, usada para analisar cenários e basear a tomada de decisões. Trabalhei com as palavras: potencialidade, ponto de defesa, vulnerabilidade e debilidade - estas características foram meu ponto de início para conseguir criar diretrizes para a região. Escolhi pontos estratégicos para analisar eles de modo que pudesse entender a real necessidade de cada destes pontos. DEFINIÇÃO DE EIXOS DE ESTRUTURAÇÃO E TRANSFORMAÇÃO URBANA Estes eixos são os que ajudaram a propor um projeto de estruturação urbana da cidade. Para que possam ocorrer transformações deverá ocorrer mudanças no uso e ocupação do solo, combatendo a desigualdade socioespacial através de propostas de adensamento, densidade e remoções e que proponha novos padrões de urbanização na área da Península, que será mais propícia para abrigar os usos e atividades urbanos. A área do norte da cidade caracteriza-se pela existência de elevados índices de vulnerabilidade social, baixos índices de desenvolvimento humano e é ocupada por uma população predominantemente de baixa renda que habita assentamentos precários e irregulares, que apresentam precariedades territoriais e irregularidades fundiárias, além de riscos geológicos e de inundações, causadas tanto pela falta de drenagem como também pela localização geográfica. Conjuntamente houve um enfoque nos grandes déficits na oferta de serviços, equipamentos e infraestruturas urbanas nessas áreas. Propus algumas vias secundárias para buscar melhorar a condição da mobilidade urbana através da integração entre os sistemas de transporte coletivo, viário, cicloviário, hidroviário e de circulação de pedestres, dotando-o de condições adequadas de acessibilidade universal e com sinalizações recomendadas. Remoções e Adensamento As remoções de moradia sugeridas buscam reduzir a vulnerabilidade da população ribeirinha, visto que esta se encontra próxima às de áreas da costa da lagoa, buscando a preservação desta área, já que ela se encontra afetada por problemas de poluição devido aos resíduos das residências. Igualmente, existe um enfoque importante em retirar as habitações das áreas de preservação, em razão de serem solos muito vulneráveis. Da mesma forma, tenta-se retirar o uso industrial da zona próxima destes corpos d’água, não só para evitar a poluição, mas também para reforçar a conexão cidade e água. Os lugares que foram escolhidos para o adensamento habitacional são atualmente vazios existentes na cidade, onde está previsto moradia, equipamentos e espaços públicos. Alguns destes vazios são vistos como áreas abandonadas e isso é resultado da falta de comunicação entre área de preservação e a cidade. Mobilidade Urbana - Novos Caminhos Trabalha-se com a malha ortogonal já existente. As ruas principais são reforçadas, contudo, ao mesmo tempo se reforçam também as ruas como secundárias, para poder dar apoio e assim aliviar as ruas principais. Estas ruas terão outro tipo de uso de solo no seu entorno para poder ganhar mais força no desenho urbano como na ocupação de solo. Do mesmo modo, todas serão a chave para a integração da península como um todo. Propõe-se
86 uma ciclovia, que cruza toda a cidade, de maneira a complementar um dos meios de transporte mais usados na cidade, e também se prevê uma maior visibilidade ao pedestre. Sistema de Espaço Livres/ Equipamentos Busca-se criar pequenos espaços verdes dentro da cidade, entre lotes, de maneira a criar um sistema de espaços livres mais consolidado. Este tipo de espaço é conhecido como Pocket Parks, com objetivo de ser lugares compactos e implantados em lotes urbanos inutilizados ou terrenos baldios. Ao mesmo tempo, servem como apoio para a conexão entre dois parque urbanos, que irão conter equipamentos mais voltados para cultura e educação. O espaço público tem que assumir um papel de conexão entre as pessoas e a cidade, oferecendo ao pedestre e transformando áreas livres públicas com a criação de espaços verdes temporários, como também a importância da implantação de ciclovias. Resultando, então, em uma proposta que com o tempo vá dando para a cidade um ambiente mais adequado para o clima. Para que estas áreas livres possam ser utilizadas, planeja-se um acréscimo de equipamentos tanto de educação, quanto de cultura, saúde, entre outros na zona norte da Península. DEFINIÇÃO REDE HÍDRICA E AMBIENTAL REDUÇÃO DE VULNERABILIDADE E RECUPERAÇÃO AMBIENTAL A área de preservação tem como características áreas úmidas. São ecossistemas naturais e artificiais permanentemente ou temporariamente inundados, seja por água doce, salobra ou salina, estagnada ou corrente e que incluem regiões costeiras ou marinhas. Essas áreas podem estar parcial ou totalmente cobertas por águas rasas. São ambientes ricos em biodiversidade e com alta produtividade, que exportam grandes quantidades de nutrientes do meio marinho. Eles também oferecem serviços ambientais como erosão costeira e controle de inundações, além da produção de recursos pesqueiros, atualmente explorada como uma atração turística. A área de preservação, que se localiza dentro da península, tem perdido sua biodiversidade pelo uso agrícola e também pela implantação de moradia nas regiões de preservação, hoje em dia elas parecem ser áreas de abandono. Por meio destas diretrizes planeja-se dar um maior valor para área, também colocando um uso diferente para que seja um lugar frequentado não só pelos turistas mas também pelo moradores, de maneira que eles vejam a importância do cuidado ao meio ambiente. A água de superfície é um recurso valioso e isso deve se refletir na maneira como esta é gerenciada e usada no ambiente construído. Pode adicionar e aumentar a biodiversidade, beleza, tranquilidade e estética natural de edifícios, lugares e paisagens e pode ajudar a torná-los mais resistentes às mudanças climáticas. Pretende-se diminuir o risco de inundação e o risco de escoamento causado pela poluição. Isso é obtido através da colheita, infiltração, lentidão, armazenamento, transporte e tratamento de escoamento no local e, sempre que possível, na superfície, em vez de subterrâneo. Em cidades menos desenvolvidas é muito importante utilizar soluções mais dentro do orçamento da cidade para garantir sua construção. Implantar drenagem na superfície é mais barato e melhor para o meio ambiente, que uma drenagem subterrânea. Ao mesmo tempo é uma forma de tornar a água um elemento importante no cotidiano, pela razão
POSTO68
Diagramas de diretrizes. Elaborados pela autora.
87 que começa a ser um objeto muito mais visível e tangível, que constrói um ambiente diverso e, ao mesmo tempo, causa uma transformação no lugar dependendo do desenho urbano e uso do solo. Ao ver essa grande potencialidade que a cidade possui com relação à água, propus a criação de uma “Carta D´Água”, para Puerto Cortés, um mapa hídrico com diretrizes, com o objetivo de criar uma maior interação entre a cidade e a água, trabalhando principalmente com soluções de drenagem. A intenção dos sistemas de drenagem sustentáveis pretende maximizar os benefícios e minimizar os impactos negativos do escoamento de águas superficiais. Estes sistemas também lidam com chuvas fortes, uma característica forte de Puerto Cortés (são os meses de maio a julho e, também, de dezembro a janeiro), como também trazem boas respostas para as mudanças climáticas, ao mesmo tempo que lida também com o futuro crescimento da cidade. Uma forma de adaptação às mudanças climáticas pode ser através da água e o seu desenvolvimento sustentável. No momento que são criados estes espaços com água, se dá um potencial para criação de resiliência que contribui diretamente com o desenvolvimento da cidade. São algumas ideias de drenagem que podem ser utilizadas, como por exemplo, criar lagoas de retenção e um canal de drenagem conectado a ela, é uma forma de mitigar as inundações nessa área. Propõe-se que o canal tenha uma aparência mais natural - exatamente uma estratégia para criar um contato com a comunidade. Responder aos desafios dos impactos das mudanças climáticas sobre a água exige estratégias de adaptação da necessidade de cada zona tanto dentro da cidade como na escala nacional. Além disso, auxilia nos objetivos de restaurar ecossistemas e reduzir vulnerabilidade nessa zona. Contudo, estas ações sempre precisam de uma gestão contínua, pelo qual é importante adicionar este ponto de “drenagem sustentável” nos objetivos de desenvolvimento de Puerto Cortés. Observando os dados sobre o crescimento da cidade nos últimos anos, pode-se notar que existe uma carência na questão de drenagem,sofrendo de muita vulnerabilidade. Também busca-se usar estes sistemas pela facilidade de se aproximar à realidade da cidade, ou seja, ao tentar utilizar materiais que já existem na cidade, utilizam-se menos recursos e menos energia no momento de sua instalação em comparação aos sistemas de drenagem tradicionais, usando vegetação junto pode ajudar a deixar melhor o seu uso. O conceito de sistema de drenagem, engloba do mesmo modo a importância da paisagem urbana. A paisagem abrange a totalidade de todo o espaço externo, seja urbano ou rural. Considerando a identidade e as potencialidades da paisagem, existem formas que podem adicionar elementos a estas paisagens que permitem dar um certo valor naquilo que é visto em segundo plano, mas que tem uma importância grande para a identidade da cidade. Dependendo da escala da intervenção de um sistema de drenagem de um lugar, pode ser simples ou complexo no desenho da paisagem. Deve existir uma grande avaliação do valor das árvores ou habitats existentes para retenção e proteção em todo momento da intervenção. Foquei na zona litoral do norte como resposta aos problemas apresentados anteriormente pelo levantamento feito na cidade. Nesta área se manifesta mais notoriamente a relação de cidade-água. Quando me refero a essa região, busco compreender também a questão social, em outras palavras, também busco olhar para a necessidades dos cidadãos. O termo
Diagramas de drenagem. Elaborados pela autora.
88 água, interpreto ele como a paisagem que caracteriza Puerto Cortés, uma península totalmente banhada pela água. Assim como, é uma cidade marcada por questões de desigualdades sociais devido à falta de um uso do solo definido na cidade. Isso não quer dizer que o elemento água não possa trazer um desenho urbano à cidade que possa ajudar a criar espaços para todos os agentes que se encontram nessa cidades, sendo eles turistas e cidadãos. Meus objetivos gerais são: a criação de um novo canal de drenagem - como as propostas pela Carta d´Água que mencionei antes -, deter o crescimento industrial do Porto, e recuperar as áreas verdes - vista a potencialidade de transformar essas áreas em parques urbanos. Nos mapas a seguir apresento algumas diretrizes gerais:
Mapas de diretrizes. Elaborados pela autora.
Cada parque tem um uso diferente devido ao tipo de solo e também pela quantidade de vegetação. Busca-se utilizar os mesmos materiais para construção de mobiliário e de piso para os dois parques, buscando harmonia no projeto. Os materiais são: madeira e pedra (encontradas na cidade) e concreto. A vegetação utilizada será local e será proposta a valorização na paisagem. PARQUE MAREJAL O parque possui um desenho regular, dado aos caminhos já existentes que foram utilizados para demarcação dos fluxos principais. Hoje em dia, esta área tem um uso de solo voltado para o desenvolvimento turístico, pelo qual foi importante propor espaços para áreas turísticas mas, além disso, se propõem também espaços com usos que atendam a necessidade dos cidadãos locais. Implanta-se uma lagoa feita para retenção de água que está ligada com o canal de drenagem projetado, que está conectada ao mar por meio de “caminhos de água”, que também são um tipo de drenagem mais natural. Existe uma passagem de madeira por cima da lagoa de retenção de 8 metros de largura. Onde liga o interior do parque com a cidade, tendo esse contato imediato entre água e terra. Onde as pessoas possam tanto usar este deck como passagem mas também como um lugar de estar. Esta Esquema Parque Marejal. Elaborado pela autora.
POSTO68
89 forma de construção foi inspirada pelo sistema construtivos palafitas que se utiliza muito na cidade. PARQUE DUNNA O programa desenvolvido no parque é um programa diferente. São oferecidas trilhas, assim como também espaços de descanso e apreciação da natureza. Os caminhos são mais orgânicos, com o objetivo de deixar o lugar mais natural possível. A rua 8, que está marcada no mapa, é um eixo importante dentro da cidade, dando continuidade a ela até dentro do parque, fazendo com que ela termine próxima do mar. As passagens elevadas de madeira seguem a mesma lógica do Parque Marejal, usando como referência as construções em palafita. Esta estrutura dentro do parque conecta duas paisagens existentes na cidade, o porto e o mar. Esse eixo da rua 8, termina com o teatro de arena, que garante uma vista panorâmica da paisagem. Uma característica forte é que devido ao solo pantanoso, a relação terra e água é constante, gerando um contato não tão controlado como do canal com a lagoa. Um lugar caracterizado pelo alagamento, um lugar de mitigação. Ele representa para a cidade um lugar em que se dialoga a área de preservação da natureza, onde a cidade edificada não é vista como um lugar de barreira. O nome dele vem do dialeto Garifuna, já que é um parque que está perto de onde eles habitam. No qual proponho lugares onde eles possam expor sua cultura, se expressar na cidade e onde, também, haja um sentimento de pertencimento. Como principal diretriz, proponho a criação de um museu para que a cultura deles seja exposta e apreendida pelo visitante. Dentro deste parque buscamse iniciativas de fazer esse museu, porém de uma forma menos tradicional e mais conectada à sua cultura. Ele será constituído por vários quiosques, utilizando o sistema construtivo comumente usado pelos garifunas (mostrado na imagem do lado), onde estarão expostas sua cultura, comidas, dialeto, etc. O objetivo é que eles administrem esses lugares, apropriando-se destes da maneira que eles se sintam à vontade, de forma a mostrar sua cultura para o mundo. Esta é uma das principais diretrizes para se criar uma conexão cultural entre eles, a população de Puerto Cortés e os turistas.
Esquema Parque Dunna. Elaborado pela autora.
Quiosques representativos do sistema construtivo dos garifunas.
Desenho da autora.
90
POSTO68
91 América para americanos Colagem Sofia Costa * 2020
* Estudante do curso de Arquitetura e Urbanismo no Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (IAU-USP). De São José dos Campos e habitante atualmente na cidade de São Carlos. Recentemente engajada na produção de colagens digitais envolvendo temas diversos.
92
POSTO68
93
Onde eu estou, eu sou Colagem Marina Coelho de Souza * 2020
“É importante ver que, hoje, o quilombo traz pra gente não mais o território geográfico, mas o território a nível duma simbologia. Nós somos homens. Nós temos direitos ao território, à terra. Várias e várias e várias partes da minha história contam que eu tenho o direito ao espaço que ocupo na nação. E é isso que Palmares está dizendo naquele momento. Eu tenho a direito ao espaço que ocupo dentro desse sistema, dentro dessa nação, dentro desse limite geográfico, que é a capitania de Pernambuco. A Terra é o meu quilombo. Meu espaço é meu quilombo. Onde eu estou, eu estou. Onde eu estou, eu sou.” Trecho extraído do documentário “Ôrí”, lançado em 1989 pela cineasta e socióloga Raquel Gerber. Ôrí documenta movimentos negros brasileiros entre 1977 e 1988, atravessando a história pessoal de Beatriz Nascimento, historiadora e militante, assassinada no Rio de Janeiro, em 1995. * Mestranda na Universidade Federal do Espírito Santo com bolsa de estudos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) no programa de pós graduação em Arquitetura e Urbanismo. Pesquisa gênero no campo da habitação e cidade. Graduada no curso de Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de Ouro Preto (UFOP) em 2018. Durante a graduação realizou mobilidade acadêmica com bolsa de estudos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), frequentou curso de alemão no Goethe Institut e depois cursou Ciências Culturais com ênfase em Cultura das Construções na Leuphana Universität.
por BĂ RBARA MACHADO
entrevista filipe cartax0
Imagem cedida pelo entrevistado
95
Atua na concepção e direção artística do projeto musical BaianaSystem - BS -. Artista visual de Salvador, utiliza da fotografia, do vídeo e do gráfico para poder se expressar e colaborar na tradução de ideias. Graduado em design pela Escola de Belas Artes da UFBa, já participou de uma série de projetos gráficos, editoriais e audiovisuais. Já desenvolveu projetos para outros artistas locais como Letieres Leite & Orkestra Rumpillezz, Lazzo, Opanijé, OQuadro, entre outros. Está na frente também da Máquina de Louco, atuando na organização do catálogo do BS. É uma plataforma sonoravideográfica, criada para difusão de sonoridades, artes e experiências. Lançamentos recentes incluem Gil Baiana Ao Vivo em Salvador, O Futuro DUB. Participou do Festival Multilplicidade 2019 - do idealizador e curador Batman Zavareze - com a instalação PIB - Produto Interno Bruto -, dando outra dimensão para o BaianaSystem. Dirigiu e roteirizou os clipes, Playsom, Invisível e Capim Guiné. Participou do Residência Artística da Redbull - PULSo 2016 -, do Spotify Talks em 2017 e do Festival Path 2018 - festival de inovação e criatividade. Teve trabalhos fotográficos, expostos nas galerias da Caixa Cultural em São Paulo, Brasília e Salvador. Possui fotos na RV Galeria de Arte em Salvador Texto cedido pelo entrevistado.
Foto: Filipe Cartaxo
96
BM: Ao se deparar com a história do BaianaSystem e a linguagem visual construída para o grupo, é possível notar uma pesquisa muito rica dos símbolos que se relacionam com a cultura e com o território de Salvador (cidade onde o grupo se formou), principalmente as disputas contidas nesse. Para nós, estudantes de arquitetura, é importante entender sobre como as intervenções e planejamentos urbanos ecoam na cultura, na música e na formação da cidade além dos quesitos técnicos. Nesse sentido, nos conte um pouco mais do processo de pesquisa dos símbolos da cidade e da cultura soteropolitana que foram chave para criar a proposta de comunicação do BaianaSystem, como as máscaras, as cordas, as cores e muitos outros elementos. FC: Toda construção da linguagem visual é desenvolvida em conjunto com a música e seu entorno. Foi justamente na memória da cidade, com seus elementos presentes por força e predominância nos centros históricos, nos casarões antigos, nos carnavais, nas barracas de festas de largo e suas pinturas manuais. A síntese do nome BaianaSystem já faz referência e reverência a genuinidade da guitarra baiana, e o soundsystem como símbolo de uma cultura de
propagação das idéias pelo som que muito se assemelha com o comportamento de carnaval, onde o som rege e muitas vezes dita o comportamento social. Daí o carnaval, como a síntese dessa grande manifestação cultural que é Salvador, nos trouxe todos os outros signos e símbolos que permeiam a nossa comunicação.
BM : Pensando no contexto de Salvador, como a cidade com a maior população negra fora do continente africano e considerando a relevância do carnaval, tanto para a cidade como para as proposições da banda, mas ainda assim como uma cidade que só teve seu primeiro bloco negro de carnaval na década de 1970, como a questão da negritude e dos embates raciais no contexto soteropolitano entram nas pesquisas e na proposição gráfica do BaianaSystem? FC: A nossa construção de diálogo foi feita basicamente no bairro do Pelourinho, no Centro Histórico da Cidade. Durante muitos anos tocamos e produzimos baile em muitas praças, assim participando de uma formação de diálogo e de público. O formato dos bailes semelhantes a ocupação de uma festa de largo, onde não só o show, mas todo o entorno, diz POSTO68
97 muito dos elementos contidos na cultura local estão concentrados em seu centro. O fato de ocupar espaços já contém em si um ato de resistência, de luta. Esse embates e debates nos acompanham sempre, é assim que conseguimos construir novas possibilidades. Em que cidade você se encaixa? O local onde você expõe as suas ideias está diretamente ligado ao contexto do seu entorno. Somos frutos do meio. Cultivamos a memória.
BM: Na capa do álbum “Duas Cidades” a imagem e a montagem transmitem várias tensões que estão implícitas no trabalho do grupo, assim como em vários clipes. Como você vê, materializado na proposta gráfica, toda a disputa política e o contexto de luta que se insere na proposta do grupo? Como a construção deste símbolo pode ser também de uma narrativa contra hegemônica? FC: As imagens deste álbum foram feitas justamente do carnaval do ano de lançamento do disco. São retratos, recortes de um carnaval já sem seu maior delimitador e criador de diferenças, a corda. A ideia era marcar no tempo a possibilidade de realmente se ter um retrato fiel com todas as suas tensões explicitadas em recortes, seja ele de um vendedor ambulante dormindo encostado em seu isopor, a polícia violenta, e a possibilidade de corpos diferentes ocuparem um mesmo espaço.
BM: Nesse sentido, tanto de resgate de referências locais e da relação com o território, quanto das lutas raciais e políticas levantadas, você sente que existem outros artistas visuais e grupos que estão em concordância com vocês? Isso é, é um movimento que você sente expandir e percebe que existem outras pessoas agregando? Você pode citar pessoas que participam desse conjunto? FC: Com certeza. É uma constante aqui em Salvador. Sinto que o resgate e as lutas sempre estiveram presentes na cidade. A antropofagia se faz presente o tempo inteiro aqui. É o nosso reflexo, na verdade não somos nós, é dos que vieram antes. Tudo aqui vivido, tem uma carga histórica muito grande, é a maior concentração de negros, é a primeira capital, é a cidade do carnaval. Vejo que muitos trabalhos já saem daqui com toda essa força contida neles. Vejo uma forte ligação com o território. Com afirmações e questões da cidade o tempo inteiro. É a busca da identidade que fala mais alto. A lista com certeza seria imensa, não consigo falar de todos aqui, mas citaria aqui artistas que acompanho admiro e já fiz trabalhos com alguns, então colocaria o Corexplosion, Dimak, o Novíssimo Edgar e Renan Soares, Filipe Bezerra, Batman Zavareze, Raul Mourão, Pedro Marighella são artistas que se expressam no próprio trabalho. Só o fato de podermos nos conectar através da arte traz em si uma trama sendo construída. Foto: Filipe Cartaxo
A dualidade, a fusão entre a cidade baixa e a cidade alta em meio a uma festa popular, nos coloca em voga o que realmente importa numa festa popular. A participação de todo o seu povo.
entrevista
98
FC: No meio de gigantescos trios elétricos, buscamos novos caminhos onde pudéssemos ter o mesmo espaço no carnaval. Daí a ideia no navio pirata podendo assim criar novas rotas em meio a um circuito já cheio de regras e de uma espremida participação popular. a pirataria traz aí também uma ideia da reprodução em massa do conteúdo, de fácil reprodução. Isso traz autonomia para quem reproduz. Vejo que somente assim os símbolos permanecem.
Através da sua reprodução. Esse trabalho de cada um ao reproduzir o símbolo, o desenho, a frase, se somam aos milhares de sentidos contidos num signo. Mexer com memória e sentimentos nos traz lembranças. Algo que de alguma forma já vivemos. Sempre busquei esse olhar pra imagem. Falamos em Nostalgia do Futuro, O Futuro não Demora. O tempo inteiro estamos falando de estar Presentes. O fato das pessoas reproduzirem os símbolos e as ideias, faz reverberar e ecoar por mais tempo, acreditando assim na força da mensagem por repetição e predominância. As lutas de hoje são as mesmas de ontem.
