POSTO
TECNOPARADOXOS tecnologias, acirramento neoliberal e distopia
maio | 2021 v. 02 n.03
POSTO68 volume 02 . número 03 são carlos - sp maio 2021 issn 2675-7230
corpo editorial adriano caro florio ana luiza gonçalves bárbara barbosa machado felipe leme giulia ravanini silva daniela do nascimento júlia simmelink mayara m. serra rute oliveira rebeca ramos beatrice volpato teixeira yasmin carpenter
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revista semestral
POSTO68 68
TECNOPARADOXOS tecnologias, acirramento neoliberal e distopia
maio 2021
POSTO68
Tecnoparadoxos tecnologias, acirramento neoliberal e distopia A POSTO68 nasceu da indignação de jovens em busca de formas de mobilização e conscientização política para a construção de um cenário de ruptura anticapitalista. Em nosso primeiro número, que entendemos hoje como uma edição manifesto da revista, retomamos o legado dos movimentos de maio de 1968 como momento importante de organização da esquerda em vários lugares do mundo e de crença no poder popular. Reformulando e reforçando esse horizonte revolucionário, a POSTO68 se posiciona politicamente enquanto um projeto editorial que busca debater temas urgentes e de interesse da sociedade como um todo, de uma perspectiva anticapitalista, pluriversal e “desde abajo”. Afinal, nas palavras de Fred Hampton¹, “onde há povo, há poder”. Em nosso segundo número, “Transgressão latina: a prática da decolonialidade”, buscamos ler o presente ao realizarmos um movimento de retomada crítica do passado colonial e seus impactos em diversas dimensões. A partir das proposições de Aníbal Quijano, como a concepção da colonialidade do poder — que se desdobra na colonialidade do ser, saber, gênero e natureza —, segundo trabalhos de diversos artistas, autores e jovens pesquisadores que nos foram enviados através de uma chamada de trabalhos. Somando-se aos horizontes de debate elaborados anteriormente, no presente número, a Revista POSTO68 busca discutir os cruzamentos, disputas e contradições na relação da sociedade contemporânea com a tecnologia, em especial no que concerne ao ambiente digital e como ele impacta de diversas formas nossas dinâmicas de vida, relações sociais, ensino, trabalho, formas de apreensão e ocupação da cidade, produção artística, etc. Um elemento central para essas reflexões foi o surgimento da pandemia da Covid-19 e seus desdobramentos, em especial no que tange aos processos de aprofundamento do uso da tecnologia. Repentinamente, os mais diversos setores tiveram de se adaptar às normas previstas pelo distanciamento social: museus tiveram de criar atividades on-line para seguirem funcionando, os comércios que ainda não haviam se digitalizado tiveram que rapidamente se adequar — e-commerce às plataformas de entrega —, e as pessoas adaptaram suas casas para o estudo e trabalho remotos. Em um
1 Fred Hampton foi um importante nome do Partido dos Panteras Negras na década de 1960 nos Estados Unidos. Ainda com 21 anos de idade e com sua companheira grávida, foi assassinado em sua cama pelo FBI, devido à sua importância e habilidade como orador. Seu legado e história foram recentemente narrados no longa Judas and the Black Messiah (2021), rendendo o Oscar de Melhor Ator Coadjuvante a Daniel Kaluuya.
cenário de crescente desigualdade socioeconômica, a pandemia teve impactos bastante distintos sobre diferentes grupos sociais. Se, por um lado, as classes médias e altas viram sua rotina transformada pelo acirramento da relação com a tecnologia, as classes mais baixas tiveram a exclusão social e digital reforçada com as novas dinâmicas. Presenciamos, ao longo do último ano, um crescimento vertiginoso do desemprego, da pobreza e da fome. Mesmo com o discurso farsante do governo Bolsonaro, sustentado pela elite brasileira, os números da pandemia não mentem: a partir de uma série de cartografias participativas promovidas por grupos ativistas, é possível observar que a pandemia age de formas diversas em classes sociais diferentes². Outro exemplo marcante desse processo foi a adaptação do ensino presencial ao ensino virtual. A qualidade do ensino, a disponibilidade de ferramentas adequadas e as condições espaciais para a realização do aprendizado em casa foram, de maneira geral, restritos a uma pequena parcela dos estudantes e de maneira brutalmente desigual no ensino básico e superior, nas instituições públicas e privadas. O mesmo acontece no campo do trabalho, com a definição de quais setores foram considerados como “essenciais”, como é o caso da construção civil, considerada como essencial, mas na qual os arquitetos(as) e engenheiros(as), bem como outros profissionais mais “especializados” passaram a trabalhar de forma remota, enquanto os trabalhadores do canteiro de obras seguiram se expondo no trabalho presencial. Foi alarmante a falta de políticas para garantir a possibilidade da classe trabalhadora permanecer em casa no período mais crítico ou, no pior dos cenários, garantir maior segurança no deslocamento dos trabalhadores a seus postos de trabalho, visto que o transporte público coletivo é considerado um vetor de alto risco de contaminação. Outro setor bastante afetado pela pandemia foi o do trabalho por aplicativo, dominado por gigantes como Uber, Ifood e Rappi, que consolidou o termo “uberização do trabalho” em referência ao processo contínuo de exploração ao qual os trabalhadores do setor são submetidos, no qual a precarização é regra. Com a demanda de trabalho intensificada pela pandemia, motoristas e entregadores por aplicativo vêm denunciando a falta de suporte e o descaso por parte das empregadoras com relação aos riscos de contaminação, o que motivou paralisações como o “breque dos apps” e a organização de movimentos como o dos entregadores antifascistas, não apenas no Brasil, mas em vários lugares do mundo. Todos esses processos se inserem em uma dinâmica de acirramento do neoliberalismo a nível mundial, estabelecendo paulatinamente uma realidade quase distópica da relação da sociedade com as tecnologias — a partir da criação de mecanismos de controle, da interferência direta das big techs em processos políticos, a progressiva substituição da mão de obra por máquinas, o desenvolvimento de setores da inteligência artificial, etc.
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2 O LabCidade, vinculado à FAUUSP, desde junho de 2020 criou o “Especial Coronavírus”, disponibilizando dados e mapas sobre os impactos urbanos da pandemia na vida urbana elaborados a partir de cartografias coletivas e de dados divulgados pelo governo. Através de leituras alternativas, foi possível traçar inconsistências nos dados oficiais e ter uma compreensão mais aprofundada da disseminação espacial da Covid em São Paulo, mostrando que mais do que as condições de moradia, o deslocamento para trabalho se mostrava como um dos principais fatores na disseminação do vírus. A cartografias e análises estão disponíveis em:
O processo de elaboração deste número da POSTO68 foi, sem dúvida, mais conturbado do que os demais. Para além da chegada de várias novas integrantes à equipe, exigindo um esforço de adaptação das dinâmicas de trabalho, tivemos de lidar com a contradição metalinguística de elaborar um número da revista inteiramente pautado na crítica aos usos da tecnologias digitais, de seus impactos nas formas de sociabilidade e nas formas de subjetivação do neoliberalismo autoritário do qual o Brasil é palco. Essas ferramentas passaram a representar uma das poucas formas de sociabilidade aceitáveis, estando presente em drives compartilhados, chamadas no Google Meets e textos de até 2.000 caracteres do Instagram. A proposta de discussão e a formulação de “tecnoparadoxos” vem da ideia de se pensar a tecnologia a partir de suas contradições: o desenvolvimento tecnológico, detido nas mãos das elites e monopólios, não cumpre de forma alguma as promessas e apostas de mudança social. Nesse aspecto, o “canto da sereia” de que as redes sociais encurtam distâncias, pluralizam e democratizam os debates, e dão voz a todos cai por terra quando se percebe que estão sob o pleno controle capitalista. Ainda que criem espaços acessíveis de debate para muitos grupos anteriormente excluídos, não é possível interpretá-los com inocência, somente sendo capaz de uma apropriação real com mudanças estruturais, considerando, por exemplo, a massiva dominação das redes por grupos conservadores e de extrema direita. O trabalho também é um campo central dessas contradições, dado que esse desenvolvimento vem transformando aceleradamente as relações e dinâmicas, criando novas possibilidades mas também novos desafios e precariedades. Esse número da POSTO68 busca, a partir desses elementos, compreender os dilemas
e potencialidades que nos trazem as diferentes tecnologias digitais, dentro do contexto da pandemia de Covid-19 e dos processos de acirramento e aprofundamento do neoliberalismo na sociedade. As tecnologias digitais são ferramentas promissoras que trazem diversas possibilidades para facilitar interações, divulgar conhecimento e auxiliar ações cotidianas, permitindo que elas se tornem mais rápidas e eficazes. Contudo, ao longo de algumas décadas de acelerado desenvolvimento e expansão da sua presença em áreas como a da cultura, economia, política e das relações interpessoais, se tornaram mais claras as contradições e potenciais problemáticas trazidas pelo caráter dado ao desenvolvimento tecnológico nas mãos da classe dominante. Com sua popularização no cotidiano, em especial através das redes sociais, passa a se consolidar uma tecnopolítica de vigilância, reforçando mecanismos institucionais de controle e permitindo o surgimento de outros, atrelados ao mercado privado e às mega corporações digitais. É importante ressaltar, no entanto, a ausência de democratização no acesso à tecnologia. Ao contrário, ainda existe uma ampla camada da população, em especial de baixa renda, que não tem acesso à smartphones, computadores, internet, ou outras formas de “integração” digital e que, por consequência, tem sua marginalização agravada com a digitalização de alguns processos³. No Brasil, a digitalização de processos como forma de acirramentos das desigualdades ficou evidente, por exemplo, com o acesso ao auxílio emergencial durante a pandemia, que só poderia ser feito mediante cadastro no aplicativo da Caixa Econômica Federal, impossibilitando, por exemplo, que moradores em situação de rua pudessem acessar o benefício. 3 Ver: Eu, Daniel Blake. Ken Loach/ Rebecca O’Brien. Reino Unido: Entertainment One Films, 2016.
Considerando a densidade e a diversidade de leituras possíveis no debate aqui proposto, agrupamos três eixos de concentração das temáticas que consideramos pertinentes de serem abordados e aprofundados neste terceiro número da POSTO68, já elaboradas para o lançamento da chamada aberta de trabalhos que iriam compor o presente número. Esses eixos serviram como guias para orientar os estudos e seleção dos trabalhos, não estando presentes — de forma explícita — na estrutura desse número, nem sendo entendidos como balizadores ou limitadores do conteúdo dos trabalhos. O primeiro eixo, intitulado “Política, trabalho e informação” compreende as relações entre política e redes sociais, na qual fica explícita a questão das fake news, da desinformação e da pós-verdade, seja nos períodos eleitorais, seja na pandemia, em uma crescente disputa travada entre “bolhas” de informação nas redes sociais e “gabinetes do ódio”, entre mídias ativistas e mídias liberais. Somam-se a isso o papel dos monopólios digitais de informação por grandes empresas de tecnologia, e sua aliança com os estados e governantes na vigilância e controle da população. Ainda nesse eixo, é possível pensar as novas dinâmicas de trabalho vinculadas ao capitalismo de plataforma e sua relação com a reforma trabalhista no Brasil, intensificando processos em curso desde o fim do lulismo, como na figura heroicizada do empreendedor e o aumento do setor de trabalho informal4. Sendo assim, entende-se que há urgência em compreender e transformar essas dinâmicas — entendendo a sobreposição das dinâmicas de classe com a dominação do ambiente virtual por determinados grupos sociais de extrema direita, conservadores, que negam a ciência e as descobertas científicas, de supremacia branca etc. —, cujo horizonte de mudanças pode ser vislumbrado pelas experiências de ciberativismo, pela a inclusão de formas e ferramentas digitais de fazer política, bem como da inclusão digital em especial das camadas mais pauperizadas da população. O segundo eixo de discussão, “Ensino, cultura e entretenimento”, trata dos aspectos culturais e das implicações no âmbito de novas sociabilidades que o uso da tecnologia vem desenvolvendo. Nesse sentido, abrange as novas produções artísticas e culturais que dialogam com plataformas digitais ou que tenham nelas seu elemento ou “motivo” central. Ainda sobre as mudanças em âmbito cultural, o espaço de lazer (ou aquele em que não estamos imersos no trabalho), agora é dominado pela esfera do consumo de entretenimento através de telas: das redes sociais aos aplicativos de relacionamento, do conteúdo 4
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5 Sobre esse ponto vale a indicação do longo documental Fake Famous (2021), do jornalista e cineasta Nick Bilton, produzido e distribuído pela HBO.
informativo à pornografia5. Como já discutido em relação ao ensino e novas tecnologias, pontua-se um momento decisivo em termos de metodologias e práticas mas que, ao que tudo indica, serão acompanhadas de crescente precarização dos profissionais, alunos e instituições. O terceiro eixo, “Eixo cidade, arquitetura e participação”, busca pensar as cidades, fundamentalmente a relação entre o espaço urbano e as novas tecnologias, pensando o esvaziamento do espaço público em decorrência da pandemia de Covid-19, as novas formas de apropriação da cidade via plataformas digitais, novas dinâmicas urbanas e a ressignificação da moradia frente ao período de isolamento social e de trabalho e estudo remotos, bem como a recente produção de cartografias participativas e a sua contribuição ativa na produção e popularização de conhecimentos. Para além dos materiais que recebemos por meio de chamada aberta, a POSTO68 conta com uma estrutura fixa elaborada pelo próprio corpo editorial. No final da primeira edição, publicada em março de 2020, elaboramos uma linha do tempo linha do tempo referente ao período do governo Bolsonaro finalizada com a notícia do surgimento de um novo vírus que vinha causando alardes na China. Quatorze meses, duas edições e mais de 450 mil mortos depois, relemos os fatos anunciados nas últimas edições e observamos uma linha contínua do aprofundamento na barbárie. Tanto a linha do tempo quanto o quadro de referências e entrevistas são colunas fixas, que apresentamos desde o último número da POSTO68 e que contam com um cuidadoso trabalho curatorial da nossa equipe, tanto na seleção e organização quanto na apresentação gráfica. Nestas colunas apresentamos, seja de maneira linear cronológica, no caso da linha do tempo, ou de um tema específico uma seleção de acontecimentos recentes, projetos, grupos, pessoas e mídias que se aproximem da temática e/ou de nosso posicionamento e abordagem política. Além do nosso corpo editorial, que se expandiu, também contamos com a colaboração de diversas pessoas e organizações na construção deste número. Compartilhando das mesmas inquietações e instigando novos questionamentos, apresentamos em duas entrevistas, com o socioambientalista Thiago Ávila e com Toni Baptiste
e Flávio Camargo, do Coletivo Coletores. E embora nossos entrevistados possuam linhas de atuações bastante distintas, é possível trazer elementos extremamente pertinentes à discussão dos tecnoparadoxos, a partir do cruzamentos dessas formas de atuação política. Neste número, excepcionalmente, as colunas de perfil e de projeto contam com textos submetidos na chamada aberta. Primeiramente apresentamos o artigo “Redes em Expansão”, o perfil desta edição, e o artigo “Cooperativismo de plataforma: A disputa pelo espaço de reorganização das relações de trabalho”, que se configura como o projeto do presente número. O projeto gráfico, por meio de pesquisas e experimentações, buscou dar forma ao estado atual, isto é, a grande confusão de informações, a velocidade acelerada das leituras e as percepções superficiais dessas. Essa dinâmica camufla a complexidade das situações e dificulta a comprovação da sua veracidade, fonte ou contexto, em diálogo com o que ficou conhecido pelo termo “pós-verdade”. A dualidade contemporânea entre a abundância de informações e incapacidade de absorção crítica dessas pode tender muito mais à obscuridade, e uma reprodução técnica e mecânica, do que a clareza, e consciência aos possíveis desvios sensacionalistas. Assim, as peças gráficas — muitas vezes confusas e distorcidas — são, em grande parte, o resultado da arbitrariedade produzida pela própria ferramenta, abrindo espaço para que a programação apareça como expressão, reproduzindo momentos de maior e menor controle, foco e desfoco, nitidez e distorção.
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A revista se estrutura a partir da divisão dos trabalhos em alguns agrupamentos. O primeiro grupo, de introdução às questões, é composto por “O mundo ferve na democracia canalha”, de Manoela Furtado; “Tecnoutopias Urbanas”, de Maria Carolina Farah Nassif de Moraes; [sem assunto], de Lopse Lazuli e “Aforismos Isolacionais” de Vitor Lima Monteiro. A obra “Compro seus dados”, de Bruno Melo, faz a transição para o segundo agrupamento, que traz os tensionamentos, paralelos, questionamentos, ações e disputas do que entendemos aqui como tecnopadoxos. São eles: “Daniel Loureiro expõe suas próprias feridas em troca de likes”, do artista Daniel Loureiro Cardoso; “Vigilância, Controle e Colonialismo de Dados”, de Amora Julia Cunha Bueno; “Desfrute”, de Gabriel F Mouco; o projeto desse número, “Cooperativismo de plataforma”, elaborado por Bruno Guillen; Guilherme Prearo; Gustavo Nicolau; Marina Abrão; Pedro Ferrão; Pedro Virgílio; a entrevista com o militante ecossocialista Thiago Ávila, feita por Ana Luiza Gonçalves e Yasmin Carpenter; a obra “Ruptura”, de Isabela Doná Rodrigues; o perfil do Levante Nacional Trovoa, “Redes de expansão”, elaborado por Larissa da Silva Souza e as charges “Jogo” e “Ilusão”, de Amanda Coelho Honório. A transição para o grupo que discute a dimensão da cidade é feito pelo primoroso “Smart Cities”, de Heloisa Alexandre Cizeski, seguido da série fotográfica “O que está em baixo é como o que está no alto”, do Grupo Pitá; entrevista com Toni Baptiste e Flávio Camargo, do Coletivo Coletores, elaborada por Felipe Leme de Andrade e Rebeca Ramos; “ESPLANADA”, de Livia Koeche de Oliveira e “Você consegue fotografar a lua?”, de Bárbara Barbosa Machado. O quarto grupo é composto por trabalhos que têm como temática o
mundo virtual e/ou experiências dentro do ambiente tecnológico. São eles: “As ilhas Rock”, de Henrique Bittencourt; “Vou por aí”, de Wesley Lima Brito; e “_ delírios Cybernétic@s”, de Jono Lena Farias dos Santos. Posteriormente, o grupo que discutem a dimensão do corpo é composto por “Nitrato de Prata”, de Adriano Braga de Moraes; “Touch”, de Felipe e Isabella; “My Medical Bodies”, de Lina Lopes; “autorretrato ciborgue”, de Blue e “Corpos em quarentena”6, de Chris, The Red. Por fim, trazemos os trabalhos que discutem a atualidade e perspectivas de ação, sendo eles: “Jornaleco da Pandemia” de Gianlluca Pinheiro Carneiro; “O que existe é o mesmo ovo de sempre, chocando o mesmo novo”, de Fernando Dantas Valverde e “O lugar onde anoitece mais cedo”, de Gastón J. Oviedo. O presente número é finalizado com a linha do tempo dos acontecimentos mais relevantes dos últimos meses e de um quadro de referências de filmes e séries que abordam, sob diferentes perspectivas, os usos, impactos e relações com as tecnologias. Como nunca nos cansamos de repetir, a POSTO68 quer, muito mais do que trazer respostas, construir um espaço de debate para construção de outros futuros. O corpo editorial deseja a todxs uma leitura inquietante e capaz de organizar e canalizar o sentimento de revolta que queima nossos corpos em quarentena. 6 As imagens constantes na série Corpos em Quarentena são de autoria do artista Chris, The Red, quem gentilmente, as cederam para serem publicadas com as devidas permissões de direitos autorais. Nenhuma
das imagens pode ser reproduzida de forma mecânica ou digital sem autorização prévia por escrito do artista. Se houver uso injusto e/ou direitos autorais violados, entre em contato.
O mundo inteiro ferve na democracia canalha Manoela Furtado Tecnoutopias Urbanas Maria Carolina Farah Nassif de Moraes Poema: [sem assunto] Lopse Lazuli Aforismos Isolacionais Vitor Lima Monteiro Compro seus dados Brüno Melo Daniel Loureiro expõe suas próprias feridas em troca de likes Daniel Loureiro Cardoso Vigilância, Controle e Colonialismo de Dados Amora Julia Cunha Bueno Desfrute Gabriel F Mouco ✦ PROJETO ✦ Cooperativismo de plataforma Virassol ✦ Entrevista ✦ com Thiago Ávila Ana Luiza Gonçalves e Yasmin Carpenter Ruptura Isabela Doná Rodrigues ✦ PERFIL ✦ Redes em Expansão Larissa da Silva Souza Jogo e Ilusão Amanda Coelho Honório Smart cities: a promessa de um futuro inteligente em um discurso neoliberal Heloisa Alexandre Cizeski O que está em baixo é como o que está no alto Grupo Pitá ✦ Entrevista ✦ com Coletivo Coletores Rebeca Ramos e Felipe Leme
Esplanada Livia Koeche Você consegue fotografar a Lua? Bárbara Barbosa Machado As Ilhas Rook Henrique Bittencourt Vou por aí Wesley Lima Brito _delírios Cybernétic@s Jono Lena Nitrato de prata Adriano Braga de Moraes Touch Isabella e Felipe Eu quero ensinar às máquinas o que é ter um corpo Lina Lopes My Medical Bodies Lina Lopes autorretrato Ciborgue Blue Corpos e Quarentena Chris, The Red Jornaleco da Pandemia Gianlluca O que existe é o mesmo ovo de sempre, chocando o mesmo novo Fernando Dantas Valverde O lugar onde anoitece mais cedo Gastón J. Oviedo ✦ QUADRO DE REFERÊNCIAS ✦ ✦ LINHA DO TEMPO ✦
O mundo inteiro ferve na democracia canalha, 2021. Manoela Furtado. Artista visual, professora e pesquisadora. Vive e trabalha em Porto Alegre/RS. Desenvolve instalações, fotoperformances e videoperformances. Doutoranda e Mestre em Poéticas Visuais no Programa de PósGraduação em Artes Visuais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGAV/ UFRGS). Licenciada e bacharelada em Artes Visuais (UFRGS). Atua como professora de Artes do Município de Canoas/RS, desde 2015. Cofundadora do Espaço de Arte Acervo Independente (2013). Vencedora do 13º Prêmio Açorianos de Artes Plásticas como Destaque artista em início de trajetória. Contemplada no Prêmio Funarte RespirArte (2020). Já fez mais de 35 exposições (individuais e coletivas).
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Maria Carolina Farah Nassif de Moraes* Professor Orientador: Guilherme Teixeira Wisnik**
* Arquiteta e Urbanista graduada pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP); e-mail: mcarolinanassif @gmail.com ** Professor Livre-Docente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP).
Palavras-chave: arte contemporânea; urbanismo; internet; cidade contemporânea; tecnopolíticas; cibercultura
INTRODUÇÃO
OBJETIVOS
Tecnoutopias Urbanas se trata de um trabalho final de graduação apresentado à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) em março de 2021. A pesquisa se volta ao imbricamento existente entre digitalidade e espaço urbano tomando as artes visuais como ponto de partida. Elaboram-se relações possíveis entre o campo da cultura, o espaço urbano e os meios digitais, tendo a internet como paradigma explicativo essencial a fenômenos sociais, econômicos e políticos do momento contemporâneo. Assim, a internet e a cibercultura são entendidas como balizas fundamentais tanto das dinâmicas urbanas que se dão nas metrópoles contemporâneas, quanto do próprio fazer cultural das primeiras décadas do século XXI.
Objetivou-se entender como a prevalência dos meios digitais na contemporaneidade vem dando forma a determinadas dinâmicas urbanas atuais, partindo da contribuição de artistas visuais que operam com a temática da cidade em suas obras.
Escrito em formato ensaístico, o trabalho traz uma breve introdução seguida por quatro capítulos, descritos a seguir, que apresentam perspectivas distintas possíveis para as intersecções entre cidade, política, artes visuais e internet nas duas décadas iniciais dos anos 2000.
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METODOLOGIA
DISCUSSÃO CRÍTICA
O trabalho se fundamenta na articulação crítica entre a bibliografia teórica e as práticas artísticas enunciadas. Empregou-se uma literatura heterogênea, que pode ser decomposta em três grandes campos, dispostos abaixo.
O capítulo inicial de Tecnoutopias Urbanas expõe brevemente a transformação do espírito crítico acerca da internet entre a década de 1990 e os dias atuais. Afinal, se nos primórdios da internet havia uma espécie de expectativa geral de que a cibercultura se constituiria como um espaço de promoção de debates, do livreacesso à informação e da emancipação social, o resultado nos anos 2020 é bastante divergente, a começar pelas estratégias de hipervigilância autorizadas pelo monitoramento algorítmico on-line.
O primeiro conjunto de autores trata das discussões levantadas pela crítica arquitetônica acerca da condição da metrópole contemporânea, com particular interesse às transformações advindas com o surgimento do digital. Dentre este primeiro grupo sobressaem-se Guilherme Wisnik, Nelson Brissac Peixoto, Paul Virilio, Peter Eisenman e Rem Koolhaas. Paralelamente, empregou-se outro grupo de autores que discute o impacto da digitalidade em seus desdobramentos culturais, filosóficos e sociais. A pesquisa busca articular tanto nomes consagrados do meio – a exemplo de Fredric Jameson, Gilles Deleuze, Manuel Castells, Michel Foucault e Pierre Lévy –, como autores contemporâneos – dentre os quais se destacam as contribuições de Byung-Chul Han, Evgeny Morozov, Francesca Bria, Jonathan Crary e Shoshana Zuboff. Por fim, a literatura adotada traz um terceiro conjunto formado por artistas visuais cuja práxis e contribuição teórica apontam caminhos possíveis de se entender a metrópole contemporânea pelas lentes da digitalidade. Enquadram-se aqui as obras teóricas e as práticas artísticas de Clement Valla, Giselle Beiguelman, Jon Rafman, Lucas Bambozzi, Metahaven, Paolo Cirio, Sohei Nishino, Superflex e Tuca Vieira, dentre outros artistas discutidos no trabalho. A narrativa de “Tecnoutopias Urbanas” se inicia com uma breve introdução do tema, seguida por quatro ensaios que abordam aspectos diferentes das relações entre cidade, arte e internet, a serem comentados no tópico a seguir.
Deste modo, o primeiro ensaio do trabalho, “Cidade na era do capitalismo de vigilância”, articula a ideia de que a hiperconexão propiciada pelo digital autoriza o surgimento de um ambiente de extrativismo de dados e mapeamento de padrões comportamentais. No plano urbano, esse processo corresponde a cidades que se encontram em curva crescente de militarização, valendo-se de tecnologias digitais para monitorar, intermediar, quantificar e controlar as massas. Exemplos categóricos desse fenômeno são o uso de tecnologias de inteligência artificial via reconhecimento facial, de drones, e do próprio “modelo” urbano denominado cidade inteligente (smart city). O ensaio subsequente, “Cabeça nas nuvens, pés no chão”, aborda um fenômeno descrito pelo crítico e arquiteto Guilherme Wisnik, no qual se verifica uma alternância entre nitidez e opacidade, a saber: De um lado, uma opacidade em relação à compreensão geral das coisas, à nossa capacidade de nos situarmos individual e coletivamente em um sistema-mundo globalizado que se tornou impalpável e especializado demais. De outro, uma nitidez excessiva no trato mais objetivo e cotidiano com as informações, promovida pelo aumento da acessibilidade, da proximidade e da ubiquidade.¹
A própria internet aponta para essa dualidade, pois a nitidez propiciada pelo regime informacional digital contrasta com a robusta infraestrutura que sustenta a internet e permanece opaca no ambiente urbano – pensemos nos edifícios servidores de dados (data centers) e nos cabos submarinos de internet. Neste sentido, o trabalho do artista canadense Jon Rafman é emblemático ao abordar as relações de representação digital do espaço urbano contemporâneo que se colocam a partir do Google Street View. A partir do terceiro ensaio do trabalho, a obra de artistas visuais contemporâneos que versam sobre a cidade passa a dar a tônica da narrativa. No capítulo denominado “Territórios reais, territórios imaginados”, as metrópoles atuais são caracterizadas enquanto territórios genéricos, fluidos, dinâmicos e informes. Nesse sentido, estratégias narrativas das artes visuais contemporâneas são especialmente interessantes para se criar outros entendimentos possíveis da cidade que ultrapassam aquilo que se entende como real. O glitch, por exemplo, é abordado nas obras de Giselle Beiguelman e Tuca Vieira como estratégia representativa de novos entendimentos possíveis da cidade contemporânea a partir da chamada estética do erro. Por fim, o último ensaio, “Por um urbanismo de código aberto”, aponta que a internet pode ser entendida como veículo catalisador de ação política – abordando-se desde estratégias de ocupação de espaços públicos a metodologias de mapeamento coletivo digital. Linguagens como o videomapping e as projeções audiovisuais nos espaços públicos feitas por coletivos urbanos (tais como o Coletivo Coletores e o grupo Projetemos), são de especial interesse nesse capítulo conforme demonstram a relevância da internet enquanto elemento central do processo político que se dá nos grandes centros urbanos.
CONCLUSÕES Ainda que não seja finalidade última de um trabalho ensaístico elaborar conclusões categóricas sobre os temas abordados, percebe-se que as produções artísticas contemporâneas que se colocam na fronteira entre arte, cidade e tecnologia se mostraram um campo profícuo em direção a abrir novas perspectivas para se entender a experiência urbana, política e cultural na contemporaneidade. A práxis dos artistas visuais trabalhados aponta para possibilidades frutíferas de compreensão da experiência urbana na contemporaneidade. De modo análogo, a própria internet, enquanto fenômeno transversal e onipresente na contemporaneidade, mostrou-se um campo proveitoso para se entender as dinâmicas urbanas e culturais do século XXI.
AGRADECIMENTOS Aos professores Guilherme Wisnik, Giselle Beiguelman e Lucas Bambozzi. Ao Guilherme, meu orientador, pelas interlocuções preciosas que impulsionaram todo o processo do trabalho. À Giselle e ao Lucas, pelas arguições certeiras e inspiradoras durante a banca examinadora, que me permitiram revisitar as discussões levantadas por novos ângulos.
TEXTO EM ÍNTEGRA O trabalho original que deu origem ao resumo está presente na Biblioteca Digital de Trabalhos Acadêmicos da USP:
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Série fotográfica:
[sem assunto]
Aforismos Isolacionais, 2020
Lopse Lazuli**
Vitor Lima Monteiro*
Múltipla exposição em filme 35mm preto e branco
O excesso de assunto, Ao invés de Automatizar os ofícios, E autorizar os ócios,
*Vitor Monteiro, nascido e criado em Fortaleza, estuda Economia e reside em São Paulo desde 2015. Encontra uma câmera antiga da família, queima seu primeiro filme em 2019 e descobre-se fotógrafo. Acredita que o método analógico traz uma gama de possibilidades maiores na criação. Costuma experimentar com múltiplas exposições no fotograma e com film soup.
Só me deram cansaço, Estafa, Forma de estofado. Uma rede social, Que aproxima as pessoas, Me desobriga do abraço Do contato, do toque Do tempo. Porque me falta tempo.
**Lopse Lazuli (Juliana Lopes) é poeta e musicista nascida em Porto Alegre/RS e reside em Curitiba/PR, com participação em concursos literários desde a adolescência. @lopselazuli @vozesescarlate
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Se há tanto acesso Ao toque, controle, E tanta falta De necessidade
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Em sair E lá ir E correr atrás E, cá estou eu, Acomodada, Sem toque, Sem acesso. De que adianta, A faca E o queijo, Se falta fome? O excesso de acesso Ao invés de Aproximar pessoas E autorizar os afetos Só me deram estafa, E me fizeram estofada.
cOMPRO SEUS DADOS
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COMPRO SEUS DADOS, 2019 Brüno Melo* Estas fotografias são registros da performance "Compro seus dados", apresentada sem autorização prévia durante o Festival Internacional de Arte de São Paulo em 2019, no Pavilhão da Bienal. Nesta primeira versão, o trabalho consistiu no ato de transitar pelos corredores entre galerias e espaços do festival utilizando um colete amarelo estampado com escritos de anúncio comercial, chamando atenção para as palavras "Compro seus dados". O colete é análogo aos trajes utilizados por comerciantes de ouro, nos quais a frase "compro ouro" está sempre em evidência. Este tipo de anúncio é comum nas ruas e bairros comerciais de São Paulo e outras capitais brasileiras. Essas pessoas são responsáveis por divulgar esse tipo de negócio, no qual objetos de valor (ouro, jóias, relógios etc.) são analisados e precificados. O desenvolvimento da performance tem como ponto de partida o grande escândalo da empresa Cambridge Analytica em 2017, no qual os jornais New York Times e The Guardian revelaram que a empresa utilizou dados de cerca de 50 milhões de usuários vazados para empresas de marketing político, com a finalidade de traçar o perfil psicológico detalhado de eleitores nos Estados Unidos. A empresa interferiu diretamente nas eleições de muitos países, como México, Malásia e vários países do continente africano. No Brasil, a Cambridge Analytica aterrissou em 2017, com o nome CA Ponte e um inquérito sobre a empresa ocorre sob sigilo até hoje. Além disso, existem ligações fortes entre a campanha do atual presidente da república com Steve
* É um jovem artista multimídia paulista. Graduando no Centro Universitário Belas Artes, seu trabalho explora as temáticas co-relacionadas às esferas da arte digital, cibercultura de massa e performance. Seus trabalhos já fizeram parte de exibições em SP-Arte (2019, 2018) - Brasil, Athens Digital Arts Festival (2015) - Grécia, Atenas, Venice Biennale (2017) - Veneza, Itália e New Media Art Exhibition (2020) Gimpo, Coreia do Sul.
Bannon, estrategista da campanha de Trump. Dados em redes sociais como trajetos diários, gostos e pesquisas recentes são algumas das várias possibilidades de informações intangíveis que geram valiosos apontamentos psicográficos sobre os usuários. “Compro seus dados" indaga a sensibilidade da privacidade em relação às informações pessoais, assim como sua venda a grandes empresas. Contextualizado no ambiente do evento como lugar de comércio, promove um tom de satirização e provocação sobre o mercado da arte e a venda de produtos imateriais. A performance segue em experimentação de espaços para sua realização. Como pesquisa em andamento, se direciona sobre a relação entre o local que é realizada e a potência que ganha de acordo com local que é executada. Futuras versões incluem experimentos em mais localizações.
*Daniel Loureiro é artista visual graduando em Artes Plásticas pela Escola Guignard / UEMG. Seja por meio do vídeo, da música, da performance ou do desenho, sua produção aborda temas como fragilidade e demonstrações de afeto, além da relação do indivíduo com a cidade. Vive e trabalha em Belo Horizonte / MG - Brasil.
“Daniel Loureiro expõe suas próprias feridas em troca de likes”, 2020. Daniel Loureiro Cardoso*
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**Amora é artista visual, Arte Educadora. Seus processos criativos são produzidos em múltiplas linguagens, ressignificando materiais sem usos do cotidiano, explorando a figura humana por meio da observação, a natureza, impressões manuais, a colagem e os retratos. Em suas práticas de representação, através da escrita, revelam o campo da memória, assim como a resistência dos corpos dissidentes, diante dos afetos e de uma arte produzida na América Latina por mulheres.
Vigilância, Controle e Colonialismo de Dados Amora Julia Cunha Bueno**
INTRODUÇÃO Se formos citar as transformações mais relevantes no campo da comunicação na última década, evidenciam o surgimento das plataformas e do acesso às redes. A informação enquanto uma ferramenta de conhecimento e expressão – sendo um direito humano essencial – é mediada por este ciberespaço e torna-se o principal mecanismo de armazenamento. Revelando um enquadramento em um sistema de vigilância sobre os indivíduos, em uma conectividade recorrente. Diante da expansão das informações coletadas, surge uma nova forma de colonialismo através dos nossos dados (COULDRY; MEJIAS, 2019).
Declarações óbvias diante dos interesses de mercado, onde este controle digital é direcionado diretamente sobre a vida humana, diante do impulsionamento da notícia e dos produtos de consumo imediato. Onde nos fazem questionar a quem esta gestão de informação está constantemente abastecendo, qual a utilidade desses milhões de acessos? Ou com qual objetivo o mercado propriamente dito, se apropria destes dados? Este presente trabalho entrelaça alguns parâmetros de segurança em relação à transparência no acesso às redes, sugerindo a necessidade de definir novas perspectivas e cuidados com as estratégias
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vigentes, problematizando os monopólios, tanto em relação às grandes corporações, enquanto produtora de mercadorias, como também nas dinâmicas algorítmicas de coletas e consultas das bases de dados.
a necessidade de uma sociedade que se abastece economicamente dessas intensas distribuições diante do mercantilismo extremo. No capitalismo baseado na invenção permanente, encontrar velozmente os possíveis consumidores é essencial para vencer a concorrência. Mais do que isso, ser capaz de criar novas necessidades depende da percepção de como são os fluxos dos afetos e os interesses das pessoas que possuem milhares de opções disponíveis para seguir. A captura das atenções é uma arte, mas uma arte tecnológica, baseada na análise dos comportamentos, na definição de padrões comportamentais dos segmentos e indivíduos em rede. (SILVEIRA, 2016, P.18).
Impossível investigar as questões dos conteúdos e sua ordenação, sem adentrar nas relações de poderes e sistemas de dominação que existem no ambiente virtual, reforçados a determinados tipos de manipulações.
DANÇANDO NO RITMO DO ALGORITMO Entender sobre o fluxo informacional dos algoritmos, orquestrado pela confecção de mercadorias cada vez mais ajustadas às necessidades e relevância dos usuários, enquanto um novo paradigma que de um lado melhoram a produtividade e por outro, criam espaços limitados de informações, revelam ritmos, movimentos e uma dança sincronizada, porém imperfeita; diante de um rigoroso processo de vigilância e rastreamento que constantemente é realizado, enquanto navegamos pelas redes, produzindo enquadramentos, em detrimento de um consumo desenfreado. Se existe uma regra nestes arranjos comunicativos, responsáveis por operar a reprodução do sistema, vale ressaltar os mecanismos de busca e oferta: de um lado, a existência de excessos sob o total controle diante usuários evidenciam uma relação potente, porém sem transparência, por outro lado supre
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E diante destes fluxos, surgem novos métodos de reorganizar as estruturas das novas dinâmicas da vida cotidiana e dos negócios, tornando possível comparar à uma dança, um movimento. Porém, o Professor Sergio Amadeu da Silveira define como sendo modulações, pois quanto mais conectado estiver o mundo, mais modulados serão seus cidadãos. Analistas de dados, algoritmos, processadores e sensores buscam modular o comportamento e as escolhas das pessoas. (SILVEIRA, 2016, P.17). Portanto, nossos dados tornam-se cada vez mais valiosos, diante destes ecossistemas comunicacionais distribuídos e enquanto uma estratégia baseada na análise de nossas informações. Uma tarefa difícil nos dias atuais será resistir a estes formatos,
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permanecer fora destas gaiolas digitais, ou seja, quanto mais tivermos acessos a diferentes informações, poderemos sondar a veracidade dos fatos, percorrer outros saberes e pontos de vista. Os algoritmos, nesta dança frenética, segundo Ronaldo Lemos e Marco Konopacki, não será um instrumento para organizar a informação ao mesmo tempo em que tenta democratizar seu acesso, mas sim, uma ferramenta para construir novas bolhas discursivas (2017. P.16).
Estas relações que surgem, demonstram também que somos incapazes de elaborar métodos autônomos e eficazes de filtragem das informações. Compreender estes deslocamentos virtuais, tornando ainda mais relevante identificar as engrenagens destes movimentos em cadeia e seus descompassos. Reduzir os danos causados por estas bolhas algorítmicas e discursivas; ou a bolha de filtros, discutidos pela pesquisadora e professora Lucia Santaella que sugere enquanto uma possível prevenção e proteção contra estas bolhas, um “processo educativo pessoal”, coletivo e público (SANTAELLA, 2018, P.34). Estamos imersos e controlados por um enquadramento produzido através dos nossos dados pessoais, anseios, buscas, desejos e até os nossos medos. Uma nova forma de vigilância surge, e então revela a necessidade de uma pausa, não tão somente para refletir sobre estas relações obsoletas diante da velocidade das informações, mas, sobre o que irá conceder uma transparência e reavaliação destes sistemas.I
A ARTE DE GOVERNAR A VIDA, O COLONIALISMO DE DADOS E O AMBIENTE DIGITAL ENQUANTO FERRAMENTA DE CONTROLE A informatização no mundo contemporâneo em meio ao controle e a filtragens feitas por meio das tecnologias digitais em toda a sua extensão, diante do monitoramento, nos propõe uma resistência às estratégias existentes que expropriam nossos dados, sendo um princípio de vigilância que coloniza diversos ambientes. Diante da crise pandêmica atual, exigem práticas para além de reflexões, mas atitudes que impeçam as grandes corporações de tirarem proveitos de nossas informações através desta “dataficação’’, enquanto tecnologias de poder a fim de preservar determinada segurança. Este ambiente de vigilância nos remete ao conceito de Panóptico que teve sua origem e as suas transformações, a partir do século XVIII, “Pan-Óptico”: seria também traduzível ao “Olho que tudo vê”, remetendo ao sentimento de “constante vigilância” (LEOPOLDO. 2020, P.79). Conceito que ressignifica a sua utilidade aos distintos espaços na sociedade, e ressurge nos dias atuais para nossas telas e diante dos celulares. O panoptismo em sua origem teve como objeto de estudo, o modelo de arquitetura carcerária que Jeremy Bentham configurou na Inglaterra, na qual Foucault chama de sociedade disciplinar, enquanto uma ferramenta do Biopoder que surge de uma transição da sociedade de controle¹.
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No entanto o aprisionamento de nossas informações, assim como as bolhas algorítmicas possui um caráter manipulador e teriam seus moldes derivados desta tecnologia regulamentadora. Remetem a um indivíduo que poderia ser esculpido, ou ainda, para pensar nos espaços da internet, que operam enquanto ferramentas de produção de consumo e mercadorias, criando indivíduos ajustados ao padrão desta maquinaria. Em ambiente digital, surge um novo tipo de panóptico, contendo as semelhantes estruturas de dominação, ferramentas de vigilância para um novo tipo de capitalismo, operando enquanto uma tecnologia de normalização². normalização . Neste momento, é importante observar que o panoptismo não é somente uma estrutura física, mas, também, uma tecnologia de poder que induz um estado consciente de permanente visibilidade. Entendido como uma tecnologia, o panoptismo poderia colonizar outros ambientes, já que apresenta como ramificável e flexível. (LEOPOLDO. 2020, P. 79).
Haveria uma nova forma de colonizar o que há mais de cinco séculos tem sido explorado através da mão de obra e dos recursos naturais da biosfera? A Resposta é que neste novo método de colonização, todos os nossos anseios, medos, e desejos, ou seja, a experiência humana é colonizada e que por fim serve de matéria prima. A tecnologia disciplinar neste panóptico digital, apesar de não ser uma instituição, alimenta as grandes corporações que se apropriam destes elementos e se responsabilizam por uma imensa infraestrutura de informações, tornando mecanismos que geram tão somente o lucro. Estes sistemas são tão numerosos que a cada dia nos surpreendem mais e mais, com a impecabilidade da oferta de informação (precisa) e da compatibilidade nos resultados. Acima de tudo, devemos rejeitar a suposição padrão que alimenta o colonialismo de dados: a ideia de que a extração contínua de dados de nossa vida diária é de alguma forma um bem público e não apenas um ganho corporativo. Se não conseguirmos limitar as “soluções” tecnológicas em andamento, arriscamo-nos a ligar a história da apropriação colonial, antiga e nova, ao nosso futuro. (COULDRY; MEJIAS, 2020, S/P – Tradução: YORK. Sara Wagner. 2021.)
Portanto, o colonialismo de dados tem como ferramenta a vida humana, e se apropria das pessoas, através da captação de fragmentos e apontamentos de suas vivências cotidianas, permitindo que esses dados sejam transformados puramente em anúncios e mercadorias. Considerados em conjunto,
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1 Biopouvoir (biopoder) é o termo com que se refere a essa nova forma de poder produtivo, difuso e em expansão. Ultrapassando o domínio jurídico e da esfera punitiva, o poder torna-se uma força de “somatopoder” que penetra e constitui o corpo do indivíduo moderno. Este poder já não se comporta como uma lei coercitiva, um mandato negativo: é mais versátil e acolhedor, adquirindo a forma de “uma arte de governar a vida”, uma tecnologia política geral transformada em arquiteturas disciplinadoras (prisões, quartéis, escolas, hospitais etc.) (PRECIADO. 2017 - P.75) 2 Diante de uma análise da disciplina e da biopolítica, gostaríamos de voltar para alguns autores que, a partir de Foucault, verificaram variações a respeito do panoptismo, até chegarmos na vigilância, na criação de perfis e, por meio destes dados, no banimento que, por muitas vezes, reflete um padrão normalizador e uma exclusão das minorias. Poderíamos dizer que há uma pobrefobia na criação do perfil, um fascismo suavizado por meio das tecnologias de vigilância. (LEOPOLDO. 2020 P.84.)
tão abrangentes que correm o risco de governar os seres humanos de uma forma tão absoluta como o colonialismo histórico. (COULDRY; MEJIAS. 2019, P. 6). Diferente do colonialismo histórico que se apropriou de territórios, utilizando da violência física. (COULDRY; MEJIAS. 2019, P. 6).
– ambos possuem em comum a extração de recursos e uma determinada ambição. Tal como o colonialismo histórico, o colonialismo de dados é global nas suas ambições, mas ao contrário dele, penetra nas condições de vida dos indivíduos em todas as sociedades, onde quer que estejam, são remodeladas em torno de infraestruturas digitais de conectividade. A expansão do colonialismo de dados é, portanto, tanto externa (geográfica) como interna (social). (COULDRY; MEJIAS. 2019, P.17. Tradução nossa).
Direcionamento e exatidão seriam as palavras chave, mas acaba sendo um cadeado que nos aprisiona em determinados conteúdos, por mais que o nosso cotidiano seja mapeado por estes sensores de capturas e venda dos nossos dados, para além da obtenção de produtividade ou das melhorias de serviços, haveria uma grande preocupação em torno deste esquema de controle, considerando as consequências sociais e éticas estrategicamente direcionadas³. Mane Tatulyan é designer e em seu artigo “Panóptico Digital: Para Um Novo Tipo 3 A COVID-19 tem sido estrategicamente rotulada pelo Presidente dos EUA Donald Trump como o “vírus chinês”, e o Departamento de Segurança Interna está se preparando para militarizar as fronteiras dos EUA para proteger contra o “potencial de propagação de doenças infecciosas” dos imigrantes. Na Índia, as medidas de bloqueio tiveram um impacto desproporcional sobre os
pobres, desencadeando o maior êxodo humano desde a partição daquele país. Existe aqui uma conexão histórica. A intersecção de doenças, dados e poder são muito anteriores à crise atual. A colonização do continente americano resultou na morte de 90 por cento da população nativa (mais de 50 milhões de pessoas), dos quais 95 por cento morreram de doenças trazidas da Europa. A
De Capitalismo, Um Novo Tipo De Panóptico” (2020), nos alerta sobre a lógica de que “quanto mais conectados estivermos uns aos outros, cada vez mais, estaremos desconectados da realidade”. A autora do texto descreve sobre estas tecnologias disciplinares, suas formas estratégicas e sutis de normalização, enquanto uma “decomposição social com humanos encapsulados em suas telas e seus microuniversos” (TATULYAN. 2020, S/p). Assim, o bisturi técnico do poder opera no organismo coletivo: dividir, examinar, quantificar, arquivar, controlar (porque a totalidade é perigosa). Quando a complexidade da vida é reduzida a números, dados, bits, calorias, pixels, caracteres e gostos, todo o homem se torna informação. (TATULYAN. 2020, S/P. Tradução nossa).
Enquanto um império se consolida neste cenário, revelando uma relação de controle e poder sobre a vida humana, empresas de tecnologias como Google e Facebook, permanecem em sua ascensão, construídas com os tijolos de nossas aspirações e interesses, transformados em dados e em formas desmedidas de impulsionar informações. Se em 2019, 134 milhões de pessoas, ou seja, três em quatro brasileiros acessaram a internet, é possível deduzir que o número tenha aumentado em 2020 em decorrência da pandemia no isolamento social, assim como aumentou relativamente o número de pessoas afetadas por discursos de ódio e pelas notícias falsas4. propagação de doenças não fazia parte do plano dos invasores europeus da América Latina cinco séculos atrás, mas criou uma oportunidade sem precedentes para os conquistadores. (COULDRY; MEJIAS, 2020 - S/P – Tradução: YORK. Sara Wagner. 2021).
da informação e comunicação, realizada pelo (cetic.br).
4 As informações são da pesquisa TIC Domicílios 2019, o mais importante levantamento sobre acesso a tecnologias
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Os discursos nas redes sociais podem afirmar o “absurdo e a violência, mas, também, o caos social” em que se propõe uma espécie de “ética-invertida”. (LEOPOLDO. 2020, S/p.). A conjuntura, analisada a partir de 2015, é regida pela retomada das marcas fortemente neoliberais, do crescimento dos populismos, das políticas de austeridade e desmantelamento das políticas públicas. Processos que caminham em paralelo a reestruturação do neoliberalismo na América Latina, revelando uma nova versão do capitalismo na contemporaneidade. Desafios em meio à ausência da democracia que atravessam as plataformas tornandose em questões globais e decisivas para o nosso tempo. No livro “Governance For The Digital World”, os autores Fernando Filgueiras e Victor Almeida fazem análises e descodificam questões sobre a governança nas redes, explorando novas estruturas, arranjos institucionais e regras para o ambiente digital. Bilhões de pessoas testemunham múltiplas transformações positivas em relação aos setores públicos e privados. Formas de representações diante das plataformas,softwares, algoritmos e dispositivos digitais no cotidiano. Porém os autores nos alertam para os riscos significativos em relação aos “parâmetros e falhas contidas nas bases de dados que são determinadas por construções políticas e jurídicas com um tempo demarcado” (FILGUEIRAS; ALMEIDA. 2021, P. 93)5. As empresas devem trabalhar para confirmar o senso de justiça e estabilidade dos algoritmos. Isto implica custos mais elevados e tem levado à resistência das empresas tecnológicas, que devem rever os seus procedimentos e equipes, contratar auditores de algoritmos, e assegurar políticas de inclusão. Promovem um processo de vigilância excessiva que poderia punir as comunidades mais vulneráveis. Os enviesamentos de algoritmos tornaram-se um elemento chave para a regulação, uma vez que produzem ou reproduzem injustiças sociais. (FILGUEIRAS; ALMEIDA. 2021, P. 92. Tradução nossa).
Haveria alguma perspectiva transformadora onde os autores do livro elencam com perspicácia, algumas perguntas, hipóteses, denotações, a fim de reduzir estes impactos injustos por estas bases de informações: Relacionando a “Privacidade e proteção de dados, diante da possibilidade dos cidadãos reivindicarem seus direitos de conhecerem os processos de decisões algorítmicas” (FILGUEIRAS; ALMEIDA. 2021, P. 94). A veracidade dos fatos e a transparência são colocadas em questionamento. Diante destes mecanismos, em meio às operações destes cálculos, sua aprendizagem, quais parâmetros ele utiliza para classificar e gerar previsões e sendo assim produzindo resultados e relevância. “Quais razões que os algoritmos tomaram para determinadas decisões” e também os métodos mais humanizados, trazendo
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5 Fernando Filgueiras e Victor Almeida, apontam para diferentes elementos de transparência algorítmica que condicionam a possibilidade de existir vários fóruns na sociedade e instituições de governação – a fim de exigirem justificativas e explicação por parte dos atores responsáveis pelos sistemas.
transparência para as formulações das perspectivas políticas de inclusões, ou seja, possibilitando analisar de que maneira elas foram produzidas e que tipo de impacto sofrerão os indivíduos na sociedade (FILGUEIRAS; ALMEIDA. 2021, P. 94).
Portanto, as formas em que o sistema lida com a discriminação e a inclusão dos vários atores sociais, em torno dos resultados alcançados pelos sistemas de decisões algorítmicas, revelariam a quem, para onde, e quando fariam usos destas repercussões produzidas. Desta maneira, um algoritmo enquanto uma leitura automatizada, robotizada que não se atenta aos recortes de classes e de camadas sociais diante das vulnerabilidades existentes, torna um
processo não humanizado que apenas nós seres humanos conscientes destes elementos e efeitos poderíamos obter e elaborar. Se o mundo digital há uma década, antes de sua expansão foi vista enquanto um campo livre, aberto, sem dono, governo e sem fronteiras. Esta liberdade que era projetada teve que ser suspensa sendo conduzida a uma reavaliação de suas estruturas. Ou seja, não foram somente às definições de democratização ao acesso às informações e da liberdade de expressão que foram redefinidas, mas sim, as necessidades de governanças e de novos protagonismos, enquanto práticas de representação neste mundo digital.
REFERÊNCIAS COULDRY. Nick; MEJIAS. Ulises Ali. Resistance To The New Data Colonialism Must Start Now. Aljazeera – 28/04/2020. Tradução: YORK. Sara Wagner. Disponível em: https://www.aljazeera.com/opinions/2020/4/28/ resistance-to-the-new-data-colonialism-must-start-now ✦ ✦ ✦_________. Nick; MEJIAS. Ulises Ali. The Costs Of Connection: How Data Is Colonizing Human Life And Appropriating It For Capitalism. Stanford, 2019. ✦ ✦ ✦ FILGUEIRAS. Fernando; ALMEIDA.Victor. Governance For The Digital World. Switzerland: Palgrave Macmillan 2021. ✦ ✦ ✦ LEMOS, Ronaldo; KONOPACKI, Marco. Alguns Princípios Para Pensar A Governança De Algoritmos. In: Desafios A Liberdade De Expressão No Século XXI - ARTICLE 19, 2017. ✦ ✦ ✦ LEOPOLDO, Rafael. Cartografia Do Pensamento Queer. 1ªed./ Salvador - BA. Editora Devires, 2020. ✦ ✦ ✦ ___________, Rafael. A Ultraderecha Troll Brasileira. Justificando – 21/04/2020. Disponível em: https://www.justificando.com/2020/04/21/aultradireita-troll-brasileira/ e Ultraderecha Troll. 2020. Disponível em: https://youtu.be/upCCw-YXdN8. ✦ ✦ ✦ PRECIADO, Paul. B. Testo Junkie: Sexo, Drogas E Biopolítica Na Era Farmacopornográfica. São Paulo: n-1 edições. 2018. ✦ ✦ ✦ SANTAELLA, Lucia. A Pós-Verdade É Verdadeira Ou Falsa? In: CYPRIANO, F. (org.). A PósVerdade É Verdadeira Ou Falsa. Barueri, SP: Estação das Letras e Cores, 2018. ✦ SILVEIRA, Sérgio Amadeu. Economia Da Intrusão E Modulação Na Internet. Liinc em Revista, Rio de Janeiro, v.12, n.1, p. 17-24, maio 2016. Disponível em: http://www.ibict.br/liinc ✦ ✦ ✦ TATULYAN, Mane. The Digital Panopticon For a New Type Of Capitalism, A New Type Of Panopticon. . Setembro - 2020. - Disponível em: https://uxdesign.cc/the-digitalpanopticon-36630d297935 ✦ ✦ ✦ TIC DOMICÍLIOS 2019. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/ geral/noticia/2020-05/brasil-tem-134-milhoes-de-usuarios-de-internet-aponta-pesquisa.
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DES FRU TE
Gabriel F Mouco Nascido em Joinville, cidade a qual iniciou sua inspiração pela arte. Em 2005 dá os primeiros passos artísticos, buscando no contexto visual urbano, sua exploração, tendo a ocupação de espaços abandonados como sua principal alternativa.
Pintura em técnica mista sobre canson 200g A4, 2020.
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Bruno Guillen Apreciador de passeios de bicicleta na companhia de seu cachorro, Pantera, Bruno nasceu em Marília - SP. É formado em Engenharia de Produção pela EESC - USP. Tendo participado de diversas atividades extracurriculares durante a graduação, além de ter feito um intercâmbio para a Holanda, para ele tornar-se um cidadão internacional é uma prioridade hoje.
Cooperativismo de plataforma A disputa pelo espaco de reorganizacao das relacoes de trabalho Bruno Guillen | Guilherme Prearo | Gustavo Nicolau | Marina Abrão | Pedro Ferrão | Pedro Virgílio
RESUMO O mundo contemporâneo experimenta as consequências dos avanços do capitalismo neoliberal e, consequentemente, suas crises. A partir da reflexão sobre as tecnologias da informação e comunicação (TIC) como importante pilar para a compreensão das atuais transformações que o mundo do trabalho sofre, sendo elas essenciais na constituição do capitalismo de plataforma, percebe-se a necessidade de explorar novos arranjos alternativos de organização do trabalho estruturados e sustentados pelas TIC. O Cooperativismo e a Economia Solidária são apresentados como formas alternativas de organização econômica já existentes que, auxiliadas pelas TIC, são conduzidas a um novo estágio de experimentação, com novos avanços e também novos dilemas. A partir dessa compreensão e da urgente necessidade de mudança, nasce a Virassol, organização que humildemente se junta a tantos outros grupos inspiradores na luta pelo que virá.
Guilherme Prearo Apreciador de boas leituras e interessado em diversos assuntos, nascido em BaririSP, Guilherme é formado em Engenharia da Computação pela USP São Carlos. Participa da Secretaria Acadêmica da Engenharia de Computação (SAECOMP) e da ADA - Projetos em Engenharia da Computação, grupos de dentro da minha faculdade. Hoje trabalha como Analista de TI no BTG Pactual e é um dos membros fundadores da Virassol.
Gustavo Nicolau Apreciador dos efeitos da tecnologia na sociedade e de livros de ficção, nascido em Mauá-SP, Gustavo é formado em Engenharia da Computação pela USP São Carlos e atualmente é mestrando na Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação (FEEC) da UNICAMP. Foi participante da Secretaria Acadêmica da Engenharia de Computação (SAECOMP) e da ADA Projetos em Engenharia da Computação, grupos da mesma instituição de ensino de formação. É membro fundador da Virassol.