BM: Para finalizar, sobre sua pesquisa futura, vivemos em um momento de incertezas, mas gostaria de saber se você tem projetos e propostas que explorem ainda mais essa questão do símbolo e do discurso e até onde acredita que é possível pensar essa arte total. FC: Estamos num momento de esvaziamento e distorções. Uma nova narrativa de tudo está vindo à tona, temos muitos mais registros. Hoje são quase que instantâneos. Quase efêmero de tão rápido. Tradução em tempo real. O desafio é estar Presente agora. O que eu quero ainda não tem nome.
Foto: Filipe Cartaxo
BM: Vivemos em um momento em que a imagem tem muita importância e, muitas vezes é levada mais em conta do que a fala, acredito que o trabalho do grupo seja muito visual. Particularmente, conheci primeiro as músicas e depois tive a oportunidade de assistir à performance, mudou tudo. O show é uma experiência audiovisual e isso enriquece a proposta do grupo como um todo. Outra questão que me remete aos shows também, é a identificação direta das pessoas com os símbolos da banda (usando as máscaras, confeccionando camisetas e elementos), tornando-se um ícone reconhecível e apropriado em diversas situações. Desde o início a sua proposta era essa, você imaginava uma identificação tão forte das pessoas? Quais você acha que são as potências de possuir essa linguagem clara e como evitar que ela seja apropriada e se esvazie? Pensando arquitetos também como construtores de imagem potencializadoras dos discursos e não o contrário.
POSTO68
99 O Monstro de Três Cabeças Charge Flávio Duarte * 2020
Capitalismo, Colonialismo e Patriarcado, as três cabeças do monstro que veio do norte para desumanizar e roubar. Pestilento e mentiroso! Transformando filhos de Deuses em escravizados, genocídio e invasão em “descobrimento”. Muitos acham que já se foi, que é inofensivo ou perfeitamente controlável, porém o monstro fincou suas garras em Abya Yala, e seu hálito putrefato que chamam de “desenvolvimento” só irá se dissipar quando nos levantarmos enquanto pluriverso e cortarmos todas as suas cabeças!
* Mestrando em Design pela UEMG, na linha de pesquisa: Cultura, Gestão e Processos (2019 - atualmente) pesquisa as conexões entre o Design e a Colonialidade, focando em como o Design pode se tornar uma ferramenta emancipatória e decolonial. Bacharel em Design Gráfico pela Universidade FUMEC (2017). Cursou um ano do seu programa no México - Universidad Autónoma Metropolitana (2016) fazendo disciplinas relacionadas a Belas Artes. Especializado em Ilustração, foca seus estudos em formas de transformar essa área em uma ferramenta de transformação social, através de humor gráfico em redes sociais e publicações independentes. Atualmente trabalha como Designer Gráfico e Ilustrador. Cursou 3 anos de Arquitetura trabalhando com construções sustentáveis (2012).
LATINOAMERICANA
Nataly Gossler
Rebeldia
Ancestralidade
Forรงa
Ternura
Nataly Gossler, filha de uma baiana e um boliviano que se encontraram em São Paulo, desde cedo sempre se interessou pela expressão artística. Hoje é designer e no seu tempo livre gosta de pintar e estudar sobre temas relevantes que atravessam sua existência. Um tema recente sobre qual tem decidido estudar foi o ser mulher na América Latina, o que deu origem a série LATINOAMERICANA que estão expostas no @natalygossler.
A que colonizador pertencem os nossos corpos?
Rayana Wara Campos Armond *
Quem acompanhou os noticiários e as redes sociais recentemente foi bombardeado com notícias da pequena capixaba que era estuprada – possivelmente pelo tio adulto - desde os 6 anos, mas cuja violência só veio à tona agora, em razão da gravidez aos 10. Muitas pessoas estão sem dormir em razão do fato, inclusive, é claro, a própria infante, que sobreviveu, não sem traumas, a esta tragédia. Se tem gente perdendo o sono por isso - seja por ser a pessoa violentada, por ser a pessoa que entende a dor da menina e quer que isso se resolva logo, seja em razão dos dogmas que fazem alguém acreditar ter poder sobre o corpo e a decisão do outro – é porque há em torno do tema um certo tabu e, mais, uma colonização dos corpos femininos. Vejamos: se à mulher fosse reconhecido o domínio amplo de seu corpo, nada disso estaria acontecendo. A menina exerceria o seu direito sem qualquer alarde. No entanto, há todo um tumulto no sentido de impedir a interrupção da gravidez e isso somente pode significar uma coisa: o corpo da mulher tem um colonizador, um dono e, definitivamente, não é ela mesma. Portanto, quando vemos multidões de fundamentalistas em frente a um hospital profanando o ódio contra uma menina-mulher-vítima, podemos perceber que elas representam a voz desse conquistador clamando pelo poder que entende ser seu por direito. Mas quem é esse colonizador que utiliza a religião como fantoche? Ao contrário do que muitas pessoas equivocadamente acreditam, até a Idade Média, as mulheres tinham muito mais poder sobre os seus corpos e muito mais autonomia na vida em geral do que vieram a ter nos momentos que sucederam o medioevo. A alcunha idade das trevas interessa diretamente ao capitalismo, favorecido pela implantação da ideia de que trouxe luz e evolução. No entanto, tenho as minhas dúvidas quanto a se conseguiu manter a civilidade mínima que se espera em relações humanas. Era comum que, até o século XV, as mulheres fossem respeitadas nas comunidades em que viviam e um dos motivos era porque dominavam a medicina da época, com ervas e procedimentos rudimentares. Isso lhes dava a consideração dos seus pares e um grande controle sobre o próprio corpo. Com o surgimento dos enclosers (cercamentos) na Inglaterra do século
* Fotógrafa belo-horizontina fascinada pela arte. Graduada em Direito pela UFMG (2011), pós graduada em Direito do Trabalho pela PUC Minas (2015) e autora de publicações na área jurídica, abandonou quase uma década de carreira em nome da fotografia, que consistiu em verdadeiro processo terapêutico e de superação de adoecimento laboral cujas consequências ainda vivencia. Apaixonada por viagens, especialmente desde a morada em Buenos Aires, onde se dedicou a estudos da língua espanhola e da cultura latina, percorreu alguns países fotografando ainda com o celular. Atualmente se dedica exclusivamente à fotografia, mas com as marcas de uma visão social deixada pelo direito.
POSTO68
105
As mulheres foram as principais prejudicadas, como ainda o são. Privadas de condições mínimas de vida, passaram a vagar em busca de ajuda. Quando negada, não era raro que elas, revoltosas, praguejassem. Afinal, suas terras e poder haviam sido tomados injustificadamente. Não demorou, então, para haver uma intensa caça às bruxas, que foi a pecha com a qual definiram essas que não se silenciavam. Essas feiticeiras nada mais eram do que mulheres comuns, sem qualquer poder sobrenatural, mas cujo posicionamento rebelde ameaçava as estruturas do sistema nascente e, portanto, precisava ser controlado. Pouco tempo depois, esse controle se expandiu ao corpo, revertendo a sexualidade da mulher em favor do capitalismo. Além da docilidade, foram impostos às fêmeas o ambiente doméstico e a reprodução. Sim, ao contrário do que somos levados a acreditar, a maternidade e a aptidão para cuidar não são naturais das mulheres, mas foram a elas impostas pelo capitalismo. A reprodução abarca muito mais do que a procriação em si. Consiste em todo o trabalho de parir, cuidar, manter e sustentar o sistema em funcionamento. Quando um homem se apresenta na “fábrica” é porque fora dela tem cama limpa, comida, cuidados em relação à sua saúde e psiquê. O mesmo ocorre quando um estudante – futura possível mão de obra qualificada - frequenta uma escola/universidade. Há alguém que ampara essa estrutura e sói ser a mulher, por meio de um trabalho que produz uma riqueza inestimável, mas que não é paga pelo capitalismo. O sistema econômico faz-se de cego porque sobrevive exatamente graças a essa – não apenas essa – riqueza que suga e da qual se apropria indevidamente. É claro que a Europa não bastou ao capitalismo e, logo, suas raízes alcançaram terras mais distantes, no caso, as Américas e, posteriormente, a África e a Ásia. Aqui, as atrocidades já implementadas com sucesso no velho continente tiveram continuidade e foram aprimoradas, juntando-se à desgraça da escravidão e da dizimação indígena, que deixam marcas até hoje. Formas de violência específicas em função do gênero também foram perpetradas nas fazendas de monocultura onde, no século XVIII, as agressões sexuais dos senhores contra as escravizadas se transformou em uma política sistemática de estupro, na medida em que os proprietários de terras tentavam substituir a importação de pessoas vindas da África para serem escravizadas por um criadouro local (...)
A que colonizador pertencem os nossos corpos?
XVI, as terras que antes consistiam em uma riqueza coletiva da qual a comunidade tirava o sustento passaram a ser cercadas, tornando-se propriedades privadas dos mais abastados, com apoio do clero. Veio, com isso, uma onda de pobreza até então desconhecida, mas que se instalaria em definitivo no planeta. Estava lançada a semente do capitalismo, que rege as nossas vidas até os dias atuais.
106 A violência contra as mulheres não desapareceu com o fim das caças às bruxas e a abolição da escravidão. Pelo contrário, foi normalizada. (FEDERICI, 2019, p. 92). Com isso, precisamos ressaltar o fato de que ser mulher é difícil, porém, ser mulher negra e/ou pobre é muito, muito mais! Especialmente no caso brasileiro – palco sangrento da diáspora africana - é uma falácia admitir que a experiência de ser mulher é semelhante para todas. O racismo e a desigualdade social fazem com que algumas se tornem o que se convencionou chamar de “o outro do outro”. Não é raro, inclusive, que as opressões a mulheres negras/pobres venham não apenas de homens brancos, mas de outras mulheres, as quais não entendem as peculiaridades enfrentadas pelo grupo mais prejudicado ou até entendem, mas, por conveniência pessoal, mantêm a exploração. (...) é evidente que um grande número de mulheres brancas (especialmente aquelas advindas da classe média) progrediu economicamente depois que o movimento feminista se voltou para a carreira e para os programas de ação afirmativa em muitas profissões. No entanto, a massa das mulheres continua pobre como sempre ou ainda mais pobre. (HOOKS, 2019, p. 101)
Estamos em 2020 e a situação pouco mudou nas terras do pau-brasil: as mulheres continuam oprimidas e as negras e/ou pobres, massacradas. A maioria dos países europeus – cenário inicial da caça às bruxas - já evoluiu no sentido de descriminalização do aborto e as mulheres já contam com essa possibilidade há muitas décadas, a exemplo do Reino Unido (1967), Alemanha (1972 – parte oriental –, com ratificação em 1995 pelo país unificado), França (1975), Suécia (1975) e Espanha (1936, por determinado tempo na região da Catalunha e, em definitivo, a partir de 2010). Mesmo nas Américas, os Estados Unidos autorizam o procedimento desde 1973 e são acompanhados, desde o mesmo ano, pelo Canadá. No Brasil, o aborto é tratado a partir do art. 124 do Código Penal. Datado de 1940, esse diploma normativo é tão obsoleto que até recentemente falava em mulher honesta na parte dos crimes contra a dignidade sexual. Somente em 2005, retirou-se o polêmico e misógino adjetivo e, somente a partir de 2009, deixou de haver necessidade de que a vítima da violação sexual seja uma mulher, o que beneficia o gênero como um todo e torna a proteção mais ampla até mesmo para os próprios homens. Voltando à legislação pátria, tem-se que o aborto somente é permitido em casos de 1) estupro, 2) risco de vida para a mãe – casos autorizados pelo código penal – e 3) feto anencéfalo (situação autorizada pela jurisprudência do STF, ADPF nº 54). Ocorre que, no entender desta autora, o aborto, desde a Constituição de 1988, não pode configurar tipo penal em razão da não recepção total dos artigos penais de 1940 pela Carta Magna. É dizer: a criminalização do aborto é inconstitucional porquanto a lei maior é expressa a respeito da igualdade entre homens e mulheres (art. 3º, inciso IV, e art. 5º, inciso I). Mais do que isso: a constituição deste país também garante a autonomia, e a consequente privacidade e a liberdade (art. 5º, inciso X, da CR/88). Portanto,
POSTO68
107 a criminalização do aborto fere uma série de direitos fundamentais das mulheres e a própria dignidade humana. Inicialmente, tem-se que as mulheres passam, com a proibição do aborto, a carregar uma carga muito maior do que os homens pelo simples fato de serem mulheres. Muitos pais simplesmente abandonam os filhos, mas às mães isso não é permitido, seja durante a gestação – proibição do aborto – seja posteriormente, quando lhes recai uma pesada carga moral e mesmo consequências diretas do abandono de incapaz, que não atingem os homens, os quais, a essa altura, já se encontram em local incerto e não sabido. Isso significa desigualdade entre os gêneros, o que é vedado pela constituição. Ademais, a criminalização do aborto significa que o “crime” não ocorre? Sejamos honestos e realistas, ele é frequentemente cometido com a diferença que mulheres que gozam de boa condição social o fazem com exitoso silêncio e auxílio de clínicas especializadas, com acompanhamento médico, se necessário. Por outro lado, mulheres pobres – e frequentemente negras – se submetem a métodos temerários e arriscados, sem qualquer apoio, o que pode, inclusive, levá-las à morte. Se sobrevivem, são obviamente as que enfrentam um maior risco de persecução penal e encarceramento, que, no Brasil atual, sem sombra de dúvidas, serve ao controle dos indivíduos que não atendem aos interesses do sistema capitalista. De acordo com estatísticas existentes, no Brasil, pelo menos uma a cada cinco mulheres até os 40 anos já fez aborto (DINIZ, 2018). Isso significa que eu conheço diversas mulheres que já interromperam a gestação. Você também! Todos nós, mesmo que não o saibamos. Muitas vezes, são mulheres do nosso círculo social próximo. E você consegue imaginá-las presas por esse motivo? Se magicamente todas fossem reclusas, a população carcerária brasileira, que já é das mais altas do mundo, cresceria alguns milhões instantaneamente! Fica evidente que há algo de errado aí! Ao impormos a uma mulher a obrigação de seguir com uma gravidez, estamos interferindo em seu corpo e privilegiando a vida intrauterina em detrimento da vida biográfica, a vida vivida, a vida que já existe e que pode estar sendo torturada por uma gestação indesejada. Fica claro, portanto, que os limites da intervenção legítima do Estado em um corpo particular se encerram no fornecimento da saúde universal, o que inclui o planejamento familiar (art. 226, § 7º, da CR/88 c/c art. 3º, parágrafo único, inciso I da Lei nº 9.263/1996), a prevenção da gravidez e o acesso ao aborto seguro, se assim desejar a mulher. A imposição da gravidez, quando do julgamento da ADPF nº 54, foi equiparada à tortura quando o feto é anencéfalo e estará, portanto, fadado à morte. No entanto, ouso dizer que a gravidez, sim, se equipara à tortura sempre que indesejada, pois fere a autonomia da mulher e lhe traz consequências físicas, psicológicas, sociais e econômicas inestimáveis e que não podem ser compreendidas por terceiros. Pior: recentemente foi reativado no congresso brasileiro o famigerado “Estatuto do nascituro”, aventado em 2007 (PL 478/2007), mas com nova votação prevista para o ano de 2020. Caso aprovado, as normas nele contidas entrarão, certamente, para a lista de tragédias e retrocessos vivenciados no ano corrente. O diploma legal em questão reduz a mulher ao papel de incubadora dos fetos (expectativa de direito), que teriam mais reconhecimento e proteção do que um ser humano já formado e, ao menos em tese, protegido e assegurado legalmente. Enquanto assistimos ao seriado distópico “O conto da Aia” e
108 nos entretemos, nossos representantes legislativos têm em mãos o poder de nos impor um terrível anacronismo não muito distinto da obra de Margaret Atwood. Teria o Estado, se aprovado o estatuto, o poder irrestrito de utilizar as mulheres como matrizes, ignorando-as como pessoas humanas. Importante enfatizar, também, que se o Estado deseja fazer interferências, essas deveriam estar – além de na área da saúde, como debatido acima - no campo da educação e da erradicação das desigualdades das quais o governo não tem se ocupado. Certamente, empoderadas, as mulheres – especialmente as negras e pobres, que já são as mais vulneráveis e vitimizadas – passariam a gozar de muito mais autonomia e escolhas que as levariam a sequer precisar do aborto. No entanto, uma vez que se faça necessário, deve o estado não apenas não proibir (descriminalização) como agir ativamente para assegurar que possa ser realizado de forma segura e gratuita por meio do SUS, haja vista as garantias de saúde e de planejamento familiar que são previstas constitucionalmente. Por fim, se tudo isso acontece, há um interessado: como delineamos no início deste ensaio, não é um problema exclusivamente brasileiro ou recente. A proibição do aborto está diretamente relacionada aos interesses capitalistas, sendo típicas desse sistema as desigualdades de raça, classe e gênero. Ou há alguma dúvida de que se homens brancos engravidassem a legalização do aborto seria questão bastante menos tormentosa? Os nossos corpos estão colonizados pelo sistema capitalista, que atualmente massacra com maior força os países de terceiro mundo e especialmente nações da África e da Ásia, mas também o Brasil. E até quando? Há quem diga – especialmente após a pandemia de COVID-19 em 2020, seus resultados e a forma como a crise foi conduzida – que o sistema tem apresentado fissuras. Talvez possamos ter esperança de um futuro com formas de vida e de sustento mais justas e igualitárias. Talvez não em nosso tempo de vida, mas o aborto especificamente é questão mais urgente e cuja descriminalização deve ocorrer, sim, imediatamente. Ou melhor, já deveria ter ocorrido, no mínimo, desde 1988. O Brasil não pode suportar que uma criança de 10 anos seja duplamente violentada e urge que nos preocupemos mais com seres humanos do que com fetos.
Referências ALMEIDA, Eloísa Machado de; PRATA, Ana Rita Souza. Autonomia e aborto no Supremo Tribunal Federal. In PINTO, Roberto Parahyba de Arruda; CAMARANO, Alessandra; HAZAN, Ellen Mara Ferraz. Feminismo, pluralismo e democracia. São Paulo: LTr, 2018; DINIZ. Debora. “Todas as mulheres fazem aborto, mas só em algumas a polícia bota a mão”. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2018/08/02/politica/1533241424_946696. html>. Acesso em 17.ago.2020; FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017; FEDERICI, Silvia. Mulheres e caça às bruxas: da Idade Média aos dias atuais. São Paulo: Boitempo, 2019; FEDERICI, Silvia. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. São Paulo: Elefante, 2019; HAZAN. Ellen Mara Ferraz. A violência (in)visível e as mulheres. In PINTO, Roberto Parahyba de Arruda; CAMARANO, Alessandra; HAZAN, Ellen Mara Ferraz. Feminismo, pluralismo e democracia. São Paulo: LTr, 2018; HOOKS, bell. Teoria feminista: da margem ao centro. São Paulo: perspectiva, 2019.
POSTO68
109
Exploração Subvertendo todas as nuances de meu pertencimento, Eu me disponho a tratar com bons olhos O fracasso ao qual me penitenciou Não teria como negar tamanha bravura Do ato gentil de sua violação férula Posto de forma eloquente por todos os cantos da minha existência E agora me torno sua propriedade Cravada em ruínas de mim mesma Como se abatida por todo tipo de castigo, merecesse cair por terra Revogados todos os meus anseios de liberdade, Fico à mercê de tudo que me é imposto A exploração de minha identidade dedico a quem me sacrificou
Fernanda Vilaça *
* Falante e faladeira. Vejo o mundo com olhos ansiosos, sempre buscando algum tipo de entretenimento nos breves espaços de tempo livre. A Arquitetura é uma aventura que permeia várias áreas de expressão, e foi lá que me encontrei. Tentando compartilhar todo conhecimento que adquiro e manifestar quando não posso tê-lo -, quero experienciar cada detalhe dos campos que me floreiam. Estudante de Arquitetura e Urbanismo no Centro Universitário Belas Artes.
111
Eu sou a Vênus
Veridiana Godoy
Sarah Baartman (1789 - 1815), foi uma mulher negra do povo khoisan exibida em exposições europeias como uma aberração pelas suas características físicas. Ela ficou conhecida como a “Vênus Hotentote”, sendo hotentote o nome do povo khoi, o que é considerado um termo ofensivo, enquanto Vênus é uma referência à deusa romana. Ela nasceu na atual província do Cabo Oriental, África do Sul, e foi levada para o Reino Unido com a promessa de que se tornaria rica com essas apresentações. Ela era tratada como uma espécie humana primitiva que sobreviveu ou até mesmo sub-humana, pois tinha características biológicas não europeias - nádegas grandes e lábios vaginais de aproximadamente 12 cm. Seus lábios genitais eram conhecidos como tablier, avental ou “cortina da vergonha” em francês, e sempre recusou a se apresentar completamente nua, então usava uma segunda pele para não expor totalmente seu tablier. Sarah é um exemplo claro de metafísica da raça, que é a categorização do corpo humano pelos seus aspectos biológicos, porém o seu caso também foi considerado uma categorização moral. Ela foi totalmente desumanizada e fetichizada, uma opressão que mulheres negras sofrem até hoje devido aos discursos que associam tais características físicas a maiores desejos sexuais, o que também acontece com homens negros. Dessa forma, atualmente, Sarah é considerada um símbolo da exploração e do racismo colonial, bem como a objetificação das pessoas negras. Mesmo após sua morte, Baartman continuou sendo tratada como objeto de estudo na Europa e apenas em 2002 seu corpo retorna a África do Sul, por uma solicitação de Nelson Mandela, em 1994, para a repatriação dos seus restos mortais e é atendido pelo governo francês. Em Agosto de 2002, depois de 192 anos após ela sair para à Europa, seu corpo foi enterrado em Hankey, onde ela nasceu. Em 2010 é lançado o filme “Black Venus” e o documentário “The Life and Times of Sara Baartman” que contam sua história, além de diversos livros e estudos decoloniais sobre sua vida. Através da história de Sarah, é possível pensar uma metodologia de descolonização do sujeito e a cura da ferida colonial carregada por mulheres colonizadas e, consequentemente, desumanizadas por não estarem no padrão branco e europeu do corpo, metodologia essa que sugere que ambas nascem da famosa concha da pintura “Nascimento de Vênus”, de Botticelli, o discurso latente “Eu também sou a vênus”.
Referências Debate “Conversas Feministas | Descolonizando a Vênus | Raísa Inocêncio”. Canal do Youtube: Grupo Pesquisa Epistemologias Feministas, 2020. Reportagem “Sarah Baartman: a chocante história da africana que virou atração de circo”. Portal Géledes, 2016. Eu sou a Vênus Giz pastel oleoso e tinta acrílica no papel canson a4 Veridiana Godoy * 2020
* Arquiteta e Urbanista (FAAC/UNESP), pós-graduanda em Gestão Pública (IPPUR/ UFRJ) e mestranda em Planejamento e Gestão do Território (PPG-PGT/UFABC). Tem como foco de seus estudos o urbanismo feminista e a interseccionalidade de gênero, raça e classe nas dinâmicas territoriais urbanas. Faz parte do Grupo de Pesquisa em Ecologia Política, Planejamento e Território (eco.t) do PGT/UFABC e do Núcleo de Pesquisa em Gênero, Espaço e Políticas Públicas (NUGEPP) do IPPUR/UFRJ. Atualmente começou a se debruçar mais sobre as artes plásticas, com desenhos que trabalham gênero e decolonialidade.
112
Minha cara, minha roupa e meu bairro não são delito: Representações sobre violência policial e estigmatização da juventude marginalizada a partir do grafitti em Buenos Aires Luiza Fonseca de Souza * Orientação: Lucia Eilbaum (GEPADIM/INCT-InEAC)
RESUMO Neste artigo, tomo o espaço urbano de Buenos Aires enquanto intervalo de expressão de um contradiscurso referente a noções de (in)segurança e violência policial na democracia neoliberal. A partir da análise de intervenções urbanas realizadas em estêncil e grafitti na capital argentina, abordo sobre como conflitos sociais referentes a estigmatização e brutalidade policial direcionada a jovens, em sua maioria homens, racializados e pobres, são relatados através do que pode ser lido nos muros e outros aparatos urbanos da cidade. É a partir de marcadores sociais da diferença, vinculados a noções de classe, raça, vestimenta e territorialidade, que podemos observar a enunciação de uma demanda social não apenas em busca de visibilidade, mas que se insere em um processo amplo de “memória, verdade e justiça”. Tal processo é marcante na Argentina, cuja trajetória em tomar o espaço público enquanto político é herança do movimento dos direitos humanos. Nesse cenário, slogans como “Minha cara, minha roupa e meu bairro não são delito” e “O medo que te vendem somos nós que pagamos”, abordados nas intervenções, tornam-se centrais para discutir e evidenciar processos de estigmatização vinculados a esses atores sociais. Palavras-chave: Intervenções urbanas; Contradiscurso; Marcadores sociais; Violência policial; Buenos Aires.
*
Graduanda em Ciências Sociais pela UFF – Universidade Federal Fluminense. E-mail: luiza-2102@hotmail.com
POSTO68
113
Lo que era invisible pesa y se ve -Intervenção observada em San Telmo, Buenos Aires.
INTRODUÇÃO Atrelada a um imaginário social de “Europa da América Latina”, podemos reconhecer na arquitetura de Buenos Aires o porquê dessa comparação. Ainda assim, suas ruas nos lembram constantemente de onde estamos: a história de luta contra a ditadura civil-militar (1976-83) e os efeitos do neoliberalismo são narrados reiteradamente pelos argentinos, e as marcas desses eventos se refletem também no espaço da cidade, como forma de manter viva a memória. São nesses espaços, entre o suposto modelo de civilização europeia integrador, constituindo desde a arquitetura até a um imaginário de construção de identidade racial, processo esse que se mostra inconcluso e excludente, bem como as marcas forjadas pela lógica do consumo numa metrópole, que as intervenções urbanas surgem como narrativas contra-hegemônicas. Através do campo das expressões artísticas vinculadas ao fazer político, o espaço das ruas se torna essencial para compreender formas de fazerse visível unindo política e subjetividade (BUTLER, 2018). As intervenções encarnam um discurso de resistência à invisibilização ou visibilidade negativa, denunciando a estigmatização e violência policial como rotina enfrentada pelos jovens marginalizados, fazendo-se visível nos muros, calçadas e edifícios de lugares centrais do ir e vir de cidadãos portenhos, imigrantes e turistas. Estas apoderam-se, junto a outras causas sociais, desse lugar em princípio voltado à racionalidade, e que é formador de um silêncio repressivo (GABBAY, 2013). No presente artigo1 analiso através de pesquisa etnográfica como através de intervenções urbanas realizadas em distintos pontos de Buenos Aires podemos reconhecer conflitos referentes a estigmatização e brutalidade policial direcionada a esses jovens, em sua maioria homens, racializados e pobres. A partir de intervenções como “Minha cara, minha roupa e meu bairro não são delito”, aponto para um processo de construção da marginalidade de determinados jovens nutrido por um imaginário social de longa duração (RODRIGUEZ, 2016), que resulta numa legitimação do devir violento das forças de segurança. O presente trabalho tem como propósito demonstrar como o espaço urbano de Buenos Aires é central para a enunciação de novos discursos. A utilização das técnicas provenientes do grafitti igualmente é contextualizada através de seu histórico de oposição aos discursos hegemônicos, ocupando essencialmente o lugar da transgressão e ruptura. A esse ponto, relaciono como as intervenções urbanas aqui analisadas se configuram junto a uma trajetória de luta social e política na Argentina denominadas enquanto “tecnologias manifestantes”, às quais distintas causas sociais se apropriam e dão seus próprios significados (PITA, 2010). No reconhecimento de demandas sociais e políticas em diálogo com o espaço urbano, a violência direcionada aos jovens marginalizados se configura enquanto uma das feridas abertas da democracia argentina.
114 LER A CIDADE Em seus contos “Dizem as paredes”, Eduardo Galeano (2017) reúne frases lidas em muros de cidades latino-americanas pelas quais passou e viveu. Entre declarações de amor e gritos políticos, as paredes manifestam um pouco do que quer se tornar visível. Inspirada por esses contos, tomo meus percursos de idas e vindas como forma de se ler a cidade de Buenos Aires. Recuperando a perspectiva de Petonnet (2008), ao apresentar o conceito de observação flutuante, que consiste em “permanecer vago e disponível em toda circunstância” (2018, p.102), ceder ao imprevisto e à casualidade possibilitam essas observações. A perspectiva de investigação enquanto estrangeira vivendo em terras argentinas se insere num processo caro à antropologia, em que o estranhamento do familiar e familiarização do desconhecido (DaMatta, 1974) possibilitam a apreensão de significados locais e o reconhecimento de novas possibilidades de marcar o espaço urbano, também em diálogo com construções anteriores desde a observação de cenários como o Rio de Janeiro. Nestas condições, o trabalho etnográfico se constrói aos poucos, como defendem Rocha e Eckert (2013), a partir de colagens dos fragmentos de interação observados ao longo dos percursos e análises realizadas. Por meio de interferências como estêncil, lambe e grafitti nos muros, fachadas, calçadas, paredes do metrô, pontes e outros equipamentos urbanos, Buenos Aires era marcada por uma variedade de frases e desenhos que traziam sentidos políticos. Essa concentração de intervenções se comunicava com os inúmeros atos e protestos realizados semanalmente no centro da cidade, compondo um cenário de inquietação e movimentação política nas ruas que me parecia impressionante. Dentre as intervenções por mim observadas, estavam os slogans aqui abordados, e também nomes e perfis de vítimas de violência do Estado: “a presença ostensiva de homenagens e referências aos mortos, que o ocupam e dão aos mortos um lugar físico para se fazer presente, mesmo que fisicamente, enquanto corpo humanos, esses não existam mais.” (MEDEIROS, 2014, p.331). Considero que essas marcas na cidade compõem parte do que Appadurai (2004) define como paisagem ideológica, produzida pela articulação de imagens de movimentos de resistência, ou com ideologias do Estado, presentes na cidade. O contraste entre essas imagens forma parte do tecido urbano de Buenos Aires e, argumentando a favor do efeito de tensão na paisagem “habitual” da metrópole, as intervenções urbanas geram uma provocação à atitude blasé proposta por Simmel (1983), ao produzir reações naqueles que se deslocam pela cidade, rompendo com a indiferença do espaço urbano. Registro alguns desses signos a partir de fotografias e observações ao longo dos meses em que vivi em Buenos Aires, construindo um diário em trânsito. Através da captação de processos momentâneos, seja a passagem por uma esquina em caminho ao banco marcada por um estêncil, ou a vista de um mural pela janela do metrô, posso retornar (figuradamente) horas ou meses depois a esse lugar. Nesse seguimento, o processo de significação das categorias abordadas nas intervenções é articulado na junção entre os registros, discussões bibliográficas sobre o tema e a repercussão deste na esfera digital. Através da identificação de categorias locais para abordar a violência policial na Argentina, foi possível reconhecê-las enquanto categorias políticas essenciais para a demanda de justiça no espaço público.
POSTO68
115 1 A pesquisa da qual provém este artigo foi realizada durante período de mobilidade acadêmica na Universidad Nacional de San Martin, Buenos Aires, no ano de 2019. 2 Em uma investigação que aborda os slogans em relação a violência e estigma direcionada aos jovens marginalizados (PITA, 2018), utiliza-se a palavra do espanhol consignas para nomeálas. Pela falta de uma palavra melhor no português, optei pela expressão slogan, também utilizada em outros movimentos como nas frases emblemáticas propostas pelo Movimento de Maio de 68 em Paris, percursos dessa técnica de grafitti, em contraste ao graffiti Nova Iorquino que traz como proposta as tags a partir dos anos 60 e 70, 3 A tática do escrache desenvolvida pelo grupo de direitos humanos H.I.J.O.S é uma das técnicas mais reconhecidas, integrando-se como técnica de ativismo artístico e de ação direta que rompe com os modos tradicionais de fazer política ao marcar casas de genocidas e campos clandestinos de detenção com grafitti e denúncias. Dessa forma, é construído um conceito de justiça em que se busca converter a condenação social em prisão dos genocidas e no reconhecimento de instituições que encobriram atos contra os direitos humanos (Zukerfeld, 2008 apud DI FILIPPO, 2015).
INTERVENÇÕES URBANAS E O FAZER POLÍTICO NA ARGENTINA Tendo como objetivo desenvolver sobre determinadas intervenções urbanas vistas no cenário de Buenos Aires, concepções sobre espaço urbano e conflito, centro e periferia, juventude e estigma se fazem presentes tanto quando falamos sobre a história da arte urbana e do grafitti, vinculada historicamente a movimentos de transgressão, quanto sobre o conflito por elas representado no presente trabalho: os slogans2 que interpelam sobre estigmatização e violência policial direcionada a jovens marginalizados na capital. A história das intervenções urbanas na América Latina está indissociavelmente ligada às inscrições políticas (KOZAK, 2008) e Buenos Aires, considerada uma das cidades latino-americanas centrais para se pensar arte urbana, junto a São Paulo e Santiago (GABBAY, 2013) dispõe de técnicas e estratégias vinculadas ao ativismo artístico que ganharam grande repercussão a partir da retificação dessas táticas como forma de demandar justiça no espaço público3. As investigações que interpelam sobre essas intervenções na Argentina demonstram como seus principais movimentos surgem em resposta à crises sociopolíticas e econômicas enfrentadas no país, como a busca pelos desaparecidos políticos durante a ditadura, os protestos resultados da crise financeira de 2001, e aqui também podemos incluir a luta do movimento feminista argentino pela legalização do aborto. Maria C. Lage (2009) defende que essas crises do sistema geram também como resposta uma crise metafísica; reordenando não apenas as relações políticas entre classes e Estado, ao obrigarem os transeuntes a repensar seu papel como indivíduos e sua relação com os outros e o seu espaço, mas pressionando a estética convencional do urbano, e da lógica capitalista, a retroceder um passo. Ainda que funcionem de forma precária e assistemática, os discursos de atores sociais marginalizados tomam certa presença para além de estruturas políticas formais e da hegemonia de conglomerados midiáticos, surgindo no espaço estratégico da cidade. Se retomamos Rancière (2009), quando discute o lugar em comum da política e estética, “demonstrando que suas bocas emitem perfeitamente uma linguagem que fala de coisas comuns” (2009, p.14), podemos pensar sobre como as demandas levantadas pelas intervenções urbanas políticas na Argentina se inserem num discurso coletivo e compartilhado por aqueles favoráveis aos direitos humanos e a dignidade humana, em especial através das demandas por memória e justiça. Os discursos, ou slogans, traduzem causas pertinentes que não pertencem a apenas um campo de disputa, estando presentes em movimentos de resistência, marchas e protestos, no campo popular, em eventos de música e arte, mas também em discussões a nível de organizações institucionais e político-partidárias. Maria Pita (2010) discute como, a partir de múltiplas frentes na luta pelos direitos humanos e pelo reconhecimento da violência institucional enquanto paradigma a ser contestado, construiu-se uma causa que obtém legitimidade na Argentina, e que vem se constituindo enquanto assunto de políticas públicas. A possibilidade de abordar os casos de violência policial na democracia incorporados à ideia de violência institucional, tratando dos mesmos não como casos isolados, e sim como prática rotineira que recai sobre determinadas populações, é resultado do trabalho sistemático dos atores sociais envolvidos. O campo das mobilizações e protestos em relação a direitos humanos na
116 Argentina tem como uma das principais marcas a questão da impunidade, sendo a demanda por justiça perante o Estado um dos principais legados do movimento histórico de direitos humanos. Faço essa brevíssima recuperação histórica para pontuar como se consolida a trajetória de luta por direitos humanos na Argentina através também das intervenções urbanas; e que se reverbera até hoje na forma como se traduzem os casos de violência institucional e processos de estigmatização da juventude marginalizada através de intervenções urbanas nas ruas de Buenos Aires.
4 Pibe é utilizado na Argentina para referir-se cotidianamente a jovens e crianças, mas também penso como possível tradução para “moleque”. Através de slogans sobre violência institucional como “ser pibe não é delito”, considero que a expressão se transforma de categoria cotidiana em categoria política, para referir-se especificamente aos jovens marginalizados.
MINHA CARA, MINHA ROUPA E MEU BAIRRO NÃO SÃO DELITO
5 De acordo com Maria Aparecida Bento (2002), “a branquitude se caracteriza como território de privilégio racial, econômico e político no qual a racialidade, não nomeada como tal, carregada de valores, de experiências, de identificações afetivas, acaba por definir a sociedade.” (SANTOS, 2020).
Enquanto o espaço urbano é enfatizado nos trabalhos pioneiros de George Simmel (1983) pela lógica do anonimato, “a vivência das centralidades urbanas por parte dos setores populares remarca sua crescente visibilização (negativa), que conjuga estigmas territoriais com estigmas ligados à «aparência» e na qual se entrelaçam dimensões etárias, estéticas e corporais, entre outras” (SEGURA, 2017, p.7). Pretendo aqui desenvolver sobre como essa lógica de acusação se sustenta através dos marcadores sociais da diferença pontuados no slogan “Minha cara, minha roupa e meu bairro não são delito”, revelando processos de rotulação identitária vinculados a noções de classe, raça, vestimenta e território. O slogan colabora com o questionamento a imagem desses jovens associados a um conjunto de características que não são nem naturais nem necessárias, mas que no discurso hegemônico, acentuados por discursos do pânico moral (CHAVES, 2005), se apresentam como tais. Ainda que a intenção do presente trabalho seja abordar a problemática da estigmatização e violência policial vinculada ao cenário argentino, é inegável que este é um processo que pode ser verificado nos demais países latinoamericanos, especificamente no Brasil. A partir dos efeitos de políticas neoliberais e de uma política de segurança que não hesita em apoiar-se em práticas arbitrárias e no punitivismo, a construção do inimigo interno, ou melhor, a configuração de um determinado tipo social enquanto possível criminoso, torna-se parte da estrutura social. Retomo as perspectivas de Foucault (1978) e Agamben (2002) sobre como vivenciamos atualmente não mais o paradigma do disciplinamento ou da normalização restrita, e sim o paradigma da segurança. Desse modo, as práticas de soberania deixam de recair sobre o sujeito em si e passam a manifestar-se através do controle do corpo social, perpassando não pela ação efetiva, e sim pela possibilidade de ação que torna o sujeito passível de repressão. Na Argentina, o discurso de violência urbana vinculada a juventude, e que se reverbera na construção de processos estigmatizantes, é recuperado com vigor a partir da crise social e econômica dos anos 90, como produtora de uma geração de jovens constituídos por uma identidade marginalizada devido ao seu não pertencimento em espaços sociais ou a identidades tidas como positivas, como ser estudante ou trabalhador. Devido ao exponente crescimento da desigualdade social, desemprego e exclusão social, alguns autores apontam que o país experiencia forte sensação de insegurança causada pelo aumento de delitos, conciliados à inflação da repressão policial e de legislações penais, num consequente espiral de violência (TONKONOFF, 1998). Os jovens marginalizados, ou pibes4 , como denominam os slogans, se encontram no centro dessa discussão ao serem denominados como os causadores do aumento de delitos e, consequentemente, são os mais afetados
POSTO68
6 Morocho é utilizado na argentina como referente para pessoas não-brancas. Villeros refere-se àqueles que vivem nas chamadas villas de emergência, ao qual podemos comparar ao termo “favelados” no Brasil. Ambos termos são utilizados tanto quanto forma de afirmar a identidade quanto modo estigmatizante. 7 Tradução: Marcha do boné. 8 Gatilho fácil é a denominação para referir-se a casos de violência policial, aludindo a facilidade em que a polícia mata ou fere “em situações que vão desde o que se denomina como uso desmedido da força, até execuções extrajudiciais ou falsos enfrentamentos.” (PITA, 2010, p.7). A autora compara o termo aos semelhantes “dedo frouxo” utilizado no Brasil e “easy trigger” nos Estados Unidos.
117 pelos discursos e ações punitivistas. Para realizar essa discussão, considero importante recapitular brevemente como se dá o processo de construção da identidade racial argentina a partir da narrativa hegemônica da branquitude5. Nos meses em que vivi em Buenos Aires, diversas vezes me foi apresentado o discurso de que “não existem negros argentinos” devido ao processo colonial e, posteriormente, pelas guerras de independência, que provocaram o extermínio das populações afro-indígenas, de modo que pessoas negras que residem no país hoje são “vindas de fora”, estrangeiras. A partir dessa narrativa, estruturou-se um processo de negacionismo e invisibilização da população não-branca, assimilando negros e índios como algo do passado, sendo o modo de civilização do futuro o europeu, entendido enquanto modelo universal (PITA, 2020). Proponho desenvolver, a partir desse processo de invisibilização (e também resultado da mestiçagem) ocorrido no país, sobre como o esquema de classificação racial local adquiriu na Argentina significado diferente ao brasileiro, em que negro pode ser “toda pessoa descendente de povos africanos escravizados, membro de nações originários e/ou descendente de povos originários, provinciano (vindo do interior do país) de pele escura, residente de villa ou barrio popular, pessoa pobre. (Ibid). Lamborghini e Geler (2016) apontam, nesse sentido, para uma «ordem socio-racial» vinculada a um sistema de exclusão, em que há uma sobreposição da categoria de classe como predominante que perpassa a história do país, de forma que a diversidade étnico-racial foi canalizada através da estrutura de classes (Ibid.). Realizo essa contextualização para pontuar como o discurso vigente em relação à estigmatização dos jovens marginalizados perpassa por termos raciais, quando utiliza-se de terminologias racistas para designá-los, e também quando se analisa o percentual da população não-branca presente no sistema carcerário e nos barrios e villas de emergencia (PITA, 2020). Ainda que exista, mesmo em meios progressistas, uma negação da raça enquanto recorte para a violência policial na Argentina, referindo-se sempre à questão de classe como prioritária, Abreu e Baquero (2018) expõem como, na Argentina, são os jovens, homens, morochos e villeros6, e que vestem roupa esportiva, os mais afetados pelas ações da força policial. Dando seguimento ao “minha cara não é delito”, o recorte “minha roupa” surge, nesse sentido, como um dos principais caracterizadores dos pibes, visto que o uso da vestimenta esportiva e, principalmente, o uso do boné, são elementos distintivos e portadores de uma forte marca identitária entre os jovens de bairros populares. A marca estilística das roupas esportivas entre os pibes recupera processos identitários relacionados ao marco do Hip-Hop e, mais especificamente, da Cumbia Villera a partir dos anos 90 na Argentina, em que ambos os estilos assumem em suas letras a problemática da violência social instalada nos setores marginalizados. Como produto desse mercado emergente, o uso das roupas esportivas e do boné se populariza entre os jovens também como referência aos jogadores de futebol, que se converteram nos representantes visíveis de um setor social que conseguiu permear os obstáculos dos setores baixos. Destacando a relação que viemos trabalhando entre juventude, setores marginalizados e questões raciais, é recuperado através do uso do boné, e demais roupas esportivas, o componente da figura do sujeito suspeito e
118 vítima de violência policial. Tal recorte é tão crucial que se desdobrou no nome de uma manifestação: “Marcha de la gorra”7, iniciada na cidade de Córdoba em 2007 e que hoje se espalha por toda a Argentina. A marcha propõe denunciar a militarização dos bairros pobres e a criminalização da juventude, que tem como resultado extremo os casos abordados sob a denominação gatilho fácil8. Por fim, para observar a relação entre estigmatização e território, presente em “meu bairro não é delito”, retomo Kessler (2012) e Segura (2017), que refletem sobre como a estigmatização territorial produz e aprofunda situações de privação social prévias. Nesse sentido, a estigmatização impacta diversas esferas da vida social, desde possibilidades de trabalho, qualidade educacional e acesso a serviços urbanos, até a uma regulação do uso da cidade reforçada pela vigilância policial, ao que Segura (2017) retoma o conceito de espessura da cidade, proposto por Jirón e Mansilla (2013, apud SEGURA, 2017). A metáfora da espessura se refere às múltiplas barreiras de acesso presentes na cidade e que variam em efeitos e densidades a depender de fatores etários, e de gênero, raça e classe. Em síntese, Segura (2017) argumenta que existe um laço social-punitivo que vincula sistematicamente, nos territórios urbanos marginalizados de Buenos Aires, os jovens que ali residem à agência policial, marcando suas trajetórias e sustentando a produção de subjetividades penalizadas. Nesse sentido, práticas arbitrárias, desde revistas ao encarceramento e casos de gatilho fácil, tornam-se articuladas na administração e gestão de determinadas populações, sempre previstas pela justificativa de “combate às drogas” e segurança pública. (PITA, 2017). A esse ponto, considero um outro slogan também observado durante o trabalho que diz: “O medo que te vendem somos nós que pagamos”. Este põe em evidência as consequências provocadas tanto pelos grandes meios de comunicação, no modo como associam de forma corriqueira jovens de classes populares a crimes, tiroteios, supostos enfrentamentos e detenções arbitrárias, quanto por aqueles que nomeiam os jovens enquanto problema, acionando as forçar policiais baseando-se nos processos estigmatizantes (RODRIGUEZ, 2016, PITA, 2010). Destes processos, que se retroalimentam, junta-se a ação sistemática das forças de segurança e do judiciário, ações que trataremos sob a categoria de violência institucional (PITA, 2017), e que sustentam desde processos de humilhação e prisões arbitrárias a torturas e execuções. Somando aos slogans previamente apresentados, considero que o subsequente “Os pibes não são perigosos, estão em perigo” resume a presente discussão. Enquanto o discurso hegemônico persiste em negar esses jovens enquanto atores sociais com capacidades próprias, essa relação é estremecida através das intervenções, questionando essas estigmatizações que se tornaram “lugar comum”. O slogan produz, assim, uma inversão da situação/ator de “perigo”, desarmando a relação causa-efeito da repressão policial.