Palavras Chave: Economia Solidária, TIC, Capitalismo de Plataforma, Virassol.
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Ele se dispersou sorrateiramente e, de forma abrupta, preencheu todo o globo. Mudou nossa forma de existir, de nos organizar. A cada investida contrária, a cada tropeço próprio, mutou-se, criou novos mecanismos, tornou-se mais agressivo. Hoje, ele assola todas as populações do mundo, sem permitir que ninguém escape. Como um vírus, o sistema capitalista sofre profundas transformações, se reinventa e evolui para persistir crise após crise. Ele se baseia globalmente em uma concepção liberal, fundamentando sua narrativa na supremacia da eficiência econômica, ou seja, na otimização de produtos e recursos, explorando-os da forma mais barata possível. Outro pilar estruturante é a concepção que iguala o conceito de cidadã ou cidadão ao de consumidora ou consumidor, em que a promoção de liberdade está vinculada ao consumo de bens e serviços, de modo que a lógica do sistema permeia até mesmo o acesso de cada pessoa ao que lhe define enquanto humano.
Marina Abrão
Com sua grande capacidade de mutação e adaptação, o espetáculo capitalista viu surgir um novo grupo de protagonistas a partir da virada do milênio. Com 5 representantes entre as 10 empresas mais valiosas do mundo (FXSSI, 2021), as Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) têm ditado as regras do sistema. A partir da automatização dos processos e a consequente otimização dos recursos, as TIC permitem a redução dos preços dos produtos, se promovendo a partir de uma narrativa de maior acessibilidade, conforto e bem-estar dos cidadãos-consumidores. Para isso, um dos recursos que deve ser otimizado é o trabalho: a diminuição dos gastos com mão de obra é um dos pontos chave na redução de custos de produção.
Pedro Ferrão
Apesar das inovações trazidas pelo crescente domínio das TIC, sua estrutura ainda responde, majoritariamente, à lógica de organização do trabalho pré-existente à sua concepção. Aqueles que tem a posse tanto das fábricas, maquinários, terras e matériaprima, quanto das plataformas, softwares e infraestruturas digitais, são os detentores dos meios de produção. No sistema atual, essa classe, que chamaremos aqui de capitalistas, concentra o poder referente à organização socioeconômica. Ela tem posse, por meio do conceito de propriedade privada, daquilo que é necessário para que o trabalho possa desempenhar o seu poder transformador. Dessa forma, os detentores da força de trabalho, pertencentes à classe trabalhadora, se tornam dependentes dos capitalistas na produção dos produtos, levando ao estabelecimento de uma relação de poder desigual. Essa relação dispare é fator inerente à organização capitalista. Assim como demonstrado por Piketty (2014, apud. CAPRARA, 2017), apesar de sua dissipação durante o século XX, a desigualdade voltou a crescer a partir do final do século passado e possui a tendência de seguir crescendo. Para além da argumentação baseada em dados estatísticos de Piketty, Harvey (2014) expõe que a concepção marxiana identifica o crescimento da desigualdade enquanto reflexo do desequilíbrio de poder
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Apreciadora convicta do ato de cozinhar e, claro, de comer, nascida em São Paulo-SP, Marina encontrou na Licenciatura em Ciências Biológicas a possibilidade de trabalhar na interface entre os seres-humanos e a natureza. Recém formada pela UFSCar de São Carlos, hoje busca voltar sua força de trabalho para práticas sociais que eduquem para um mundo mais igualitário e coletivo. Dentro da academia, tem focado sua pesquisa na agricultura urbana pelas lentes da antropologia e é membra fundadora da Virassol.
Apreciador de diversos jogos em diferentes formatos, nascido em São PauloSP, Pedro é formado em engenharia ambiental pela EESC-USP e atualmente é mestrando em teoria e história da arquitetura e urbanismo no IAU-USP. Atua como consultor em Ciências e Técnicas de Governos pela Fundação Instituto de Administração e pelo Instituto Carlos Matus, no qual é sócio efetivo e membro do conselho curador, além de ser membro fundador da Virassol.
Pedro Virgílio Enxadrista e praticante de guitarra, nascido em S. J. do Rio Preto-SP, Pedro é formado em Engenharia da Computação pela USP São Carlos onde atualmente é mestrando na área de Sistemas Dinâmicos. Foi participante da ADA Projetos em Engenharia da Computação, grupos da mesma instituição de ensino de formação. Membro fundador da Virassol.
entre capital e trabalho, dinâmica que é inerente à estrutura capitalista. O contexto pandêmico é mais um elemento que valida essa análise: segundo estudo desenvolvido pela PUCRS, os 10% mais ricos de cada região metropolitana tiveram redução de 3.2% em seus rendimentos, enquanto os 40% mais pobres vivenciaram uma queda de 32.1%, que implica em um grande aumento da desigualdade social no Brasil neste ano (A DESIGUALDADE, 2020). Compreender e analisar a relevância das TIC para a atual organização da sociedade passa pela concepção de que elas se inserem e se estruturam a partir de um contexto de desigualdade. Elas são centrais dentro do sistema capitalista hoje e têm grande influência nos rumos da desigualdade no Brasil e no mundo. Um exemplo fundante disso é a desigualdade de acesso à internet (Tabela 1). Tabela 1. Taxa de penetração de usuários de internet por regiões do globo. Regiões
Taxa de penetração África
46,2%
América do Norte
89,9%
América do Sul
76,2%
Ásia
59,6%
Caribe
60,4%
Europa
87,2%
México e América Central
66,4%
Oceania e Pacífico Sul
67,4%
Oriente Médio
71,3%
Fonte: Internet World Stats (2020)
As recentes transformações no mundo do trabalho têm atraído a atenção de pesquisas que objetivam compreender sua nova configuração e, em especial, sua relação com as TIC e as transformações sociais promovidas por elas. A realidade humana tem se afastado das antigas utopias retro-futuristas, em que um novo maquinário a então ser descoberto seria responsável pelas atividades econômicas enquanto a humanidade estaria enfim livre para viver sem as amarras do trabalho explorado. No lugar, ela tem se aproximado
das distopias cyberpunk, em que o bem estar social corre na contramão do acelerado desenvolvimento tecnológico. O grande contraste entre avanço tecnológico e retrocesso trabalhista fica evidente na imersão proposta pelos documentários “Pandelivery: Quantas vidas vale o frete grátis?” (2020) e “Vidas Entregues” (2020), que expõem acidentes, fome, vigilância e a insegurança na vida de pessoas que trabalham para aplicativos de entrega, retratando os principais dilemas daqueles que vivenciam o processo que fica sendo conhecido como a uberização do trabalho. É preciso, entretanto, enxergar além dos icônicos exemplos dos aplicativos de entregas e “caronas” para notar que a força de trabalho no setor de serviços está cercada por algoritmos e enfrentando o mesmo processo de precarização. O crescente protagonismo das TIC nos sistemas econômicos têm reproduzido, em sua maioria, a lógica de organização social do trabalho anterior ao seu desenvolvimento. As empresas que atuam principalmente utilizando as TIC foram exemplificadas aqui pelas que operam por meio de aplicativos de entregas e transporte individual, porém, assim como definido por Srnicek (2017, apud. SILVA NETO 2019) existem mais categorias. O autor propõe cinco grandes categorias de plataformas - de propaganda, nuvem, industriais, de produtos e enxutas - e defende que as grandes empresas de tecnologia estão levando a sociedade para uma nova fase do capitalismo. Nessa nova fase, a exploração econômica dos dados possui função central na organização do sistema sócio-econômico, sendo acompanhada por novos modelos organizacionais promovidos, principalmente, pelas big techs. Para essa dinâmica é dado o nome de capitalismo de plataforma (SRNICEK, 2017, apud. SILVA NETO, 2019). Apesar desse contexto , diversas iniciativas se propõem a realizar a disputa de modelos organizacionais e produtivos. É
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de grande relevância e interesse relembrar um movimento que atua na proposição de um modelo econômico e produtivo distinto ao capitalismo: o cooperativismo. Seu modelo de organização do trabalho não responde à lógica de divisão patrão e empregado, nele todos os seus membros a controlam e participam ativamente na formulação de suas políticas, tomada de decisões e no trabalho cotidiano (OCB, 2021). O modelo cooperativista é o mais conhecido mas não o único que propõe uma organização da atividade econômica mais solidária e igualitária. Associações, empresas autogestionárias, redes de produtores e produtoras e grupos informais também compõem o campo da economia solidária. Essa se caracteriza pela organização da produção, da distribuição e do consumo de modo que os empreendimentos sejam propriedade coletiva daquelas pessoas que nele trabalham, sendo elas todas simultaneamente donas e trabalhadoras (SINGER, 2011). Na economia solidária a ideia de “lucro” é deixada de lado, sendo substituída pela ideia de “excedente”, que será usado em investimentos dentro da própria organização, em favor de todas e todos os participantes. Tendo como princípios a autogestão, autonomia, democracia, solidariedade, cooperação, respeito à natureza, comércio justo, consumo consciente e valorização social do trabalho humano, os empreendimentos solidários enfrentam o desafio de equilibrar sua composição associativista em um contexto em que as pessoas são forjadas a partir dos valores capitalistas e a viabilidade econômica de uma proposta que visa a inclusão social através do trabalho. Wirth, Fraga e Novaes (2011, apud. FRAGA, 2012) apresentam três
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perspectivas de compreensão distintas sobre a relação entre a economia solidária e o modelo capitalista. A primeira abordagem compreende a economia solidária enquanto um modelo complementar ao capitalismo, na segunda, essa é entendida como um caminho de superação gradual ao sistema vigente, e na terceira a economia solidária se caracteriza como modelo que promove a luta anticapitalista. Compreendendo que toda transformação concreta do sistema social possui, necessariamente, elementos contraditórios, entendemos a economia solidária enquanto uma ferramenta de luta relevante e propositiva frente ao modelo capitalista. A subversão dos conceitos de propriedade privada e lucro, somados à proposta de geração de emprego e renda associada à inclusão social através do trabalho são questionamentos a elementos estruturais ao sistema capitalista. Ou seja, são iniciativas que se configuram como um movimento de luta que busca a inserção no mercado de trabalho de populações excluídas e marginalizadas, que são exploradas dentro das iniciativas econômicas “tradicionais”. Retornando o foco da análise ao capitalismo de plataforma, movimentos contrários ao processo de precarização têm surgido ao redor do mundo. No Brasil temos como exemplo o grupo Entregadores Antifascistas, líderes da paralisação em prol dos direitos desses trabalhadores em 01 de Julho de 2020 que ficou conhecida como o Breque dos APPs. Em entrevista ao Quebrando o Tabu, Paulo Lima “Galo”, portavoz dos Entregadores Antifascistas, diz: “O inimigo do entregador não é o aplicativo, é quem está operando o aplicativo. Porque o certo é o aplicativo ser dos trabalhadores.”. A compreensão das plataformas digitais e aplicativos como meio de produção central para esse modelo de
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negócio é essencial para o fim da visão de “empresário de si” que parte das pessoas que trabalham para aplicativos têm de si mesmos. O desejo da tomada desse meio de produção, não deve limitarse ao controle e manutenção dessa tecnologia, mas seu desenvolvimento e concepção. Segundo a visão proposta por Grohmann, as tecnologias são “(...) práticas sócio materiais que comunicam modos de existência a partir dos valores contidos em suas arquiteturas e estão inseridas tanto nas interações cotidianas quanto no modo de produção capitalista.” (GROHMANN, 2020, P. 93). Dessa forma, ainda que sob posse das trabalhadoras e dos trabalhadores, as plataformas continuariam refletindo os modos capitalistas de existência, uma vez que foram projetadas e construídas sob esse viés. Superada a visão de que as tecnologias trariam o “fim do trabalho”, enxerga-se a expansão de trabalhos no setor de serviços acompanhada pela precariedade e informalidade (ANTUNES, 2008). As TIC, cada vez mais importantes nos modelos de produção capitalista, tornam-se elementos primordiais para a compreensão dos novos mecanismos de perpetuação do capital. Assim, se explicita a centralidade de pautar as TIC na construção de modelos políticoeconômicos alternativos ao capitalismo, compreendendo-as enquanto ferramentas de construção de viabilidade para as transformações necessárias para alcançar um modelo de organização social mais justo e igualitário. Respondendo a essa necessidade e nascendo como promessa de alternativa digital à organização do trabalho imposta pelo capitalismo de plataforma, ganha força o termo e movimento
“Cooperativismo de Plataforma”. Em uma cartilha de mesmo nome do movimento, Trebor Scholz (2017) caracteriza o termo em três partes. A primeira sendo a clonagem do “coração tecnológico” de empresas como ifood, porém com a inserção de valores democráticos. A busca por mudança estrutural se consagraria na mudança de propriedade da plataforma do capitalista para as trabalhadoras e os trabalhadores. A segunda coloca como pilar a solidariedade e busca materializar esse valor em diferentes formas possíveis de governança coletiva, como sindicatos, cidades e variados formatos cooperativos. Por fim, a terceira é a busca por ressignificar conceitos como inovação e eficiência, colocando como objetivo o benefício coletivo ao invés do lucro para poucos. Desde sua concepção original, a ideia se chocou com reflexões do ciberativismo, economia feminista, blockchain e outros movimentos, tecnologias e perspectivas inspirando algumas e percebendo suas falhas por outras. Dessa forma o termo que ganhou grande popularidade na mídia, vem se transformando em um guarda-chuva de outras formas de organização digital do trabalho. O simples fato dessas propostas terem como objetivo sua existência em um cenário capitalista gera uma série de contradições. A compreensão acerca do caráter reformista, ou eventualmente revolucionário, parece ter pouco consenso nas reflexões sobre o cooperativismo tradicional. Soma-se ainda que a visão predominantemente eurocêntrica sobre a questão ofusca ainda mais os reais impactos que essas alternativas podem ter no Sul global. Contudo, é central entender sua importância dentro da disputa pela definição das regras do sistema
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capitalista hoje. Encaramos esse conjunto de propostas, que fica sob o midiático nome de Cooperativismo de plataforma, como caminhos de experimentação e construção de novas formas de disputa pela organização social do trabalho. Compreendemos que essa busca é urgente e essa disputa terá como palco as TIC. É diante do anseio por participar dessas buscas e disputas, que muitos coletivos e empreendimentos vêm se formando, procurando formas de atuar no mercado que sejam baseadas nos pilares de Scholz (2017): tecnologia, solidariedade e a inversão de prioridades, colocando o benefício coletivo na frente do lucro. Ao nos encontrarmos sem opções de trabalho alinhadas aos nossos valores, nos perguntamos o porquê de não integrar esses espaços de disputa e busca por novos modelos. Através da união e formação de um novo coletivo, decidimos buscar fortalecer arranjos alternativos ao modo de organização do trabalho convencional. Como Virassol, por meio de valores solidários e da tecnologia como ferramenta, buscamos construir alternativas para a organização do trabalho que lutem pela vida justa e igualitária. Somos seis jovens que estão construindo um empreendimento solidário que trabalha com ferramentas e soluções em TIC inseridas em processos de construção de comunidades e relações horizontais. A Virassol se propõe a disputar politicamente a aplicação das TIC na prática, buscando demonstrar que essas podem ser utilizadas para estimular relações solidárias, promover a educação popular e fortalecer organizações sociais. Para tanto, enxergamos que essas ferramentas devem ser utilizadas para favorecer o protagonismo das organizações populares, de forma que seu uso pressupõe
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a compreensão das características do contexto em que se inserem para que sejam utilizadas adequadamente. Negamos a ideia de trabalhar propostas pré-definidas uma vez que nos voltamos à construção de vínculos, mapeando profundamente os problemas enfrentados e construindo estratégias para superá-los. Entendemos a Virassol enquanto uma organização companheira na luta de nossos parceiros. Seja no desenvolvimento de softwares e de aplicações, na construção de bancos de dados e de estruturas virtuais ou na automatização e modernização de processos, nossa visão política e a construção de relações solidárias seguem direcionando o nosso trabalho, que também se apoia em metodologias de planejamento e gestão, a fim de organizar nossa atuação e estruturar o empreendimento. Buscamos construir uma cultura de educação interna, de modo que possamos atuar a partir do diálogo, da reflexão e do aprendizado na relação entre teoria e prática. O caminho a seguir enquanto organização ainda é incerto, repleto de experimentações, reflexões e descobertas. Associados a outros grupos e empreendimentos que partilhem dos valores da economia solidária, intencionamos aprender e construir novos arranjos para as relações mercadológicas e de trabalho. A tecnologia, à medida que se desenvolve, traz novos dilemas, mas também novas possibilidades. Ela se instalou como componente central do sistema, de forma que a busca por ressignificá-la enquanto instrumento é necessária. A economia solidária e seus valores nos convidam a imaginar novos futuros e praticá-los ainda no presente, disputando um espaço na determinação da organização social do trabalho. Lutamos, então, para transformar coletivamente aquilo que virá.
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REFERÊNCIAS A DESIGUALDADE social cresce nas metrópoles brasileiras durante a pandemia. Observatório das Metrópoles, 2020. Disponível em: < https://www. observatoriodasmetropoles.net.br/boletins/desigualdade-social-cresce-nasmetropoles-brasileiras-durante-a-pandemia/>. Acesso em: 10 de Março de 2021. ✦✦✦ ANTUNES, Ricardo LC. Adeus ao trabalho?: ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. In: Adeus ao trabalho?: ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. 2008. p. 212-212. ✦✦✦ AS EMPRESAS mais valiosas do mundo - 2021. FXSSI, 2021. Disponível em: <https://pt.fxssi.com/empresas-mais-valiosas-mundo>. Acesso em: 10 de Março de 2021. ✦✦✦ CAPRARA, Bernardo. Thomas Piketty e” O Capital no Século XXI”: da economia política à Sociologia contemporânea. Sociologias, Porto Alegre, v. 19, n. 44, pg. 424-439, jan./abr. 2017. ✦✦✦ FRAGA, Lais Silveira. Extensão e transferência de conhecimento: As Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares. Tese (Doutorado em Política Científica e Tecnológica) - Instituto de Geociências, Universidade Estadual de Campinas. Campinas, s.n. 2012. ✦✦✦ GROHMANN, Rafael. Plataformização do trabalho: características e alternativas. Uberização, Trabalho Digital e Industrial 4.0, São Paulo, Boitempo, p. 93-109, 2020. ✦✦✦ HARVEY, David. David Harvey: leia Piketty, mas não se esqueça de Marx. Outras Palavras, São Paulo, 2014. Disponível em: <https:// outraspalavras.net/sem-categoria/david-harvey-leia-piketty-mas-nao-seesqueca-de-marx/>. Acesso em: 02 de Abril de 2021. ✦✦✦ INTERNET world stats: Usage and population statistics. Internet World Status, 2021. Disponível em: <https://www.internetworldstats.com/>. Acesso em: 10 de Março de 2021. ✦✦✦ MÓDULO 1 - Aula 3: Princípios da economia solidária. Apresentadora: Gilciane Neves. Fazer solidário, 2017. 1 vídeo (6 min. 19 seg.). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=CmpMWFRgoo4&list=PLAvGHJOGMfFa5 nGzQZJID3-UjGkDEdCPZ&index=7>. Acesso em: 11 de Março de 2021. ✦✦✦ O QUE é cooperativismo? Sistema OCB. Disponível em: <https://www.ocb.org.br/oque-e-cooperativismo>. Acesso em: 11 de Março de 2021. ✦✦✦ PANDELIVERY - Quantas vidas valem o frete grátis? Direção: Matos, Antônio; Salgado, Guimel. Produção de Soalma. São Paulo: 2020. Disponível em: <https://www.youtube.com/ watch?v=gwL9QdS7kbA&t=1s>. Acesso em: 11 de Março de 2021. ✦✦✦ SCHOLZ, Trebor. Cooperativismo de Plataforma. Editora Elefante, Autonomia Literária & Fundação Rosa Luxemburgo, São Paulo, 2017. ✦✦✦ SINGER, Paul. Agenda Econômica - Economia Solidária - Bloco 2. TV Senado, 2011. 1 vídeo (16 min. e 59 seg.). Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/tv/programas/agendaeconomica/2011/05/economia-solidaria-bloco-1-de-3>. Acesso em: 4 de Abril de 2021. ✦✦✦ “SÓ DE SABER qual a luta, a luta já ta ganha” Paulo “Galo” LENDO COMENTÁRIOS. Entrevistado: Paulo “Galo”. Quebrando o Tabu, 2020. 1 vídeo (6 min.). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=nhtYHPl0BFQ>. Acesso em: 11 de Março de 2021. ✦✦✦ SRNICEK, Nick. Platform Capitalism. Cambridge: Polity Press, 2017. Resenha de: NETO, Victo José da Silva. Platform capitalism. Revista Brasileira de Inovação, Campinas, v. 18(2), pg. 449 - 454, jul/dez 2019. ✦✦✦ VIDAS entregues. Direção: Ferraz, Irene. Escola de Cinema Darcy Ribeiro. Rio de Janeiro: 2019. Disponível em: <https://www.youtube.com/ watch?v=cT5iAJZ853c&t=3s>. Acesso em: 11 de Março de 2021.
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Foto: Gabriela Trajano (@gabztrajano)
Apesar da lei distrital nº 6657/2020 proibir ordens de despejo durante a pandemia, as cerca de 34 famílias assentadas na Ocupação CCBB, no Distrito Federal, sofreram uma remoção forçada com violência e brutalidade por parte da Polícia Militar no início de Abril. O despejo ilegal atropelou também a liminar da Defensoria Pública do DF que impedia a remoção, e ocorreu à mando do governador Ibaneis Rocha (MDB). As ações de despejo começaram em 22 de março, com a destruição de alguns dos barracos das famílias catadoras de material reciclável, e foram escalando até a completa remoção dos assentados e a destruição da Escolinha do Cerrado em 7 de abril, levantada pelas próprias famílias e por voluntários para atender as crianças em situação de vulnerabilidade e que não tinham qualquer acesso ao ensino remoto durante a pandemia. Durante o desenrolar das ações da Polícia Militar, militantes de diferentes frentes se juntaram em solidariedade às famílias para resistir à remoção. Entre eles, Thiago Ávila foi detido e preso de forma completamente arbitrária, a princípio sem qualquer acusação formal e posteriormente sob alegação de “crimes ambientais”, juntamente com os militantes Caio Sad, Érika Oliveira e Pedro Felipe. Além disso, a PM impediu o acesso dos militantes aos seus advogados por horas, e bloqueou qualquer contato deles com os familiares. A ação criminosa e condenável de Ibaneis Rocha e da PM desalojou as famílias de forma violenta, e passou por cima de direitos básicos dos manifestantes, num despejo ilegal durante a pior crise sanitária do século. As famílias agora contam com a solidariedade popular e com uma vakinha online para a reconstrução da escola, e os militantes estão coletando um abaixo assinado pelo arquivamento dos processos que pedem sua prisão. Saiba mais em www.naocriminalizaocupaccbb.com.br
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Ana Luiza Gonçalves e Yasmin Carpenter: A revista POSTO68 é uma publicação independente, idealizada e organizada por um grupo de jovens estudantes e recém-formados que se propõe a criar espaços de debate sobre outros futuros possíveis a partir da arte, arquitetura, política e cidade. Nosso primeiro número foi pensado como um manifesto, retomando as experiências e esperanças de poder popular de 1968 por todo o mundo. Nosso segundo número explorou a decolonialidade enquanto ideal e prática de transgressão latino-americana. Gostaríamos que você se apresentasse também.
Thiago Ávila: Eu sou Thiago Ávila, tenho 34 anos e sou uma formiguinha da construção do Bem Viver. Aos 16 anos, mais ou menos, eu descobri esse propósito de vida, de colaborar com a transformação do mundo, na cidade, no campo, na floresta; em uma perspectiva local, mas não só como uma orientação ou mentalidade, mas como ação prática, concreta, internacionalista e que pudesse ter uma estratégia. Descobri ao longo dos anos o ecossocialismo enquanto horizonte estratégico, como forma de colocar uma nova sociedade no lugar dessa. A sociedade que eu sonho em colocar no lugar dessa é uma sociedade sem classe, na qual haja verdadeiramente o poder popular. Cada vez mais entendi que [essa] era uma sociedade do Bem Viver. Esse caminho foi me colocando em contato com os territórios indígenas, os acampamentos e assentamentos da reforma agrária, as resistências na quebrada e toda a nossa onda de organização latino-americana que foi de onde eu adquiri a maior parte da minha formação: nos processos de fora do Brasil; do povo colombiano, boliviano. Gradativamente eu fui migrando para o interesse e a necessidade de atuar no Brasil, conhecer mais sobre a vida que se leva aqui, que o nosso povo vive, e fui me engajando e construindo projetos de
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emancipação coletiva. Eu adentrei na militância partidária há 11 anos atrás e escolhi o PSOL como partido para militar, justamente por ser o único que tinha abertura para o ecossocialismo e também por ser o partido que estava começando a fazer uma síntese de que a luta contra as opressões não era antagônica e não atrapalhava a organização da classe trabalhadora. Fui construindo o setorial ecossocialista dentro do PSOL e buscando também fazer a síntese com os movimentos, para que fosse possível resolver parte de uma crise de práxis imensa da esquerda. Isso foi me colocando num caminho de atuar dentro e fora da institucionalidade, sempre com muita força em ambos. Hoje, a maior parte da minha atuação se dá fora da institucionalidade, nos projetos do Bem Viver, seja no campo, com comunidade agroecológicas regenerando e enfrentando o agronegócio de frente e colocando um modelo, aí sim, verdadeiramente produtivo; seja nos biomas, fazendo mutirões do Bem Viver junto com povos de vários lugares se juntando para realizar sonhos de uma comunidade, a partir da própria comunidade e com apoio e aliança de outros setores; seja na cidade, buscando formas de resistência no nosso tempo, das mais diversas, seja a luta nas mais variadas formas no mundo do trabalho, seja a luta por direitos sociais, a luta nas quebradas, nos territórios que buscam se virar em uma sociedade que não foi feita para si, mas sempre buscando caminhos de construção do poder popular a partir dessa luta para solução de problemas concretos. A síntese disso é o momento que a gente está vivendo agora: se tudo der certo vai ser possível consolidar uma síntese das articulações entre cidade, campo e floresta em um movimento social. Se tudo der certo, esse ano nasce o Movimento Bem Viver.
ALG/YC: Nesse novo número, que chamamos de “tecnoparadoxos”, buscamos discutir as contradições trazidas pelo
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desenvolvimento tecnológico, que congregam em si diferentes esferas de “avanços e retrocessos”. Gostaríamos que comentasse sobre como você acredita que o seu trabalho e o projeto de sociedade que você defende - e pelo qual luta - se relaciona com a noção de decolonialidade e com a perspectiva internacional de luta.
TA: Eu acredito que tem tudo a ver. Sempre que a gente pensa em fazer uma revolução e acabar com a divisão de classe que existe hoje e que se expressa de forma muito desigual ao longo do globo - a partir da lógica do centro do capitalismo e da periferia do capitalismo dependente -, a gente não está falando de romper meramente no sentido produtivo, de deixar de ser um país primário exportador - no caso do Brasil, um grande “fazendão”, uma mina a céu aberto, um poço de petróleo, um cassino para especulação financeira -; a gente está falando de romper também com a própria ideologia dominante e a ideologia dominante aqui no Sul global é a ideologia da classe dominante para nós. A perspectiva decolonial vai exatamente no sentido de trazer instrumentos para que a gente compreenda que é necessário romper não apenas com a propriedade de quem tem os meios de produção, mas romper com a lógica de que nós temos que estar ali servindo ao centro do capitalismo numa lógica de divisão internacional do trabalho, mas também servindo no sentido de enaltecer e de fomentar toda a sua indústria cultural, os valores eurocentrados, toda uma construção que vem da invasão européia e da colonização. A decolonialidade é uma arma fundamental para a gente lutar as batalhas do nosso tempo. Se não tivermos uma construção orientada para a decolonialidade, corremos o risco de mudar um pouco as estruturas de produção e reprodução da vida aqui, mas ainda estar orientados para servir ao centro do sistema e a uma lógica colonial.
Tudo que eu faço na minha atuação como militante ecossocialista e para o Bem Viver e na nossa construção coletiva enquanto organização ecossocialista libertária - seja no futuro Movimento Bem Viver e das sementes que ele já tem ou da própria construção enquanto Subverta -, tem a decolonialidade enquanto princípio fundamental e eu acredito que precisa ser assim para dar certo. ALG/YC: Uma dimensão essencial das tecnologias digitais que queremos abordar neste número é sua relação íntima - e cada vez mais complexa - com a política. As redes sociais em especial têm se mostrado um espaço de intensas disputas ideológicas e de cooptação (e cooperação) em diversos níveis. Já está suficientemente documentado o impacto que essas interações virtuais - alimentadas e manipuladas por empresas de Big Data - teve nos resultados de eleições e plebiscitos recentes, seja a eleição de Bolsonaro no Brasil, o Brexit no Reino Unido, ou a eleição de Trump. A América Latina tem sido vítima de novas tentativas de golpe - alguns bem sucedidos - e a manipulação da opinião pública através dessas mídias parece ter peso significativo no processo. Como você vê o papel das redes sociais na ascensão da extrema direita ao redor do mundo?