Slogans realizados em estêncil em calçada no centro da cidade. Foto realizada no Microcentro de Buenos Aires, 2019.
POSTO68
119 CONSIDERAÇÕES FINAIS Venho a entender o presente trabalho como um exercício de compreensão de significados locais em diálogo com um contexto global. Tratando-se de um tema que tem repercussões específicas ao redor do mundo, o uso de métodos repressivos pelas forças policiais vinculados a jovens, em sua maioria homens racializados, e em contextos de pobreza, edifica-se enquanto problemática urgente dos tempos atuais. Usando a justificativa de políticas de segurança urbana, combate à violência e às drogas, a expansão do poder policial passa a ser não apenas tolerada, mas também incentivada. Os slogans surgem como reação a suas enunciações opostas que, reiteradas cotidianamente e produzindo efeitos práticos, constatam como “as miradas hegemônicas sobre a juventude latino-americana respondem aos modelos jurídicos e repressivos do poder” (CHAVES, 2005, p.9). Integrando-se a uma tradição mais ampla e histórica de construção de “memória, verdade e justiça” na Argentina, retorno às intervenções aqui abordadas para argumentar como as mesmas explicitam, para além de configurações historicamente abordadas, uma discussão incipiente na Argentina, evidenciando a dimensão racial e de classe dos efeitos da violência policial. A condição histórica das lutas dos familiares de vítimas do Estado, centrais para a construção da luta social na Argentina, é também estendida no atual contexto. Abordando especificamente as violações de direitos às quais os jovens pobres e racializados estão sujeitos através da impugnação nos muros da cidade com slogans, os próprios jovens assumem o lugar de atores nesse campo. Maria Pita (2018) desenvolve sobre como as mortes produzidas pela violência de Estado, especificamente pela polícia, durante a democracia não são de militantes políticos e ativistas sociais, de modo que à primeira vista, não parecem ser mortes políticas. Entretanto, ao recuperar Foucault e Agamben, a autora sustenta que “o poder policial e a violência deste poder são a manifestação mais clara do poder soberano e de sua capacidade de gerar vida ou morte. Nesse sentido, são mortes políticas por expressarem a pura sujeição ao poder soberano e seu poder de matar” (Ibid. p.21), porém tratam-se de vidas não políticas porque não se elegeu morrer confrontando, resistindo ao poder soberano; pelo contrário, são vidas as quais se subtraiu a eleição de morrer, como aponta Tiscornia (2008 apud PITA, 2010). É através dos protestos e da denúncia como casos não isolados que a politização dessas mortes se sustenta ao revelarem o estado de vida nua (Agamben, 2002), rechaçando a condição dos pibes enquanto seres matáveis, por isso o último slogan “nem um pibe a menos.” Através desse modo de manifestar e organizar-se politicamente, proponho abordar como essa luta se constitui a partir de categorias e histórias locais, e pessoas de carne e osso (PITA, 2010). Associando arte e política, os diversos movimentos fazem uso de tecnologias manifestantes para colocar no espaço público suas demandas. Entre elas, a luta conta a estigmatização e vulneração de direitos de jovens, pobres, negros, e marginalizados se assume como central no espaço da cidade.
120
REFERÊNCIAS ABREU, Lucía e BANQUERO, Rocío. Yo no soy un gangsta. Representaciones y discursos sobre juventud(es), violencia(s) y cultura(s). EntreDiversidades. Revista de Ciencias Sociales y Humanidades. 2018. AGAMBEN, Giorgio, (1995). Homo Sacer: O poder soberano e a vida nula. Tradução de Henrique Burigo. - Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. APPADURAI, Arjun, (1996). Dimensões Culturais da Globalização: A Modernidade sem peias. Teorema, Lisboa. 2004. BUTLER, Judith. (2018). Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa da assembleia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 266p. CHAVES, Mariana. Juventud negada y negativizada: representaciones y formaciones discursivas vigentes en la Argentina contemporánea. Última década; Lugar: Viña del Mar; p. 9 – 32. 2005. DAMATTA, R. O ofício do etnólogo, ou como ter “Anthropological Blues”. In: Publicações do programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, 1974. FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população: curso dado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008 (Coleção tópicos). GABBAY, Cynthia. El fenómeno posgrafiti en Buenos Aires. Instituto de Estética Pontificia Universidad Católica de Chile. AISTHESIS Nº 54, 2013. GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. Tradução de Eric Nepomuceno. Porto Alegre: L&PM, 2017. KESSLER, Gabriel. Las consecuencias de la estigmatización territorial. Reflexiones a partir de un caso particular. Espacios en Blanco. Revista de Educación. 2012. KOZAK, Claudia. No me resigno a ser pared. Graffitis y pintadas en la ciudad artefacto, La roca de crear, N° 2, Caracas, 2008. LAGE, Maria. Intervenciones urbanas em la ciudad global – el caso del stencil em Buenos Aires (2000-2007). Rev.latinoam.cienc.soc.niñez juv 7(1): 355-374, 2009. LAMBORGHINI, Eva e GELER, Lea. Presentación del debate: Imágenes racializadas: políticas de representación y economia visual em torno a lo “negro” em Argentina, siglos XX y XXI. Corpus, Vol 6, n2, 2016.
POSTO68
121
MEDEIROS, Flávia. “Presente!”: um olhar etnográfico sobre o lugar social dos mortos em Buenos Aires. Revista Antropolítica, Niterói, UFF, n. 37, 2. sem. 2014. p. 319.338. PETONNET, Colette. A observação flutuante: o exemplo de um cemitério parisiense. Antropolítica. Nº. 25, p.99-111. Niterói, 2008. PITA, Federico. Así es el racismo criollo. REVISTA DIGITAL ANFIBIA/UNSAM, Ensayos. Buenos Aires, 2020. Disponível em: <http://revistaanfibia.com/ensayo/asi-es-el-racismocriollo/>. Acesso em: 06/08/2020. PITA, María Victoria. Formas de vivir y formas de morir: el activismo contra la violencia policial. - 1a ed. - Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Del Puerto; Buenos Aires: Centro de Estudios Legales y Sociales – CELS, 2010. ______. Pensar la Violencia Institucional: vox populi y categoría política local; Universidad de Buenos Aires. Facultad de Filosofía y Letras. Instituto del Teatro; Espacios de crítica y producción; 53; 9-2017; 33-42. ______. La historia de un mural o acerca de la muerte, de los muertos y de lo que se hace con ellos. Muertes violentas de jóvenes de barrios populares en la Ciudad de Buenos Aires. REVISTA M. 71, Rio de Janeiro, 2018. RANCIÈRE, Jacques. Sobre políticas estéticas. Barcelona: Universidad Autónoma de Barcelona - Museo de Arte Contemporáneo de Barcelona. 2005. SEGURA, Ramiro. Ciudad, barreras de acceso y orden urbano. Reflexiones sobre juventud, desigualdad y espacio urbano. Revista Argentina de Estudios de Juventud, Buenos Aires, 2017. ROCHA, Ana Luiza Carvalho da & ECKERT, Cornelia. Etnografia de rua: estudos de antropologia urbana. Porto Alegre: UFRGS, 2013. RODRIGUEZ, Esteban Alzueta (Comp). “Hacer Bardo” provocaciones, resistencias y derivas de jóvenes urbanos. Editorial Malisia 2016. SANTOS, Rodrigo. A branquitude de white face and blonde hair. Sankofa (São Paulo), 12(23), 141-158, 2019. SIMMEL, George. A metrópole e a vida mental. In: VELHO, Otávio Guilherme (org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979, p. 13-28. TONKONOFF, Sergio, “Desviación, diversidad e ilegalismos, comportamientos juveniles en el Gran Buenos Aires”. En Delito y Sociedad. Año7. N° 11/ 12. Buenos Aires. Editorial La Colmena, p.139-168, 1998.
122
A marginalização entre ruas e esquinas: o racismo dentro da perspectiva urbanista e seus impactos nos corpos pretos na cidade de Belém do Pará Sâmyla Eduarda Moreira Blois Alves * Nara Raysa de Souza **
Resumo:
O presente trabalho tem como objetivo o debate sobre a vivência da população negra na cidade de Belém do Pará, a partir da análise da estrutura urbanística da cidade e como isso se dá nos espaços. Para isso, foi estruturado a partir de dados da última década até o atual momento, além de análises críticas as quais trouxeram a origem da cidade e os mecanismos que afetam os grupos minoritários. Concluiu-se, então, que a arquitetura e o urbanismo devem atuar na construção de espaços que possam atender aos direitos básicos para classes, raça e gêneros diversos. Além de um maior debate dentro do meio acadêmico, visto que ainda são superficiais os dados e o aporte teórico. Palavras-chave: Mobilidade Urbana, Racismo Estrutural, Urbanismo.
* Graduanda em Arquitetura e Urbanismo na Universidade Federal do Pará e autora do trabalho “A marginalização entre ruas e esquinas: O racismo dentro da perspectiva urbanista e seus impactos nos corpos pretos” (samylaeduarda@hotmail.com) ** Graduanda em Psicologia no Centro Universitário Doutor Leão Sampaio e coautora do trabalho “A marginalização entre ruas e esquinas: “O racismo dentro da perspectiva urbanista e seus impactos nos corpos pretos” (narasccp@gmail.com)
POSTO68
123 INTRODUÇÃO As questões levantadas no presente artigo são baseadas no processo de marginalização e quebra de direitos a partir do processo urbano da cidade de Belém do Pará - demonstrando a desigualdade social criada a partir de políticas públicas mal implementadas - bem como isso tende a se tornar um dos fatores de sofrimento aos corpos pretos. Iremos abrir o debate para uma compreensão maior do projeto urbanístico da cidade, compreendendo a origem da periferia no local, sendo seguido por um levantamento sobre raça, tendo em vista que seus principais moradores são em maioria negra pretas e pardas, conforme a classificação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), - ocorrendo assim, além da segregação racial, uma fortificação da estrutura racista que afeta essas pessoas. O ponto de partida, portanto, é Belém do Pará, uma cidade nortista localizada no meio da Amazônia, com suas características geológicas e climáticas advindas dessa. Sua formação se dá em uma sucessão de baixos platôs, cuja altura média não passa dos dez metros acima do nível do mar, entrecortados por diversos cursos d’água, principalmente em suas áreas de cotas mais baixas (ARAÚJO e col, 2016). Desde sua fundação, em 1616, os Portugueses fizeram uso dessa estrutura para penetrar a cidade: ocupava-se os terrenos de cotas mais altas, enquanto que os de cotas baixas, as baixadas, permaneciam vazios. Essas construções portuguesas iniciaram com o intuito militar e de demonstração de poder, para afastar outras nações de invadirem a cidade. Assim, fortificações e igrejas surgiram como forma de controle territorial e ideológico da cidade (SANTOS,2016). Posteriormente, inaugurou-se o Mercado do Ver-O-Peso, e consequentemente a mercantilização em Belém, atraindo não só outras nações como também mercadores nacionais e trabalhadores de outras regiões do estado e do país. Dessa forma, as cotas baixas e terrenos vazios supracitados foram sendo ocupados ao passo que a cidade crescia economicamente. Esse desenvolvimento foi intensificado no período de 1890 a 1910, a chamada Belle Époque cuja crença no progresso era vívida assim como a política de branqueamento, em que a elite da borracha fizera significativas mudanças na cidade e na cultura a fim de aproximá-la da ideia de “Paris na América”. As áreas baixas da cidade foram se formando de maneira diferente do restante de Belém, e tal processo se consolidou com o Plano de Arruamentos e Alinhamento de Nina Ribeiro, elaborado em fins do século XIX cujo objetivo era racionalizar o traçado e o parcelamento da cidade, modernizando-a e priorizando o trânsito de automóveis. Contudo, o plano não pôde ser executado nas baixadas devido aos alagados e cursos de rio. Sendo assim, a cidade se formava até o limite dessas áreas, iniciando uma segregação entre a cidade planejada e devidamente ocupada em detrimento das áreas de cota baixas: alagadas, sofrendo a ocupação intensiva do solo (ARAÚJO e col, 2016). Posteriormente, intervenções urbanísticas reforçaram as divergências sócio espaciais na cidade de Belém em meados do século XX durante a revolução industrial brasileira. No governo de Juscelino Kubitschek, por exemplo, o Plano de Desenvolvimento Nacional - PDN, da Operação Amazônia e do Plano de Intervenção Nacional - PIN (DIAS e DIAS, 2016), estimulou a intensa ocupação urbana por migrantes do nordeste e sul do
124 Brasil (SOARES, 2007). Além de um processo de êxodo rural que, aliado ao déficit habitacional do país, promoveu uma rápida ocupação das baixadas (SUDAM/DNOS/GOVERNO DO ESTADO DO PARÁ, 1976). No final do século XX, as intervenções e desenhos urbanos para conter a rápida expansão da periferia, sofreram da mesma limitação que em outros países: uma fragilidade no sistema de planejamento e gestão urbana, consequência de padrões herdados das regulamentações urbanísticas, zoneamentos e leis de uso do solo que beneficiavam apenas uma parte da sociedade (FERNANDES E VALENÇA, 2015). De acordo com o mapeamento de VIEIRA, RODRIGUES e RODRIGUES (2017) com base no Censo IBGE 2010, é possível notar que as habitações com renda familiar de até 1 salário mínimo se encontram nas baixas cotas da cidade, identificando assim o processo de “inchaço” da periferia e o zoneamento na falta de estrutura dessas regiões (VIEIRA, RODRIGUES e RODRIGUES, 2017). Além disso, o Censo de 2010 foi feito quando o salário mínimo no Brasil era R$ 510,00 e o trabalhador negro no Pará ganhava, em média, R$ 405,24 (IBGE 2010), portanto sendo a população preta quem mais sofre com a contradição sócio espacial do sítio de Belém. A partir do final do século XX, foi implementada a Política Nacional de Habitação (PNH) no Brasil, marcada por períodos distintos e por impactos sociais diversos (COSTA, PERDIGÃO E CAVALCANTE, 2015). Houve o surgimento da Companhia Habitacional do Pará (COHAB/PA) com o intuito de promover a urbanização, o saneamento básico, a regularização fundiária, e a inclusão social de população localizada em área de assentamentos irregulares inadequada à moradia, visando a sua permanência na área ou sua realocação (PAES E NEVES 2017). Contudo, não é um programa que consegue atender à demanda das regiões periféricas e baixadas da cidade (FERNANDES E VALENÇA, 2015), sendo as últimas carregando as características do solo amazônico e a implementação da auto-construção de habitações em palafitas (ARAÚJO e col, 2016). DESENVOLVIMENTO A implementação das políticas habitacionais teve como consequência a mudança significativa no perfil das cidades brasileiras, “promovendo a intensificação do processo de verticalização, de periferização e de expansão da rede de infraestrutura urbana” (COSTA, PERDIGÃO E CAVALCANTE, 2015). Em Belém, o BNH foi responsável pela produção de diversos conjuntos habitacionais e intensificou a conurbação da Região Metropolitana de Belém aos municípios de Ananindeua e Castanhal, uma vez que os empreendimentos do mercado popular promovidos pela COHAB/PA foram construídos nessas localidades (SILVA e TOURINHO, 2015). Atualmente, a instituição tem como missão “Executar a Política Habitacional do Estado contribuindo para a qualidade de vida da população, em especial, a de baixa renda” (COHAB), sendo responsável por programas habitacionais, como o Programa de Aceleração de Crescimento (PAC); Cheque Moradia e Minha Casa Minha Vida; e pesquisas sobre a cidade neste sentido. Em 2001, foi criada a Lei 10.257, conhecida como Estatuto da Cidade, a qual garante o direito à cidade como saneamento ambiental, transporte, infraestrutura urbana, trabalho, lazer e etc. Posteriormente, a Constituição Federal, de acordo com a Declaração dos Direitos Humanos da ONU,
POSTO68
125 introduziu-na o Direito à Moradia como parte do estatuto (IACOVINI, 2019). Ainda, de acordo com o Comentário Geral nº 4 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU (1991), define algumas dimensões para a sua efetivação, dentre elas a infraestrutura e equipamentos públicos e a localização adequada. Ao analisar a Lei em questão, é possível observar as grandes problemáticas nas soluções habitacionais implementadas anteriormente no que diz respeito à habitação da população periférica da cidade: o afastamento dos conjuntos habitacionais em relação ao centro da Região Metropolitana de Belém, admitindo-se um remanejamento para áreas em desvantagem ao acesso aos serviços e comércios da cidade, bem como às dimensões garantidas pelo Estatuto da Cidade (SILVA e TOURINHO, 2015). O primeiro conjunto habitacional construído pela COHAB foi o Nova Marambaia I, em 1966, sendo executadas cerca de 834 unidades (COHAB). Após a construção dos conjuntos pela região metropolitana, formavam-se “vazios” que posteriormente se valorizaram, atraindo políticas habitacionais e um melhor desenvolvimento da infraestrutura da cidade em torno dessas habitações (SILVA e TOURINHO, 2015). Em torno da Nova Marambaia I, surgiu o Bairro da Marambaia que hoje possui em média 5017 habitantes (CENSO IBGE 2010), sendo 74% dessa população formada por Pretos e Pardos (CENSO IBGE 2010), e, de acordo com os levantamentos do Censo 2010 e do IAGUA, em 2008, a Marambaia está entre as Áreas de Aglomerados subnormais e Assentamentos precários no município de Belém (PLANO DIRETOR DE BELÉM). Outros bairros periféricos da Região Metropolitana de Belém se consolidaram conforme as intervenções urbanísticas da cidade e o desenvolvimento da mesma ao longo da história. Contudo, a precariedade nessas regiões se firmou ao passo que a cidade se ergueu, como é o caso das baixadas. Bairros como o Guamá, por exemplo, que possuem números consideráveis de canais, deficiente sistema de drenagem, grande acúmulo de lixo (devido ao descarte inadequado e coleta ineficiente) e grande adensamento, estão sujeitos a alagamentos durante o período de alto índice pluviométrico da região amazônica. Logo, o contexto urbano assimilou as baixadas com pobreza, água e deficiência de infraestrutura, dificultando inclusive o seu planejamento e intervenções (ARAÚJO e col, 2016). De acordo com o Censo 2010, hoje o Guamá comporta 1339 habitações, nas quais habitam 2447 Pretos e Pardos. Portanto, percebe-se que o desenvolvimento urbanístico da cidade acompanha o padrão no qual áreas em vantagens urbanística são valorizadas para uma classe de renda média-alta e de população majoritariamente branca, enquanto que a população preta ocupa baixadas e periferias. Contudo, entende-se a segregação sócio espacial da cidade de Belém como um dos mecanismos do racismo estrutural na sociedade, no qual o povo preto não terá acesso a direitos garantidos por lei. A estrutura da cidade e violência urbana resultam-se das vivências que a sociedade possui (ABOIM 2012). A partir da análise das formações dessas, dentro de uma estrutura capitalista que engloba atividades como especulação imobiliária, valorização da produção e uma estrutura social desequilibrada, pode-se seccionar perfis de vivências e violências como classes, cor, raça e gênero (PACHECO, 2019). O direito à cidade promove não só relações de trabalhos e serviços,
126 como também as relações de troca e convivência. Contudo, não pode-se dizer que todos os cidadãos possuem esse direito, quando constata-se que a experimentação da cidade é diferente para os gêneros. Enquanto que os homens convivem nos espaços públicos, por exemplo, com medo de assaltos, as mulheres além disso, possuem o medo de serem assediadas, ameaçadas e violadas em diversos níveis de abuso (ROLNIK, 2016). Portanto, espaços públicos e privados são frutos das relações sociais, sendo notável o desequilíbrio e uma relação dominantemente masculina. (PACHECO, 2019). Essa relação é intensificada dentro do processo de periferização das mulheres, uma vez que a população de periferia sofre com os estigmas de sua localização, na qual o desenvolvimento da cidade associa à diversos conceitos (ARAÚJO e col, 2016), inclusive à ideia de “desordem” e risco à “saúde” ou “sociedade” por parte daquela comunidade (ROLNIK, 1995). Ainda, com o processo de espraiamento dessas áreas, o acesso à cidade é prejudicado, e a conexão desse grupo com setores de emprego, cultura e saúde, por exemplo, exige de grandes viagens e motivação dos mesmos (ROLNIK, 1999). Portanto, ao analisar o afastamento espacial de mulheres dentro de um sistema de desigualdade de gênero em Belém, entende-se que a falta de oportunidades e acesso à cidade gera um sistema de opressões nas mesmas. De acordo com o PNUD, cerca de ¼ das mulheres na cidade de Belém ganham até 1 salário mínimo e mais de 16% delas estão na linha de pobreza ou extrema pobreza. Investigando-se as consequências desse quadro de gênero, percebese que dentro de sua moradia, as mulheres da cidade de Belém possuem pouco acesso à infraestrutura. O PNUD apresenta que 10% delas não obtém água encanada, por exemplo, e em bairros como o Guamá, apenas 38% das moradoras possuem acesso à banheiro exclusivo ou sanitário e esgotamento. Quando essas mulheres precisam acessar aos serviços da cidade, encontram dificuldade para alcançar direitos básicos garantidos pelo Estatuto da Cidade e, por fim, são acompanhadas por constante ameaça de serem violadas ou serem associadas ao “perigo” por serem mulheres periféricas . A concepção de raça na literatura brasileira a partir da mobilidade urbana ainda se encontra em estágios iniciais. Para se abarcar sobre o assunto, se faz necessário o debruçamento em discussões levantadas sobre desigualdade racial e racismo nas cidades. Rolnik relata que a própria existência de dinâmicas de segregação racial nas cidades não é unanimidade nos estudos urbanos, que outros autores como Gilberto Freyre, explica a visão da “democracia racial”. Tal ideia pautada em como o país se vendia, enquanto um território de relações harmônicas, onde a afirmação de espaço racial não fazia nexo com as dinâmicas sociais, seria oposto ao modelo racial dos Estados Unidos, um dos mais extremos. Diante disso, o debate epistemológico em torno da importância da categoria “raça” tem sua figura de segundo plano o Estado brasileiro, que durante seu processo de industrialização, tentou construir uma identidade nacional única, sendo ela homogênea, mas para isso era necessário apagar os conflitos raciais que cada vez mais aumentavam, expressos pelas revoltas populares nos contextos urbanos e rurais (Silva e Souza, 2012). Esse ideal construtivo de uma “nação civilizada” originava-se de uma perspectiva essencialmente racista e eugênica. Não só pela tentativa de embranquecer a população, sendo ela majoritariamente negra, como também, oriunda de povos indígenas. Objetivou o apagamento desses POSTO68
127 homens e mulheres racializados no espaço demográfico, para que assim, as políticas de remodelação de centros urbanos e outros espaços conseguissem uma maior semelhança com as áreas nobres de padrões europeus. As principais ferramentas políticas urbanas do Brasil, pós-abolição, nasceram dessa necessidade de “limpar” a cidade e organizá-las a partir dos poderes municipais recém instituídos. A intensificação da construção de hospitais psiquiátricos nas capitais se deu com esse intuito de higienizar a cidade, enclausurando aqueles que não tinham moradia para serem afastados, como moradores de ruas, prostitutas ou qualquer pessoa que não se encaixava nos parâmetros de padronização ideal definida pelo Estado. Segundo Rolnik (1989) os territórios negros foram os principais alvos dessas intervenções, o que está na raiz do processo de segregação urbana das cidades brasileiras. Essas estratégias não se limitaram a intervenções físicas, como reformas e expulsões de comunidades negras, mas também se deram no campo simbólico, marginalizando, estigmatizando e criminalizando tudo o que fosse relacionado. Tendo parâmetros da cidade de Belém, com comparativos básicos como renda e escolaridade, é notória a disparidade que há entre brancos e negros. A renda per capita para Negros se dá em R$ 677,61 (PNUD, 2010), por outro lado a de Brancos se faz com 1.328,53 (PNUD, 2010) uma diferença com mais de 50%. Tratando do âmbito educacional, foi observado que em todos os níveis de educação, constando desde o fundamental até o ensino superior, há uma disparidade entre pessoas brancas e negras. Lélia Gonzalez (1982), revela como se dá essa divisão racial dentro do espaço da cidade: “O lugar natural do grupo branco dominante são moradias amplas, espaçosas, situadas nos mais belos recantos da cidade ou do campo e devidamente protegidas por diferentes tipos de policiamento: desde os antigos feitores, capitães do mato, capangas, etc., até a polícia formalmente constituída. Desde a casa grande e do sobrado, aos belos edifícios e residências atuais, o critério tem sido o mesmo. Já o lugar natural no negro é o oposto, evidentemente: da senzala às favelas, cortiços, porões, invasões, alagados e conjuntos “habitacionais” (cujos modelos são os guetos dos países desenvolvidos) dos dias de hoje, o critério tem sido simetricamente o mesmo: a divisão racial do espaço.” (Gonzalez e Hasenbalg, 1982, p. 15).