TA: Quando se fala da luta de classes, às vezes a gente deixa de levar em conta algo muito fundamental do sistema capitalista: em momentos de crise, aumenta-se a exploração do trabalhador e a espoliação da natureza. E o capitalismo vive uma crise que não é uma mera crise cíclica, é uma crise estrutural, que já vem desde 2008 e da qual o sistema nunca se recuperou e que, mesmo antes da pandemia, já estava em um momento de estouro. Antes da pandemia ser declarada, já estávamos vendo o preço negativo do petróleo, com toda uma perspectiva de falência de mais de 4 mil empresas de gás de xisto nos Estado Unidos; enfim,
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um processo de quebradeira generalizada dentro do sistema financeiro que foi se alavancando e especulando sem limites. As redes acabam servindo, então, a um processo sistêmico de que, em momentos de crise, a classe dominante precisa arrochar, apertar os instrumentos de exploração da classe trabalhadora e destruição da natureza. Então a direita, e principalmente a extrema direita, soube aproveitar muito bem isso. Quando vemos pessoas que são gênios nas suas áreas, mas são monstros sociais, como Steve Bannon, a gente vai percebendo que quando eles conseguem conectar instrumentos de Big Data para análise de informações, aliado a um sequestro de dados em massa a partir das mais variadas ferramentas e uma estrutura de disparo de fake news, isso de forma muito direcionada, a partir de um método de análise de Big Data capaz de traçar mais de 5 mil perfis de padrão comportamental das pessoas, a gente vai criando uma máquina de guerra mesmo. Inclusive, parte do processo da Cambridge Analytica - que é a empresa de vanguarda nesse setor da extrema direita de disparo de fake news -, era usado por países imperialistas em suas guerras, justamente para desestabilizar governos que estavam em um processo de conflito direto: é uma máquina de guerra mesmo, que eles tinham usado em países declaradamente em guerra e gradativamente foram trazendo para todos os demais países, que podendo ou não ter guerras declaradas, ainda têm sua luta de classes interna. E no caso do Brasil e da América Latina, lidando com fatores como inclusão digital e uma série de outras questões, eles aliaram isso a outros processos. No caso específico do Brasil, esse foi um dos setores de uma aliança que consolidou uma vitória eleitoral da extrema direita a partir de uma espécie de fraude, mas uma fraude muito bem organizada, em uma coalizão gigante, que tinha sim o setor de Big Data, o setor das fake news, mas que tinha também o
Fotos nesta página: Matheus Alves (@imatheusalves)
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setor do fundamentalismo religioso - esse sim trazendo territorialidade, trazendo contato próximo e relação de confiança com as pessoas que traziam aquelas fake news, validando as fake news como se fossem verdade. Tinham outros setores como as milícias policiais, a partir da violência política; generais da reserva, um setor profundamente melancólico com o fim da ditadura militar; enfim, uma série de setores que foram se juntando - a própria guerra judiciária da “República de Curitiba”; um segundo escalão da burguesia nacional, que já não é mais tão segundo escalão, uma vez que ficou super rica, como o grupo Havan - e vários outros setores foram se juntando, não só aqui, mas em outros países também. Quando a Colômbia passou por um processo semelhante, acabou que perdeu o referendo sobre o acordo de paz com as FARC. Processos semelhantes aconteceram em Trindade e Tobago; com o golpe que a Bolívia viveu em 2019; na eleição que o Equador está vivendo, com um processo de fake news muito acentuado. Enfim, essa máquina de guerra está em plena atividade e a gente sabe o mal que ela é capaz de fazer. A gente tem visto a extrema direita se alavancando em força eleitoral, mas também em força social muito grande.
A diferença é que ter a potência de hackear eleições, de hackear processos de democracias limitadas - porque uma democracia que se deixa ser hackeada assim é uma democracia profundamente limitada - ainda assim, não significa a capacidade de fazer bons governos. E a extrema direita, nesse processo, tem se fragilizado muito, porque os governos são um desastre total. Isso tem aberto uma janela de oportunidade de reverter os males desse hackeamento feito na guerra mesmo, na luta de classes.
ALG/YC: De fato, a tecnologia digital é muitas vezes mais um dos braços do capitalismo. Mas, observando o outro lado, ainda levando em conta a perspectiva latino-americana, nós temos acompanhado nos últimos poucos anos reviravoltas no nosso cenário político que vieram para confirmar que a chamada onda rosa ou onda progressista, com todas as suas contradições, não sucumbiu de todo aos golpes e a extrema direita, e que em muitos países o povo segue disposto a ir às ruas para combate-los e recuperar seus direitos. Muitas dessas movimentações parecem conversar entre si e inspirar mobilizações semelhantes nos países vizinhos. Você acredita que a internet e as redes sociais têm um papel relevante na construção da solidariedade entre os países latino-americanos, e é possível que elas sejam um catalisador de radicalização à esquerda a nível internacional?
TA: Acho essa questão muito importante, e tenho uma posição moderada quanto a isso - moderada, num sentido otimista, de que a redução de distâncias é muito importante. Por exemplo, quando a gente via a violência policial que o Pinera estava exercendo no Chile contra o povo que estava demandando transformações sociais, ou o próprio Lenin Moreno no Equador fazendo um massacre indígena, também - os abusos foram ficando mais evidentes. Todas as
Foto: Scarlett Rocha (@scarlettrochaphoto)
violências de gênero que os carabineros no Chile cometiam contra as mulheres, todos esses processos têm uma vazão mais rápida. A própria performance Las Tesis do “el violador eres tu” - a tecnologia traz um alcance maior que permite uma solidariedade sem dúvida nenhuma, um conhecimento muito mais rápido. Quem dera tivéssemos isso no início do século XX, quando grandes revoluções estavam em andamento e em disputa naquele momento - se tivéssemos isso, talvez a história da humanidade fosse diferente. Só que agora que a gente tem isso, nos faltam as vezes as condições objetivas de mobilização social, de enraizamento social, de um programa muito bem definido, organizado e massificado que promova a parte seguinte. Eu vejo as redes justamente como um instrumento, uma arena onde estão dispostas as várias contradições sociais; pela dinâmica dos algoritmos posições extremadas têm um alcance maior do que a gente pensa, que não necessariamente se aplicam na materialidade da vida. Inclusive, no cotidiano, as pessoas não costumam ter um comportamento tão parecido com o das redes sociais. No Twitter por exemplo, às vezes quem está ali dizendo “morte ao capital” não necessariamente expressa isso em nenhum lugar do seu cotidiano além daquela ação de rede social. Eu penso as redes como um fator de conhecimento, formação política, de possibilidade de articulação, mas elas precisam dar o passo seguinte de força social e material para a luta, aplicada à luta num projeto de transformação. É uma potência muito grande que precisamos aproveitar melhor.
ALG/YC: Então você diria que primeiro nós deveríamos ter consolidado a articulação social a nível material, local, para depois traduzir isso pras redes e dar o passo de expandir isso, usando as redes como ferramenta?
TA: Eu vejo duas estradas que caminham simultaneamente, que quando se juntam adquirem um potencial realizador de ter atratividade, capacidade de articulação, alcance, mas ter força material de resolver problemas concretos, com soluções concretas para a vida das pessoas. Quando alcançamos isso, damos esse salto seguinte.
ALG/YC: Em especial durante o período que estamos vivendo hoje, não apenas com o avanço das tecnologias e das mídias sociais sobre as nossas vidas, mas especialmente no contexto da pandemia da covid-19 e do distanciamento social, os meios digitais têm se imposto como uma importante ferramenta de organização e de luta, porém às vezes a sensação é de que “militar em rede social” é a única opção de engajamento nesse contexto. Como você enxerga sua própria militância dentro do meio digital e como acredita que deve ser construída a atuação nas redes, em especial no que diz respeito à produção de conteúdo, como feito através do Bem Vivendo?
TA: Se as redes sociais são um instrumento que pode trazer potência para a luta, aumento de alcance ou até de capilaridade, precisamos estar presentes, mas trazendo nossas lutas reais e concretas, senão vira algo vazio. Tenho muito respeito pelas pessoas que desde o golpe contra a Dilma, do terrível governo golpista do Temer e agora do terrível governo da extrema direita foram adquirindo uma consciência de que estavam se posicionando em um lugar que não fazia sentido segundo a luta de classes, que foram instrumentalizadas mesmo, como a gente conversou sobre o papel que as redes sociais cumpriram para virar aquelas pessoas num senso comum conservador. Eu tenho muito respeito pelas pessoas que fizeram isso e que têm muito alcance de rede: artistas, influencers dos
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mais variados ofícios… uma pessoa que respeito muito, por exemplo, é o Felipe Neto - ele faz chamados à consciência política, à luta política; mas não necessariamente os chamados na rede reverberam em ações coletivas construtivas e concretas. Eu via esse extremo dos chamados sem construção militante/coletiva por trás, e via também o outro extremo, de construções maravilhosas, enraizadas, materializadas, articuladas entre si dentro da comunidade próxima, e ainda assim sem nenhuma ação de rede, que gradativamente iam perdendo potência também. Então, resolvi atuar no meio termo desse caminho - ou seja, estar no cotidiano das lutas o mais enraizado possível, [lutas] de cidade, campo e floresta, local e internacionalmente, em estratégias de curto, médio e longo prazo, só que ainda assim produzindo conteúdo para internet que reflete essa construção cotidiana - aí entendi que só fazia sentido para mim se fosse desse jeito. Isso acaba gerando dificuldades, porque manter uma militância orgânica e ativa, cotidiana e radicalizada é uma tarefa de vida, com toda a energia que a gente tem, tamanha a grandiosidade dessa missão; acabava que era sempre muito difícil conciliar, e passei muito tempo com um gerenciamento de tempo impossível para permitir uma atuação de rede mais intensa. Chegou um momento em que consegui me organizar um pouquinho mais, mas aí dependo das condições externas principalmente, das crises mesmo, da soma de todas as crises que a gente vive, e aí isso se desequilibra de novo. As vezes [acontece] de estar produzindo conteúdo e negligenciar alguma tarefa militante, orgânica, material, de vida, física, ou, na maioria das vezes, tamanha a demanda das nossas lutas, ela não permite a criação de conteúdo. Falho miseravelmente nesse sentido de organização de tempo para produção de conteúdo. Meu sonho era que o Bem Vivendo tivesse um vídeo por semana, só que toda vez que tenho a necessidade de
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produzir um vídeo, e uma tarefa militante, fundamental para nossas lutas, para essa batalha numa soma tão grave de todas as crises que estão acontecendo, tenho tomado a decisão de fortalecer a luta. Isso cobra um preço, pois não tenho a regularidade, nem o crescimento e o alcance de pessoas que priorizaram essa produção de conteúdo, mas ao mesmo tempo o conteúdo que é produzido vem de uma vivência muito prática, concreta, que traz elementos novos a esses debates. Tento ser uma pessoa que vive o que diz, que aplica isso, e que expressa nas redes um pouco das lutas que faz fora. Vejo o Bem Vivendo como um caminho para conectar todas as lutas que a gente está construindo com um alcance de rede maior.
Gradativamente, fui tendo surpresas maravilhosas. Por exemplo, às vezes eu deixava de fazer vídeos para o Bem Vivendo, para fazer palestras em escolas, assembleias populares nos territórios, estar nos assentamentos nos acampamentos, etc. aí o que acontecia é que gradativamente eu ia fazendo os vídeos, os vídeos iam ficando bons, e depois eu começava a receber mensagem de professoras e professores que estavam passando os vídeos na escolas, tipo uma palestra, ou [a saber] que os assentamentos estavam usando meus vídeos como formação sobre o agronegócio, e que tal outro lugar botou os vídeos como bibliografia do curso... pensei, “po, de uma forma ou de outra [o conteúdo] está chegando na mesma galera”, e agora com uma potência maior. Nesta semana com a luta e greve global pelo clima, tenho recebido muitas mensagens de professores falando que têm usado meus vídeos para falar sobre o impacto do agronegócio sobre o aquecimento global. Eu não teria capacidade física de dar essa quantidade de palestras, ou de estar nessa quantidade de lugares, então as redes potencializam muito [esse alcance]. O Bem Vivendo acaba que é uma iniciativa individual; o movimento do Bem Viver vai ter seus canais, suas páginas, etc, e gradativamente esses vão crescendo e prevalecendo sobre as iniciativas individuais, que é o nosso desejo. Quando a gente consegue fazer isso, aí sim conseguimos ter uma produção de conteúdo muito mais intensa; aí não é só uma pessoa produzindo, é todo mundo ali, no cotidiano, de forma orgânica, em tudo quanto é lugar. Esse é o sonho que eu tenho: que o Bem Vivendo cumpra um papel de ser uma das coisinhas que potencializa uma construção coletiva e que em determinado momento ele nao seja mais necessário; que eu possa falar só de poesia, de música de amor e de revolução; que não seja mais uma ferramenta fundamental para atrair militantes para nossa construção, que as outras ferramentas sejam isso.
Fotos: Matheus Alves (@imatheusalves)
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ALG/YC: Algo que já foi comentado é como o algoritmo determina qual tipo de conteúdo vai chegar até as pessoas, e como essa construção do algoritmo e de todo o marketing digital impõe um modelo de produção de conteúdo que muito facilmente cai numa dinâmica personalista da luta. Existe um “ser militante” que simboliza toda a luta que está sendo feita. Queria que você comentasse sobre a contradição de produzir um conteúdo dentro das redes que tenha alcance, consiga chegar em outras pessoas, sem cair num personalismo determinado por essas dinâmicas.
TA: Isso é muito importante, e é talvez a maior contradição que eu veja nessa construção. A gente tem processos de construção coletiva e de espaços que são muito bonitos. A gente vê, por exemplos, vários movimentos sociais que deveriam ter um alcance gigantesco, de milhões de pessoas, e ainda assim o que [temos] são várias redes formatadas para várias construções individuais e pessoais, que vão tendo alcance e resultado muito maior quanto mais a pessoa trata do seu próprio cotidiano, quanto mais ela coloca a própria cara, foto de rosto, inclusive. Isso foi um processo duro para me acostumar. Há 3 anos atrás eu tinha uma rejeição profunda ao Instagram, via que não tinha nada que fazer ali, não era a forma que eu queria me comunicar. Gradativamente fui vendo o Facebook se esvaziando, se entregando cada vez mais comercialmente, para as empresas, como uma ferramenta de mídia cada vez menos orientada para as relações sociais e amigáveis, e cada vez mais mediada pelo dinheiro e venda dos seus dados (ali você é o produto, não é o cliente). No fim das contas, as pessoas foram migrando para
o Instagram por uma necessidade prática, porque no Facebook os algoritmos já não estavam projetando nada do que a gente produzia ali. No Instagram fui entendendo que não era possível aprofundar nada, não dava para botar mais do que quatro parágrafos, não dava para colocar vídeos grandes na época. Por isso criei o Youtube, e depois, com as duas redes, via que o Twitter tinha uma capacidade de escoar as coisas com uma rapidez muito maior. Aí ficava “caraca, tenho que colocar tudo em duas frases”, quando eu queria estar escrevendo textos e trocando ideias, fazendo assembleias, rodas de saberes e fazeres com as pessoas… Não queria estar reduzindo isso a quatro parágrafos no Instagram com uma foto de rosto. Isso é uma contradição muito grande. Toda vez que me contento com isso, é no sentido de que muitas vezes as pessoas pensam que o caminho de dedicar sua vida para fazer a revolução é um caminho impossível; ou que é um caminho meramente de sacrifício e de martírios - e dependendo das condições de correlação de forças na luta de classes e do local em que você está, isso realmente é parte da caminhada, mas nas condições do Brasil urbano, principalmente de pessoas não tão precarizadas do Brasil real, as pessoas acabam fazendo uma militância que tem algum nível de segurança física, elas não passam o tempo todo sendo ameaçadas por capangas, pistoleiros, milícia, enfim, e ainda assim acreditam que é impossível pensar caminhos de se relacionar bem com as pessoas; acreditam que ser militante ainda mais com as estigmatizações que a indústria cultural e grandes reality shows vão colocando - é se isolar socialmente, se tornando uma pessoa embrutecida e chata. Eu resolvi usar essa parte de ter que me comunicar pessoalmente para tentar quebrar um pouco dessa estigmatização que as pessoas têm sobre a militância. Comecei a me entender um pouco mais com essa ideia das fotos nesse sentido de falar “olha, a militância é uma coisa bonita e importante e pode ser divertida também, apesar de toda a responsabilidade que temos com essa tarefa historica”. As pessoas têm que mergulhar nas relações de confiança, e Foto: Gabriela Trajano (@gabztrajano)
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se aproximar pelo positivo. Cada vez mais tenho tentado produzir o conteúdo através das organizações políticas mas também produzir conteúdo próprio, quando necessário e útil, e a mediação com essa ideia de conteúdo pessoal é sempre nesse sentido: pela militância, [para mostrar] que é possível ela não ser embrutecida, não ser algo incômodo socialmente, mas ser algo muito bonito: na verdade, a mais importante e bonita tarefa histórica que alguém pode cumprir na vida - é isso que tenho tentando comunicar nessa parte.
ALG/YC: Como abordamos brevemente, sabemos que seu foco de atuação e horizonte emancipatório estão fortemente pautados na concepção de Buen Vivir, Sumak Kawsay, ou Bem Viver. Entendemos Bem Viver como um conjunto de cosmovisões de povos originários da América Latina que confluem em muitos aspectos, compartilhando da ideia de convivência harmônica e integrada com a Natureza, e do rompimento com a falácia do “desenvolvimento” e infinitas violências sociais e ecológicas que são justificadas para alcançá-lo. Ao contrastar com a lógica da universalidade da experiência ocidental de mundo e suas narrativas, o Bem Viver nos oferece uma gama de vivências que tornam mais fácil o exercício de imaginar “um mundo onde caibam muitos mundos”. Entretanto, o trabalho necessário para construí-lo dentro da conjuntura atual apresenta vários desafios. Considerando que a tecnologia digital contemporânea foi desenvolvida majoritariamente dentro do sistema capitalista e para a reprodução do sistema capitalista, como você crê que podemos subverter seu papel original, e qual seria seu lugar na construção de uma sociedade do Bem Viver hoje? É possível que a tecnologia digital se torne uma ferramenta aliada nesse processo de construção de uma outra sociedade?
TA: Esse é um paradigma desse século. No momento estamos vivendo uma quarta Revolução Industrial - entendo que as tecnologias digitais são apenas uma parte dessa Revolução Industrial, uma vez que também existem tecnologias físicas e biológicas que estão mudando tudo, com transformações genéticas, impressoras 3D, drones etc. Quando se fala em tecnologias digitais, eu penso nas redes sociais, sem dúvida nenhuma, mas acabo pensando também em Big Data e Inteligência Artificial, por exemplo, e, na minha opinião, não só as tecnologias digitais, mas também as físicas e biológicas, se encontram sob o mesmo paradigma: a produção do conhecimento e o fomento a essas tecnologias são orientadas para a acumulação, a propriedade privada, o lucro, e isso enviesa até a forma como se entende a inovação. Um dos casos mais evidentes, com o qual eu me relaciono muito é a modificação genética de sementes e de plantas no agronegócio, que não é orientada, por exemplo, para garantir maior valor nutricional dos alimentos, ou maior resiliência às secas ou a eventos extremos no planeta em aquecimento, é orientada para resistir a mais veneno, para podermos seguir na monocultura. Então, quando vemos uma desorientação da produção de conhecimento e da inovação tecnológica, vamos chegando no ponto que demanda uma mudança radical de comportamento e de mentalidade. Eu acredito que todas as mudanças de transição energética, por exemplo, são fundamentais, bem como as mudanças de tecnologias digitais que permitam redução de distâncias, mas qual a orientação delas? Para começar, duas perguntas: de quem é a propriedade delas? E qual a orientação, ou seja, em que horizonte elas estão se construindo para cumprir
Foto: Gabriela Trajano (@gabztrajano)
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qual papel e função social? Quando a gente adequa essas duas coisas, a gente consegue subverter praticamente qualquer tecnologia, qualquer processo de inovação para a construção da sociedade do Bem Viver. Quando pensamos a engenharia genética, por exemplo, como é possível resolver processos de doenças curáveis, como é possível ter maior resiliência no planeta com o colapso ambiental batendo na nossa porta, como regenerar biomas da melhor forma. Como é possível, em vários outras aspectos, com as redes sociais, lidar com as situações, para que as pessoas consigam ter interação social em uma pandemia e não se sintam tão isoladas, para que consigam fazer isolamento social - aliado à vários outros aspectos da vida material, como alimento e acesso à renda, que também é necessário para que se tenha possibilidade de fazer um isolamento social eficaz. Enfim, eu sempre penso que a sociedade e a orientação para o bem comum são as coisas que transferem a tecnologia do sistema capitalista - e orientada para a perpetuação desse sistema - para a produção tecnológica e inovação tecnológica orientada para o Bem Viver. Existem hoje instrumentos fenomenais, como a Inteligência Artificial, por exemplo. Big Data me parece um instrumento fenomenal, as redes sociais… Por que a gente não utiliza isso justamente para ampliar mecanismos de democracia direta, de construção do poder popular? Ou a transparência, no sentido de governança social? [Imagina] se a gente usasse mecanismos de algoritmos usados para fazer especulação financeira na bolsa para acabar com problemas da nossa sociedade?, até com problemas que a própria classe média diz serem fundamentais, como a corrupção, com processos de transparência total para pessoas que exercem determinadas funções dentro da sociedade; ou para acabar com a sonegação fiscal das grandes empresas - que é um problema muitas vezes maior do que as pessoas alegam nos grandes casos de corrupção que são citados como divisores de água na história de países.
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Então, sempre que conseguimos pensar uma subversão da tecnologia para o bem comum, sob propriedade coletiva, estamos em um bom caminho. Eu vejo com muito bons olhos as mudanças tecnológicas; não acredito que isso resolva tudo, mas acredito que isso precisa estar dentro do processo de tomada do poder. E parte dessa tomada de poder envolve reorientar a tecnologia, como por exemplo, quando pensamos a própria lógica da construção. Eu organizo e participo de mutirões de bioconstrução, e nos mutirões a gente sempre está lidando com um problema que é: as companhias de água e saneamento quando levam essa infraestrutura para comunidades mais precarizadas, ainda levam nesse sistema de grandes manilhas, grandes estruturas que vão para estações de tratamento distantes e geram uma poluição ambiental muito grande, sendo que nós queríamos estar construindo as nossas bacias de evapotranspiração e tratando todos os efluentes ali, no próprio terreno e produzindo alimento, jogando umidade no solo e criando jardins. Mas normalmente isso é proibido por lei - não entregar o seu esgoto para a companhia de saneamento. A gente tem tecnologias sociais e socioambientais fenomenais e reorientar a tecnologia envolve também pensar coisas que não servem ao bem comum: acabar com a obsolescência programada, com a indústria de armas, etc. A gente tem visto muito o debate do Bill Gates querendo criar instrumentos de geoengenharia para deter o aquecimento global, sendo que na verdade a gente sabe que, muito melhor do que produzir uma engenhoca que captura carbono, é a gente lidar com o melhor instrumento de captura de carbono que a gente tem, que são as árvores e os oceanos - a árvore é uma tecnologia maravilhosa! Captura carbono, se alimenta de energia solar, se auto reproduz, atrai outros seres complementares que fazem sua própria manutenção, é uma coisa fenomenal! No fim o que a gente precisa é reorientar as tecnologias e as digitais
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estão dentro desse paradigma. Ver o que é necessário, subverter o que é possível e criar novos instrumentos orientados para o bem comum. Nem toda inovação já foi ou está sendo criada; muitas coisas ainda precisam vir. Algumas coisas que já existem só precisam ser reorientadas e a inovação para a destruição, para a hipervigilância, para a destruição das pessoas, para constituir um sistema destrutivo com a natureza, essas sim precisam ser abandonadas.
ALG/YC: Ao contrário do que a narrativa hegemônica costuma prometer, a riqueza em recursos naturais da América Latina e sua exploração gananciosa em nome do progresso jamais desaguaram no prometido desenvolvimento, mas sim, se traduziram historicamente em pobreza, como já afirmavam há tempos autores como Eduardo Galeano e Alberto Acosta. O caso do Brasil é um excelente exemplo, e o governo Bolsonaro tem aprofundado as consequências desastrosas do modelo extrativista. Ainda considerando outros modelos de sociedade desde uma perspectiva pluriversal e anticapitalista, e considerando a construção de alternativas à lógica do desenvolvimento, que caminho você enxerga para que a esquerda brasileira possa se aliar nessa empreitada de superação do extrativismo e suas violências rumo ao estabelecimento de um Brasil outro? TA: Falar de caminho é fazer a pergunta: como a gente transforma o mundo? Porque nós estamos nesse momento em um caminho de destruição. Walter Benjamin falava que a revolução é puxar o freio de emergência na locomotiva da história e o que estamos vendo é uma locomotiva caminhando para o aumento da exploração das pessoas, para o aumento das opressões baseadas em gênero, raça, sexualidade e nacionalidade. Vivemos em um mundo cada vez mais fechado nas suas fronteiras e que se orienta a partir desse sistema político social hegemônico para uma destruição generalizada da natureza, pautada no lucro. Então, nós precisamos
puxar o freio de emergência mesmo. Falar em caminho envolve justamente rejeitar essa aposta no desenvolvimento. Achei muito legal que você trouxe o Acosta e o Galeano, porque ler “As veias abertas da América Latina” há 16 anos atrás foi algo que mudou minha vida. Eu não tinha a menor dimensão de tudo que acontecia aqui e que tinha acontecido desde a invasão européia: a colonização, o extermínio indígena, a escravidão negra, todos os processos de luta e colonização, eram questões das quais eu não tinha menor dimensão. Eu não tinha aprendido nada daquilo, a não ser de uma perspectiva muito fria das aulas de história do ensino formal. E ler [as veias abertas] foi como uma marretada na minha cabeça. Uma das coisas que ele cita no livro é “O desenvolvimento é uma viagem com mais náufragos que navegantes.” E na verdade só tem náufragos; todos os países do sul global que aceitaram essa mentira colonial do desenvolvimento naufragaram. Nenhum país que seguiu sendo primário exportador para nutrir o sistema capitalista, em uma lógica imperialista e submissa ao sistema, conseguiu, efetivamente, alcançar o tal desenvolvimento. Vemos países que, por outras formas, a partir de processos orientados para o campo socialista, conseguiram ter elevação dos seus níveis de vida, redução da pobreza e etc, mas dentro da lógica do desenvolvimento, nenhum país conseguiu. Ao contrário, quando o país começa a desobedecer essa lógica é que ele tem avanços em condições sociais, em organização popular, em consciência de classe e mobilização política. Então o que nós deveríamos estar fazendo é desobedecer ao máximo as ordens que vem de Washington, do centro do capitalismo, do grande sistema financeiro e de conglomerados como a Black Rock, bem como outras instituições do imperialismo em suas mais variadas esferas, seja na militar, financeira, ou política. Desobedecer é a tônica dominante desse momento. Nós precisamos ter uma capacidade de disputa contra hegemônica
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muito grande. É nesse sentido que entra o debate da decolonialidade e a capacidade de sermos anticapitalistas no cotidiano, expressando isso com toda a coragem necessária. Estamos falando de redes sociais e nesse sentido vemos coisas muito interessantes. As redes sociais concentram poder em um número muito reduzido de pessoas e esse poder também é de silenciamento. Recentemente, o Daniel Cara, que constrói o PSOL em São Paulo, perdeu o acesso à sua página no Twitter porque ele fez uma postagem falando o óbvio: que temos um governo miliciano, que está tocando um projeto genocida. E quem deu poder a essas pessoas para poderem regular as relações sociais dessa forma? A forma de construção popular e radicalmente democrática das redes sociais e das mídias no geral deveria ser nossa. Mas voltando ao modelo de desenvolvimento, eu acredito que nós precisamos nos nutrir da história das revoluções, uma vez que elas nos fornecem muitas armas para pensarmos as transformações sociais. Por exemplo, no século XX vimos duas Revoluções de grandes proporções. A Revolução Russa, que foi feita a partir de uma greve geral insurrecional nos grandes centros urbanos, como consequência de uma mobilização social e territorializada dentro dos sovietes. Eu levo isso muito a sério, porque eu não acredito que eram apenas pessoas que marchavam - na Revolução de Fevereiro, quando foi derrubado o Czar, em 1917 -, eram pessoas lutando por paz, pão e terra, querendo acabar com aquela monarquia absolutista, em um processo de disputa que também envolvia setores da burguesia liberal. Com a derrubada do Czar, se estabelece a Duma, ou seja, a burguesia faz um rearranjo com a forma de governança e de distribuição do poder e deixa o povo de fora. E o povo, excluído dessa organização do poder, segue se auto organizando nos seus locais de trabalho e no território a partir dos sovietes, pensando soluções concretas para problemas concretos, se virando sendo classe trabalhadora em uma sociedade que não tinha sido feita para eles. Mas ao fazer isso e lutar por isso, foram começando a dar o salto de não apenas ser classe trabalhadora, mas de pensar uma sociedade à sua maneira. Marx chamava isso de dar o salto da “sociedade em si” para “sociedade para si”. Em fevereiro se derruba o Czar, mas em outubro se derruba a burguesia e se faz uma revolução. Esse é um processo muito bonito, que só foi possível pela inserção territorial, da força social que existia a partir do sovietes.
Fotos: Gabriela Trajano (@gabztrajano)
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Na China a gente viu outros processos de guerra popular prolongada. Na Revolução Cubana a gente viu o foquismo, nas guerrilhas na Sierra Maestra. A gente viu uma tentativa na década de 1970 no Chile, pela via institucional com a vitória eleitoral de Salvador Allende, gerar consciência de classe que pudesse promover uma ruptura - mas esse processo foi interrompido com o golpe promovido por Pinochet, fazendo com que o país fosse usado como laboratório do neoliberalismo. Enfim, ao longo do século XX vimos várias formas de se construir uma revolução, sendo que as mais bem sucedidas foram as de ruptura - a via chilena a partir da institucionalidade nunca se materializou.
sociedade do Bem Viver para colocar no lugar dessa. Eu acredito que tenhamos avançado nesse sentido, ainda que em pequenas doses, mas que quando isso ganhar uma capilaridade territorial maior, é possível dar um salto, como já vem acontecendo em diversos países - os levantes no Equador e no Chile; o povo indígena na Colômbia; nos quais já é possível ver processos assim avançando. O Brasil ainda precisa avançar. E por isso criar esses instrumentos do Bem Viver é fundamental.
Eu me dedico - e acredito que pessoas que se propõe a encontrar um caminho que supere a situação de devastação (exploração, opressão e Independente destruição do de qual vai ser a planeta) na qual estratégia para estamos também construir uma devem se dedicar revolução no século muito a essas duas XXI, a gente sabe coisas: enfrentar que são necessários o sistema que alguns elementos está estabelecido que no Brasil, neste e apontar para a momento, não nova sociedade estão presentes. Ou que a gente quer seja, uma maioria colocar no lugar social, enraizamento dessa. Fazemos territorial isso através da profundo na classe prefiguração, nas Foto: Matheus Alves trabalhadora, um nossas relações (@imatheusalves) programa político que sociais que já consiga expressar essa vontade coletiva e existem, refletindo sobre como seria uma canalizar ela para a luta e que, depois da sociedade sem opressões, sem destruição luta contra hegemônica, possa dar o passo da natureza. O que é esse sentido de seguinte. Gramsci falava que nós temos realização de felicidade a partir da que lutar para acabar com a hegemonia comunidade, que falamos no Bem Viver, o existente, mas também para construir a que é esse sentido de propósito, de você que vai entrar no lugar dessa. Então, quais entender o seu lugar no mundo; como são os valores, qual a cultura, qual a moral conseguimos encantar as pessoas para nesses novos sujeitos que vão se formando uma sociedade que ainda não existe, a a partir do processo revolucionário? partir das experiências revolucionárias passadas - ainda que com contradições A pandemia nos mostra que as -, como podemos encantar as pessoas classes dominantes não vão abrir mão para sonharem isso junto com todas as dos privilégios delas, mesmo que isso outras pessoas que já estão nessa marcha signifique a destruição do nosso planeta histórica e como conseguimos derrotar o e a destruição total do que conhecemos sistema atual, que não vai morrer de morte hoje como humanidade. Então precisamos morrida, mas que vai morrer de morte derrotar esse sistema e apontar um matada. caminho anticapitalista, um caminho da Entrevista realizada dia 17 de março de 2021 via Zoom. 5 5
RUPTURA Cusco, Peru, 2020 Isabela Doná Rodrigues Isabela é natural de Santos, São Paulo. É graduanda em Artes visuais modalidade Bacharelado pela UNESP. Atua como fotografa, tatuadora e como artista onde sua poética constitui majoritariamente em fotografar, manipular por meio de sofwares e reproduzir a mão o que será exibido.
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PERFIL Larissa da Silva Souza Larissa Souza (1994) nasceu e reside em São Paulo/SP. Foi mediadora em diversas instituições culturais da cidade, como Sescs, Pinacoteca SP e MIS SP. Atua na educação formal e ministra cursos livres relacionados às artes gráficas. Atualmente estuda as convergências entre mídia e arte no CELACC/USP. É cocriadora do Coletivo Magenta, grupo autônomo de curadoria com viés ativista e educativo. Através de exposições e conversas públicas, o coletivo se propõe a criar espaços virtuais de acolhimento, discussão e produção em colaboração com artistas e coletivos atuando fora do circuito tradicional.
REDES EM EXPANSAO
A atuacao do levante nacional trovoa
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RESUMO Este ensaio teórico relaciona a atuação do Levante Nacional Trovoa, uma rede de artistas organizada através das redes sociais, com as características dos movimentos sociais apresentados por Manuel Castells no livro “Redes de indignação e esperança: Movimentos sociais na era da internet”.
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MOVIMENTOS SOCIAIS NA INTERNET No livro “Redes de indignação e esperança: Movimentos sociais na era da internet” (2017), o sociólogo espanhol Manuel Castells analisa diversos movimentos sociais que ocorreram na Europa, nas Américas e no mundo árabe entre o fim dos anos 2000 e o início dos anos 2010. Os movimentos apresentados pelo autor foram viabilizados ou fortalecidos pela comunicação dada nas redes sociais da internet. A partir das emergências revolucionárias na Tunísia entre 2010-2011, com protestos contra o desemprego, a violência e a corrupção do Estado, diversas populações do mundo árabe se empoderaram a cobrar seus governantes. Os populares perceberam a potencialidade em difundir e compartilhar imagens e informações em tempo real para qualquer lugar do mundo através da internet, criando uma rede de contatos e testemunhas global. Telefones celulares e redes sociais da internet desempenharam papel importante no que se refere a difundir imagens e mensagens que mobilizaram pessoas, oferecendo uma plataforma de discussão, convocando à ação, coordenando e organizando os protestos e abastecendo a população em geral de informações e debates. (CASTELLS, 2017, p. 59)
As insurgências se espalharam mundialmente. Ainda em 2011, as manifestações mobilizadas pela internet já aconteciam na Europa e nas Américas. Para Castells, os movimentos sociais em rede compartilham de dois fatores decisivos. O primeiro é a crise fundamental da legitimidade do sistema político. E o segundo é a capacidade de comunicação autônoma, “a habilidade para se conectar com os participantes e a sociedade como um todo pela nova mídia social” (2017, p. 187). As redes sociais foram importantes para a organização dos movimentos, mas não quer dizer que elas sejam sua causa:
Elas são ferramentas à disposição de qualquer indivíduo ou rede de indivíduos auto constituída que deseje ter suas opiniões divulgadas e convocar os que compartilham sua indignação para se juntar num projeto no espaço urbano. É essa conexão entre o ciberespaço público, ignorando a controlada mídia convencional, e o espaço público urbano, cuja ocupação desafia a autoridade institucional, que está no cerne dos novos movimentos sociais. (CASTELLS, 2017, p. 188)
A partir das análises e características comuns identificadas por Castells, apresentaremos a atuação do Levante Nacional Trovoa, uma rede de artistas, curadoras e arte-educadoras que se organizam através das redes sociais. De fato, o movimento provocado pelo Levante Trovoa não se compara às revoluções apresentadas pelo autor, porém o projeto abarca e reflete as demandas dos movimentos feministas, negros, indígenas e asiáticos nacionais.
LEVANTE NACIONAL TROVOA O Levante Nacional Trovoa é um coletivo formado por artistas visuais, curadoras e arte-educadoras, presente em todo Brasil. Até o momento, o Levante tem agentes em onze estados, sendo Amazonas, Bahia, Ceará, Espírito Santo, Goiás, Mato Grosso, Maranhão, Pará, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo. Foi fundado em 2017 na cidade do Rio de Janeiro, inicialmente por quatro mulheres com o objetivo de reivindicar discussões sobre o sistema de arte no circuito, o coletivo busca evidenciar “produções não hegemônicas que derivam de intersecções raciais passando por indígenas, negras e asiáticas” (apud TEOTONIO). O projeto conta com articuladoras ativas, distribuídas pelas cinco regiões do país, que se organizam via Facebook e WhatsApp. Cerca de 180 pessoas já participaram das atividades do Levante Trovoa,
entre elas mulheres cisgênero, transexuais, travestis e pessoas não binárias. Nas palavras do coletivo: “Já que o circuito hegemônico de arte não comporta nossos corpos e produções, a criação de uma rede é uma marca, a Trovoa, que funciona como um replicante podendo estar presente em diferentes lugares ao mesmo tempo.” (apud TEOTONIO) A intenção do Trovoa é viabilizar uma rede de produtoras de arte. As participantes podem propor rodas de conversa, palestras e exposições com outras artistas que não se enquadrem no espectro da branquitude, em nome do coletivo. Respeitando as particularidades de cada região e projeto desenvolvido, no Trovoa cada grupo regional ou articuladora traça estratégias de atuação de acordo com as necessidades e espaços locais. “Para tais direcionamentos buscamos agir de maneira fluida, pró-ativa a partir de uma autogestão dentro do grupo; quem se identifica com o que está sendo proposto se aproxima e soma, dando tempo e espaço a quem está dedicado a outros projetos em sua carreira, dentro ou fora do Trovoa” explica a artista e integrante do levante, Bárbara Milano¹. Ademais, promover e estimular a descentralização da programação artístico-cultural concentrada majoritariamente no sudeste do país. Os movimentos sociais atuais são conectados em rede de múltiplas formas. Embora se iniciem na internet, quando dizemos rede consideremos “redes sociais on-line e off-line, assim como redes preexistentes e outras formadas durante as ações do movimento” (CASTELLS, 2017, p. 211). Por se tratar de uma rede de redes, os coletivos podem “dar-se ao luxo de não ter um centro identificável, mas ainda assim garantir as funções de coordenação, e também de deliberação, pelo inter-relacionamento de múltiplos núcleos.” (CASTELLS, 2017, p.211). Desse modo, um movimento ou coletivo dispensa uma liderança formal, um
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centro de comando e organização vertical, criando o que Castells chamou de “espaço da autonomia”, um espaço híbrido entre a cibernética e o espaço urbano, onde os envolvidos desenvolvem a capacidade de se organizar independente das redes de comunicação online. O espaço de autonomia é fundamental para a existência dos movimentos sociais, pois “só sendo autônomos eles podiam superar as múltiplas formas de controle político e ideológico e encontrar, individual e coletivamente, novos modos de vida” (CASTELLS, 2017, p. 153). A ausência de hierarquização propicia movimentos simultaneamente locais e globais, que “expressam uma profunda consciência da interligação de questões e problemas da humanidade em geral e exibem claramente uma cultura cosmopolita, embora ancorados em sua identidade específica” (CASTELLS, 2017, p. 212). Em certa medida, estes movimentos extrapolam os limites entre identidade comunal local e redes individuais globais. ¹ MILANO, Bárbara. Entrevista concedida a Larissa da Silva Souza via e-mail. [S.l], abr, 2021
REDES DE INDIGNAÇÃO Castells observa que, quando examinados de perto, movimentos sociais em rede apresentam semelhanças acentuadas, a despeito de seus contextos culturais e institucionais profundamente contrastantes (2017). Segundo o autor, os movimentos sociais são desencadeados por um evento dramático. Na Tunísia, por exemplo, os protestos começaram quando o vendedor Mohamed Bouazizi, após ter sua barraca de frutas confiscada pela polícia local, cometeu autoimolação, registrada e compartilhada via internet pelos passantes. Na Islândia, o colapso financeiro causado pelos bancos foi o estopim para protestos e acampamentos.
A partir de eventos como esses, pesquisa, intitulada “A História da _rte”, surge a indignação, que para Castells apresenta dados quantitativos e qualitatinhecimento facial. “estimula que se assumam riscos sem vos sobre gênero, raça, localização e ocupaEssa grande massa global,encontrados ao conseguirem aliar temor” (2017, p. 89). çãocorporativa de 2.443 artistas 11 o discurso idealizado9 sobre smart cities à lógica do governo empredos livros mais utilizados nos cursos de No caso dos coletivos sarial,artísticos, trouxe a pauta smart para as globais. Ao ganhar graduação dediscussões artes visuais no Brasil. como o Levante Nacional Trovoa, o motivo cada vez mais adeptos e apoiadores, a característica smart das de indignação passa pelacidades dificuldade de prerrogativa para Em “História damercado _rte” observou-se se torna posição no internacioreconhecimento, entrada e remuneração no implica que apenas 215parâmetros (8,8%) dos artistas são nal de títulos, o que em novos para classificamercado da arte para artistas 22 (0,9%) são negras/negros ção doemergentes, desempenho dasmulheres, cidades, medido com base em rankingsee especialmente quando se trata de mulhe645indicadores (26,3%) sãocomo não europeus, tabelas comparativas com inovação,sendo criatividares e pessoas não-brancas. apenas 246 destes não estadunidenses. de e, agora, smart. Alimentando a competitividade entre as cidades, característica desse neoliberalismo, elas disputam, entre si, Em 2019, o artista Alan Ariê iniciou A pesquisa foi transformada em um por notas mais favoráveis que determinem os encargos financeiros um mapeamento de artistas negros reprefolheto informativo e distribuída gratuitados empréstimos tomados por elas. Assim, governos que já sentados por galerias na cidade de São mente em museus e centros culturais, seguiam uma lógica empresarial de administração pública muito Paulo. O objetivo da pesquisa era explicitar além de estar disponível para download no pautada pela eficiência, se viram pressionados a quantificar seu a discrepância entre artistas brancos e site do artista. desempenho por meio de auditorias e incessantes análises de não-brancos no mercado local. O levantadados, uma vez que não poderiam arriscar sua posição no mercado As denúncias sobre disparidade no mento se deu em 24 galerias (nas quais internacional (MOROZOV e BRIA, 2019). Essa concorrência generamercado são constantes na arte contemapenas 10 concordaram em abrir voluntalizada, vinculada às finanças globais, pressiona as administrações riamente seus dados para Ariê), totalizando porânea. Entre 1989 e 2012, o Guerrilla municipais a seguirem suas condições Girls exigências, atualizou oproduzindo cartaz “Do women have to 619 nomes. locais ideais para a valorização do capital, por meio investimenbe naked to get into the Met. de Museum?”. tos em infra necessárias às Para a pesquisa, realizada no estruturas segunApresentado na atividades cronologiacapitalistas, no site do grupo que, segundo Dardot e Laval (2016), só demonstram o quanto do semestre, os dados coletados foram como “The Poster that Changed It All”³, o Estado e mobilidade do capital mantém uma relação de dependêngênero, raça e local de nascimento dos cartaz apresenta a porcentagem de mulheartistas representados. cia. res que faziam parte do acervo do MetropoAlém disso, como Dardot e Laval (2019) apontam, litan Museum (4%), em Nova York, esse em No quesito disparidade a não é comparação anseio racial, neoliberal apenas para com frearos osnus gastos públicos, femininos na mas pesquisa demonstrou que por92,56% mudar,dos profundamente, o modo deaté administração pública.em coleção (76%) sua última versão artistas representados são brancos. Negros Nesse mesmo sentido, Morozov e Bria (2019) destacam duas 2012. representam 4,36%, asiáticos 2,26%, pardos dentro do contexto da discussão de smart medidas importantes, 0,64% e indígenas 0,16%city, - sendo 63% pelos governos, que Paraimpacta realizar diretamente uma retrospectiva tomadas nas do homens brancos e apenas 3,17% homens grupo em 2017, o MASP também precisou instituições do estado de bem-estar social, revertendo-as: a negros. abrir particulares seu acervo para Guerrilla Girls. Com subcontratação de agentes paraoatribuições reservao título “As mulheres precisammais estar nuas das, até então, para as instituições públicas (estágio avançaAs mulheres brancas representam para entrar no Museu de Arte de São Paudo de privatização dos serviços públicos) e a injeção de capital 29,5% dos nomes, as negras 0,80% e a única lo?”4, o cartaz denunciou que, com apenas financeiro privado no gerenciamento, na manutenção e na conspessoa indígena representada é uma 6% de artistas mulheres no acervo, cerca trução de infraestruturas. mulher. Nenhuma pessoa trans ou não de 60%agora, dos nus eram femininos. Dessa forma, o Estado, assume o papel de não binária foi identificada. somente responder segundo a lógica do setor privado e a subsidiar ² Disponível em 4 Disponível em: as condições ideais para as movimentações do<https://www.guerrillacapital, mas Quinze das 24 galerias avaliadas <https://www.instatambém de cliente dessas empresas, corporações, bancos e instinão representam artistas negros. Todos os gram.com/negres.tudo/>. girls.com/exhibitions>. Acesso em:como 11/01/2021. em:Essas 17/01/2021. tuições financeiras, parte da Acesso solução. dados e gráficos do mapeamento, que seria entendidas instituições, que tem como base aem: comoditização de soluções para ³ Disponível distribuído às galerias, está disponibilizado <https://www.guerrillasociais e políticos, replicam para dentro do setor na página @negres.tudoproblemas no Instagram². girls.com/naked-throupúblico, uma vez contratadas pelo Estado, técnicas advindas do gh-the-ages>. Acesso O mapeamento de Ariêprivado dialogade com setor análises e mensuração de dados para avaliações em: 17/01/2021. a pesquisa organizada pelo artista ede objetivos e resultados alcançados (MOROZOV e constantes pesquisador Bruno Moreschi 2017. A BRIA,em 2019). O recrutamento e o contrato com empresas de tecnologia para a gestão de uma cidade se torna tendência dentro do univer-
As redes de indignação criam companheirismos instantâneos: “ver e ouvir protestos em algum outro lugar, mesmo que em contextos distantes e culturas diferentes, inspira a mobilização, porque desencadeia a esperança da possibilidade de mudança” (CASTELLS, 2017, p. 213). A transição da indignação, através dos espaços de autonomia, em esperança, é o que garante que as mobilizações virtuais passem a existir também fora das redes sociais.
REDES DE ESPERANÇA Em novembro de 2020, o grupo foi convidado para participar da edição virtual da SP-Foto, braço da SP-Arte, uma das feiras mais importantes do circuito, dedicada ao trabalho fotográfico no Brasil. “Sem dúvida o evento demarca o exponencial crescimento da visibilidade que estamos desenvolvendo ação após ação” afirma Milano. A ocasião da participação na feira SP-Foto exemplifica a importância de redes de contatos e colaboradores além do núcleo do grupo, bem como a urgência nas discussões sobre acesso comercial: O convite foi feito pela Marina Dias Teixeira, responsável pelo institucional da feira, e única mulher negra na equipe da SP-Arte. Ela acompanha a trajetória do coletivo Trovoa há um tempo, e vem contribuindo para que cada vez mais a feira faça convites para artistas, curadores, arte educadores e pesquisadores negras e negros. (apud TEOTONIO, s/d)
A partir das análises de Maria Glória Gohn sobre os movimentos sociais do século XXI, o pesquisador Fernando Gonçalves aponta que, segundo a autora, os movimentos sociais atuais tendem a se abrir para a mediação, sendo mais operativos e propositivos do que reivindicativos: [os movimentos sociais] não recusariam o diálogo com o poder, antes negociariam com ele ou o subverteriam; não
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lutariam por bandeiras isoladas, mas por causas universais que integram vários atores sociais, fortalecendo lutas locais; não se comunicariam ou organizariam “clandestinamente”, mas em redes eletrônicas públicas para realizar protestos e manifestações não-violentas no ciberespaço e nos espaços urbanos. (GONÇALVES, 2007, p. 3)
A presença do grupo nesses espaços traz uma perspectiva pouco contemplada em feiras de arte. A ação de coletivos autônomos, como o Trovoa têm criado aberturas para que grupos menos representados tragam suas questões para espaços de fruição e comercialização. Sobre o tema Milano aponta, “ninguém nos procurará espontaneamente oferecendo espaço, essas oportunidades são criadas e se tornam realidades a partir de rasgos que proporcionamos, que afirmam nossa existência. O Trovoa tem trabalhado desde sua primeira formação no sentido de expandir e respirar, e a cada respiração ganhamos mais fôlego de fazer crer que existe uma história que estamos escrevendo na medida que fazemos do pensamento ação”. (MILANO, 2021)
Sobre a relação entre consumo, ativismo e internet, as pesquisadoras Izabela Domingues e Ana Paula de Miranda afirmam que “as práticas de mercado têm implicações diretas na esfera política, social, econômica e demográfica, assim como as orientações políticas interferem nas práticas de mercado.” (2020, posição 89). Domingues e Miranda apontam que as “as marcas que não entenderam o espírito do tempo presente, no qual consumo e ativismo andam juntos como jamais estiveram, tendem a ampliar seu time de haters e perdem a oportunidade de angariar mais apaixonados pelos seus princípios e propósitos” (2020, posição 86). Logo, com a participação do Levante Nacional Trovoa na SP-Foto, outras feiras serão pressionadas a buscar identidades artísticas plurais.
VIRTUALIZANDO ESPAÇOS Para a seleção da galeria 365 no portal da SP-Arte, o coletivo elegeu uma curadora para cada região (norte, nordeste, centro-oeste e sudeste), buscando contemplar todo território de atuação, de forma a expandir a distribuição das oportunidades. Sobre a experiência de participar da feira no formato virtual, Milano identifica fatores favoráveis para grupos autônomos. Os principais expositores da SP-Arte são galerias, muitas vezes internacionais, que trazem consigo estruturas impensáveis para coletivos não institucionalizados, “ainda não temos estrutura de [nos] auto-financiarmos em uma empreitada tão complexa como Sp-Arte física, e não que não o faríamos (rs). O Trovoa é sobretudo, sobre fazer. Mas é importante presentificar o que é concreto.” explica Milano. Porém com o formato on-line, essas barreiras físicas e econômicas se esmaecem, uma vez que todos os expositores tem acesso à mesma plataforma para comercialização das obras. O formato on-line cria mais possibilidades para artistas emergentes, produzir uma boa imagem do seu trabalho é mais fácil que produzir o transporte, o seguro, a montagem do mesmo. Que a visibilidade que foi proporcionada nesse formato gere o movimento necessário para que investidores se atentem à possibilidade de apoiar ações independentes no campo da arte. (MILANO, 2020)
Além de participar da feira, durante o ano o Trovoa promoveu diversos encontros virtuais com o intuito de manter as trocas afetivas durante a pandemia de Covid-19. Desde março, o coletivo tem reunido suas integrantes para conversarem sobre processos criativos, territorialidade e acesso ao universo das artes. Os encontros já aconteceram via plataformas de videoconferência, transmissão simultânea e lives do Instagram, cuja página tem sido constantemente atualizada com perfis das artistas do levante.
Também em novembro, o Trovoa organizou um ciclo de conversas para pensar o lugar do imaginário social sobre o contemporanei corpo da mulher negra na contemporaneidade, a convite da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo. O encontro reuniu 12 integrantes, entre artistas, mediadoras e curadoras de diversas partes do país, como Sheyla Ayo (SP), Ariana Nuala (PE), Ana Raylander Mártis dos Anjos (MG) e Julliana Araújo (RJ). Questionada sobre o processo de adaptação a essas plataformas, Milano conta que é importante não estacionar nossas expectativas em resultados possípossí veis no passado, “existe algo novo, no que se refere à narrativa, à público, à consumo e especialmente à deslocamento nesse momento pontual”. Ainda que em meio à uma crise sanitária internacional, as redes de espeespe rança se fortalecem através dos encontros, “imaginar que num contexto tão lastimável podemos levar um pensamento libertário e estimulante a mais pessoas e espaços que os possíveis de chegar com o corpo, deve incentivar artistas não apenas no Brasil, mas em todo o mundo a continuar suas produções.” relata Milano. As mudanças possibilitadas pelos coletivos e movimentos sociais em rede, enquanto autônomos e temporários, são, na verdade, o que ocorre na mente das pessoas. Sobre isso, Castells afirma: o verdadeiro objeto desses movimentos é aumentar a consciência dos cidadãos em geral, qualificá-los pela participação nos próprios movimentos e num amplo processo de deliberação sobre suas vidas e seu país, e confiar em sua capacidade de tomar suas próprias decisões em relação à classe política. (CASTELLS, 2017, p. 225)
Quanto mais o movimento conse conseguir transmitir suas mensagens pelas redes de comunicação, mais cidadãos conscien conscientes e questionadores aparecem, diminuindo a capacidade dos sistemas políticos de integrar demandas e comunicações com ajustes meramente cosméticos (CASTELLS, 2017).
CONCLUSÃO REDES DE COLABORAÇÃO Em 2003 quando Ricardo Rosas escreveu que os coletivos brasileiros atuavam “nos interstícios das práticas tradicionais da cultura instituída, em ações até agora de um viés mais low tech”, ele mal poderia imaginar o baque que os coletivos sofreriam hoje para manter suas atividades remotamente. Porém, o autor apontou que os coletivos já operavam nessa direção, uma vez que divisão de tarefas, compartilhamento de valores e liderança coletiva caracterizam em grande parte a filosofia do movimento open source. Aos grupos, como o Trovoa, o momento é de livre experimentação, “pensar novas formas de mostra-las [obras], expandir. Nos leva a uma espécie de resistência… emocional” (MILANO, 2021). É necessário um lapso de tempo para que os efeitos dos movimentos propostos pelo Levante Nacional Trovoa e das pesquisas apresentadas por Ariê e
✦ REFERÊNCIAS ✦
Moreschi sejam observados nas instituições. Assim como os movimentos artísticos e políticos que inspiraram os projetos citados neste texto. Podemos citar grupos como o Guerrilla Girls, com mostras em grandes instituições culturais, mas o próprio grupo, através de suas obras, se coloca no lugar de exceção em um sistema pouco receptivo às minorias. Ainda que esses movimentos estejam se infiltrando lentamente na internet, é perceptível que o discurso cibermilitante incomoda as corporações hegemônicas e pode modificar suas condutas por atingir suas marcas, maculando a imagem que seus públicos de interesse têm delas (DOMINGUES e MIRANDA, 2020). Espera-se que os coletivos de artes percebam cada vez mais esse modo de trabalho híbrido como um modelo autônomo viável, menos restritivo e não-hierárquico, afinal, como previsto por ROSAS, a colaboração em rede é a senha para uma transformação que está se dando em escala global.
Jogo e Peso (de cima para baixo), 2020 Amanda Coelho Honório
Amanda tem 32 anos, é mulher cis, filha, neta, irmã, bissexual, branca, brasileira, nordestina, trabalhadora, desenhista e quadrinista. @amandismos
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Heloisa Alexandre Cizeski Arquiteta e urbanista, e artista. Participa de projetos que possibilitem debater as práticas contemporâneas e propor novas formas de atuar e compreender onde estamos. Participou intensamente dos movimentos estudantis durante a graduação, após formada, segue atuante em debates para se repensar as cidades que vivemos.
smart cities A PROMESSA DE UM FUTURO INTELIGENTE EM UM DISCURSO NEOLIBERAL
Neste ensaio pretende-se aproximar alguns aspectos da lógica neoliberal aos constantes avanços das tecnologias urbanas das smart cities, as “cidades do futuro”. Essas soluções smart são vendidas, aos governos como “apogeu lógico da tecnologia das cidades” (MOROZOV e BRIA, 2019, p. 25), carregadas de um discurso de positividade e inovação, mas que, ao olhar atentamente, replicam essa mesma lógica neoliberal em vigência há tanto tempo¹. Assim, nessa aproximação entre temas e discussões, busca-se compreender melhor como esse discurso da smart city está ancorado nessa racionalidade neoliberal, em especial na lógica empresarial, e quais os possíveis desdobramentos futuros deste vínculo entre Estado e empresas de tecnologias.
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¹ No recorte feito neste trabalho, limitou-se à discussão entre as formas de atuação neoliberal e o discurso da smart city originado pelas empresas e corporações de tecnologia. Não é de interesse aqui fazer prospecções sobre iniciativas smart que contrariam a lógica do neoliberalismo. Sobre o tema ver o trabalho Smart Cities: Iniciativas em oposição à visão neoliberal, de Teresa Cristina M. Mendes, na série Texto para Discussão do Observatório das Metrópoles, Rio de Janeiro, n.13, 2020.