Os dados levantados anteriormente são resultados do processo racista divisório realizado pelo Estado, colocar essas pessoas a margem da cidade é também colocá-las à margem do direito à educação, saúde e lazer. Ademais, essa visualização dos dados foi observada em uma perspectiva delimitada a raça, quando se adentra na visão do recorte de gênero se percebe uma piora de resultados, principalmente focados à violência sofrida pelas mesmas. No Brasil, a taxa de feminicídio entre mulheres brancas decresceu em torno de 20%, enquanto de mulheres pretas cresceu em mais de 30%. De acordo com o relatório da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos do Estado do Pará, entre os anos de 2010 a 2012, foram 15.652 denúncias realizadas no DEAM (Divisão Especializada de Atendimento à Mulher) na cidade de Belém, no qual mais de 40% dessas denúncias eram mulheres residentes da periferia da cidade. Os crimes alegados nessas ocorrências variam de agressão, assédio moral, tentativa de estupro, atos obscenos; entre outros. De acordo com o Art. 22 do Tratado de Direitos Humanos da ONU, todo ser humano, como membro da sociedade, tem direito à segurança social e à realização, pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos,
128 sociais e culturais, indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento de sua personalidade, assegurado também pela constituição nacional. Entretanto, sem políticas públicas assertivas para permanência do bem estar coletivo e equidade desse grupo minoritário, não há como pensar em cidades inclusivas, ou diminuição do abismo apresentado nos dados anteriormente apresentados. CONSIDERAÇÕES FINAIS A literatura brasileira vem adentrando discussões sobre os diferentes marcadores sociais no que diz respeito às questões urbanas. Ao analisar, por exemplo, a mobilidade urbana, percebe-se que a perspectiva de gênero apresenta maior relevância acadêmica do que a perspectiva de raça - o que demonstra a diferença na quantidade de materiais produzidos e dados levantados a respeito. Essa diferença expressa a omissão do Estado sobre a existência da população negra e, apesar das abordagens e discussões serem recentes, os indicadores e marcadores sociais trazidos por este trabalho demonstram que a alta desagregação sócio territorial na cidade de Belém é apenas um reflexo de todo o território nacional. É importante salientar que, análises sobre a cidade que considerem categorias como gênero e raça permitem releituras de fenômenos sociais e sua relação com o espaço urbano. Quando estas não são levadas em questão, a leitura daquele espaço se faz incompleta por não levar em conta as particularidades que ali residem. Vendo a partir de uma perspectiva interseccional, Crenshaw estabelece que é possível compreender a complexidade das desigualdades sociais por intermédio de um enfoque integrado, pois “enfoque interseccional vai além do simples reconhecimento da multiplicidade dos sistemas de opressão que opera a partir dessas categorias e postula sua interação na produção e na reprodução das desigualdades sociais” (Bilge, 2009, p. 70). A partir do momento em que se consegue entender as particularidades de cada grupo, contribui-se com o rompimento de relações de poder e a criação de um ambiente de maior autonomia e independência para as pessoas, além de desconstruir a ideia do “ser universal”, sendo o homem branco o contemplado pelo planejamento urbano. Para isso, é importante que esses temas sejam integrados de forma adequada às análises e dos planos urbanos, com o intuito de inverter essa lógica de apagamento de determinados grupos e, assim, pensar possíveis saídas e formas de romper com os sistemas de exploração e discriminação e reduzir as desigualdades construídas ao longo do processo sócio-histórico das mesmas.
POSTO68
129 REFERÊNCIAS ABOIM, Sofia. Do público e do privado: uma perspectiva de género sobre uma dicotomia moderna. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 20, n. 1, p. 95-117, maio 2012. ISSN 1806-9584. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/S0104-026X2012000100006>. Acesso em: 1 ago. 2020. doi:https://doi.org/10.1590/S0104-026X2012000100006. 88.
BILGE, S. (2009), “Théorisations féministes de lʼintersectionnalité”. Diogène, 1 (225): 70-
COELHO, Geraldo Mártires. Anteato da belle époque: imagens e imaginação de Paris na Amazônia de 1850, Revista de Cultura do Pará, (16), n. 2, 2005. ______. No coração do povo: o monumento à República em Belém (1891- 1897). Belém: Paka-Tatu, 2003. ______. O brilho da supernova: a morte bela de Carlos Gomes. Rio de Janeiro: Agir; Belém: UFPA, 1995. ______. Um pouco aquém da belle époque ou quando o Francesismo se insinua no Pará oitocentista. In: CUNHA, José Carlos C. da. Ecologia, desenvolvimento e cooperação na Amazônia. Belém: Unamaz, 1992. COSTA, PERDIGÃO;CAVALCANTE, Lilia Iêda. Política habitacional em Belém (PA): estudo sobre adaptação habitacional em tipologias multifamiliares. Argumentum [en linea]. 2015, 7(2), 302-317[fecha de Consulta 15 de Agosto de 2020]. ISSN: . Disponible en: https://www. redalyc.org/articulo.oa?id=475547145022 GONZALEZ, L.; HASENBALG, C. Lugar de negro. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1982. MEDEIROS, Jorge França da Silva. Territórios da Cidade, Territórios de Trabalho: Uma análise do Processo de (Des)Organização do Centro Comercial de Belém. ENCONTRO NACIONAL DA ANPUR, 12./2007 - Belém. Anais. Belém: Campus Universitário do Guamá, 2007. PACHECO, A. Luiza. A LUTA POR UMA CIDADE FEMINISTA: uma análise da opressão feminina sob um viés marxista. Florianópolis. 2019. ROLNIK, Raquel. As mulheres também têm direito à cidade? Disponível em:https:// raquelrolnik.wordpress.com/2016/03/14/as-mulheres-tambem-tem-direito-a cidade/. ROLNIK, Raquel. O que é a cidade. São Paulo: Brasiliense, 1995. (Coleção Primeiros Passos; 203). SILVA, T. D.; SANTOS, M. R. A Abolição e a manutenção das injustiças: a luta dos negros na Primeira República Brasileira. Cadernos Imbondeiro. João Pessoa, v.2, n.1, 2012.
GRIN Serigrafia 42x59cm (suporte) - Sulfite Branco 250g 12x19cm (mancha grรกfica) Wesley Lima Brito 2020
132
Construções da arte latino-americana entre representar e apresentar Amanda Saba Ruggiero *
Este ensaio procura aproximar as exposições de arte latino-americana aos documentos históricos, para pensar de que modo a América Latina se desenha e circula para além dos anseios, desejos e reflexões intelectuais, de grande valia para o pensamento e o projeto latino-americano. O arcabouço teórico e o documental1 reunidos em torno dos embates sobre o que se entende, se existe ou não uma arte latino-americana2, das inúmeras controvérsias, mostras e seminários realizados desde os anos 1970 em âmbito acadêmico e institucional, configuram extenso conjunto para contextualizar e problematizar temas historicamente recorrentes ao abordar a ampla produção latino-americana, desde as categorias do fantástico, do exótico e o surreal. Acrescente-se que muitas vezes tais classificações residem em narrativas impregnadas pela recorrência de determinados grupos de artistas e movimentos em coleções públicas e privadas. Por outro lado, o colonialismo acentuado pela herança e continuidade em relatos panorâmicos e históricos, inscreve repetidamente relações em um sentido único metrópole-colônia, cujo reconhecimento das particularidades e autonomias, diferenças e contextos pouco se revelam.
*
Professora, pós-doutoranda e pesquisadora do GMP (Grupo Museu/Patrimônio da FAU-USP), estuda teoria e história das artes e da arquitetura e urbanismo, com especial interesse nas relações entre arte e arquitetura nos espaços urbanos e institucionais, em trajetórias de arquitetos e artistas, no design e história das exposições. Doutora pela FAUUSP na área de teoria e história da arquitetura e urbanismo na linha História e Fundamentos Teoria das Artes. Possui mestrado em teoria e história e graduação em arquitetura e urbanismo pelo IAU-USP São Carlos. Foi professora substituta nos cursos de Artes Visuais e Design pela Faculdade de Arquitetura Artes e Comunicação da UNESP-Bauru. Atualmente, é bolsista de pós-doutorado CAPES/PNPD na Faculdade de Arquitetura da USP e professora substituta no IAU-USP São Carlos.
POSTO68
133 1 O importante trabalho realizado pelo Museu de Belas-Artes de Houston-E.U.A. e ICCA documents com a iniciativa de reunir documentos e material sobre arte, crítica de arte e eventos, realizado de modo colaborativo com estudiosos de diversos países, a fim de traduzir e disponibilizar documentos e textos sobre arte latino-americana, disponível gratuitamente para pesquisadores na versão em língua original e traduzidos para inglês. 2 Há indicações prováveis de que expressão América Latina apareceu impressa pela primeira vez na correspondência entre Napoleão III, e o ministro das relações internacionais francês, Édouard Thouvenel (1818-1866), assinadas em janeiro de 1862, após a invasão francesa ao México. Na coletânea Resisting Categories: Latin American and/or Latino? As cartas trocadas entre Charles Calvo e Édouard Thouvenel, estão reproduzidas e traduzidas para o Inglês. (OLEA, RAMÍREZ e YBARRA-FRAUSTO, 2012, p. 105110) 3 O texto de Guy Martinière, The invention of an operative concept: The latin-ness of America, 1978, faz uma retomada histórica dos usos e as implicações políticas do termo América Latina, e emprega o termo construto, como uma extensão e sentido maior do que termos como Europeus, africanos e Asiáticos, neste sentido defende a ideia de um constructo, uma construção de ideias, com finalidade e sentido programado. (OLEA, RAMÍREZ e YBARRA-FRAUSTO, 2012, p.164) 4 Na coletânea Resisting Categories: Latin American and/ or Latino? , as cartas trocadas entre Charles Calvo e Édouard Thouvenel, estão reproduzidas e traduzidas para o Inglês. (OLEA, RAMÍREZ e YBARRA-FRAUSTO, 2012, p. 105110) 5 Nas entrevistas realizadas durante pesquisa de doutoramento, os curadores Luiz Pérez-Oramas, Gabriel Pérez Barreiro e Mari Carmen Ramirez atribuíram o uso e o emprego no campo artístico a Alfred Barr, ao nomear e exibir como a primeira coleção de Latin American Art nos Estados Unidos. Ver introdução do catálogo da exposição de The Latin American Collection of The Museum of Modern Art, 1943. Disponível em: <https:// www. moma.org/documents/ moma_ catalogue_2897_300099431. pdf>.
Contrariando as habituais críticas históricas às mostras coletivas de arte latino-americana, duas exposições recentes propõem novas leituras e abordagens para além das recorrências simplistas e estereotipadas, demonstram resultados de pesquisas acadêmicas e históricas alinhadas ao circuito de museus internacionais e da cidade de São Paulo, “Vizinhos Distantes: A arte da América Latina no acervo do MAC-USP”, promovida pelo Museu de Arte Contemporânea da USP (2015-20) e a mostra “Mulheres Radicais: arte latino-americana 1960-1985”, exibida na Pinacoteca do Estado de São Paulo em 2018. Ambas aludem para uma arte latino-americana que supera estereótipos por meio de pesquisa aprofundada e novas interpretações estéticas e históricas não muito abordadas pelas artes visuais em seus espaços de representação. Identificar os usos da arte latino-americana e os seus efeitos, parece inviável dada a extensão do território, a complexidade de hábitos, culturas, economias, especificidades e multiplicidades de ações envolvidas. Partindo do pressuposto que se trata uma construção externa3, cujos significados e interpretações decorrem das desigualdades e conveniências de seus empregos em determinadas situações4, a genealogia engendrada por visão externa, transfere a Latin American Art ao sistema das artes internacional, para alguns cunhada por Alfred Barr, primeiro diretor do Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA-NY)5. Embora não exista consenso sobre o que significa denominar uma produção de arte latino-americana, a expressão é cada vez mais adotada por museus, instituições acadêmicas, colecionadores, feiras e leilões de arte. Indicaria resposta aos interesses do sistema internacional das artes? Seriam estes exclusivamente a comercialização, rentabilidade financeira ou até mesmo o que denominamos “lavagem de dinheiro” por meio de obras de arte? Vale considerar de modo sucinto três instâncias ou empreendimentos, que sustentam e engendram a história da arte: a pesquisa e a produção do conhecimento enquanto disciplina acadêmica, os sistemas institucionais formado por eventos, exposições promovidos por museus, centros culturais, e por fim o capital, os sistemas de galerias e feiras que garantem a existência de um sedutor e rentável mercado
134 6 Ribeiro, Darcy. A América Latina existe? (1976) In Ensaios Insólitos. Biblioteca Básica Brasileira. UnB, Fundação Darcy Ribeiro. 2015. Disponível em: <http://www.fundar. org.br/bbb/index.php/project/ ensaios-insolitos-darcy-ribeiro/>. 7 Em discurso proferido no simpósio da I Bienal de Arte Latino Americana em 1978. Bienal, Latino Americana de São Paulo: Simpósio 1. Bienal Latino-Americana de São Paulo (1978). Ministério das Relações Exteriores; Ministério da Educação e Cultura Fundação Bienal de São Paulo. São Paulo. p.6.
de arte. Pensar a arte latino-americana por meio destas engrenagens, pretende este texto, sabendo que desde a Segunda Guerra Mundial, o termo latin american art sofreu mudanças drásticas em significados, da representação marginal de uma região ou um conglomerado de comunidades até o sinônimo de “hot commodities” dentro de um circuito artístico global. Para Darcy Ribeiro, a pergunta segue em outra direção: a América Latina é uma nação ou uma estrutura étnica, há alguma coesão no seu plano cultural?6. Ao pensar sobre as proximidades entre os povos, a similitude no processo civilizatório ibérico, pela inexistência da etnia pura, ou seja, a miscigenação de certa forma, também fruto da barbárie e da brutalidade dos colonizadores, torna América Latina um caso particular em todo mundo. A destruição da população indígena aqui existente, que não foi e não continua sendo pouca, e as relações de vizinhança ilustradas na metáfora do antropólogo, aludem à situação emergencial e imperativa em se reconhecer enquanto povo latino-americano: “não saber que somos latino americanos é como alguém que nasceu numa casa e nunca saiu dela, nunca viu a casa entre as outras da sua rua, nunca viu seu bairro”.7 As colocações e o apelo de Darcy Ribeiro são pertinentes aos nossos dias atuais, a urgência em aproximar, trocar e aprender com nossos vizinhos, em cooperações e reconhecimento coletivo de semelhanças, a convivência necessária também por meio da arte, em sistemas de produção, salvaguarda e circulação e não somente pautado pelos acordos internacionais, interesses econômicos e políticos, sem minimizar sua relevância. A situação emergencial pelo reconhecimento e unificação dos laços latino-americanos nos anos 1970, compartilhada por intelectuais, professores e críticos de diversas disciplinas, liderada pela literatura (Ángel Rama) idealizava união visando o combate aos regimes ditatoriais vigentes8, governos apoiados pelos norte-americanos, compelindo o silêncio por meio do exílio, tortura, desaparecimento e a morte de pessoas, em detrimento ao estado democrático de direito. O exílio enquanto trauma, dor, sentimento comum é encarado por vezes como resistência, compartilhado por meio da literatura, da poesia, das artes visuais e da música, é outro elemento invisível cuja tessitura dura e áspera reúne em laços fortes as similitudes na América Latina9. Em Buenos Aires o Parque da Memória e o monumentos as vítimas de terrorismo de estado abre a ferida e a expõe em espaço público, crava no tecido urbano as ausências e desaparecimentos, de modo silencioso, atribui novos significados às águas do rio La Plata, em processo de elaboração
POSTO68
8 Os regimes de ditadura militar iniciaram no Paraguai e Guatemala 1954, Brasil 1964, Argentina 1966, Peru 1968, Uruguai 1973, Chile 1973. 9 Para uma abordagem da literatura latino americana escrita por mulheres durante os exílios da ditadura militar recomendo o livro de Paloma Vidal, A história em seus restos, literatura e exílio no cone sul. São Paulo: Annablume, 2002. 10 A I Bienal de Arte Latino Americana privilegiou a presença do Brasil, México e Argentina na opinião do crítico de arte Frederico Morais. O receio de um etnocentrismo latino americano reproduzido, formulado por Mário Schemberg, Radha Abramo, Sheila Leirner, colocou-se em oposição daqueles que defendiam enfaticamente a realização da Bienal, bem como a necessidade de nossa arte continental. Compartilhavam desta posição, a favor do evento, os críticos Aracy Amaral, Roberto Pontual e Mário Pedrosa (MORAIS, 1979, p. 63). Enquanto a discussão teórica nos vários simpósios sobre arte latino americana tenderia a tornar-se autônoma, a produção plástica viveria ainda à míngua de interpretações e os dois campos se distanciavam cada vez mais. “Raramente no Simpósio de São Paulo, a discussão esteve centrada na obra de algum artista, e quando isso ocorria não tínhamos a nossa frente o trabalho original ou sequer sua reprodução (slide).” (MORAIS, 1979, 65). A posição de Aracy Amaral nos textos escritos no período, rebateu as críticas de Frederico Morais, sobre o modismo aferido à arte latino americana. Amaral defendeu a necessidade de assumir e pensar a produção latino-americana a partir de estudos sistemáticos e um
135 entendimento próprio, correndo os riscos necessários. O título do texto se refere ao receio pelo uso da terminologia: “O regional e o universal na arte: porque o temor pelo latino americanismo?” E se justificou: “(...) o interesse latino-americano por seu próprio continente ajudará a desfazer essa distorção: nos ver, no decorrer do processo, com realismo, assumirmo-nos, em consequência, e projetar nosso amanhã a partir de nossa situação real” (AMARAL, 1983, 295). 11 Encontro da UNESCO em Quito (1970), Simpósio sobre Arte e Literatura Latino-Americana em Austin, Texas (1975), Primeiro Colóquio Internacional de História da Arte no México (1975), Primeiro Encontro de Críticos de arte e artistas plásticos Latino Americanos em Caracas(1978), Simpósio Latino-Americano em Buenos Aires (1978), Simpósio da I Bienal Latino Americana de São Paulo (1978), Primeiro Colóquio Latino-Americano de Fotografia realizado no México (1978), Primeiro Colóquio de Arte não objetualista organizado pelo Museu de Arte Moderna de Medellín (1981), Encontro de Artes Visuais e Identidade na América Latina organizado pelo Fórum de Arte Contemporânea do México(1981), Colóquio da I Bienal de Havana (1984). 12 Serviddio, Fabiana. (2012) Arte Y Crítica En Latinoamérica Durante Los Años Setenta. Buenos Aires: Miño Y Dávila, p.245. 13 Discurso de Mário Pedrosa para simpósio Bienal. Bienal, Latino Americana de São Paulo: Simpósio 1. Bienal Latino-Americana de São Paulo (1978). Ministério das Relações Exteriores; Ministério da Educação e Cultura Fundação Bienal de São Paulo. São Paulo.v.1 p.9. 14 Luis Pérez-Oramas nasceu em Caracas na Venezuela, atualmente, mora em Nova York, ocupou o cargo The Estrellita Brodsky Curator of Latin American Art no Museu de Arte Moderna 2017. É escritor, poeta e historiador de arte, foi curador responsável pela 30th Bienal de São Paulo 2012, organizou a mostra Tangled Alphabets, Mira Schendel e León Ferrari,e organizou diversas exposições no MoMA, Latin American and Caribbean Art: Selections from the Collection of The Museum of Modern Art (2008); New
e construção participativa com a comunidade local, um exemplo a ser valorizado e observado por nós vizinhos. No campo das artes plásticas, no Brasil, a I Bienal de Arte Latino Americana realizada em São Paulo em 1978, criou espaço potencial para trocas em seminário e exibição, apesar do evento não prosperar em futuras edições10. Os diversos simpósios, congressos e conferências organizados nesse período sistematizam o pensamento crítico sobre o comum, a produção e a América-Latina11. Nos encontros em que se discutiu a arte latino americana polarizaram-se opiniões e os críticos buscaram se posicionar diante das questões vigentes, em especial três eixos temáticos: “A busca de uma identidade plástica própria da América Latina”; “O questionamento das metodologias tradicionais de análise, que se avaliava a partir do cânone da arte universal ocidental”; “E as conexões entre a arte e o contexto político da região”12. Para Mário Pedrosa, a unidade da América Latina se faz pela miséria do povo, pela mestiçagem, pela opressão e submissão ao imperialismo. Mas é no que denomina “exercício experimental da liberdade”, reação identificada nas ações de artistas que se recusam integrar à sociedade de consumo de massa, com “as mais niilistas experiências atuais”, o sopro de emancipação. Pedrosa referia-se aos artistas que não faziam obras perenes para o mercado, obras que “propõe atos, gestos, ações coletivas, movimentos no plano da atividade criatividade”13. Do ponto de vista de Luis Pérez-Oramas14, curador de arte latino americana do MoMA-NY durante 15 anos, ao pensar a arte latino-americana enquanto construção, é preciso interpretar uma dimensão conceitual e uma dimensão ideológica no sentido marxista do termo. A dimensão conceitual é uma categoria que serve para definir uma série de objetos, e a ideológica funciona mantendo certas relações de poder estabelecidas. Para a curadora e historiadora Mari Carmen Ramirez15, a latin american art é um termo prático, usado como um constructo operativo, e existe enquanto uma utopia. É a tentativa de abordar uma região como um todo, devido a algumas similaridades como o colonialismo, a língua e a religião predominante. Na arte, tem uma relação de afinidades que se aproxima, como a história, economia, a origem indígena e isso justifica seus usos. No Brasil, o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP) durante seus anos iniciais e a década de 1970, abrigou em seu