A RACIONALIDADE NEOLIBERAL Para Laval (2020), o neoliberalismo é uma racionalidade política, resultante das mudanças e adaptações do sistema econômico capitalista no mundo globalizado, que determina as formas de poder, que impõe a lógica do capital aos diversos âmbitos sociais, econômicos e até do próprio Estado. Assim, se integrando aos comportamentos sociais e individuais, a lógica do mercado se torna modelo, universalmente, válido para se pensar as ações em sociedade, reestruturando a própria forma de subjetivação do mundo. Esse culto à empresa e ao empreendedor tem origem na década de 1980, quando o modelo “empresa” ganha destaque como “vetor de todos os progressos, condição da prosperidade e, acima de tudo, provedora de empregos” (DARDOT e LAVAL, 2016, p. 289), tornando a forma de organização privada, tão bem sucedida dentro do sistema econômico, o novo modelo de organização a ser seguido. Essa nova forma de governo, chamado gerencialismo, conquistou um expressivo número de países desde então, e lemas da prática da “boa governança” foram propagados em todo o globo pelas organizações internacionais. Sob o ponto de vista dessa forma de governo, as respostas para os mais diversos problemas da sociedade, independentemente de qual origem, pode ser reduzida às questões de gerenciamento, que, por sua vez, se resolvem sob parâmetros e técnicas que buscam maior eficiência das repartições públicas (Ibidem). A proposta neoliberal para administração pública, que tem como principal crítica ao Estado sua ineficiência e improdutividade, trouxe, para dentro dos governos, diretrizes características do setor privado a serem seguidas, em particular a concorrência e a eficácia. A esfera da ação pública, representada pelo Estado, é, então, transformada e passa a seguir a lógica de concorrência do mercado, que é submetida às exigências de eficiência e produtividade, assim como as empresas privadas: “O
Estado já não se destina tanto a assegurar a integração dos diferentes níveis da vida coletiva quanto a ordenar as sociedades de acordo com as exigências da concorrência mundial e das finanças globais” (DARDOT e LAVAL, 2016, p. 284). É nessa mudança na forma como o Estado se organiza e atua, agora, visto como uma empresa a serviço das empresas, que é possível melhor compreender como se articulam a concorrência e a forma neoliberal de governar - o público, tachado como ineficiente, precisa se adaptar à realidade do mercado e da globalização. Os valores empresariais, como concorrência e eficácia, passam a fazer parte de outros aspectos da vida, integrando o vocabulário comum e designando metas a serem atingidas por todos os indivíduos. Estes, mesmo que “fora” do setor empresarial, não escapam dessa lógica, se tornam empreendedores de si, o sujeito empreendedor em todas as dimensões da vida. A maleabilidade do próprio neoliberalismo permite com que esse conceito de produtividade se interiorize, e se enraíze, nas estruturas do pensamento e comportamento humano, criando uma necessidade constante de autovigilância para que os indivíduos se adequem às estruturas do meio, aos indicadores e a competição entre si. E, em uma transformação de mentalidades, essa política neoliberal impõe, aos seres humanos, que também se adaptem. A qualquer custo, “adaptem-se!” (LAVAL, 2020, p. 02). O neoliberalismo, portanto, além de se alimentar de suas próprias crises, em uma espécie de fagocitose constante, fixa uma compulsiva falta de alternativas à sociedade e aos indivíduos comuns. Assim, os atores (ditadores) representantes do capital - elites administrativas, especialistas em gestão, economistas e autoridades políticas - são responsáveis por escolherem quais as soluções são válidas ou não. E aos indivíduos, só resta adaptarem-se.
CIDADES INTELIGENTES?
almente, o imaginário neoliberalose manifestaneoliberal nas Atualmente, imaginário se manifesta nas b a forma decidades um urbanismo altamente empreendedor e sob a forma de um urbanismo altamente empreendedor e ado, emergente no final da década de 80. vidada urbana financeirizado, emergente no Afinal década de 80. A vida urbana us sistemas edetodos infraestrutura tornaram-se mercadoria seus sistemas de infraestrutura tornaram-se mercadoria apital global,para maisum uma ferramenta serviço raciona- a serviço da racionacapital global,amais umadaferramenta liberal, em que a forma mercado superior sobre todas é superior sobre todas lidade neoliberal, eméque a forma mercado as outras.
paisagens urbanas passam a ser invadidas pelos avanAs paisagens urbanas passam a ser invadidas pelos avanógicos, em que milhares de conexões entre infraestrutuços tecnológicos, em que milhares de conexões entre infraestrutus, criadas para segurança população” – rasgarantir digitais,“acriadas parada garantir “a segurança da população” – a verdade, são respostas à uma grande obsessão ao mas que, na verdade, são respostas à uma grande obsessão ao vigilância dos corpos²e–,vigilância fazem parte do nosso a dia: controle dos corpos ² –,dia fazem parte do nosso dia a dia: câmeras de segurança, câmeras termais, telas, algoritsensores, câmeras de segurança, câmeras termais, telas, algoritdores, telefones rastreamento remoto erastreamento remoto e mos,celulares, roteadores, telefones celulares, tros dispositivos. Assim, tecnologia, controle e cidade muitos outros dispositivos. Assim, tecnologia, controle e cidade figurando como grande combo alinhado aos dogmas vão um se configurando como um grande combo alinhado aos dogmas ralismo, que do passa a ser apresentado aos governantes neoliberalismo, que passa a ser apresentado aos governantes elhor possibilidade solução dos problemas urbanos:dos problemas urbanos: como apara melhor possibilidade para solução y. a smart city.
róprio emprego do termo “smart” já seria O próprio emprego do pauta termo suficien“smart” já seria pauta suficiencussões³ e reflexões acerca desse ideal, como trazem te para discussões³ e reflexões acerca desse ideal, como trazem Bria (2019),Morozov que vem eimpregnando a imaginação públiBria (2019), que vem impregnando a imaginação públilaciona as tecnologias digitais as às tecnologias soluções mais inteli-às soluções mais intelica e que relaciona digitais sitivas, em que nada será desperdiçado. Para além, a gentes, positivas, em que nada será desperdiçado. Para além, a do termo vem de grandes empresas, como a IBM, que, genealogia do termo vem de grandes empresas, como a IBM, que, oposta de construção de um planeta “mais inteligente”, em uma proposta de construção de um planeta “mais inteligente”, erecer serviços de consultoria voltada para as várias voltada para as várias passa a oferecer serviços de consultoria des de otimização do setorde público e privado (Ibidem, necessidades otimização do setor público e privado (Ibidem, mercado dap.26). smartEsse city mercado passa a se intensificar na da smart city passa a se intensificar na ada, em umaúltima crescente defesa por defesa meio decorporativa por meio de década, em corporativa uma crescente publicitáriospanfletos que celebram o “progresso inevitável”o e“progresso inevitável” e publicitários que celebram movimentar 3esperam trilhões movimentar de dólares em 2025. de dólares em 2025. 3 trilhões
empresas de consultoria e outrosde serviços tecnológicos, As empresas consultoria e outros serviços tecnológicos, carem [e produzirem] essa demanda de mercado, ao identificarem [e produzirem] essa demanda de mercado, us próprios departamentos e institutos voltados ae institutos voltados a fundam seus próprios departamentos s problemas das cidades. Estas [cidades], segundo resolver os problemas das cidades. Estas [cidades], segundo Bria (2019),Morozov são transformadas no problema a ser e Bria (2019), são transformadas no problema a ser pelo setor tecnológico, em especial, startups do Vale do resolvido pelo setor tecnológico, em especial, startups do Vale do se debruçamSilício sobreque “soluções para assobre cidades” e resulse debruçam “soluções para as cidades” e resulua grande maioria, em diversos produtos oferecidos tam, em sua grande maioria, em diversos produtos oferecidos nciais para alcançar o objetivo de cortar gastos e atingir como essenciais para alcançar o objetivo de cortar gastos e atingir iciência, commáxima mais sensores e aplicativos de controle e eficiência, com mais sensores e aplicativos de controle e dados. captura de dados.
umas das empresasAlgumas mais importantes do ramo das empresas maisde importantes do ramo de s para smarttecnologias cities, segundo Morozov e Bria4, são: Morozov e Bria4, são: para smart cities, segundo BM6, Cisco7 eSiemens5, Phillips8, IBM6, com propostas diversascom de propostas diversas de Cisco7 e Phillips8, e iluminaçãosoluções e redes elétricas inteligentes, sistemas de de iluminação e redes elétricas inteligentes, sistemas de ão de prédiosmanutenção e digitalização de fábricas, controle dede fábricas, controle de de prédios e digitalização
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sistemas de transporte público e coleta de lixo, prevenção de enchentes e redes de monitoramento avançado por vídeo e reconhecimento facial. Essa grande massa corporativa global, ao conseguir aliar o discurso idealizado9 sobre smart cities à lógica do governo empresarial, trouxe a pauta smart para as discussões globais. Ao ganhar cada vez mais adeptos e apoiadores, a característica smart das cidades se torna prerrogativa para posição no mercado internacional de títulos, o que implica em novos parâmetros para classificação do desempenho das cidades, medido com base em rankings e tabelas comparativas com indicadores como inovação, criatividade e, agora, smart. Alimentando a competitividade entre as cidades, característica desse neoliberalismo, elas disputam, entre si, por notas mais favoráveis que determinem os encargos financeiros dos empréstimos tomados por elas. Assim, governos que já seguiam uma lógica empresarial de administração pública muito pautada pela eficiência, se viram pressionados a quantificar seu desempenho por meio de auditorias e incessantes análises de dados, uma vez que não poderiam arriscar sua posição no mercado internacional (MOROZOV e BRIA, 2019). Essa concorrência generalizada, vinculada às finanças globais, pressiona as administrações municipais a seguirem suas exigências, produzindo condições locais ideais para a valorização do capital, por meio de investimentos em infra estruturas necessárias às atividades capitalistas, que, segundo Dardot e Laval (2016), só demonstram o quanto Estado e mobilidade do capital mantém uma relação de dependência. Além disso, como Dardot e Laval (2019) apontam, esse anseio neoliberal não é apenas para frear os gastos públicos, mas por mudar, profundamente, o modo de administração pública. Nesse mesmo sentido, Morozov e Bria (2019) destacam duas medidas importantes, dentro do contexto da discussão de smart city, tomadas pelos governos, que impacta diretamente nas instituições do estado de bem-estar social, revertendo-as: a subcontratação de agentes particulares para atribuições reservadas, até então, para as instituições públicas (estágio mais avançado de privatização dos serviços públicos) e a injeção de capital financeiro privado no gerenciamento, na manutenção e na construção de infraestruturas. Dessa forma, o Estado, agora, assume o papel de não somente responder segundo a lógica do setor privado e a subsidiar as condições ideais para as movimentações do capital, mas também de cliente dessas empresas, corporações, bancos e instituições financeiras, entendidas como parte da solução. Essas instituições, que tem como base a comoditização de soluções para problemas sociais e políticos, replicam para dentro do setor público, uma vez contratadas pelo Estado, técnicas advindas do setor privado de análises e mensuração de dados para avaliações constantes de objetivos e resultados alcançados (MOROZOV e BRIA, 2019).
O recrutamento e o contrato com empresas de tecnologia para a gestão de uma cidade se torna tendência dentro do universo neoliberal, segundo Morozov e Bria (2019), onde a maioria dessas empresas operam um “estado de bem-estar social privatizado”¹0 (Ibidem, p. 57) e paralelo aos estados de bem-estar oficiais. O argumento mais corriqueiro na justificativa dessas subcontratações de agentes particulares, é a austeridade fiscal. Proveniente de uma lógica que afirma um déficit constante dos cofres públicos e uma ineficiência no controle orçamentário, cria-se a necessidade de meios, sistemas e/ou práticas que encontrem estratégias de redução desses gastos municipais. Assim, a dinâmica smart, com a promessa de eficiência, controle e corte de gastos, por meio de tecnologias que pretendem resolver, em tempo real, todos os conflitos existentes, ganha lugar nas repartições públicas. Contudo, o sociólogo Francisco de Oliveira (1999), ao se referir a essa transformação da racionalidade estatal em uma racionalidade privada, alega que “a privatização do público é uma falsa consciência de desnecessidade do público” (Ibidem, p. 68), pautada, muitas vezes, pelo argumento de falência do Estado. A realidade, na prática, se dá pelo inverso, é a própria riqueza pública que sustenta a reprodutibilidade do capital privado. Assim, essa distorção proposital e perseverante do discurso, é fundamental no processo de privatização da esfera pública, que é apropriada pelo privado e que, como efeito, reforça os interesses privados sob o público. Contudo, o discurso dominante segue reafirmando um Estado à falência que tem, nas empresas, a única possibilidade de salvação. Segundo Morozov e Bria (2019), esse regime de privatização dos serviços públicos tem dois lados fundamentais de atuação, que são baseados no consumo e geram um regime nada estável e altamente especulativo: de um lado, tecnologias avançadas para oferecer economia significativa para os consumidores, por outro lado, lança mão desse mesmo conjunto de tecnologias para produzir oportunida-
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des de trabalho de curto prazo, bem flexíveis na economia informal (como é o caso dos motoristas e entregadores de aplicativos), ou ganhos especulativos rápidos na economia de compartilhamento (plataformas de aluguéis temporários). É por meio da ascensão desse capitalismo neoliberal digital que empresas de tecnologia conseguem crescer financeiramente, fornecendo, aos indivíduos-usuários, um serviço de baixo custo. É o caso da Uber, por exemplo, que oferece, aos passageiros, corridas de menor custo e com grande praticidade, devido ao grande número de motoristas registrados na plataforma. Presente globalmente, a empresa se coloca como a solução para os problemas de mobilidade urbana de forma tão eficiente e de baixo custo que algumas cidades americanas empobrecidas estão considerando subsidiar corridas de Uber aos seus cidadãos¹¹ , por ser uma solução menos custosa, do que investir em redes de infraestrutura de transporte público (MOROZOV e BRIA, 2019). Vão se construindo, dessa forma, novas estratégias, características das smart cities, para administração dos problemas urbanos. Como argumenta Morozov e Bria (2019), transformações tecnológicas digitais - de aplicativos para mobilidade a sistemas de dados médicos - e sua promessa de liberação do potencial criativo e empreendedor dos cidadãos recebem todas as fichas e esperanças da gestão pública. Nesse contexto estrutural, que os autores tratados consideram como um neoliberalismo 2.0, os indivíduos são, para além de empreendedores, hackers, no sentido origi-
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aosfazer interessespúblicos oligopolistas espeaos interesses oligopoli nal da palavra, “pessoas capazes de fazer nal da palavra, “pessoas públicos capazes de cíficos. Pega para si (o Estado) uma responcíficos. Pega para si (o Estado) um mais com menos, de prosperar por meio da mais com menos, de prosperar por meio da sabilidade de apoio logístico e de infraessabilidade de apoio logístico e de inovação escassa e sempre aptas a enconinovação escassa e sempre aptas a encontrutura a esses oligopólios e dea atração trutura esses oligopólios e de a trar saídas, mesmo quetrar suas mãosmesmo estejamque suas saídas, mãos estejam destes para seu território, tornando-se eco destes para seu território, tornan atadas. E estarão atadas” (Ibidem, p. 72).atadas” (Ibidem, p. 72). atadas. E estarão de uma lógica de privilégio do capital, que de uma lógica de privilégio do cap Identifica-se, dessa forma, toda umadessa Identifica-se, forma, uma sociais. reforça ostoda abismos reforça os abismos sociais. articulação entre governo e empresas articulação entre governo e empresas asecidades, já tomadas pela Assim, as cidades, já toma privadas que, como argumentam Dardot privadas que, comoe argumentamAssim, Dardot lógica neoliberal de governança, ao buscalógica neoliberal de governança, a Laval (2016), reduzem Laval a população seu (2016),ao reduzem a população ao seu rem as soluções para seus rem problemas as soluções para seus proble utilitarismo, enxergando-a meramente utilitarismo, enxergando-a meramente urbanos e sociais nas parcerias empreurbanos ecom sociais nas parcerias c como mais recurso disponível, querecurso assim disponível, que assim como mais sas privadas de tecnologia, em muitos sas privadas de tecnologia, em m como os demais, deve ser gerenciado dedeve ser gerenciado de como os demais, casos especialistas em extração de dados, casos especialistas em extração forma a extrair seu maior potencial produtiforma a extrair seu maior potencial produticomo a Esse Google, além decomo disponibilizarem a Google, além de disponib vo com o menor custo vo possível. potencom o Esse menor custo possível. potengrande montante de dados que serão grande montante de dados que s cial criativo e empreendedor pode, e deve cial criativo empreendedor pode, e deve utilizados e vendidos no mercado mundial, utilizados e vendidos no mercado ser explorado, em prol ser de uma “adequação explorado, em prol de uma “adequação acabam se tornando dependentes deste acabam se tornando dependente aos novos padrões mundiais”, subvertendo, aos novos padrões mundiais”, subvertendo, setor privado. Segundo Morozov e Bria setor privado. Segundo Morozov segundo os autores, ossegundo fundamentos os autores, os fundamentos (2019), essas sucessivas ondas de privati(2019), essas sucessivas ondas d modernos da democracia, ou seja,da osdemocracia, direimodernos ou seja, os direicom o objetivo de umacom melhor gestão de uma me zação o objetivo tos sociais conquistados deveriam tosque sociais conquistadoszação que deveriam urbana, corte de gastos e maior eficiência, urbana, corte de gastos e maior e estar ligados ao statusestar de cidadão, ligadoscomeao status de cidadão, comepode criar uma dependência municipal, que, pode criar uma dependência mun çam a ser entendidos como troca de como uma troca de çam auma ser entendidos amarrada a essas soluções de problemas amarrada a essas soluções de pro serviços. serviços. pontuais em grande escala, podeem perder suaescala, pode pontuais grande Morozov e Bria (2019) Morozov ainda argue Bria (2019) ainda administrativa. arguautonomia autonomia administrativa. mentam que essa tecnologia, aliada aos tecnologia, aliada aos mentam que essa interesses neoliberais, interesses cria um “álibi perfei- cria um “álibi perfeineoliberais, to para as elites regentes” (Ibidem, p. 75). to para as elites regentes” (Ibidem, p. 75). EM ESTADO DE ALERTA Essas elites econômicas dominantes se Essas elites econômicas dominantes se As relações, encarregam, então, de encarregam, disponibilizar,então, aindade disponibilizar, ainda cada vez mais intrincadas entre os setores público e privado, nos que de forma privatizada, infraestrutura, queade forma privatizada, a infraestrutura, coloca, ou ao menos deveria, em situação na maioria dos casos, digitais, necessária na maioria dos casos, digitais, necessária de alerta. Essas práticas de privatização para a prestação dos serviços. Os indivídupara a prestação dos serviços. Os indivídudos serviços públicos não são novas, basta os, cidadãos, que não conseguem aproveitáos, cidadãos, que não conseguem aproveitálembrar do Reino -la ao máximo, são tachados como culpa-la ao máximo, são tachados como culpa- Unido, de Margaret dos, responsáveis por sua atual.por suaThatcher, dos,situação responsáveis situaçãoporém, atual. hoje, há um maior interesse de oligopólios Nessa inversão de valores, os inversão cidadãos,de valores, os cidadãos, em desenvolver serviços Nessa para resolver os problemas urbanos. Sob o considerados individualmente, e nãoindividualmente, mais considerados e não mais slogan recebem, de cidades inteligentes, essas como um corpo social coletivo, como umrecebem, corpo social coletivo, empresas vão ganhando espaço entre os sobre os ombros, mais sobre responsabilidades os ombros, mais responsabilidades indivíduos, seus usuários, e caminham para sociais e - talvez o ponto maisesignificativo sociais - talvez o ponto mais significativo se tornarem - o desemprego passa a- ser encarado como o desemprego passa a ser encarado parte como do sistema público - já que neste, as garantias de lucro são certas. uma escolha pessoal. uma escolha pessoal. Dardot Para Dardot e Laval (2016), essa e Laval (2016), Para Dardot essae Laval (2016), ainda, apontam para consequências que esse mecaniscomplexidade, entre interesses públicos e interesses complexidade, entre públicos e mo de gestão do público, pautado em privados, cria um borramento entre privados, cria os um borramento entre os valores empresariais, pode causar, princiinteresses particularesinteresses e o interesse geral. particulares e o interesse geral. palmente no que diz respeito à forma de O Estado, ao invés de promover harmoO Estado,uma ao invés de promover uma harmocompreensão da esfera pública pelos nia entre progresso econômico a distribuinia entreeprogresso econômico e a distribuicidadãos. Entre ção equitativa dos recursos, não maisdos recursos, não mais as consequências dessa ção equitativa replicação da lógica do mercado em todos hesita em delegar a gestão deem setores hesita delegar a gestão de setores
os âmbitos da vida, a relação entre Estado e cidadão é duramente atacada e revertida, o indivíduo, então, passa a compreender o Estado como mais uma empresa que lhe presta um serviço. Assim, como compradores que devem receber pelo que pagam, passam a julgar as ações governamentais sob essa ótica de eficiência e competitividade, pautando-se por razões entre custo e benefício, orientados, exclusivamente, em função de seu interesse pessoal. Caminha-se, segundo Oliveira (1999), para uma desmoralização, muito perigosa, da própria função pública, em que tudo que é público é ineficiente e inimigo dos interesses de cada indivíduo. Ponto crucial de reflexão sobre as consequências dessa “nova” racionalidade é o “direito à cidade”. Morozov e Bria (2019, p. 80-81) questionam o que significaria o “direito à cidade” em uma cidade digital totalmente privatizada? Como esse direito poderá ser garantido se as estruturas urbanas não são mais controladas pelo Estado e quem define seus termos de uso e acesso são corporações privadas? Podemos deixar que gigantes digitais continuem a redefinir cada um de nossos direitos como serviços prestados?
As smart cities vestem essa nova máscara do capital financeiro, mais uma forma desse neoliberalismo sagaz, e ávido pelos recursos dos cofres públicos, conquistar espaço dentro das nossas cidades. É improrrogável, então, a construção de alternativas tecnológicas que possam fazer frente a esse discurso smart. Alternativas que repensem o modelo de organização das nossas cidades trazendo de volta o protagonismo para a participação popular, criando “alianças inteligentes e progressistas entre cidadãos, movimentos e organizações políticas.” (MOROZOV e BRIA, 2019, p. 179). E então, a partir de intervenções políticas e pragmáticas, resultem em propostas tecnológicas pautadas no cooperativismo e soberania digital, que incluam todos os cidadãos e busquem o bem estar em benefício da coletividade. Não podemos nos conformar, há muito em risco.
✦ REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ✦
Inseridos nesse universo neoliberal, parece que saídas efetivas são cada vez mais difíceis de serem encontradas. Nessa dependência criada entre Estado e grandes corporações, o poder público é afastado dos cidadãos e subverte-se a lógica de subjetivação da vida, colocando-os na posição de recurso ao capital, desamparados pelas medidas governamentais que só voltam os olhares para os interesses privados de uma pequena elite dominante. Esses indivíduos, que também operam sob a lógica do sujeito empreendedor, se distanciam do clássico direito à cidade, que, segundo Harvey (2014), deve ser entendido como um direito coletivo concentrado, não um direito individual exclusivo, já que o Estado opera como uma empresa privada prestando serviços a esse cidadão.
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O QUE ESTA EM BAIXO
O O O ALTO O O O E COMO O QUE ESTA NO
O O O
Série fotográfica, Grupo Pitá, 2020 O olhar oblíquo da máquina revela fronteiras na Zona Sul de São Carlos-SP, a mesma máquina em visada ortogonal revela limites e/ou conexões. A máquina é o drone, que segmenta o território ao sobrevoá-lo. Coube aos olhos humanos encontrar, dentre imagens arbitrárias, pontos que apontam para outras conexões, outros limites e outras fronteiras. O que está no alto é como o que está em baixo?
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O Grupo Pitá é um grupo de Assessoria Técnica em Habitação Popular. O trabalho que realizamos carrega consigo objetivos importantes para a construção de habitares mais justos e saudáveis, na luta pelo cumprimento do direito à moradia, o direito à cidade e o direito à terra urbana e rural. Em sua trajetória, o grupo tem se pautado pelos seguintes objetivos: Fortalecer as comunidades e movimentos sociais e populares na luta pela moradia digna e acesso à terra; Apropriar-se do conhecimento técnicocientífico e de tecnologias para atuação junto às comunidades; Facilitar processos participativos e pedagógicos para a compreensão e planejamento pelas comunidades de seus próprios territórios; Organizar e executar projetos de melhorias habitacionais e urbanísticas em conjunto com os/as moradores/as; Colaborar para a sustentabilidade e dinâmica da construção das cidades e dos assentamentos rurais; Contribuir ativamente na criação de habitats saudáveis e seguros.
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Fotos: Outubro/2020. Autoria: Augusto Oyama.
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Com 13 anos de atuação nos imbricamentos entre arte e tecnologia, o Coletivo Coletores carrega em seu histórico práticas artístico-cultural e artístico-pedagógicas que perpassam a “engenharia reversa” e as “pedagogias urbanas”. Formado por Toni Baptiste e Flávio Camargo, na periferia da Zona Leste de São Paulo, o coletivo propõe-se a dialogar com diferentes territórios e a “coletar” por meio da colaboração com outros (es/as) artistas e coletivos de forma institucionalizada ou não. Flávio Camargo e Toni Baptiste. Imagem cedida pelos entrevistados
Rebeca Ramos e Felipe Leme: No texto Arte, Tecnologia e Direito à Cidade de coautoria entre você Toni e Aluízio Marino, vocês apresentam as práticas dos coletivos culturais periféricos distanciadas das práticas de coletivos como Fluxus e Situacionistas. Poderiam nos explicar melhor esse ponto de vista e como entendem a atuação do Coletivo Coletores dentro das disputas de espaços e discursos no meio da arte?
Toni Baptiste: Uma coisa que é importante pontuar; não é que eu digo propriamente que existe um distanciamento de um coletivo periférico e a produção do Fluxus, Situacionistas ou de outros coletivos que venham dessa matriz pós-moderna. O que tentamos pontuar é que a origem da produção coletiva que vêm das periferias, não tem esse DNA de paternidade/maternidade que muitas vezes é atribuído a produção coletiva periférica do Brasil. Então, muitos teóricos e academicistas, que replicam produções do conhecimento que estão ligadas a branquitude e as epistemologias do norte tentam enquadrar ou definir o que é coletivo ou coletividade a partir de suas perspectivas, por exemplo; esse formato do coletivo, do nome, da atuação, cada um no seu quadrado ou com organização
muito bem definidas e conceitualizadas, com começo, meio e fim como são as atuações ou leituras de alguns movimentos artísticos. Essa forma de olhar para a arte produzida na periferia, pra mim, é totalmente descabida porque a nossa forma de organização coletiva pressupõe muitas eras, outros tempos. Então uma coisa que sempre costumo falar e que retomo em minha dissertação de mestrado - que exatamente se chama “insurgência cultural” - eu tento conceitualizar isso - trago a partir das vivências das ruas um conceito com início, meio e fim compartilhado - para entendermos um pouco mais da origem dessa produção insurgente. Observamos que a origem dessa produção periférica, está muito mais atrelada à origem dos quilombos, ou dos terreiros e quintais de samba, posses e festas black’s, crews de Hip-hop, até chegarmos propriamente nos coletivos culturais. Não que não existam no Brasil, coletivos culturais que façam suas práticas artísticas inspirados ou alinhados na linha do tempo do Fluxus ou dos Situacionistas, só que a produção periférica, a produção do cara que vem da quebrada, naturalmente tem a pegada do coletivo ou coletividade porque trabalhar e morar na periferia é muito sobre isso. Mesmo hoje em dia, em que os valores são outros, as visões são outras, as nossas noções de coletividade ainda
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são fortes, até mesmo em momentos negativos - como hoje, em que vivenciamos numa pandemia, você ainda vê os fluxos do funk acontecendo – pois, essa noção de coletividade em diferentes contextos é sempre muito presente. Mas, o que acontece é que os academicistas têm uma certa preguiça ou metodologias muito distantes para tentar entender de onde realmente vem essas ações e como esses movimentos funcionam. E têm uma outra questão muito séria: muitos coletivos e artistas que vêm da periferia, para conseguir justificar a sua atuação - por muitas vezes não terem um embasamento da sua própria história, pois vivemos apagamentos constantes de nossas histórias - assumem uma história ou um discurso que nem sempre é a verdade, mas que é mais bonito contar porque ao assumir o que é estabelecido você parece ser mais inteligente, é um discurso que de repente nem é a sua realidade. Mas precisa adequar para fazer parte de algo, mesmo que na prática sua ação seja totalmente diferente. Quando você faz a pergunta trazendo para o Coletivo Coletores - e acredito que o Flávio pode complementar - o que a gente buscou desde o início, por nos conhecermos dentro de um curso de licenciatura, sempre tivemos aliada à nossa produção artística, uma produção pedagógica. Eu fui professor concursado no Estado, lecionei aproximadamente cinco anos e fui professor universitário por três anos. O Flávio foi professor na rede pública por quase dez anos. Então começamos a perceber como tudo o que aprendíamos ou ensinávamos vinha de uma matriz que não era a realidade. Então, começamos também a pensar em uma forma de aprender, transmitir e trocar conhecimento que chamamos de “Pedagogias urbanas”: são formas de ação que vão acontecer a partir das dinâmicas coletivas e que vão acontecer na cidade, sobretudo, nas áreas mais afastadas, como as periferias. No caso do Coletivo Coletores, começamos a fazer e entender o nosso cenário e entender que a nossa produção é
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uma produção de “entre-lugares”. Porque a maior parte das pessoas que produzem na quebrada, produzem dentro de nichos e vivências muito específicas; a cultura do Hip-hop, do Forró, da Ancestralidade, por exemplo, são manifestações com organizações muito fechadas que dificilmente fazem conexões para além de si mesmas, embora na contemporaneidade conseguimos visualizar alguns imbricamentos, ainda sim, dificilmente o cara do terreiro vai deixar um artista aleatório entrar lá e fazer um graffiti. O Ogã do terreiro dificilmente vai tocar o ponto do terreiro na roda de samba, na baladinha que ele toca com o grupo de pagode na Vila Madalena. Então a gente não vê tanto esses imbricamentos. O que acontece com a gente, boa parte das pessoas que são dos nossos nichos de periferia que têm um diálogo com essa produção tradicional, digamos assim, tem olhares muito mais reservados aos seus campos; então o pessoal do grafite vai naturalmente dialogar mais com o próprio Rolê do Graffiti, às vezes com o pixo e muitas vezes não sobra o espaço para uma projeção chegar ou uma intervenção com a tridimensionalidade, uma instalação em madeira, etc. As pessoas não encaram isso como uma extensão do seu processo, do mesmo modo os grandes labs, a galera hacker, a galera que trabalha a um longo tempo com a cultura digital, que trabalha nas frentes ligadas a tecnologia também não encaravam o processo que a gente desenvolveu como um processo tecnológico, ou um processo complexo de cultura digital. Por consequência, durante muito tempo o Coletores ficou num “limbo” - o que eu também acabo teorizando dentro da minha da minha dissertação de Mestrado - que é a ideia de “entre-lugares”. Ter uma ação entre lugares, nos permitiu transitar por esses lugares mesmo que em suas bordas ao ponto de um momento, estarmos fazendo uma projeção em um show de rap dentro da favela ou num outro momento expondo no “FILE”, lá na Avenida Paulista na FIESP, de um momento produzirmos um conteúdo do show da Linn da Quebrada e de repente
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num outro momento a gente dar uma entrevista para o Canal Arte 1. Então a gente trabalha muito nessa ideia de hackear e subverter e que diretamente os outros movimentos artísticos coletivos que vem da Periferia acabam fazendo isso à sua maneira também, só que muitas vezes não são teorizados a partir da perspectiva da periferia. Muitas vezes se teorizam a partir de uma perspectiva que é a perspectiva do centro, ou perspectivas das hegemonias.
Flávio Camargo: Nessa relação desse pensamento com coletores existe uma questão que é de romper com os territórios - que o Toni colocou bem aí -, mas justamente a vivência desse território que tem um processo tão cindido de relações. A visão que as pessoas, que a gente tem com relação ao centro e a periferia muitas vezes é muito pré-estabelecida, ou seja, mesmo sem conhecer a periferia as pessoas têm uma visão. E nós, enquanto pessoas que somos oriundos da periferia, não temos uma visão sem conhecimento dos centros porque nós somos obrigados a ir para o centro. As relações de trabalho, as oportunidades estão nas regiões centrais. Então muitas vezes a gente conhece muito mais a região central do que a nossa própria região. Há lugares do seu bairro que você talvez não tenha ido por conta de não ter tido tanto tempo. Então isso também é uma coisa sempre trabalhamos bastante; de pensar do quanto que é essa produção artística ela tem espaços pré-definidos nesses lugares que já são muito privilegiados como o centro, enquanto nas periferias onde a maioria da população se encontra, ou no caso da zona leste, ou no caso da zona sul onde você tem um território muito grande, muito interessante para se trabalhar, proporcionalmente pouco acontece. E aí vêm a ideia justamente do coletivo - que é essa visão também que a gente traz - que é uma forma de você se ajudar, de você cooperar para a produção de algo. A gente vê sempre… a gente sempre se choca com a questão de; no centro a gente tem contato muito com artista enquanto indivíduo e nas periferias a gente tem muito contato com os artistas enquanto coletivos, enquanto grupos. Isso é muito mais visível, né, porque a gente tem necessidade de estar dentro dessa relação de ajuda e da gente se ajudar. Então isso também faz parte dessa relação de construção da nossa própria identidade nesse processo. Que essas necessidades todas ou essa falta de espaço, mas também entender como
“Vozes contra o racismo”, 2020. Divulgação Coletivo Coletores.
dentro disso, dentro desse redemoinho de coisas eu acho que a nossa produção vai se estabelecendo.
RR/FL: Ricardo Basbaum vai chamar de artistas-etc aqueles que têm uma prática artística expandida, por exemplo, artista-escritor, artista-professor, artistaprodutor, etc. Observando a prática do Coletivo Coletores, vemos uma produção que se expande, para oficinas, para jogos e publicações. Gostaríamos de ouvir sobre esses outros lados da produção e como se expandem para formas de produção de conhecimento e formação em artetecnologia nas periferias onde atuam.
que culturas tão distantes conseguiram se manter. Por exemplo, se você ver o samba na periferia ele se mantém há muito tempo e não depende de uma série de outros fatores que muitas vezes não seriam viáveis nas regiões mais centrais e mais abastadas. Então ele se mantém, e se mantém numa esquina, se mantém num bar, se mantém com equipamentos emprestados, se mantém no “boca-aboca”. Ele não depende de uma rede social para existir. Ele se mantém porque existe quanto potência criativa e é justamente isso que intriga muito a gente. Quer dizer, se você pega pra fazer uma viagem, que acho muito interessante, que é percorrer as periferias de ônibus porque você olha pela janela e se ficar muito atento, você vai passar por jovens fazendo graffiti, por alguém fazendo uma pichação na luz do dia ou à noite. Você vai passar por bares cheios. Mas isso faz parte da cultura e quando você vai chegando mais próximo das regiões centrais a gente vê sempre uma relação de isolamento e de solidão. Grandes avenidas muito vazias, lugares em que a gente fala “Pô como seria a permanência dessas pessoas aqui nesse lugar, né” que “é o lugar mais abastado”, então assim
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TB: É bem legal esse olhar para entender um pouco essa coisa da extensão do trabalho; o Flávio ele traz um pouco já dessa parte pré-coletores, né. O Flávio é um mestre na gravura, já foi professor de gravura em ateliêr, sabe montar uma prensa, é um cara muito bom nos trabalhos manuais, um encadernador monstro, tanto é que nosso primeiro livro a gente fez encadernação manual tivemos uma tiragem de 60 cópias distribuídas, na época, para até então 60 pontos de leitura que a gente tinha em São Paulo em 2009 e a gente distribuiu um livro para cada um dos pontos. Ele tem essa gana, esse trabalho muito forte com a manualidade - questões com pintura e desenho - ele já vinha nessa base, além do trabalho que ele falou de cenografia. Então ele já tinha um contato com a tridimensionalidade. Eu vim de uma outra matriz. Sempre fui um cara muito focado no desenho, sempre gostei muito de desenhar. O grafite também foi uma parada que passou muito por mim, a parte da tag, de estar na cidade, o skate foi uma parada que me ajudou muito a interpretar a cidade a partir de uma outra perspectiva. Sempre fui muito interessado em games. Na minha infância era fliperama, quando o videogame também era uma coisa mais, digamos assim, do social, da batalha ali ao vivo, e tal. Do
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encontro, dos rituais, né - o ritual que você fazia pra jogar um fliperama, por exemplo. Também vim de uma bagagem da música, então tipo hoje eu sou produtor musical, toco baixo e teclado, produzo Beats de Hiphop, música eletrônica, canto também, sou compositor... Então quando a gente juntou o Coletores, é uma situação muito engraçada porque estávamos fazendo uma disciplina do primeiro semestre da faculdade e era uma disciplina chamada Antiguidades que falava um pouco sobre os povos originários da terra, e tal. E o trabalho final dessa disciplina era a produção de um de um folder, saca? Produzir um folder, meio um banner e tal relacionando alguma coisa que você viu na aula - dessa questão da antiguidade relacionando com uma questão da arte contemporânea. E eu tipo, sou um cara muito megalomaníaco e o Flávio também, e a gente não sabia disso até então. Aí eu falei: “eu vou fazer um livro nessa p****, tá ligado”. E aí, tinha feito todo o design do livro. O Flávio manjava muito de encadernar… e precisava de algumas coisas de design de tratamento de fotografia e tal e a gente fez uma troca de trabalhos e no final os nossos dois trabalhos foram eleitos os melhores. A professora se surpreendeu muito com a produção, levou para o coordenador do curso. O coordenador do curso já pirou, mandou para o reitor e no semestre seguinte a gente já estavamos fazendo uma exposição patrocinada pela Universidade (coisa que sei lá hoje nem na universidade pública a gente está conseguindo fazer). E aí a gente resolveu trabalhar junto aí, sacô? e aí fomos entendendo essas expertises. Eu tenho 36 anos e o Flávio está com 43, nós temos idades um pouco diferentes, ele vem de uma geração anterior a minha,
mas a gente tem muitas coisas em comum e muitas coisas diferentes. E quando juntamos isso para montar o coletivo casou muito bem. E aí quando a gente vai pro Coletores, o que que acontece... as práticas expandidas, assim... a gente tem vontade de fazer muita coisa. Tem muita coisa que a gente ainda não fez, que temos interesse e que temos base, mas ainda não tem um recurso, saca? Então a gente vem trabalhando muito numa dinâmica que é muito comum a muitos povos originários da terra que eram nômades. A ideia de você estar ali naquele espaço produzindo, coletando e depois você vai para um outro espaço, coleta e aprende mais, e você segue nesse ciclo eterno até o fim da vida. O Coletivo Coletores nasce disso, tanto é que nosso coletivo ia chamar nômades, por conta disso, da gente não ter Ateliê, da gente trabalhar a partir dos refugos da cidade, só que era um nome muito batido para nós e na época a gente admirava muito trabalho dos Los Carpinteros, e aí eu aí a gente falou “pô vamos botar de Los coletores, tá ligado, no bagulho”, o Flávio completou “não, tira o los”. Vamos deixar só Coletores. O que que se acha?”. Então ficou Coletivo Coletores. A nossa produção nasce a partir da “coleta”, e essa é uma coleta que não é individual, ela é coletiva, ela é coletiva enquanto territórios. Essa coleta nunca tem fim, por exemplo, aqui hoje estamos produzindo um conhecimento a partir da coleta de memórias, então isso já faz parte da nossa coleta. Quando a gente divulga esse material, essa entrevista, esse texto, essa reflexão… É uma reflexão que ela vai vir do coletivo e a gente tem muito essa característica de usar esse DNA, essa produção que realizamos em diferentes contextos. Recentemente a gente fez um filme para o Centro Cultural São Paulo – um antifashion filme. O Coletores não tem muito essa pegada da direção cinematográfica. Nunca tínhamos feito apenas eu em meus trabalhos solos. E de repente a gente recebe um convite da diretora do Centro
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Cultural São Paulo, a Érika Palomino; “ah quero uma reunião com vocês” e ela falou “a gente vai fazer um trabalho para ressignificar o acervo de roupas do teatro municipal, e a gente tem um acervo incrível com mais de milhares se peças só que esse acervo que é público ele fica nas mãos de uma instituição privada e é muito burocrático para uma pessoa querer acessar esse acervo e quem, tradicionalmente, sempre vestiu esse acervo foram pessoas ligadas à branquitude, às hegemonias culturais. E a gente quer fazer um projeto ‘Do Palco às Ruas’ e trazer essas roupas para as pessoas reais que estão na rua e vivem a cidade. A gente vai trazer estilistas/criadores negros, indígenas e LGBTQIA+ e queríamos criar um documento (no caso foi um catálogo) com essas peças ressignificadas e queríamos um registro visual que desse conta de apresentar uma narrativa que contemplasse este olhar e tudo o que o projeto representa para a cultura e a cidade de São Paulo.” Eu e o Flávio, desenvolvemos um trabalho chamado “Re-Sankofa”1: é um projeto totalmente expansivo porque a gente traz a nossa visão artística, a gente traz a linguagem do cinema, a linguagem da moda e ainda no meio a gente foi trazendo outras coisas. Trouxe na direção de arte o Diogo Terra que trabalha com laser, e que é um parceiro nosso que criou toda uma atmosfera Cyberpunk em volta das modelos que estávamos filmando. Tinha uma modelo que conheci na hora, ela trabalha com a cultura Ballroom, ela dança vogue. E aí, convidamos ela para destaque no vídeo, fazendo uma performance com vogue. Trabalhamos dessa maneira, muito nesse caminho de colaboração. Esse lance do expansivo quando você pergunta da nossa produção, ela é muito nesse lugar. Justamente por não termos um ateliê, quando somos convidados a desenvolver qualquer coisa, para qualquer território a gente se vê muito no lugar de entender como esses lugares funcionam, quem são as pessoas, quais 1
são os contextos, e a partir daí a gente se desafia a trazer coisas que de repente a gente já tem, mas precisamos ressignificar ou justamente se lançar dentro de um processo que é totalmente novo. No caso do CCSP, foi o primeiro projeto que O Coletores dirigiu enquanto filme - então foi outra experiência. Mas às vezes acontecem coisas com linguagens que já estamos acostumados a trabalhar, como, por exemplo, a video projeção mapeada que a gente faz o conteúdo da projeção, um exemplo é o festival que a gente fez semana retrasada, o Festival Bixa Nagô… amanhã a gente vai fazer o aniversário do Centro Cultural da Juventude que é um espaço muito emblemático, aparelho público municipal muito importante ligado à cultura periférica e a gente vai fazer um trampo com led truck (que são os caminhões de led) e estamos montando um conteúdo com a história de 15 anos desse espaço cultural pra devolver isso para a comunidade. Como estamos com um problema de toque de recolher à noite, essa ação vai ser feita de dia. Muitas vezes quando a gente vai falar sobre vídeo-projeção na quebrada - e a gente já deu mais ou menos umas 10 oficinas nos últimos seis anos - e dessa galera somente uns três artistas conseguiram manter e produzir na linguagem. Por quê? Video mapping é muito caro. Projetor é caro. Computador para fazer a projeção é caro. A licença do software é cara, né. E não é só isso, você tem que produzir um conteúdo e depois você precisa criar uma demanda para você poder ter um retorno financeiro. Por experiência própria, a gente começou a fazer projeção em 2010 e com mais força e estrutura em 2014, ou seja demorou quatro anos pra gente comprar nossa primeira estrutura de projeção, que foi quando ganhamos o “VAI 2” - que é uma lei de incentivo Municipal - e a gente começou de fato a ser chamado para fazer ações com projeção e video mapping só em 2017. Então de quando a gente montou a estrutura até
Sankofa é um ideograma adinkra dos povos Akan que significa: “nunca é tarde para voltar e apanhar o
que ficou para trás”. (OLIVEIRA, 2016 p.15).
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a gente começar a ser convidado para fazer video mapping foi três anos depois, né. Até pouco tempo éramos o único coletivo periférico do Brasil que faz video mapping voltado às narrativas e ao território periférico. Hoje tem até alguns coletivos que não são de projeção e que tão fazendo projeção na quebrada como cineclubes, ou coletivos de fotografia, mas ainda acontece de forma muito pontual. Mas a gente é o único coletivo que além de fazer na quebrada, ensina na quebrada a partir de linguagens e temáticas das próprias Comunidades. Então quando a gente vai ensinar isso para as pessoas da quebrada muitas vezes entra muito mais em mostrar para eles qual é o caminho, para muitas vezes, eles contratarem uma empresa, contratarem um artista, contratarem uma estrutura do que propriamente para eles produzirem. Isso é uma constatação, uma reflexão que a gente tem feito. E hoje a gente pensa “Pô, talvez se a gente quiser realmente fazer um método de chegar onde precisa, a gente tem que pegar um edital do qual a gente consiga, sei lá, distribuir kit projeção. Pegar coletivos que já existiam e dar formação e presentear com projetor um legal e um computador bacana para o coletivo conseguir desenvolver sozinho”. Porque quem mora no centro ou quem tá muito no centro vê a Paulista, Augusta e o Ibirapuera sempre com projeções, painéis de LED gigantescos. Estão acostumados com o digital, e na quebrada isso já não é algo tão comum e a gente tenta trazer isso.
FC: Essa questão da pedagogia acho interessante, é uma coisa que nos movimentou desde cedo. Obviamente, como o Toni falou, para quem estuda arte geralmente esse é o primeiro ponto, porque as melhores oportunidades ou as mais acessíveis são justamente no ensino, o que é muito contraditório, lembrando que, pelo menos eu, tive professores de arte que não me inspiraram muito a estudar arte, porque vinham de um ensino ou de
Cenas do vídeo “Re-Sanfoka”, 2021. Divulgação Coletivo Coletores.
uma aprendizagem muito equivocada. Pelo menos os professores que eu tive contato eram muitas vezes desestimulantes. Isso também era uma coisa que nos pegava muito, assim “Pô, porque eu tive professores tão desestimulantes de uma coisa que a gente gostava desde criança que eram todas as manualidades, desenhar...a pintura? Tudo que a gente sabe em artes visuais, mas também de música, né nessa questão mais multissensorial.” A partir de um tempo com estudo fomos entendendo mais desse processo, começamos a perceber que é um desestímulo muito bem projetado, ou seja, se projeta para se desestimular as potencialidades artísticas e criativas para que as pessoas realmente, de alguma forma se objetivem, ou seja, elas precisam trabalhar para se sustentar enquanto suas subjetividades são apagadas. E a criatividade entra num campo, ou entrava, no campo que é justamente o do lazer e entretenimento. Ela não pode ser aplicada a sua vida, não pode ser aplicada ao seu cotidiano. Você não pode ser criativo e inventivo no seu cotidiano. E nesse sentido, isso foi sempre um problema nosso. A gente lembra que fomos juntos à uma exposição, lá no começo do Coletores, que tinha muito mais faixas de sinalização de “não pode”: “não pode tocar”, “não pode se aproximar”, “não pode fazer isso ou aquilo”. Então a gente falava “Pô, como acessar uma coisa que tá tão limitada?”, compreendendo, obviamente, que tem objetos que são historicamente muito importantes, que não podem ser tocados e se perder. Mas mesmo com essa relação histórica, ainda sim tudo muito distante. E a gente pensa muito na ideia do Coletivo Coletores como trazer acessibilidade. Acessibilidade de verdade para esse processo, não é só ter uma rampa de acesso, mas é como eu construo rampas/ pontes também, se eu não tenho uma rampa como eu consigo acessar? Um termo que nos pegou muito cedo, lá no início foi o de “engenharia
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Acima: “RESISTA! 1.0”, 2014. Abaixo: “Pixo Digital”, 2012. Divulgação Coletivo Coletores.
reversa”, que é uma coisa que a gente viu nas nossas avós, tios e pais fazerem; um radinho de pilha quebrava, ele abria e tentava intuitivamente entender como funcionava para poder arrumar.. Ou a gente tinha muito contato com aqueles caras que eram os hackers de Periferia, aquele pessoal que abria um rádio, uma TV e passava a consertar TV para todo mundo do bairro, e às vezes ensinava você como consertar sua TV. Há uma criatividade por trás desse processo de entender a tecnologia porque ela também é criativa, ela também uma peça de design, ela também foi pensada dentro dessa configuração. Então a ideia da “engenharia reversa” a gente também passou a aplicar pouco a pouco nas nossas relações de pedagogia. Não é só fazer uma oficina e explicar para as pessoas como o software funciona ou como que a projeção funciona, a distância... isso tudo ele vai aprender muito na prática, mas é pensar como ele transforma isso no seu meio de expressão. Como, por exemplo, esse equipamento que a princípio ele é muito limpo de relações que é o computador ou que é sua câmera fotográfica. Como ele passa a ser um instrumento para você acessar sua criatividade? Então você precisa fazer engenharia reversa com tudo.
Hoje a gente tá num processo que é de fazer uma engenharia reversa das relações de trabalho, porque a gente não entende as relações de trabalho, a gente não entende as relações de contratação, de prestação de serviço, nós não viemos desse lugar. Nós viemos de um lugar do improviso. Então como conseguimos acessar esses lugares e essas ideias? Como conseguimos entender como elas funcionam? Como as pessoas podem começar a cobrar por aquilo que elas fazem? Como que eu consigo criar um meio de subsistência da minha atividade? Porque isso é o mais importante. A ideia de se ter, por exemplo, uma atividade de trabalho: então você trabalhar e ter o seu momento de criação artística, só funciona até certo ponto. E para a gente que é de periferia, ela quase não funciona porque as ofertas de trabalho quase sempre são muito exaustivas e consomem praticamente quase todo o tempo da sua potencialidade. Então que momento você tira para colocar como um tempo para você mesmo, para fazer aquilo que você quer? Está na raiz desse processo pedagógico, também o processo emancipatório de como se emancipar de um jogo que foi estabelecido para a gente, antes da gente chegar aqui, mas que a gente tem que ficar. É como se existisse um motor perpétuo, onde você é parte daquela engrenagem, mas não necessariamente você escolheu estar ali, mas você faz parte. Tem uma frase que a gente projeta muito que é “Roube sua Vida” que é justamente a ideia de roubar para você aquilo que é seu. Como que eu uso meu tempo dentro desse processo? Nessa questão pedagógica a gente pensa muito nisso; não vamos só fazer vamos mostrar também como faz. Vamos deixar isso um campo aberto. Vamos deixar essa máquina aberta e se a pessoa se aproximar para entender como funciona, a gente vai falar como funciona. Não há mágica, aí, é um trabalho! Mas esse trabalho precisa ser aberto porque estamos quebrando aquela barreira inicial onde a gente já tentava acessar e não conseguia. Então agora a gente precisa sempre estar
aberto para que as pessoas acessem e consigam também fazer e expor suas criatividades e suas potencialidades.
RR/FL: Ainda nessa perspectiva, quais relações vocês estabelecem com outros coletivos artísticos? Vocês criam espaços de trocas e discussão? Se enxergam enquanto um “movimento comum” ou mais como colaboração/redes de coletivos, etc. Em treze anos de existência do Coletores, foi possível ver também mudanças e outros percursos de coletivos ou artistas que trabalham na interface arte/cidade/ tecnologia?
FC: É interessante pensar nessa relação. No início, quando a gente começou a trabalhar, tínhamos uma certa resistência em nomear como “coletivo”. Porque vínhamos de experiências que não condiziam muito com o que a gente pensava em artes visuais. Teve um boom dos coletivos de arte por volta de 2003, 2004, e isso se manteve, com alguns bastante conhecidos. Em algum momento ali a gente entendia que “coletivo” era só um rótulo, para se determinar uma produção, mas que não necessariamente a gente se enxergava como coletivo, mas sim como uma convergência de pensamentos. Depois entendemos como Coletivo Coletores, a partir do pensamento de expansão do que seria isso. Todos os projetos e ideias são sempre com a colaboração de outros coletivos ou outros artistas e quando isso não acontece de forma natural a gente acaba inventando uma história para colocar pessoas dentro, sempre em colaboração. Nos últimos anos, a vídeoprojeção começou a ser muito requerida para potencializar as vozes que estão produzindo na cidade. Tem o “Coletivo AMEM” que é muito interessante na cidade de São Paulo, e que começamos a fazer a projeção das festas e reuniões que eles criavam. Nós percebemos dentro de uma
rede, passando por outros lugares, com um diálogo real. E essa relação foi sendo construída à medida que fomos entendendo que sem essa coletividade é inviável a produção. A gente vê o tanto de elementos envolvidos numa festa, a quantidade de pessoas envolvidas, a quantidade de conceitos trabalhados, de discussões, de tudo que acontece ali dentro, isso exemplifica esse processo de produção. A gente viu uma mudança de 2008 até o ano passado: os processos de rua invadindo os processos institucionais, e muita gente que estava nesses espaços institucionais querendo vir pra rua, entendendo que a rua é mais interessante. Mas também se depararam com uma questão que parecia inexistente: que os processos são bem mais coletivos que nos espaços fechados. Um pixador, por exemplo, nunca tá sozinho, ele faz parte de uma crew ou uma banca. Faz parte dessa gênese de se criar na rua, de se produzir na rua e ajudar coletivamente. Não é estabelecido “Olha, somos parte de um grupo que tem esse e aquele coletivo”, a gente se entende, se conhece, se ajuda e vai se inserindo dentro desse processo.
TB: Acho que uma parada bem interessante é a gente pensar, por exemplo, essa ação em rede, que a gente encara como rizoma, um imbricamento de pessoas, de ideias e movimentos, de conexões com pontos de convergência. E são esses pontos que marcaram e marcam a história do Coletores.
Hoje a gente trabalha com uma rede muito grande de coletivos, de contatos. Com uma perspectiva de como que a gente consegue expandir a nossa produção a partir não de uma demanda só nossa, mas de uma demanda que vem da rua, que parte do território. E isso é interessante porque a gente começou com coletivos e artistas da região de Itaquera, uma galera que a gente produzia bastante. Depois o Flávio trouxe o pessoal de São Miguel, do grafite. Comecei a trazer um pessoal de São Mateus, que é onde eu moro, “Grupo OPNI”, “São Mateus em Movimento”. Depois a gente começou a levar isso pra dentro da escola, tanto na que o Flávio lecionava quanto na que eu lecionava. Levamos isso pra outros universos. E a gente começou a entender que a nossa produção poderia ser um complemento de uma ação de um coletivo ou potencializar a ação de um coletivo que já exista, ou ainda ter uma produção que faça um diálogo direto com o que um coletivo tá fazendo, mas sem necessariamente ser uma encomenda, ou uma produção dirigida. Em 2010, a gente criou uma publicação chamada “Ateliê Livre”, que era o nome do nosso projeto. Era a nossa produção teórica refletindo a produção prática, que se chama “pesquisa-ação”: uma metodologia de trabalho, de pesquisa e de produção de conhecimento compartilhado. O nosso primeiro grande projeto foi em 2009 que a gente ganhou o edital do “Programa VAI” e a gente fez um ateliê livre, que foi uma produção de ateliê dentro
de uma casa de cultura na Zona Leste, no Parque Raul Seixas. Ficamos seis meses produzindo lá, com artistas de quebrada, dando orientação artística, abraçando produções locais, dando estrutura que a gente trazia pra fazer essa galera produzir. Depois a gente pegou toda essa produção da quebrada e levou pro Centro, no ateliê do artista Rubens Espírito Santo. Então a gente fez uma interface ou diálogo de ateliês: o da quebrada com o do Centro. Em 2010, a gente fez o mesmo projeto só que fazendo “micro residências artísticas”. No extremo Sul, na Monte Azul, na Galeria Olido, na Oficina Cultural Oswald de Andrade e no espaço da UNE. Assim, teve uma produção em que a gente começou a entender como funcionava cada território e os coletivos vinham colando. E são coletivos muito diferentes. O “Love CT”, que é de skate e que discute cidadania e inclusão, traz a arte e o esporte. E eles têm uma Kombi, que usamos juntos para fazer ações nos bairros, num ateliê móvel digital. Tem a “AMEM”, que é um coletivo LGBTQIA+ que discute entre outras coisas saúde e também prevenção e cuidados sobre o HIV, e fizemos conteúdos para as festas. Artistas do grafite também, como o “Grupo OPNI”, que discute negritude. Outros mais “históricos”, como o pessoal do “Quilombaque”, em Perus, que discute negritude, território e a questão da mulher. O pessoal de ocupações artísticas, como a “Okupação Cultural Coragem”, a “Matheus Santos”, ligadas à moradia (a ocupação “São João”) e etc. A gente fez um trabalho no SESC com o coletivo “Gleba do Pêssego”, que é LGBTQIA +, de cinema e audiovisual. O “Black Pipe”, de mídia com o ponto de vista da periferia. O pessoal do “Centro de Mídia M’Boi Mirim”. E até coletivos de arquitetura, o “Goma Oficina”. No carnaval, a gente fez o “carnaval digital” do “Bloco Afro de mulheres Ilú Obá De Min”, um dos blocos mais importantes do mundo. Ano passado, a gente fez uma das maiores ações anti-racistas na América Latina, um projeto chamado “Vozes Contra o Racismo”. Reunimos mais de trinta
Nesta página: “Pujança - Borbagato”, 2020. Página anterior: Denilson Baniwa x Coletivo Coletores, “Brasil terra indígena - Vozes contra o racismo”, 2020. Divulgação Coletivo Coletores.
artistas negros, indígenas e LGBTQIA+ e fizemos a projeção da obra desses artistas em toda a cidade de São Paulo, principalmente nas periferias e também em pontos emblemáticos. Por exemplo, realizamos um trabalho com o Denilson Baniwa, projetando no “Monumento às Bandeiras”, com um video mapping tridimensional em todo o entorno da obra. No final do ano, a gente fez a “Jornada do Patrimônio 2020” em memória ao Tebas (Joaquim Pinto de Oliveira), considerado até o momento o primeiro arquiteto negro do Brasil. Para este projeto, fizemos dois vídeos mappings diferentes, pensando na produção e no legado dele. Fizemos também uma intervenção ressignificando a estátua do Borba Gato, junto com os artistas Denilson Baniwa e Kelly Carvalho.
RR/FL: Em relação às mais recentes ações do Coletivo, como vocês descrevem ou qualificam as intervenções neste período crítico de Pandemia? Em outras palavras, as ações ganharam um caráter “mais específico” pelo contexto? E como vocês avaliam o papel da arte nessa crise?
TB: A partir do momento que a gente assumiu o digital, assumimos não só na produção, mas também na nossa maneira de ensinar, de aprender, de se conectar e interagir. Sempre acreditamos que o digital não é só uma questão “estética”, ou só pragmática para executar uma produção, mas sim como uma maneira de se fazer presente e hackear essa estrutura hegemônica, também de acessibilidade de nossas produções.