136
interior as mais diversas manifestações artísticas, em ações, performances e happenings, arte postal e conceitual, de artistas nacionais, latino americanos, europeus (leste) e norte-americanos, cujos registros posteriormente deslocaram-se dos arquivos do museu ao acervo técnico. A convergência da diversidade e das contradições do período, em plena transição dos pressupostos da arte moderna às expressões contemporâneas. Assim, em certo sentido, configura abertura que um museu público e universitário tem o potencial de abrigar, comprometido com a produção de conhecimento, pesquisa, ensino e menos comprometido com questões de mercado. A presença latino-americana anunciada no primeiro catálogo geral do acervo, publicado em 1973, pelo então diretor Walter Zanini, era a vertente da op arte e arte-tecnologia16, representadas por Jesús Rafael Soto e Nemésio Antúnez.17 No simpósio de Austin em 1975, Aracy Amaral essencialmente abordou a existência de um meio artístico carente de crítica e de mercado capaz de estimular a classe artística, já que majoritariamente eles saem para exterior, atraídos por um meio pulsante, e somente são valorizados no Brasil após o reconhecimento internacional. Outra característica comum aos latinos foi a participação na Bienal de São Paulo, incluindo a presença em salas especiais ou recebendo premiações. A tela de Ricardo Martinez procede da representação Mexicana da Bienal de 1963, José Luis Cuevas recebeu prêmio Internacional de desenho na V Bienal de São Paulo em 1959. Apesar das intermitências das aquisições e irregularidades para com uma política estratégica de formação e preservação de acervo público, soma-se o esforço dos diretores em efetuar aquisições de qualidade e representativas. Como primeiro diretor do MAC-USP, no período de 1963-1978, Walter Zanini com empenho de instalar uma rede de cooperação e discussão das questões relativas à direção e finalidades dos museus no país, em 1966, ao lado de Ulpiano Bezerra de Menezes convocaram dirigentes de museus nacionais para formar a Associação dos Museus de Arte do Brasil (AMAB).18 A proposta apresentada por Zanini, como representante do MAC e da AMAB, sugere aos latino-americanos a Associação dos Museus da América latina. O estímulo de trocas com artistas do leste da Europa (Polônia e ex-Tchecoslováquia) e da América Latina, buscava alternativas, em plena Guerra Fria, por meio dos envios postais de trabalhos artísticos, abrindo novos circuitos e intercâmbio em período de censura política e restrições econômicas. Posteriormente, iniciado em meados da década de 1990, o extensivo trabalho de pesquisa liderado por Cristina Freire, ampliou e divulgou a rede de arte conceitual formada neste período. Da gestão inicial POSTO68
Perspectives in Latin American Art (2007); Transforming Chronologies: An Atlas of Drawings (2006),Tarsila (2018), Lygia Clark (2014), entre outras. PÉREZ ORAMAS, L. Entrevista para Amanda Saba Ruggiero, Nova York, 01 mar. 2013. 15 RAMIREZ, M. C. Entrevista para Amanda Saba Ruggiero, Houston, 11 fev. 2013. 16 Op-art ou optical art, arte do olho, explora o movimento da pintura geométrica apenas com a utilização de elementos gráficos, e arte-tecnologia se apropria dos novos meios de comunicação, como computadores, câmeras, vídeos, e instrumentos para produção dos trabalhos artísticos. 17 No acervo, algumas situações “excepcionais”, nas palavras de Zanini, permitem “blocos nacionais”, como os italianos, os norte-americanos por meio das doações de Nelson Rockefeller, dos japoneses e latino-americanos, representados por: Oscar Reino Garcia, Carlos Aliseris, Luiz Martinez Pedro, Juan Ventayol, Marina Nuñez Del Prado, Marta Colvin, Nemesio Antúnez, Fernando de Szyszlo, Humberto Jaimes-Sánchez, Martha Peluffo, Marcelo Bonevardi, José Luis Cuevas, Nelson Ramos, Rodolfo Abularach, Omar Rayo, Mario Toral e José Gamarra entre outros.Grande parte dos artistas mencionados, estiveram de algum modo relacionados com vivência nos Estados Unidos ou em contato com artistas europeus, como por exemplo: a escultora boliviana Marina Nunez Del Prado permaneceu entre 1940-50 nos Estados Unidos, conheceu Henry Moore, Archipenko e Mestrovic; Nemesio Antúnez, passou sete anos
137
no exterior entre Nova York e Paris, Mario Toral também morou em Paris e Nova York nos anos 1970, Marcelo Bonevardi na Itália e Nova York, Fernando de Szyszlo residiu em Paris e Florença. 18 BOLETIM INFORMATIVO. São Paulo: MAC USP, n.167, mar.1972 apud ZANINI, Walter. Walter Zanini: Escrituras Críticas. FREIRE, Cristina (org.). São Paulo, Annablume, 2013, MAC-USP, p.65. 19 Além da sede, a estruturação do museu em bases modernas, organizado em Divisão Científica, Cultural e Administrativa, a primeira responsável pelo estudo e catalogação do acervo, banco de dados alimentado pelos pesquisadores desta divisão, aliado a uma programação de mostras e exibição do acervo; a divisão cultural responsável pela programação de eventos especiais e as atividades de arte educação e cursos que o museu promove até os dias atuais; e a divisão administrativa para gerenciar os recursos humanos que se ampliou no período com a contratação de 40 novos funcionários. 20 Sobre a mudança da sede da cidade universitária para o edifício do antigo DETRAN, em frente ao parque do Ibirapuera, ver matéria da USP. Disponível em: <http:// www5.usp.br/5906/mac-inaugura sede-no-ibirapuera-com-mostra-de esculturas/>. 21 FREIRE, Cristina(org.). LONGONI, Ana. (org). Conceitualismos do Sul/Sur. São Paulo: Annablume, 2009, MAC-USP. 361p.
do MAC-USP, o empenho em criar rede de associação entre museus é o ponto de interação e pensamento continental entre vizinhos da América Latina. Porém, ante as dificuldades financeiras não houve iniciativas em instituir uma política para formação de acervo público a fim de contemplar enquanto conjunto, a produção de arte latino-americana. Quanto às aquisições, o museu encontrou maior apoio por parte de instituições estrangeiras do que nacionais, na doação durante os anos 60, do “Clube del Grabado” de Montevidéu, e da “Associação Polonesa de Artes Plásticas”. As obras “Vibração” do Venezuelano Jesús Rafael Soto, e “Conceito Espacial” de Lucio Fontana são os solitários destaques do acervo internacional latino-americano adquiridos pelo museu nos anos 60. Vale notar que este acervo latino-americano foi muito pouco exibido até o início dos anos 80. Na gestão de Aracy Amaral (1982-1986), centraram-se esforços em resolver a sede própria19, entrave que tanto assolou o museu desde sua inauguração, hoje, ocupando o edifício do Parque Ibirapuera desde 201220(originalmente Palácio da Agricultura, entre 1959-2008 sede do Detran). O esforço liderado por Aracy Amaral esteve em reunir os latino americanos, em mostras que acompanharam tal nomenclatura, ao defender o reconhecimento e o fortalecimento da arte atino-americana. O contexto particular das formas artísticas, das relações institucionais na América Latina e países como a Espanha e Leste Europeu, são recuperadas em tempos recentes por pesquisas inéditas que permitem o acesso de tais documentos reavaliados por novas interpretações em complexas tramas. Além da produção em si, o processo de pesquisa e investigação se apoiou na rede colaborativa entre pesquisadores latino-americanos, como a Red Conceptualismos del Sur21. A exposição Vizinhos Distantes – Arte da América Latina no acervo do MAC-USP , em 2015 /2019, curadoria da Prof. Maria Cristina Machado Freire, trabalhou acuidade no espaço expositivo com 240 peças do acervo latino americano, explorou a diversidade de expressões artísticas, propondo amplitude de leituras acerca do conjunto, muitas vezes atribuído de forma compartimentada pela historiografia. A mirada à distância dos nossos vizinhos, como citou Darcy Ribeiro, parte de uma coexistência sem o convívio, entretanto a mostra pondera quando olhar atento, encontros e aproximações em curadoria expositiva astuciosa. Coadunam no espaço do museu dispositivos museográficos entre suportes, variação cromática, luminosidade, percursos, perspectivas visuais e vizinhança entre obras,
138 enriquecendo a experiência poética e sensorial do visitante e ampliando profusão de significados, bem como a difusão do acervo de arte-latino americana do MAC-USP. Das obras conceituais, as proximidades latino americanas estão evidentes no plano linguístico, embora distinções entre o português e o espanhol, o entendimento acontece, permanecendo diferenças e ambiguidades. Outra característica comum nos trabalhos, em que se evoca rebeldia e contestação ao inimigo comum, ao colonialismo entre poderes ao norte. A curadora Cristina Freire, colocou este conjunto ao lado dos acervo dos artistas conceituais, acessível em longa duração no MAC-USP, o que permitiu a fruição do público e o reconhecimento das obras, respeitando o tempo e sucessivas visitas em diferentes momentos, processo passível em museu com acervo permanente, garantindo a difusão e contato do público com patrimônio artístico tão importante. A mostra acompanha a planta retangular do edifício, painéis intervalados acentuam as empenas longitudinais criando circuito a valorizar passagem e contiguidade entre corredores paralelos. O visitante percorre em fluxo contínuo espacial e visual, painéis dispostos de modo a produzir corredores, posicionando agrupamento de telas frente a frente. Os trabalhos do Argentino Antonio Seguí “Difícil de Subir” (1984) e do uruguaio Sérgio Meirana “Superfícies da memória” (2008) iniciam os diálogos (pelo acesso central do edifício), com delicadeza e humor22, em conversa sobre a figuração humana, desenho e artesanato. De um lado o relevo em molduras de madeira fala das faces da memória, a lembrança dos desaparecidos políticos, a solidão, a imaginação para se flutuar entre as nuvens e subir. No painel em frente, o pintor e cartunista argentino, parece aludir à dificuldade da escalada, ao anonimato e à multidão. Urbanidade, crescimento rápido e desordenado, migrações e aglomerações das cidades latino-americanas, estão nas obras dispostas vizinhas, como o anonimato na obra “Os Transeuntes” de Nemesio Antúnez (1954), ao lado da heliografia “Comunidades” (1974/76) de Alfredo Portillos, cujo desenho esquemático propõe uma sociedade em comunidade contra o individualismo. A frente do desenho a nanquim (sem título, 1960) do cubano René Portocarrero e do desenho de Antonio Seguí, o olhar diagonal se dirige a referida grande tela de Seguí e ao fundo a emblemática “Catedral” 1961 de René Portocarrero (prêmio Sanbra na VII Bienal de São Paulo), tela de grande circulação na coleção do MAC. O posicionamento no espaço configura os ângulos visuais e perspectivas cuidadosamente planejados, como referidos acima. As fotografias e o vídeo (2010) produzidos pela artista chilena Patrícia Osses (1971), complementam o tema, um casal dançando tango nos espaços internos de uma casa, enquanto as fotografias relatam as fachadas externas das casas, tensionando interior e exterior, entre os indivíduos e a cidade.
POSTO68
22 A delicadeza está na escolha dos materiais, como a madeira esculpida a mão e escala em que o artista trabalha, homens em miniatura, similares a brinquedos infantis, passíveis de manipulação, em situações que sugere o afeto e o humor, também presente na tela de Segui, pela fisionomia, situação e traços que o artista incorpora. 23 Villamizar estudou arquitetura por 3 anos e depois artes e decoração em Bogotá, Entre 1951-4 esteve em Paris, conheceu artistas ligados a galeria Denise René e iniciou seu caminho para a abstração, em 1958 iniciou explorações no campo escultórico, com planos inclinados e verticais. 24 Jonier Marin (1946) e Santiago Rebolledo (1951), integraram a mostra Poéticas Visuais (1977), com fotocópias, offset, e recorte em conjunto com a produção dos artistas conceituais. E a aquisição mais recente, realizada em 2003, da instalação “Chuva” de Luis Fernando Peláez, da XXV Bienal foi doada pelo artista ao museu, exibida em sala ao final do andar. 25 Grande parte da coleção existente é oriunda da doação do MAM-SP, das aquisições, prêmios e doações nas Bienais de São Paulo, e de algumas compras isoladas, como por exemplo a tela “Conceito Espacial” (1965), de Lucio Fontana, adquirida em 1967, na Galeria XXème Siècle em Paris, ano anterior ao falecimento do artista. 26 Grupo de artistas fundado em Paris, em 1931, abrigou tendências da arte não figurativa: Construtivismo, Neoplasticismo, Expressionismo Abstrato, Abstracionismo 1º fase Geométrico. Teve origem no movimento cercle et carré, de Michel Seuphor e Joaquín Torres García. 27 Manifesto Branco publicado em Buenos Aires 1946, Lucio Fontana e outros artistas, defendiam a união de arte e ciência em torno de um mesmo objetivo, o de projetar cores e formas num espaço real, utilizando técnicas atuais como luz néon e a televisão, ao mesmo tempo em que negava o espaço ilusório criado na pintura tradicional. O movimento espacial exalta a importância do espaço real, existente além da tela e da escultura, e o uso da ciência e da tecnologia na transformação plástica desse ambiente. OSBORNE, Harold. Guía del Arte del Siglo XX. Madri: Alianza, 1990.
139
As aproximações entre obras reiteradas pelas cores escolhidas nos painéis organizam o espaço expositivo, azuis agrupam similaridades e aproximam vizinhos, a paleta pactua com cromatismo das pinturas. O branco neutraliza e valoriza telas abstratas e geométricas enquanto o fundo preto, acentua período obscuro das ditaduras, em que se exibem as produções dos artistas conceituais. A tela “Espelho da lua” (1965) de Ramón Vergara Grez, e “Perpendicular n.35” (1991) de Antonio Lizárraga, orientam paleta azul nos painéis suporte da expografia de um lado, com três tonalidades, ao invés de valer-se de solução simplista com espaços estanques em “ismos” definidos por escolas ou nacionalidades. A luminosidade homogênea de fundo neutro nos suportes ampliam o contraste das cores, linhas e formas geométricas. A escultura “Construção Vermelha” 1970, do colombiano Eduardo Ramírez Villamizar23, “Tilodiran” 1971 de Omar Rayo (1928-2010), fazem parte das aquisições realizadas como prêmios da 10ª e 11ª Bienal de São Paulo, obras dentre as mais exibidas, dos 11 artistas colombianos presentes no acervo.24 No conjunto dos painéis com fundo preto, em destaque na perspectiva do observador ao fundo “Conceito Espacial” (1965)25 de Lucio Fontana. As primeiras experiências abstratas de Fontana (1889/1968), iniciaram em 1930, quatro anos depois, ele integrou o grupo “Abstraction-Création”26 em Paris. Redigiu na Argentina, entre 1939/46 o Manifesto Branco, constituindo as bases do “espacialismo”, que se consagra em 1947 na Itália como “Movimento Spaziale”27. Em 1950, aos “conceitos espaciais”, introduziu perfurações, lacerações e incisões sobre o monocromático. O “conceito espacial” afirma o universo auto-referencial da arte no qual “a superfície do quadro é o teatro de gestos sucessivamente criadores” 28, em que a pintura monocromática não mais representa mas é o espaço, o espaço-ação. A relevância para a história da arte e os caminhos abertos por Fontana, explicam também a circulação da obra29. Em 1987, o Centro Georges Pompidou em Paris realizou uma grande retrospectiva de Lucio Fontana, consequentemente, o “conceito espacial” do MAC-USP, pouco ocupou a reserva técnica do museu, integrando em todos os anos de 1989 até 2015, e exibido na sede do MAC de 2015 até 2020. Outro artista argentino em evidência na coleção do MAC-USP é León Ferrari30. A escultura “Lembrança de meu Pai” (1977), em aço inoxidável, doação do artista realizada em 1978, depois de “conceito espacial” de Fontana, está entre as obras de artistas latino-americanos mais exibidas em mostras organizadas pelo MAC-USP ou emprestadas, ao lado de “Santuário Solar” de Marcelo Bonevardi e “Essa ave confessora do planeta” de Martha Peluffo.
140
A Pinacoteca do Estado de São Paulo, abrigou de outubro 2019 até fevereiro de 2020 a mostra “Nós não sabíamos”, com 94 obras de León Ferrari pertencentes ao acervo, pela primeira vez em conjunto, confeccionadas a partir de reportagens em jornais e revistas, em colagens cujo teor de crítica à igreja católica, à política e aos costumes e valores conservadores dos anos 60 e 70 são valiosos comentários salpicados de ironias visuais refinadas. Ao posicionar a produção conceitual de Fontana e Ferrari, ao lado do acervo de obras conceituais, grande maioria em papel, fotografia (Horácio Zabala) e desenhos, registros de performances (Marta Minujín) e vídeos, a curadora amplia o panorama da produção artística latino-americana por muito tempo guardados nos subterrâneos dos circuitos. A exibição Mulheres Radicais: arte latino-americana 1960-198531, ficou em cartaz na Pinacoteca do Estado de São Paulo de agosto a novembro de 2018, e teve a curadoria de Cecilia Fajardo-Hill, Andrea Giunta e Valéria Piccoli. Note-se a relevância do evento no momento em que mulheres saíram às ruas em manifestação contra o preconceito, o racismo e a desigualdade de gênero, em pleno cenário de disputa eleitoral marcado por profundas ameaças às conquistas democráticas. Trazer à tona peças realizadas em sua maioria, há mais de quarenta anos, sinalizou apreço e reconhecimento pela luta feminina dos anos 60, lutas ainda atuais e necessárias. Ademais, o efeito do conjunto recebeu novos significados carregados das vibrações contemporâneas que permeiam a dinâmica política e social em nosso presente. O corpo feminino centralizou temática devido à mudança de perspectiva que as artistas trouxeram para a história da arte, antes objeto da representação – frequentemente nu e quase sempre criado por um homem – também produz arte e conduz a uma reflexão sobre si mesma. A mostra envolvendo o período de 1960 a 1985, contribuiu enormemente para a mudança radical dos ideais anteriores, reunindo uma iconografia do corpo na arte que permitiu ver modificado um objeto em sujeito. A proposta é justificada pelas curadoras, tanto pelos traços em comum das vidas e as obras dessas artistas, imbricadas com as experiências da ditadura, do aprisionamento, do exílio, tortura, violência, censura e repressão, mas também com a emergência de uma nova sensibilidade, pelo que as individualiza, na exploração dos tópicos poético e políticos em autorretratos, na relação entre corpo e paisagem, no mapeamento do corpo e suas inscrições sociais, nas referências ao erotismo, ao poder das palavras e ao corpo performático, a resistência à dominação, feminismos e lugares
POSTO68
28 FABRIS, Annateresa in AMARAL, Aracy A. (org). Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo: o perfil de um acervo. São Paulo, MAC USP/Techint, 1988. p.157. 29 Dentre as peças mais exibidas envolvendo os artistas nascidos na América-Latina, exibida em 25 dentro e fora do MAC-USP, transitando por mostras sobre o acervo do museu, a coleção latino-americana, arte italiana, destaques internacionais, I Bienal do Mercosul, entre outras. 30 León Ferrari (1920-2013), nascido em Buenos Aires, estudou 3 anos na Itália, na Argentina integrou os movimentos políticos e culturais do Instituto di Tella de Buenos Aires (1965), Tucumán Arde (1968) e Malvenido Rockfeller (1969). Residiu no Brasil entre 1976 e 1984, quando retomou a produção de esculturas em metal, e executou a obra doada para o acervo do MAC-USP em 1978, a convivência com Regina Silveira e Júlio Plaza, o levaram ao interesse por novas mídias como esculturas sonoras, videotexto, arte postal, meios digitais, além da litogravuras e desenho. 31 Alguns trechos do texto aqui reeditados estão publicadas em versão completa em: RUGGIERO, A.; RAHME, A. M. Representação feminina em tempos de exceção. Revista ARA, v. 6, n. 6, p. 59-84, 31 mar. 2019. 32 Informações também obtidas por meio do texto de divulgação da mostra, disponível em: http://
141
pinacoteca.org.br/programacao/ mulheres-radicais-arte-latino americana-1960-1985/ 33 Entrevista com Valéria Piccoli, Diretora da Pinacoteca, realizada pela autora no dia 21.09.2019, como parte da pesquisa pós doutoramento. 34 A performance registrada em vídeo completo com a letra do poema está disponível em: <https:// www.youtube.com/watch?v=49wQtOj7iI>. 35 O poema Me Gritaron Negra é de autoria de Victoria Santa Cruz, 1922-2014 (Lima, Peru), compositora, coreógrafa e desenhista, com destaque na arte afroperuano e no combate ao racismo. 36 Disponível em: <https:// www.youtube.com/ watch?v=R6nlWmgoa-I>.
sociais.32 Para a diretora da Pinacoteca Valéria Piccoli, em um sentido mais amplo é preciso “pensar curadoria em relação à história da instituição, ao papel que a instituição desempenha num cenário de São Paulo, para outras gerações, pensar quais são os temas que a gente está trazendo à tona que podem servir para sedimentar outros campo de pesquisa no futuro.33 Logo à entrada do espaço expositivo, o poema musicado da artista Victoria Santa Cruz “Me Gritaron Negra”34, delatava em vídeo a discriminação pela diferença, em que a palavra dirigida a uma criança resultou na rejeição pelo próprio corpo, a negação de seus cabelos, sua pele e características pessoais, até o momento da mulher, diminuída cada vez mais por estas diferenças, acentua-se a palavra Negra, repetidas vezes ecoa a ponto de derrubá-la. Porém ela se levanta, olha para si, reconhece seu valor e compreende a força de ser uma mulher negra, em luta afirma sua identidade, também expressa pela gestualidade das demais pessoas que repetem em coro “Negra, Negra, Negra”. O tom das vozes, somado ao batuque de fundo, reforçam a tensão e a violência das palavras, denunciam o preconceito que ainda recai sobre a população negra. O discurso neste caso endossa e reafirma os relatos históricos da escravidão e discriminação étnica, ainda presente nos dias atuais. O vídeo revela um dos trabalhos mais fortes e impactantes no espaço expositivo da Pinacoteca35, que teve sua apresentação na mostra “Histórias Afro-Atlânticas” (2018), tanto no MASP quanto no Instituto Tomie Ohtake, reduzida a uma foto da autora acompanhada de gravação sonora do poema. A ideia da quebra de barreiras pelo uso do corpo feminino remete à luta por novos espaços e significados. Suspenso no centro da sala, um imenso cubo em acrílico, com 3 faces, uma delas recebe a projeção da performance “O ovo” de Lygia Pape. No vídeo, o corpo feminino, sujeito ativo e não em imagem idealizada, em plena ação numa praia se funde à natureza no ritual, no processo e no significado mesmo da sequência de movimentos que desenham um processo de transformação. Numa das paredes, cenas em movimento revelam a “Passagem”, de Celeida Tostes36, na qual a fertilidade e o feminino são referências mais próximas da natureza, do despertar para um renascimento, um processo cíclico de vida e renovação. Corpo e paisagem se fundem tanto na mulher que se veste de barro e adentra o casulo cuja matéria prima é a terra em estado natural, quanto na construção do ovo geometrizado, uma metáfora repetida em duas caixas cúbicas revestidas por delicadas membranas brancas, uma de grandes dimensões e outra com aproximadamente 1m de aresta. Em ambas as performances há um
142
rompimento das cascas provocado pelos movimentos das artistas, em cada um dos cenários, o próprio ateliê ou à beira mar sobre areia. Na mesma sala outra membrana, de pele humana, em fotos ampliadas registram as nuances e formas imperceptíveis da superfície que nos reveste, revelando inúmeros caminhos, texturas e quase um outro universo de linhas e tons, aferindo densidade e a complexidade aos contornos e sombras. Os registros fotográficos estão reunidos num painel de amplas dimensões, “Epidermic Scapes” de Vera Chaves Barcellos. Cada zoom sobre o corpo feminino é uma paisagem contida em formas quadradas, se organizam em um único plano modular e, portanto, expandem-se infinitamente, multiplicando o número de pontos focalizados. Regina Silveira, registra com recorte da palavra ARTE descontextualizada, por meio de vídeo performances ou desenhos do próprio corpo sua participação. Enquanto, Mercedes Elena González, traz as “Vulvosas” em delicados desenhos tingidos de rosa, uma cor que subtrai parte da crueza do recorte e da aproximação focal desta parte inexpugnável para muitas, porque cercada de tabus e preconceitos. Alguns diriam que não há novidade alguma no tema, apresentado realisticamente por Gustave Courbet, em 1866, “A Origem do Mundo”37 se antepõe à idealização do corpo feminino, vigente no século XIX. A diferença de significados, no entanto, revela-se na autoria, entre a visão de si mesma e o olhar do outro, extrapola no contraste entre identidade e alteridade. Analisar as representações sob este prisma ressalta a importância do caráter feminino presente em “Vulvosas”, pela consciência de pertencimento que garantem a estabilidade e continuidade de uma dada cultura. O fato de trazer a público os gestos de um estrato social significativo da sociedade latina, as mulheres, apresentou mais uma valorosa manifestação contemporânea a favor da igualdade de direitos. Outras obras exibidas cumprem papéis semelhantes e adicionam repertório às estratégias, como é o caso do “Hábito habitante”, 1985, de Martha Araújo, fotografias com a autora em pose contida pela própria estrutura rígida da vestimenta fixada na parede e tolhendo-lhe os movimentos. O corpo quase totalmente encoberto é engessado ‘nas suas impossibilidades’, rompidas apenas por inexpressivas partes – cabeça e mãos a romper o desenho da túnica negra, o ‘hábito’. Alusão ao movimento de
POSTO68
37 A obra em óleo sobre tela, cujo nome original é LʼOrigine de monde, encontra-se no Museu D’Orsay desde 1995. 38 Chartier, Roger. A história ou a leitura do tempo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010. (p.51-2). 39 Idem 36. 40 “O território é o lugar em que desembocam todas as ações, todas as paixões, todos os poderes, todas as forças, todas as fraquezas, isto é, onde a história do homem plenamente se realiza a partir das manifestações de sua existência.” Santos, Milton. O Retorno do Território. In: Santos, Milton; Souza, Maria Adélia A. de, Silveira, Maria Laura (Org.). Território, Fragmentação e Globalização. São Paulo: Hucitec Anpur, 1994, p. 15-20. (Texto também presente no livro: Da totalidade ao Lugar, São Paulo: Edusp. 2014 Capítulo 8, p.137-144).
143 resistência contra a restrição à liberdade de expressão, igualmente presente em duas foto performances: “Poema”, 1979, de Lenora de Barros e “Sem Título”, 1983, de Liliana Maresca. Dois trabalhos que refletem o cerceamento da mulher nos recentes anos de exceção pela dor da tortura imposta por máquinas, a um só tempo, emoldurando as carnes e as estrangulando. Apesar da aparente sujeição aos instrumentos, as imagens revelam escravização aos modelos impostos, porque amarras tolhem os movimentos e marcam indelevelmente o ser, com restrições que se estendem da palavra falada e escrita, à libido, trancada em proibições. Uma mesma libido destruída, um poder de sedução destroçado, também constatado na peça de Nelly Gutmacher, “Arqueologia do desejo”, 1982, na proposta intimidade que se desvenda por uma remota beleza partida. Se por um lado, apresentar Mulheres Radicais no Brasil, país afetado pela repressão por mais de vinte anos, é um fato impactante, por outro, juntar conjunto de peças marcadas pela intensidade dos discursos, abre a oportunidade de nos comunicarmos com os outros países envolvidos em situações análogas, no mesmo momento histórico, e avaliar as similaridades e distinções entre elas. Enquanto os indivíduos e os grupos se percebem e percebem os demais, transmitem “as diferentes modalidades de exibição da identidade social ou da política tal como as fazem ver e crer os signos, as condutas e os ritos”38. Deste processo resulta uma determinada consciência de pertencimento, mas também a estabilidade e a continuidade de uma dada cultura. A exposição trouxe a público os gestos de um estrato social significativo da sociedade latino-americana, as mulheres, mais uma valorosa manifestação contemporânea a favor da igualdade de direitos. Já que, estas práticas são estratégias simbólicas que levam ao reconhecimento de “uma identidade social, a exibir uma maneira própria de ser no mundo, a significar simbolicamente um estatuto e uma posição; enfim, as formas institucionalizadas e objetivadas”39 marcando de modo visível e perpétuo a existência do grupo. Os dois eventos demonstram que a construção por meio da arte, sua circulação por meio das pesquisas e da colaboração entre instituições museológicas, pode erigir novos espaços simbólicos, novas leituras e representações da América Latina. Há que se explorar, descobrir e desenhar extensa e vasta produção, entre colaborações institucionais e acadêmicas, trocas em relações de semelhanças e particularidades, nos diversos países e culturas latino-americanas. Para os estudantes e pesquisadores, é um território fértil e rico, desde arquitetura, construções e organizações urbanas às mais distintas manifestações culturais, em encontros e convívios. Além das mostras o extenso panorama de ações em comunidades, coletivos, trocas e estudos ampliam este horizonte em pleno acontecimento, em amplo território chamado América Latina, território que segundo Milton Santos é “onde a história do homem plenamente se realiza a partir das manifestações de sua existência”.40
entrevista EZEQUIEL GATTO por ADRIANO CARO FLORIO
145
Ezequiel Gatto é pesquisador assistente do Instituto Regional de Pesquisas Sócio-históricas - ISHIR - Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas Conicet - Argentina. É professor de Teoria Sociológica da Universidade Nacional de Rosário - UNR - tradutor e coordenador de workshops, e participa do Futurities Research Group - GIF - e da editora Tinta Limón. Colabora com diversos projetos políticos e culturais. Escreveu o livro Futuridades: ensayos sobre política posutópica - Editorial Casagrande, Rosário, 2018.
146
ACF: No seu recente trabalho “Como fazer? Do futuro à futuridades” você coloca em questão o discurso atual sobre o futuro - do trabalho, do mercado, do planeta, “o futuro é feminista”, “o futuro é hoje”, “não há futuro” - e coloca a noção de futuridades “que não se esgota nem se realiza, mas é a possibilidade de que algo se realize”. Como diferenciar essas noções entre discurso sobre futuro e as possibilidades de futuridades? O que seria essa potência política da possibilidade? EG: Eu diria que, por um lado, esse inventário de invenções sobre o futuro - do trabalho, do mercado, do planeta e os slogans - parece sustentar, de modo ilustrativo, certos discursos onde a inimaginabilidade de futuros é o modo de relação com o futuro. Mas, pelo contrário, eu creio que nós vivemos em uma conjuntura marcada por uma multiplicação de imagens de futuros e de proliferação em muitos níveis. Não somente no nível da política - que foi um espaço privilegiado na construção de um discurso de futuro, sobretudo na modernidade - como também em outros registros, como o religioso, o publicitário, o científico e o tecnológico. De certa forma, em uma série de níveis que certamente se articulam. É possível detectar distintas menções e distintas perguntas e figurações de futuro. Gostaria de marcar isso, nós vivemos em condições de proliferação de
imagens e de perguntas sobre o futuro. Já em relação à diferença entre futuro e futuridades, me interessa fazer essa diferenciação tendo em mente o valor que a categoria “futuro” tem para todo um pensamento sociológico, político e moderno. Nesse sentido, se Foucault substitui a ideia da centralidade da categoria de homem, como uma categoria que permite a constituição de uma grande episteme, eu creio que a categoria futuro tem uma classificação similar nessa episteme. É impensável a noção de homem se não pensamos ou consideramos a noção de futuro. Portanto, me parece uma busca importante sair desse significante tão pesado, para rastrear outras modalidades de pensamento de futuro que nos permitam, também, sair dessa figura de homem. É nesse sentido que a ideia de futuridade aparece como uma possibilidade para mim. E, em relação a essa possibilidade, eu detecto uma série de elementos que me parecem que podem diferenciá-la - relativamente -, porque tomam questões que tem haver com ideias de futuro que provém da filosofia e da sociologia moderna e contemporânea. Aí existe um ponto interessante na noção que se relaciona, não com uma espacialização do tempo na posterioridade, mas sim, com a noção de futuro como uma condição do tempo
POSTO68
que nos força inevitavelmente a nos transformar. Então, pensar a futuridade é muito mais pensar em uma condição de existência do que um ponto na posterioridade. Creio que a noção de futuro ficou muito ligada a questões de imaginação e inclusive de visualização e de visões. Eu penso a questão de futuridade como uma problemática que tem diversas saídas, ou seja, há diferentes linhas e processos de “tornar-se”, que se combinam diversamente, sem nunca perder essa heterogeneidade e essa autonomia relativa. Isso faz com que o futuro perca sentido como categoria singular, porque a ideia de futuro concebe uma certa noção totalizante dos processos e eu não penso que seja assim. Na realidade, os processos convivem e se produzem de diversos modos e não são totalizantes como tal - em um único sentido ou em uma única direção -, ou com uma única efetividade. Ao contrário, produzem efeitos em campos muito diversos e imprevisíveis. Então, sair da noção de futuro é ir além da futuridade, indo, também, em direção à sua multiplicação. Por isso prefiro a noção de futuridades e não de futuridade, porque pode-se pensar - em termos mais físicos - que as temporalidades divergem entre si e o universo é uma agregação de temporalidades heterogêneas, impossíveis de serem sintetizadas em uma única temporalidade. Isso me parece importante para sair da noção linear e total de futuro.
147
ACF: A POSTO68 foi criada a partir da necessidade de discutir e se revoltar contra o momento atual. Queremos debater sobre outros possíveis futuros através da arquitetura, arte, política e cidade. No nosso primeiro número já falávamos em imaginar um “futuro”, uma utopia para ser disputada. Em entrevista com o artista plástico, arquiteto e professor brasileiro Sérgio Ferro, quando perguntado sobre um panorama utópico para o horizonte de atuação da arquitetura e do urbanismo, o mesmo nos respondeu:
encontrando neste processo de nos tornar. A ideia de futuridade de algum modo trata de lançar a imaginação com isso que não é imaginação e, para isso, requer uma consistência ontológica muito mais que subjetiva ou psicológica. Por exemplo, a relação de futuridade é a relação de nos tornar, independentemente da nossa imaginação. Nos transformaremos de qualquer maneira. Portanto, o que vamos fazer? Como é possível pensar o futuro sob a condição de que nos transformaremos de qualquer maneira?
“(...) O erro embutido no velho conceito de utopia é confundila com fantasia sobre uma futura sociedade absolutamente nova e perfeita. Mas a utopia é, sobretudo, a negação determinada da sociedade que a vê nascer, ou seja, o que é colocado na sociedade utópica é o inverso do que queremos rejeitar na sociedade em que vivemos (...)”. A partir disso, em que medida o conceito de futuridade dialoga ou não com a noção de utopia?
Sair dessa ideia de imagem me permitiu trazer para o presente a pergunta sobre o futuro, por que me permite também incorporar esse espaço que é chamado de virtualidade, mas que eu prefiro chamar de possibilidades, porque - justamente em nossa situação -, há possibilidades que não podemos imaginar. Há uma relação estreita entre “se tornar”, as possibilidades e isso que excede a imaginação. E nesse triângulo, entendo que a categoria de futuridade tem mais potência do que a categoria de futuro.
EG: O que me parece interessante da noção de futuridade nesse sentido é que ela me permite sair de uma noção de futuro governada pela imaginação para pensar a articulação mais complexa entre aquilo que é imaginado e aquilo que é projetado, aquilo que o futuro assume. De algum modo, uma forma de imagem e, aqui, eu creio que não podemos prever, não podemos imaginar, não podemos calcular e, inevitavelmente, vamos nos
Eu creio que existe um diálogo entre o conceito de futuridade e o conceito de utopia, mas é um diálogo no sentido restrito, um diálogo que eu pretendo que afete a noção de utopia, e que a afete neste sentido (tendo em conta o que você diz na primeira pergunta sobre quais são as características da futuridade e que a diferenciaria da noção de futuro e que também nos excede como condição existencial): nós estabelecemos, ou pensamos que estabelecemos,
entrevista
vínculos com essa futuridade ou, de alguma maneira, habitamos essa futuridade de diversos modos e a utopia, creio eu, é uma das formas de nos vincular com a futuridade. Quais são as características dessa forma de nos vincular? Nesse momento, figurativamente, eu daria um passo para trás e diria que a utopia é uma maneira de futurizações - as quais entendo como as postulações de mundo futuro, a imaginação da doação de uma imagem de mundo futuro e um projeto que esteja, desde o presente, indicando como será o futuro. Me parece que a utopia cai dentro do campo das futurizações e tem sido uma forma histórica muito poderosa para alterar essas futurizações - historicamente, por exemplo, foi usada para dar novas morfologias, novas gramáticas, novos recursos. Então, a utopia tem um valor histórico e cada vez é uma forma de postular um mundo futuro. Em meu esquema conceitual, se as futurizações são um modo - o ato de futurizar - e seu produto - as futurizações - são um modo de nos vincular com a futuridade, então a utopia é um modo futurizador de vincular-nos com a futuridade. Parece um travalíngua, mas espero que tenha feito algum sentido. Em relação a isto - como se dialogam - até aqui o que disse, nessa pergunta, é situar onde penso que está a utopia na minha possibilidade de diálogo com a noção de futuridade e, assim também, com a ideia de futurização.
148
Bom, como dialoga? Me parece que aqui tem uma série de questões que me interessam, como por exemplo, discutir a noção de utopia. Uma primeira noção é o seu caráter, digamos, de imagem fixa, de imagem que dá um futuro que, uma vez alcançado, parece congelar-se, parece enclausurar o tempo. A outra noção é justamente aquela que tem bastante relação à pergunta anterior, o seu carácter fortemente visual, da ordem do figurativo - a imaginação utópica. E, por outro lado, é da ordem do fim, é dizer que devemos alcançálo. Então, teríamos na utopia um tipo de futurização que é fixa, visual e é um fim. Me parece que a noção de futuridade, se tem algum sentido em relação a esta discussão, é a ideia de mover o piso sobre o qual a utopia se constitui, dinamizálas, colocá-las em movimento e destotalizá-las. E, de novo, incorporar todos aqueles que vêm de fora da utopia e que podem afetá-la decisivamente, e que muitas vezes para a imaginação utópica é só um obstáculo ou um problema. Eu tendo a pensar em um tipo de imaginação de futuro, onde o que aparece também pode ser lido em termos de possibilidades, em termos de invenções e em termos de descobrimentos. Nesse sentido, tendo a pensar a imagem como algo que permeia o mundo, muito mais que descrevêlo ou visualizá-lo. E a diferença entre uma imaginação pós-utópica e uma imaginação utópica é que a imaginação pós-utópica não tende à imagem, ao contrário, a imagem
é só um dos meios possíveis desse processo de tornar-se. É a incorporação, por isso a chamo de perfil, porque não é estritamente um ponto de passagem para logo vir outra imagem, por exemplo. Ao contrário, é passado um contorno dessa imagem, de modo tal, a aproveitar algo de sua potência, mas sem criar armadilhas. O que me parece ser um problema, por exemplo, das políticas pré-figurativas que conseguiram sair de um registro utópico excessivamente rígido, como foram muitos movimentos de esquerda durante o século XX. Não conseguiram sair da imaginação utópica por que a imaginação utópica, na préfiguração, é como se fosse meramente uma utopia miniatura. Ao não deixar desenvolver-se a ideia da imaginação utópica na totalidade do corpo social, as práticas pré-figurativas teriam trazido ao presente e aos espaços mais próximos essa utopia. Miniaturizaram-na, mas sem sair da imaginação utópica. Me parecem interessantes os desafios de sair dessa imaginação, sem abandonar o caráter necessário e produtivo das imagens políticas. Mas entendo que há de pensá-las a partir de uma dinamização que, por outro lado, é parte do nosso entorno técnico e social atual. Dificilmente uma imagem de futuro consegue se manter por muito tempo em nossas atuais condições tecnológicas, culturais e de troca. Então, pensar algo da imaginação pós-utópica é como pensar uma imaginação onde a
POSTO68
imagem justamente não tem uma centralidade ou um caráter de fim, de projeção, mas melhor, como um perfil pelo qual temos que contorná-lo para poder seguir. Sobre a citação do professor Sérgio Ferro, com a qual concordo em relação a importância da função negativa da utopia - nessa dialética entre imaginação e realidade -, concordo com esse diagnóstico de que a utopia não se define somente pela imagem que produz, senão pelos efeitos de negação que essa imagem produz. Apesar disso, esses efeitos de negação também estão em relação ao tipo de imagem que se produz. A negatividade de uma imaginação utópica não é a mesma que a negatividade de uma imaginação pós-utópica. Elas não percebem o real da mesma maneira. Então me parece que esse diálogo entre utopia e futuridade incorpora esse elemento de negação, mas, também, assumem de novo a invenção como uma condição que não podemos resolver exclusivamente em termos de imaginação. Pelo contrário, nos exige uma atenção e percepção a partir dos efeitos em nossa própria imaginação e do que o real faz com o que nós imaginamos. Então, essa negação parece ser em níveis distintos. Não é somente a negação da imagem, não é somente a negação do dado a partir da imagem, mas também a negação do que vem, a negação da imagem a partir do que vem. Então há aqui um jogo de várias saídas em relação a questão da utopia e da futuridade.
149
ACF: Ainda sobre o seu trabalho Como fazer? Do futuro à futuridades, nele você coloca que o interesse maior deve ser na pergunta “como fazer?” ao invés de “o que fazer?”. Em certa medida, os estudos decoloniais também se colocam essas questões. “Como transgredir à constituição histórica préconcebida? Como reorganizar as referências? Como transformar as estruturas?”. A partir desses questionamentos, como você enxerga as questões decoloniais inseridas nessa busca em mapear possibilidades, inventar, improvisar e descobrir que é colocado pela noção da futuridade? EG: Parece uma pergunta chave, porque os estudos pós-colonial e/ou decolonial permitiram justamente, entre outras coisas, discutir toda a trama valorativa e epistemológica das noções e das categorias modernas - a política, a sociedade, a cultura e a economia. Creio que essas perspectivas são chaves para discutir essa articulação entre homem e futuro, que definiu a modernidade. Nelas há um reservatório de possibilidades para pós-colonizar o futuro ou decolonizar o futuro. E eu quero crer, que a noção de futuridade, ou o que eu pretendo, ao colocar a noção de futuridade, também tem a ver com os processos decoloniais. Te dou um exemplo, além de investigar esses assuntos, eu me dedico um pouco às histórias políticoraciais nos Estados Unidos ao longo do século XX e XXI. É muito interessante pensar como as tensões raciais se valem da
entrevista
produção de certas expectativas sobre o racial, e isso pode ser pensado independentemente dos EUA ou outros lugares. Existem expectativas sobre os sujeitos racializados; os brancos são racializados como dominantes; e os povos originários ou os afrodescendentes já são racializados como dominados. Mas, na categoria mesmo de raça há todo um projeto civilizacional e, assim, também uma série de valorações sobre a questão do futuro e a invenção da imagem de futuro. Se é certa que a noção de futuro nasce no contexto da modernidade, portanto, teríamos aí uma articulação entre homem, raça (ou racializações) e futuro, que de algum modo se retroalimentam em momentos determinados dos séculos XVI ao XIX. Então, é interessante quando se desconstrói as noções próprias dos discursos racistas ou coloniais. Necessariamente se encontra com as valorações sobre o tempo, as apostas e os projetos que podem aí se encontrar com um conjunto de futurizações, sem as quais é impossível pensar a questão racial. E nesse sentido, é fundamental essa pergunta sobre como abordar pós-colonial ou decolonialmente uma série de práticas, perspectivas e instituições que permitem desativar o modo pelo qual se vinculam com a futuridade para poder abrir outras possibilidades. Creio que há uma ideia possível de como a pergunta pela futuridade impacta nas relações de poder.
150 ACF: As teorias pós-coloniais e decoloniais colocam à luz questões que dizem respeito a um “projeto de modernidade”. Este foi inaugurado pelo entendimento de que o homem (sujeito europeu), a partir da sua razão, seria capaz de decifrar as leis da natureza para colocá-las à seu serviço e ligado intrinsecamente à invasão da América e controle do Atlântico pela Europa. A partir dessa ideia trazemos aqui o debate de Ailton Krenak (líder indígena, ambientalista, escritor e pensador brasileiro), que em seu livro Ideias para adiar o fim do mundo critica a ideia de separação entre humanidade e natureza e “se propõe a ressignificar nossa existência e a diminuir nossa marcha insensata em direção ao abismo”. De certa forma, para os povos originários da América, a invasão européia sempre esteve relacionada com o fim de seu povo e com o controle e destruição da natureza. Com isso, como e quais as formas de enxergar/mapear uma possibilidade de futuro em que a conexão homem e natureza seja restabelecida? EG: Me pareceu muito interessante a menção ao Ailton Krenak, vou tratar de ler seu livro. Agora, em relação a questão da relação entre homem e natureza, me parece que aí está toda a discussão do que entendemos como um e outro, não? Sempre tiveram fronteiras móveis nas suas definições e fortemente vinculadas a uma certa ideia de natureza, que remete a certa ideia de humanidade e vice-versa. Ao menos desde os gregos em diante. Então, seria interessante entender quais são as nossas noções atuais
de natureza para poder pensar também o que entendemos por possibilidade. Em um plano mais ontológico, a ideia de natureza nas últimas décadas se viu profundamente reformulada. Sem falar em um panorama mais amplo do último século, que poderíamos chamar de “o século da genética”, “o século da biologia molecular” ou “o século da biotecnologia”. Entendo que há uma discussão mais pública sobre o que vamos fazer com as tecnologias. Que lugar têm as discussões tecnológicas em nossos horizontes? E em nossas estratégias? Às vezes, parece que não pensamos, e às vezes parece que são o problema todo. Eu não estou de acordo nem com uma, nem com outra posição. Muitas vezes gosto de dizer que a América Latina se esquece um pouco do registro das tecnologias nessa discussão sobre o que podemos fazer para reconfigurar as relações que temos com as condições estruturais da vida, entendendo, por isso também, a natureza. Essa pergunta em particular é uma pergunta muito aberta, no sentido que seria impossível, realmente, dizer algo determinante. Isso que estou dizendo é apenas uma reflexão sobre coisas que penso em como acomodar essa discussão. E, nesse ponto, marco aqui que a ideia de natureza, de tecnologia - ou tecnologias - e de condição humana, esses pressupostos são fundamentais para poder ver que também são uma possibilidade. E, por outro lado, em plano de singularizar esta pergunta em um campo latino-americano, creio que vivemos em um subcontinente, sobretudo,
POSTO68
fortemente marcado por modelos extrativistas. Dentro desses modelos, ao menos para o caso argentino, somos muito dependentes dos modelos de consumo externos, pelo tipo de exportações que temos. Aqui, acho que há uma discussão entre os modelos de consumo e os países - não quero dizer não avançados, nem centrais - mas os países economicamente mais beneficiados, que já não são mais só os EUA, e nossas condições. Por que as formas e os níveis de consumo desses países são decisivos para a morfologia geral e para os modelos econômicos. Essa é uma discussão muito pouco discutida politicamente e, menos ainda, em termos internacionais ou transnacionais. Te dou dois exemplos, os EUA consomem 35% de papel e 28% de combustível anual, é impossível pensar em outros modelos de vida se nós não questionarmos onde realmente os modelos econômicos de consumo são extremos. Outro exemplo, é a China que nos últimos anos consumiu a mesma quantidade de cimento que os EUA nos últimos 100 anos. De novo, se nós não podemos questionar esses pais, em termos de modificar suas pautas produtivas e de consumo, é muito difícil que possamos sair desta situação. Há uma série de atores concentrados muito decisivos nos problemas ambientais e nos problemas em relação à Terra e à vida - a vida humana em particular. Penso que não questionamos o suficiente e me parece que é uma discussão para se ter, inclusive com os movimentos políticos de seus próprios países.
151 ACF: Ainda na linha da questão anterior, vivemos um momento muito singular na história mundial, do chamado Antropoceno. Presenciamos lutas antirracistas, pelos direitos das mulheres, pelos direitos à diversidade sexual, pelo meio ambiente, entre tantos outros e importantes. Mas na direção oposta, vemos um crescente avanço de governos conservadores e autoritários, desastres socioambientais, repressão, extermínio dos povos indígenas, entre tantos outros retrocessos e podemos destacar uma das maiores crises de saúde, a pandemia de Covid-19. Como pensar em todas essas questões para que não caiam e/ou fiquem associadas a uma visão de fim do mundo, apocalíptica? Quais seriam os princípios de ação para isso ocorrer? EG: Essa pergunta me lembrou um livro recente, que saiu agora em março de 2020, que chama “¿Porque el capitalismo puede soñar y nosotros no?” , de Alejandro Galliano, um pensador argentino. No último capítulo do livro ele escreve que nós, como sociedade, vivemos pensando em um apocalipse futuro, quando na verdade o apocalipse já aconteceu. Isso remete bastante a algumas ideias de Eduardo Viveiros de Castro, assim como na menção de Ailton Krenak, e no real desenvolvimento dessa pergunta. Talvez essa percepção de apocalipse não seja,
entrevista
necessariamente, uma percepção generalizada, mas sim que temos um compromisso político ou algum interesse pela condição humana, pela condição da vida social e pela vida no planeta. Claramente estamos compartilhando este tempo e este diagnóstico. Penso que devemos voltar a atenção e repensar a questão de planejamento, pensando na possibilidade de planejar - e aqui não quero dizer o velho planejamento centralizado ou estatal, ao contrário, é voltar a colocar a questão do planejamento na discussão política dos movimentos, das organizações e das populações diretamente afetadas, e não só as demandas concretas. Creio que seja um caminho muito difícil, mas necessário e que se relaciona bastante com as perguntas anteriores, com relação às imagens de futuro, como funcionam, como deveriam ser e como poderiam ser. Por que eu acho que nesse momento a questão do planejamento só passa pelas grandes corporações globais - que sim, planejam a longo prazo, ou o governo chinês que planeja a um prazo mais longo ainda. Porém, os movimentos populares perderam certa capacidade de planejamento e de levá-lo adiante, e acho importante recuperar essa discussão. E pensar o que significa planejar atualmente. Creio que é uma condição para poder sair do apocalipse.
quadro de referências O escritório colaborativo trabalha com arquitetura baseada na permacultura. no caso do parque, que se localiza na Reserva Biosfera da UNESCO na Mata Atlântica, o projeto suporta as estruturas como recepção, galinhairo, vivieiro e pavilhão de oficinas. A proposta do parque é a de proteger os recursos naturais e pensar um relacionamento positivo com a Mata, de forma informativa e educativa.
EkôaPark responsáveis: SemMuros local: Morretes, Paraná, Brasil ano:2017
Fonte: /www.semmuros.com/
Comedor de Guadurnal responsáveis: Al Borde e Taller General local: Guadurnal, Esmeraldas, Equador ano: 2018
https://tallergeneral.com/
O refeitório escolar está localizado em uma região que sofreu com um terremoto de magnitude 7,8 em abril de 2016, na costa do Equador. O projeto foi realizado com o material do pavilhão alemão na Hábitat III (conferência mundial da ONU sobre habitação e desenvolvimento urbano sustentável) e já estava prevista uma reconfiguração dos materiais para reuso após o evento.
Escuela Primaria resposáveis: Asociación Semillas para el Desarrollo Sostenible. local: Comunidade Nativa de Jerusalém de Minaro, Pangoa, Satipo, Junín, Peru. ano: 2017
Fonte: http://www.semillasperu.com/
Semillas é uma associação sem fins lucrativos peruana que realiza um trabalho cooperativo principalmente nas regiões de floresta tropical do país, pensando como a arquitetura pode se instalar nesse local, de forma inteligente e respeitosa com a comunidade e destacando atividades humanas e culturais (principalmente construindo equipamentos educacionais) em locais que costumam ser associados à extrativismo. O premiado projeto apresentado foi escolhido entre um portfólio rico que exemplifica o equilíbrio entre materialidade, clima, atividade e sociabilidade que pode ser feito através das escolhas projetuais. A escola em Jerusalém de Miñaro é resultado de uma cooperação com a comunidade que revela a liberdade dos espaços e a possibilidade de construir de forma segura com um projeto que leva em conta as questões bioclimáticas do local.
Os povos yanomami tem uma forma espefícia de construção. Instalados em clareiras na floresta amazônica, a comunidade ocupa o espaço de forma circular, tendo a estrutura reconstruída de acordo com o aumento da comunidade. A área central é usada para as atividades comutárias e de cuidado, sendo que cada família se instala em um “setor” da cobertura, cuja estrutura é em madeira e a cobertura é feita com diferentes plantas da floresta.
Yanos resposáveis: Povos Yanomami local: sul da Venezuela - norte do Brasil Fonte: Norbert Schoenauer socks-studio.com/
COPROMO responsáveis: usina ctah ano: 1998 local: Osasco, São Paulo, Brasil
Fonte: www.usina-ctah.org.br/
O projeto do COPROMO, foi iniciado em 1991, em um importante momento histórico de organização dos movimentos sociais. A USINA adotou uma solução inovadora no contexto dos mutirões autogeridos, que foi a utilização da escada em estrutura metálica independente, montada logo após a execução das fundações. Foram construídas unidades em tijolos cerâmicas, de 2 quartos e 54m², compondo um total de 1.000 unidades.
O arquiteto uruguaio comprova através de muita técnica e sutileza como é possível trabalhar a potencialidade dos tijolos ao optar por técnicas construtivas não tão comuns, conseguindo resultados incríveis com as linha sinuosas do projeto da igreja e em vários outros projetos utilizando o tijolo como elemento base. O projeto revela a experimentação de Dieste da materialidade e das questões estruturais, tendo íntima ligação com o canteiro e com o trabalho da técnica que o engenheiro uruguaio chamava de “Cerâmica armada”.
Igreja Cristo Obrero responsável: Eladio Dieste local: Atlantida, Uruguai ano: 1952 Fonte: Gonzalo Viramonte www.archdaily.com.br La Casa que Habita
As cooperativas habitacionais uruguaias são uma experiência de mais de 50 anos de história. A iniciativa atingiu sua maturidade em meados dos anos 60, com uma produção relevante, tanto em termos quantitativos quanto qualitativos. A experiência uruguaia na produção de habitação social pelo sistema cooperativo é um dos episódios mais interessantes da arquitetura sul-americana.
Cooperativas Habitacionais Uruguaias local: Uruguai ano: 1950
O projeto lida com a situação de perda de vitalidade das áreas tradicionais dos principais centros urbanos latino americanos, ligado aos processos de urbanização mais recentes. O projeto consiste em uma casa para um casal, além de um ambiente para a realização de cursos, pensado no sentido de reativação e integração à comunidade local. A materialidade e a forma não criam uma situação de estranhamento com relação às demais construções do bairro, buscando construir um diálogo com o entorno.
Biblioteca Vasconcelos Responsável: Alberto Kalach local: Cidade do México ano: 2007
Fonte: www.archdaily.com.br
Salas de Lectura Responsável: Fernanda Canales local: México, vários locais ano: 2015 Fonte: Tomás Casademunt divisare.com
responsáveis: Natura futura Arquitetura local: Babahoyo, Los Rios, Equador ano: 2020
Fonte: www.archdaily.com.br
A maior biblioteca da América Latina (44.000 m²) situada na capital mexicana foi construída em aço, concreto, mármore, madeira e vidro. Abriga em uma estante suspensa que ao mesmo tempo gera deslumbre e confusão. Sua estrutura integrada com o Jardim Botânico da cidade cria um ambiente de excessão na paisagem urbana e valoriza o acervo e a pesquisa através da construção.
Fonte: fernandacanales.com
o projeto se desenvolve a partir de um módulo nas proporções de uma vaga de carro. A ideia de crescimento progressivo ao agregar os módulos, seja em planta ou no sentido vertical, faz com que eles fossem facilmente replicados em diversas regiões mexicanas. O módulo básico independente, capaz de abrigar tanto um espaço de trabalho quanto de leitura, também admite o crescimento da área utilizável através da união de dois ou mais módulos, fomentando também a apropriação pela população local.
Galeria Aquática responsáveis: ccpm arquitectos local: Ciudad Autonoma de Buenos Aires, Argentina ano:2017 Fonte: Javier Agustín Rojas divisare.com
Partindo da máxima de que “a omissão também é uma forma de fazer política”, o projeto busca fomentar discussões sobre o uso e a poluição das águas de Buenos Aires. A pequena galeria aquática, construída de forma temporária sob um viaduto, busca evidenciar tudo o que é omisso, sendo envolta por camadas de plástico transparente iluminados artificialmente, pelos quais a água circula.
outubr o
mbro - Bo l i s n t e r i n o da pasta onaro nomeia Eduar 29 d , com d o e o e s P f e a e t z iv t uello, a em o. b r té então o 1 mil hão d e mort os p e l a Covi 2 de outubro - Do d-19. nald Trump te sta p o si ti vo p ar a o novo coro navírus.
ha doa todo seu 13 de setembro - Arquiteto Paulo Mendes da Roc uguesa. acervo à Casa da Arquitectura, instituição port 16 de sete
os para 20 21
.
inf morto s. No ectados pe Brasil l 0 , 4579 a Covid-19 o o e 60 . No c a d sos e a 159 m s ov ial d alha r ortes. p c b É a rgen tra s il e abr em ês ao is. e s orte 2 d xílio o m rma m 0 0 1.0 au ais a info ga a . e h c re res 9 ID-1 rasil o sa a abril de Chin - EUA m a vid orto no n ultrap -19 sp . ela úmer asCo- o
,
abri ultrapassou 3umltrialpoassa a marca d núme 1o d l ro de e 100 mil e
25 de março Os Jogos O límpicos T 31 de m óquio-2020 arço - I foram adia EUA tália d 13 de março -
. y tura lle er l e u k aC Sh al d l e Pritz i l c e e io arr Esp ria e F Prêm á t n re on Sec Yv nham a v o no arç ra ga a. éa m e s ruas a t r e r oram à borto. f ua 3 d Nam itetu s e D r e a mulh o ao a Mc Arqu egin canas, dio e o direit i r R e m a de março tino inicí itais La gênero, fem p a c s a 4 de e ivers de d ço Em d a desigualda r a m e d 8 tra tar con protes ara como 11 de março - Organização Mundial da Saúde decl rus no mundo. pandemia a doença do surto de novo coronaví
ção policia
Breonna T aylor é m orta após l ter confu operandido sua casa. 15 de março - Bolsonar o particip lia, comp a de manif rimentou estações p a o menos 27 17 de ma ró-govern 2 pessoas rço - Pel o em Bras . a íp - O gove rimeira rno de v e z o dólar f P contra echa ac a COVI equim autori ima de za o in D-19. 18 de m í 5 reais. c i o de te a stes clí de aco rço - Deput n icos de ad b uma po entre ertar a cri o Eduardo ssível v se de Brasil B o l s acina o C n e Chin ovid-1 9, cau aro acusa o a. sando g uma c overno Ch inê r i se dip a domés lomát s 19 de março - Empregad ica tima fatal de tica é a primeira ví coronavírus no RJ.
A tem porad ad ri a . E i ncênd e incêndio s na C série ios at i d a n e l devas queimada gem o Pant ifórnia já é 7 de sete sn tad an am a a o m l a s b r m . i e o g a r ião toda his to do pr ro - Ministério d . 2 m tó ilhões grossense, imeiro a Saúde lote de éam de h Russ o e u a c s n o t 11 u a c d iv r e es for aior s i e l te d m a b ro vacina S ncia o lançame - A Améric am np a ca de 8 mil L a ti n a atinge a m utnik V. h õ e s d e arc a sos de CO VID-19.
setembro
30 de agosto - 25 milhões de infectados pelo Covid-19 no mundo.
11 de agosto - Qu eimadas na fl o re st a am azônica. Apu 16 de agosto - M i, Amazonas. enina de 10 anos ap ó d s e p id ro a te d st e , o v s de fanático ítima de estu s re pro, aborto legali li g io so s p ró zado judicia -vida, conse lmente. gue o 23 de agosto - “V o n ta d e d e encher s foi o que B ua boca ols d e p o r chelle Bols onaro respondeu ap r a da, seu sa ós se onar fado” o r q r e u c e e s b ti e o u nado por q R $ 8 9 mil de Qu ue Mi27 de agosto - O eiroz. pera ç ã o p o li c ia l no comple São C a rl o s, xo Morro do R J, a caba em mo rtes. 28 de agosto - O go ve rn ad or do Rio de Janeiro, W afastado do cargo ilson Witzel, é acusado de cobrar propina.
9 de agosto - Início dos protestos na Belarus contra o ditador Alexandr Lukachenko, pedindo novas eleições e fim da repressão policial.
8 de agosto - Brasil ch
deixam m
agosto
o, ulho - B te, Líban 16 de j de Beiru ia r o portuá feridos. s na regiã atro mil - Explosõe ortos e mais de qu 4 de agosto m m ais de ce tos por COVID-19. ega a 100 mil mor
s m a rço
pôs aub de , Weintr acismo braham do de r cação A é acusa da edu em que ineses. nistro o - O mi ch quérito 4 de junh Federal no in ando citou os qu cia na Polí os Rs por Ls ar ao troc ção”. O aparece com texto “Portal em manuten 5 de junho - Portal do Ministério da Saúde mulado total de pessoas infectadas, nem o acu site voltou ao ar, contudo sem o número de mortes pela Covid-19.
7 de junho - Estátua de Edward Colston (negociante de escravos do século 17) foi derrubada em Bristol, na Inglaterra. 12
9e
id-1 Cov
de junho - Com mai s de 41 m il m or te s, Brasil supera Re e se torna o ino Unido 2º pa ís co m m ai s mortes de COVI D-19 no mundo. 13 de ju nh o G ru po de cerca de 30 bolson fício contra a o ri p st ré a s d io la n d ç o Supre a ram fogos d m o T ri e artib u 16 de junho - F n al Federal, e oi p m Brasília. re sa a a ti v responsáve ista Sara Ge is pelo gru romini (w p in o te q r) u e e la m 18 de junh nçou fogos ais cinco ati de artifício o - Fabr vistas, í e c m i o d Bolsona ir Q e ç u ã o ao Suprem eiro r z o é p o. r e so em A demissã . No mesmo di tibaia, a Bo od l s S o P n , e a m r o grava -OMS de o ministro. imóvel vídeo c cide s do ad u o s m p e A n b d raham W vogado da fam er e ília eintra u b p a r a falar s obre nsaios c línicos
om
oroquin a.
com hid roxicl
casos confirmados de COVID-19.
19 de junho - O Brasil chega a 1 milhão de
23 de junho - O a to r M á ri o Frias assum go de Sec e o carre tá ri o E sp ecial da Cult ura.
julho
1 de julh
o - Grev e d de apli o s entrega c a t i v dores o s no Br 4 de asil. j u l derru ho - A está tu b a d a em B a de Cris 5 de j altim tóvã ul com ho - O Br pleta asil um min 50 dias s istr em o d a Sa úde.
c
Bra
c o ore, nos E Colombo está uina UA é que oq r . a o firm da cl D-19 a con d COVI aro gan s pela lson propa morto - Bo o 5 mil end julho a de 7 marc 7 de inua faz ega a sil ch ont
s
po
2 de ju
- Os
os E UA. cist as c ont inu am n s an tirr a pro test o
nh ropa. o - Os prot e Em P aris c stos antirr - No B h aci e gou a ra reuni stas chegam morre sil, o men r2 in u à balha após cair o Miguel O 0 mil pesso Eudo pr va, no a t ávio d s. éd mom ex-pa ento e io onde su e 5 anos troa d a mãe a l , Sari e está aos c mãe traCorte uidad Real. os da maio
junho
28 d e
24 de abril - Sergio Mor
tério da Saúd
co
O abril as por C e d 0 1 ad nfirm
ue Man 16 de abril - Luiz Henriq bstituído por Nelson Teich. e. Sendo su
Minisdetta é demitido do
o pede demissão do Ministro da Justiça e Segurança Pública e faz crítica s ao Presidente da República Jair Bo lsonaro.
maio
3 de maio - B
rasil cheg a a marca dos de CO de 100 mil VID-19. casos con 9 de maio firmaCOVID Brasil supera -19. 10 mil mortes 15 de ma confirm io - Nels adas po o da Saú r de, por n Teich pede ser con demiss cloroqu ão tr ina. O genera ariado por Bo do cargo de M l Eduar lsonaro do Paz acerca inistro 20 de maio uello a d Regina Du o uso d ssume. e arte sai da ra para co Secretaria mandar a Cinemate E s p e cial da Cu ca Brasile ltu21 de maio - A ira. secretaria especial da o Ministér cultura é tr io do Turis ansferida p mo. ara 25 de maio - Nos Estados Unidos, protestos eclodem após a morte de George Floyd durante uma operação policial em Minneapolis.
LINHA
do te m
a m m o c o iage t n ju ra v k i us e M rim n p lo a E m . io liza ada a v e m rea pri d l 30 ASA cia N pa es
Impresso em outubro de 2020 pela gráfica Forma Certa (SP), miolo em Offset 120g, capa em Couché Fosco 250g Tipografias utilizadas TAUfilezin, TAUcontexto, uTAUx-tudot e Source Serif Pro Tiragem 150 exemplares
s agradecimentos t m apoiadoras e apoiadores do apoia.se m nAline Coelho Sanches nAndreia Caro Florio nBeatriz Silva Costa nBia Godoy nBruno Sangali nChiara keese montanhesi nCristiana Aprile Leme de Andrade nFrancisco Sales Trajano nGabriel Garcia de Aguiar nGilberto Gama Goncalves nGuilherme Garcia nGuilherme Giglio nGustavo Nicolau Gonçalves nJaqueline Barbosa nJeziel E S Matos nJoana DArc de Oliveira nJulia Figueiredo nLeo Yutaka Marra Niizu nLetícia Jardini Braulino de Melo nLucas Campana nMainara Prado nMarcela C Carneiro nMarcelo Suzuki nMarcos Ribeiro nMaria Alice Messias nMaria Cristina Franceschini Chade nMaria do Val da Fonseca nMarilia Daniela nMarina Gil nMayara Maruiti Serra nMillena Cristny de Morais nPedro Vieira Gonçalves nRachel Buzzini nRayana Armond nSandra Caro Florio nSaíd Bezerra da Silva nSimone Vieira nSofia Fortunato Ribeiro da Costa namanda saba ruggiero nescritório casulo nAndrea Michelle cruz mejía ncamila caetano nfernanda canales nfilipe cartaxo nezequiel gatto nbibliotecárias do iau-usp - bibiau nvinicius guimarães - designer das fontes tau ninstituto de arquitetura e urbanismo da usp São carlos m a todas e todos que enviaram seus trabalhos, artes e projetos e que depositaram sua confiança no nosso trabalho! m