Em 2019, as pessoas começaram a entender melhor o nosso trabalho. Mas antes disso já tínhamos participado da Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo, da FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty), da Bienal de Arte Contemporânea de Dakar, do FILE, da SP Urban e etc. Então 2019 foi um ano de muita produção, em diferentes contextos, com diversos artistas e expandimos de forma bem ampla nossa produção. Em janeiro de 2020 já tinha agenda fechada até pra julho, e com a pandemia todos esses trabalhos caíram. Na “hora H”, ninguém se importa se vocês são da periferia e boa parte dos incentivos e editais emergenciais contemplou os artistas maiores … como os do SESC, do Itaú Cultural. Eu e o Flávio então fizemos uma série de ações sociais na quebrada com projeção, para alertar a população sobre o Covid-19. Porque tinha muita coisa acontecendo no Centro, mas na quebrada a informação não chegava. E foi nessas que a gente começou a ter uma aproximação com a Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo (que até então não acessava a nossa produção), para fortalecer as nossas redes na periferia, como na Praça Brasil, na Cidade Tiradentes, no Ermelino Matarazzo (Ocupação Cultural Mateus Santos) e etc. Com o assassinato do Geoge Floyd nos Estados Unidos, surgiu a necessidade de uma produção que refletisse também sobre isso, mas feita de forma segura para manter o isolamento social. Daí nos convidaram para o “Vozes Contra o Racismo”, que repercutiu em vários sites e revistas. Já existia o “Coletivo Projetemos”, que amplificou as ações, mas que ainda sim são restritas aos Centro
urbanos, pra galera que mora nos seus apartamentos, com as empenas cegas. Mas na quebrada não existia isso. Então a gente tem um trabalho de pegar os editais do Centro e trazer as ações pra quebrada, como na homenagem ao Tebas, no 20 de novembro, no aniversário de São Paulo e etc. Também com a Lei Aldir Blanc, vários coletivos do Centro chegaram na gente para atuar na quebrada através de projeções. As pessoas perceberam que o digital é um caminho sem volta, e pro Coletores é uma ferramenta de resistência, de insurgência.
FC: Complementando um pouquinho, com o “Vozes Contra o Racismo”, a gente desenvolveu uma nova “gramática”. Porque até então a configuração de eventos promovidos pela prefeitura ficava à cargo da Secretaria do Turismo pensar as logísticas e estruturas. E nesse momento, desenvolvemos um processo interessante de pensar as estruturas, de como não gerar aglomeração, redesenhar a organização e circulação das pessoas durante a intervenção… O som, por exemplo, acaba induzindo as pessoas a ficarem no lugar, então não fizemos uso. Na homenagem ao Tebas, trabalhamos em dois locais, a Igreja do Carmo, que tem a mão dele, e na Igreja de São Gonçalo, que é onde ele foi sepultado. A gente trabalhou muito na história, na memória dele, contada por meio da ideia de ser muito inventivo e sua relação com a história afro-brasileira, e também pensando na arquitetura em si, na passagem da produção de taipa para pedra. E foi num momento muito interessante, dentro da Jornada do Patrimônio em São Paulo e que este ano tiveram de ser ações basicamente digitais. Foi um trabalho bastante coletivo, e que teve toda uma estrutura para que as projeções fossem quase simultâneas, em um único final de semana.
“Pujança - Borbagato”, 2020. Divulgação Coletivo Coletores.
Já na intervenção na estátua do Borba Gato, pensamos na memória bandeirante e a nossa crítica em cima do que existe como resquício desse momento, dessa violência, e da distância entre o monumento com aquela realidade onde ele está inserido. Nessa ideia que se começou a se figurar no “Vozes Contra o Racismo”, a gente trabalha criando uma estrutura para que tanto os coletivos quanto artistas possam usar esse espaço para poder mostrar a sua produção. A gente desenvolve um espaço de projeção que é aberto aos grupos. Por exemplo, na Virada Cultural do ano passado, nós desenvolvemos uma estrutura com sete pontos de projeção espalhados pela cidade, também com obras de outros artistas. A gente leva o nosso modo de fazer, de pensar a projeção, e disponibiliza para que outros artistas possam ocupar esse espaço. Tem artista que produz filme, ou uma obra de galeria, e que nunca expôs na rua. Então a gente tira desses espaços e traz pra rua, pensa a configuração no território.
TB: A gente entende o nosso trabalho como essencial, mesmo nesse período, pra fazer chegar uma questão de autoestima, de identidade, ligado à mulher negra, à comunidade LGBTQIA +, ou algo mais de conscientização, ligado à Covid-19, homenageando os profissionais da saúde… Parafraseando o Frei Betto, “A cabeça tem que pensar de acordo com o lugar onde os pés pisam”. Então a gente tá nesse momento do Brasil com o governo Bolsonaro e toda a nossa produção vai refletir essa situação ... Contra as injustiças, contra as barbáries, a favor dos movimentos sociais, dos movimentos culturais, da memória, contra os apagamentos, contra a censura. Nesse sentido, a gente vem produzindo e tentando fazer a informação chegar onde ela precisa.
É nessa perspectiva que o nosso trabalho vem caminhando. Propor ações na cidade, que modificam a estrutura da cidade. Porque não é só “ligar o projetor”, mas é como se estrutura isso, como trabalha em equipe e etc. Com ações específicas, mas sem perder nossa capacidade de expressão. Isso parece ser muito simples e muito naturalizado quando a gente anda pelas ruas do Centro, mas quando chegamos em lugares muito afastados é outra realidade. As pessoas não têm outros meios. Há uma grande maioria das pessoas que está apartada das relações culturais e artísticas. Como a gente chega nessas pessoas? Como levar uma informação segura, uma diversão a elas? etc. Entrevista realizada dia 26 de março de 2021 via Googlemeet.
FLIP - SESC Paraty, 2018. Divulgação Coletivo Coletores.
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O vídeo de artista apresenta como locação e contexto performativo o terraço do Edifício Esplanada — cujo nome, substantivo feminino, significa: “sítio elevado e aberto de onde se tem boa visão e ético em arte contemporânea: perspectiva; chapada, altiplano, platô” — projetado re arquitetura modernista do durante o período de a pandemia de COVID-19.
A experiência paradoxal entre presença e ausência — de estados mutantes entre realidade concreta e projeção imaginada — articulam-se no experimento poético Esplanada, que como método e meio utiliza a matéria definida na palavra Esplanada: a visão, a sua subtração, a sua fragmentação e recomposição em utopias e distopias possíveis e latentes neste lugar sem-tempo, ou tempos semlugar no horizonte da experiência. O vídeo de artista propõe uma abertura da percepção dos tempos na sucessão e interpolação de dias quasi-iguais, que vivemos juntos ainda que isolados. Presença, ausência e percepção, durante a pandemia e o confinamento, são constantemente atravessadas por “projeções” epidemiológicas, econômicas, conjunturais. Na esfera da individualidade, estamos “projetando” o tempo todo a pulsão de vida e a pulsão de morte, em termos freudianos, sobre o horizonte aberto e o ping, 2020) bloqueio de limites, do não-visto, do inconsciente ou aparentemente ausente.
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O laboratório poético foi motivado por teorias gestálticas, situacionistas e reflexões acerca da percepção da passagem do tempo e da presença na contingência da mobilidade espacial restrita. Debruça-se sobre os deslocamentos psicológicos mediados pelas janelas, telas e demais ecrãs reais, virtuais e imaginados; responsáveis pela construção de territórios metafísicos nos quais a luz nunca
Esplanada é uma produção audiovisual construída a partir de registros do cotidiano, aplicados em performance experimental de videomapping sobre arquitetura modernista icônica da cidade de Porto Alegre, realizada durante o período de isolamento social vivido em razão da emergência da pandemia de Covid-19. Um trabalho efêmero, site-specific, inserido no âmbito da Pesquisa de Mestrado em Poéticas Visuais (PPGAV/UFRGS) intitulada Situações Públicas: Projeto e Projeção, em parceria com a musicista e compositora Aline Araújo.
pelo arquiteto uruguaio Román Fresnedo Siri e erigido em 1952, antes de a cidade de Porto Alegre possuir Plano Diretor, em terreno alto, de esquina, como o nome indica, com vista panorâmica para toda a Cidade e além do Rio Guaíba.
2 Em Passagens (2009, pág. 207), Walter Benjamin trata da iluminação elétrica, em oposição ao sistema alimentado à gás, em razão do advento da Revolução Industrial e da Modernidade nos escritos de Baudelaire.
1 Trilha sonora e desenho de som: Aline Araújo; Assistência de produção e fotografia: Ana Girardello; Texto: Livia Koeche e Aline Araújo;
*Livia Koeche é arquiteta urbanista graduada pela UFRGS em 2017. Desenhista e animadora 2D com experiência em cinema de animação. Mestranda em Poéticas Visuais junto ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais (PPGAV/UFRGS) com a pesquisa Situações Públicas: Projeto e Projeção, na qual investiga e desenvolve instalações site-specific e intervenções situacionistas. Desenvolve e executa projetos audiovisuais, em videomapping, cenografia e arquitetura efêmera desde 2014. Pesquisadora colaboradora do Grupo de Pesquisa Identidade e Território (GPIT/PROPUR-UFRGS) desde 2009. Atualmente reside em Porto Alegre, Brasil.
Walter Benjamin²
Cada época histórica está imersa em uma determinada iluminação diurna ou noturna.
Livia Koeche*¹
iakoeche.cargo.site/Esplanada
o de Santo Ângelo, Programa (PPGAV) Instituto de Artes de do Sul (UFRGS)
[ www.cultura.rs.gov.br www. .br ] e CAPES
Arq. Livia Koeche ine Araújo ia: Ana Girardello
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A fotogravia ao lado é reconhecível com o aplicativo “Artvive”, o aplicativo faz a leitura da imagem e dá acesso a um vídeo complementar ao trabalho, em realidade aumentada. É possível baixar o aplicativo para celular e tablet, acesse o QRCode:
Insta em re
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A realização compreendeu as etapas de construção fotográfica de time-lapses, registrados a partir da vista norte do 14º andar do Edifício Esplanada e observados ao longo dos primeiros meses de isolamento social. Feito entre abril e maio de 2020, enquanto morei com minha amiga Ana Girardello em seu apartamento para fugir da solidão do confinamento. A realidade dos simulacros, nos termos de J. Baudrillard (1991), das imagens que estão em lugar de um real, oculto ou inacessível, é aqui trabalhada no registro desta situação híbrida construída de realidade aumentada. Posteriormente, as imagens vistas da janela foram projetadas sobre as paredes do terraço, de maneira a completar a panorâmica de um mesmo território comum, a paisagem da cidade de Porto
apaga, nunca é escuro e não há a noite. A pandemia, a doença e a iminência da morte sentidas como sombra coletiva são aqui entendidas como uma forma de decapitação, que encontra na figura da subtração dos sentidos, exceto os da cabeça — a visão e a audição — sua metáfora de reconstrução e desconstrução da memória de estar no espaço coletivo, construído e urbano, por ora desabitado durante a maior crise global vivida pela modernidade tardia.
A criação sonora partiu da combinação dos registros de trilha sonora diegética com um compilado de ruídos
A imagem da cidade, neste desdobramento do trabalho em que tornase acessível online através da presente exposição virtual, passa a existir em meio ao regime de linguagem das imagens urbanas. Um trabalho que constrói e tenciona a ideia de paisagem, de percepção, projeção e construção da paisagem, que avança para além do visual na paisagem sonora. Convidei a amiga compositora Aline Araújo, que teve acesso, via nuvem de dados, a todos os registros de captações de projeção de imagens com o som bruto da rua, que preenchia o ambiente, aberto. O processo e o resultado desta empreitada artística aproximam-se de um realismo fantástico ao promover uma abertura do tempo dentro do tempo em sua composição visual conjuntamente com a arte do som.
Alegre e suas ilhas - em tempos distintos e complementares. A especificidade da localização na concepção reverencia, bem como toma partido e inspiração a experiência modernista de um projeto civilizatório que almejava realizar-se por meio da linguagem arquitetônica.
Entendemos que a escolha de um som ambiente sonoriza a história. Explorando espécies de timbres, alternando taxas de frequência rápidas e irregulares, os ruídos estridentes da metrópole, a poluição sonora, o silêncio escondido, a artista estabelece situações. Um diálogo é impossível em meio a um ambiente ruidoso. Somos perturbados pelos sinais sonoros que interferem e pelo ruído ambiental indiscriminado. O mundo está cheio de sons, desejados e indesejados. Motores dominam a sessão, estrépitos invadem, mascarando outros sons. Silêncio.
de múltiplas texturas de trilha sonora extradiegética. Remodeladas, entremeadas, acumuladas, estruturam uma escultura sonora. A fusão da enorme massa de som que compõe o universo contemporâneo se transforma em uma paisagem sonora projetada, fictícia. A metodologia de trabalho de Aline Araújo se estabeleceu a partir de colagens de fragmentos sonoros, os quais sugerem ritmos, sequências, consonâncias e dissonâncias em sincronia ou descompasso. A transformação dos ruídos em padronagem desencadeou o replicar e sobrepor de tons, em que as mínimas inesperadas sonoridades subvertem o universo da música.
“A CIDADE É MODERNA DIZIA O CEGO A SEU FILHO OS OLHOS CHEIOS DE TERRA O BONDE FORA DOS TRILHOS A AVENTURA COMEÇA NO CORAÇÃO DOS NAVIOS PENSAVA O FILHO CALADO PENSAVA O FILHO OUVINDO QUE A CIDADE É MODERNA PENSAVA O FILHO SORRINDO E ERA SURDO E ERA MUDO MAS QUE FALAVA E OUVIA” (Milton Nascimento / Ronaldo Bastos – Trastevere) 8 2
O O O VOCE CONSEGUE FOTOGRAFAR A LUA O O O Trabalho de graduação integrado¹ Bárbara Barbosa Machado* RESUMO O presente trabalho convida para um jogo que testa as regras da cidade ao se instalar no tecido urbano e propor pensar as diversas regulações e limitações impostas nesse território. Questionar maneiras de construção da cidade, da imagem e da forma como o espaço urbano aparece em nosso imaginário é uma tarefa de atenção. Construir uma releitura dessa forma e imagem da cidade possibilita colocar-se como usuário ativo e compreender suas diversas camadas; atingir a profundidade e a espessura², compreender mais do que apenas o que está implícito, conhecendo os processos históricos, sociais e culturais que fizeram de cada espaço urbano o lugar que eles são hoje. Dessa maneira, a intenção ao se propor um jogo é a de questionar tudo, fazer olhar novamente, propor novos símbolos e linguagens, tirar toda certeza e organização, todo lucro. Buscando ativar esses questionamentos lança-se mão de estratégias de estranhamento, de formas indefinidas, instáveis e maleáveis, criando situações ora de clareza, ora de opacidade. Para a realização do jogo, foram projetados dispositivos que têm correspondências materiais com os questionamentos propostos e são plataforma para o jogo, se colocando como mediadores entre o físico – seja ele o corpo ou a cidade – e o virtual – imagético e informacional –, propondo para o corpo (ativo, político), em sua subjetividade, um tensionamento dessas esferas (física e virtual), agindo entre elas, criando desorganizações e reorganizações dos pensamentos sobre a cidade e lendo-a como um grande sistema, que deve ser decodificado e precisa entrar em jogo, pela ótica da tensão.
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*Bárbara é arquiteta e urbanista que se arrisca pelo campo das linguagens, antigamente através da dança, atualmente da comunicação visual e experimentação gráfica.
PROJETO MOTIVAÇÃO 1 O presente trabalho é um pequeno fragmento do processo de resposta às provocações, leituras e propostas realizadas na disciplina de Trabalho de Graduação Integrado II do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Comissão de Acompanhamento Permanente: David Moreno Sperling. Coordenador de grupo temático: Luciano Bernardino da Costa. São Carlos, fevereiro de 2021. Caderno completo disponível em:
Mais do que propor uma situação arquitetônica ideal ou uma solução para um problema, o presente projeto quer criar perguntas, agenciamentos, pensar uma oposição à postura do arquiteto como um técnico que organiza e cria consensos sobre formas de viver e produzir a cidade. A principal discussão que acompanhou a formulação do projeto foi a de pensar as disputas invisíveis presentes no espaço urbano e o motivo de sua invisibilidade. O espaço urbano atual é resultado de uma crescente homogeneização e falsa noção de democracia, construído de forma imparcial e apagando cicatrizes e histórias, ou seja, um espaço que serve simplesmente à lógica mercadológica, onde os valores públicos foram substituídos pelos individuais, onde não há espessura, tudo foi planificado, reduzido ao indivíduo: É um mundo em que a ética neoliberal do intenso individualismo, que quer tudo para si, pode transformar-se em um modelo de socialização, da personalidade humana. Seu impacto vem aumentando o individualismo isolacionista, a ansiedade e a neurose. (HARVEY, 2014, p. 47)
Torna-se, portanto, imprescindível se colocar criticamente frente aos processos que constroem a cidade neoliberal, dominando e fagocitando toda a construção material e imaterial do espaço na sociedade capitalista, buscando compreender que discursos se colocam como hegemônicos e quais vozes são ocultadas. Sendo assim, o trabalho se situa na problematização da colonização do espaço físico e, principalmente, do inconsciente e do imaginário pelas mídias e pela indústria da propaganda, da sua transformação em mercadoria, entendendo que se atingiu um estágio de dominação que extrapola os já pensados anteriormente,
2 Entende-se aqui espessura como o oposto de raso e transparente na definição de Byung-Chul Han: “As coisas se tornam transparentes quando eliminam de si toda e qualquer negatividade, quando se tornam rasas e planas, quando se encaixam sem qualquer resistência ao curso raso do capital, da comunicação e da informação” (HAN, 2017, p.10).
[...] não são apenas os bens que se convertem em mercadoria, mas sobretudo as relações humanas, já que prender a atenção dos clientes e consumidores significa controlar ao máximo seu tempo (WISNIK, 2018, p. 71).
A problemática aqui colocada destaca a influência, parcialidade e controle das imagens e discursos que são impressos na cidade. Como defendido por Hans Belting (2006, p. 5), “Não há imagem visível que nos alcance de forma não mediada.”, demonstrando que o presente estágio de dominação só pode ser superado a partir de uma postura disruptiva e contra hegemônica que crie condições para pensar relações sociais, artísticas e discursivas que possibilitem projetos que saiam dessa lógica. A alteridade ou identidade do espaço têm profunda conexão com os processos de simbolização dos grupos sociais, da sua compreensão e controle, de maneira que tais processos determinariam organizações. Essa suposição, entretanto, pressupõe uma capacidade dos grupos sociais de intervirem e
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Fotomontagem do dispositivo instalado em São Paulo, primeira foto em situação noturna na Rua Basílio da Gama, segunda foto, ao dia, abaixo do Elevado Presidente João Goulart (Minhocão).
decidirem pelo futuro da cidade. Portanto, o acesso ao espaço público, a permanência e o direito de construí-lo depende, entre outras questões, da capacidade de dominar sua linguagem. A partir da leitura da partilha do sensível, proposta por Jacques Rancière compreende-se que a disputa pelo domínio da linguagem é política, pois a política [...] ocupa-se do que se vê e do que se pode dizer sobre o que é visto, de quem tem competência para ver e qualidade para dizer, das propriedades do espaço e dos possíveis do tempo (RANCIÈRE, 2005, p. 17).
Nesse sentido, a regulação e absorção da diversidade de discursos presentes no território constroi uma hegemonia e fortalece a estética neoliberal de construção da linguagem. PROPOSTA A proposta se materializa em um jogo. Jogo, uma vez que pressupõe a interação, a criação de um mundo temporário, e, portanto, de outras realidades possíveis, uma vez que não visa o lucro, se opondo à maioria das propostas urbanas contemporâneas. Com isso, o jogo possibilita a criação de usuários ativos e imprevisíveis, de multiplicidades no espaço. De acordo com Ana Paula Silva de Assis [...] os jogos são entendidos como um dispositivo por meio do qual é possível se perceber o dissenso que emerge do encontro entre a prática espacial cotidiana e a compreensão hegemônica do espaço, reproduzida na prática prescritiva de arquitetos e planejadores urbanos. Portanto, na experiência com os jogos, o dissenso é entendido como possibilidade para a emancipação daqueles que atuam na produção cotidiana do espaço por meio de
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um processo de desidentificação com a realidade sócio-espacial constituída e consensualmente assumida como a única possível. (ASSIS, 2017, p. 25).
A proposta tem por objetivo ressaltar com o jogo a construção do espaço público como uma arena de disputa política, um local onde é possível debater e fazer ouvir opiniões divergentes. Ao gerar esse local possibilita-se o dissenso, portanto uma postura de questionamento frente ao que se entende como consensual, natural, provocando ações políticas. O projeto agencia várias das inquietações levantadas e cria articulações entre a cidade construída e os discursos divergentes, questionando o papel dos corpos, das tecnologias, das edificações, da história e da construção do espaço coletivo que é a cidade. Coloca-se, com isso, a urgência em pensar uma desorganização das cidades atuais, das formas como elas são planejadas, representadas e imaginadas, entendendo que essas estão totalmente associadas à uma proposta individualista e privada, que não permite oposições, que reduz ou apropria-se de qualquer dissidência presente. É preciso repensar e virar de cabeça para baixo, do avesso, inspirando-se nas práticas artísticas Artaudianas, ou nas discussões e formulações Deleuzianas, de multiplicidade, da construção de um novo corpo:
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Corpo sem órgãos, em vez de organismo e de organização. Nele a percepção é feita de sintomas e avaliações mais do que de medidas e propriedades. Por isso, o que ocupa o espaço liso são as intensidades, os ventos e ruídos, as forças e as qualidades tácteis e sonoras, como no deserto, na estepe ou no gelo (DELEUZE, G e GUATTARI, F, 1997, p. 163)
Isso significa, portanto, questionar tudo e olhar novamente, propor novos símbolos e novas linguagens, colocar tudo em jogo, tirar toda certeza e organização, pois essas são limitantes e opressoras. Para isso devemos usar estratégias, tecnologias, conhecimentos e colaboração para poder contra-atacar, transformar o espaço urbano através da compreensão da sua complexidade e da subversão da lógica de seus códigos. Para constituir o jogo propriamente dito, foi necessária a compreensão de suas formas, regras, estruturas, jogadores e tabuleiro ou área de jogo. O principal ponto a ser elaborado foi o objetivo, e assim foi inserida a questão da lua; a lua aparece como analogia à distância e a relação enigmática que esse astro tem com as tecnologias, com nosso olhar e apreciação, seu caráter mutável que desperta muito interesse em seus eventos e ciclos. Claro, a lua é um astro fotografável, porém o ato de fotografá-la necessita mais dedicação, tempo e cuidado, além de produzir um ato de descompasso imediato ao tentarmos fotografá-la, nesse ato de estranhamento, atenção e ajuste de distâncias está a potência. Ela aparece como nome do jogo, uma charada que motiva a ação do jogo, direciona as estratégias, coloca dúvidas e impulsiona sua solução, por isso em forma de pergunta: “Você consegue fotografar a lua?”. O objetivo do jogo como projeto é o de fazer do jogador um corpo ativo, que “não brinca com seu brinquedo, mas contra ele. Procura esgotar-lhe o programa. Por assim dizer: penetra o aparelho a fim de descobrir-lhe as manhas” (FLUSSER, 1985, apud ASSIS, 2017, p. 92), entendendo o aparelho como ferramenta disponível aos jogadores (os dispositivos), mas também pensando a cidade como um grande sistema, passível de ser decodificado e que precisa entrar em jogo. Dessa forma, propõe-se um questionamento do papel das redes e das imagens nas atualidade, bem como das fotografias midiáticas, transparentes e em alta velocidade. Pensar como a tecnologia possibilita uma atuação crítica na leitura e na construção do discurso presente sobre o espaço urbano, em vez de apenas capitalizá-lo. O projeto propõe imagens que provoquem o descobrimento do espaço urbano, a visibilidade de diferentes discursos, revelando símbolos e subjetividades, na tentativa de decodificar as imagens prontas e cristalizadas e o imaginário hegemônico.
Representação do dispositivo em elevação (setas destacando fluxos possíveis dentro do dispositivo) 2 3
COMO JOGAR Em síntese, o jogo funciona da seguinte maneira: o jogador tem acesso a estruturas (dispositivos), com os quais interage fisicamente, tem acesso a uma rede de imagens capturadas para serem localizadas, deve capturar imagens e inseri-las no jogo, alimentando-o. Com isso, ele desbloqueia no mapa as outras estruturas, sendo necessária a conclusão de um circuito de três delas. O objetivo é completar as três bases. Cada passo será explicado abaixo. Existem duas formas de iniciar o jogo. O jogador pode acessar a localização de uma das estruturas pelo aplicativo ou ele pode encontrar uma estrutura na cidade, por acaso e acessar o aplicativo pelo QR code da estrutura, entrando no jogo. Primeiro passo: interação física. Ao entrar em contato com a estrutura física do jogo (instalada no tecido urbano) o jogador interage fisicamente, ativando a estrutura. Essa interação é controlada por algoritmos, isso é, o jogador interage com seu corpo e, dependendo do seu peso, força, movimento e dos outros corpos presentes na plataforma, a estrutura reage de diversas maneiras. A estrutura tem hastes pneumáticas que tensionam e relaxam o tecido que as envolve, fazendo revelar ou esconder os códigos presentes nelas de acordo com a ativação física, dessa maneira, diferentes ações dão acesso à diferentes códigos, de modo que, apenas na experimentação e movimentação física, outros resultados se tornarão possíveis. Segundo passo: leitura do código. Ao liberar um QR code, o jogador faz a leitura desse código através de dispositivo celular ou tablet e acessa o aplicativo, onde ele vai receber a imagem referente ao código lido. Terceiro passo: encontrar a imagem. A imagem revelada no dispositivo deve ser encontrada nas imediações da estrutura
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(essa imagem é referência de um jogo anterior, podendo ser de um detalhe, local, situação... com ou sem interferência do autor, seja no momento da foto ou uma edição posterior). Ao localizar a imagem e registrar no aplicativo o jogador recebe a localização do segundo ponto. Quarto passo: percurso. Nesse momento o jogador precisa ir de um ponto para o outro, para a leitura da cidade. Esse momento é muito importante por ser um percurso de observação ativa sobre as mudanças de paisagens e símbolos presentes, uma vez que o jogo incentiva a busca por detalhes e imagens. Quinto passo: fotografar. Nesse momento o jogador se torna autor da primeira imagem que vai alimentar o jogo. Nas imediações da segunda estrutura ele faz sua imagem (novamente uma imagem a sua escolha podendo ser editada ou não). Sexto passo: inserir a imagem. O jogador interage novamente com a estrutura para fazer a leitura de um código, insere sua imagem e lê outra, repetindo o processo até uma terceira estrutura. Sétimo passo: repetir o processo para a terceira estrutura. Ao completá-la, conclui o jogo. Resultado: a interação das pessoas umas com as outras e com o jogo resulta em uma rede de imagens que podem ser localizadas no território, sobrepostas e comparadas, consultadas e utilizadas. Imagens realizadas por pessoas lendo o espaço urbano e incentivando outros jogadores a lê-lo. Mais do que apenas realizar o circuito, o objetivo do jogo é portar-se frente ao distanciamento, fotografar as luas que estão no próprio território, ou seja, se colocar frente às informações presentes no espaço de maneira crítica, pensar como é possível manipular as informações e as ferramentas dadas, tensionar as distâncias existentes.
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mediada por algorítmos
ativação física
estrutura
distraído
corpo [jogador/interator]
imagem 1 [do dispositivo]
[resultado do jogo anterior]
cidade imagem captação da primeira imagem
acesso pelo aplicativo
intencionado
captação
percurso
processamento
diagrama de interação do jogo
fim de jogo
imagem 3 [inserida]
(imediações da estrutura)
buscar imagem na cidade
jogo
imagem 2 [inserida]
(com possibilidade de edição/recorte/hackeamento)
fotografia
rede de imagens/leituras/releituras banco de dados de construção coletiva, sempre disponível
devolução
percurso
MATERIALIDADE O dispositivo foi pensado de forma a dialogar com a escala do corpo, mas também com a cidade, produzindo estranhamento na paisagem urbana, mas possibilitando uma interação direta dos corpos com suas superfícies. O elemento é proposto de forma a reproduzir a sensação de caos e suspensão ao mesmo tempo em que se adapta aos diferentes locais de instalação. Simultaneamente, o dispositivo é um mediador, uma interface que permite uma série de sobreposições: real/virtual, camada material/camada informacional, informação/impressão, entre outras. Objetiva-se permitir uma visão ampla do espaço urbano, reconhecimentos de símbolos e adição de novas informações.
e, principalmente à distância, o mistério e o desvelamento com a proximidade são características que incentivam à busca lúdica e compreensão aprofundada, geram espessura, em oposição à transparência. A estrutura como um todo têm caráter modular e é possível produzir diversas variações com esse alfabeto de elementos, produzindo diferentes relações com a paisagem, seja ela de bloqueio ou destaque, criando barreiras ou aberturas. Porção virtual A estrutura física é porta de entrada para a rede de imagens construída pelo jogo, na tentativa de pensar uma relação construtiva e múltipla da capacidade virtual e informacional, contrapondo a velocidade dessa relação atual em que as imagens são lidas de forma desatenta e imediata, desterritorializada e descontextualizada.
O DISPOSITIVO O dispositivo contém três partes: Sua base, elevada do chão demarca a área de jogo, o “mundo temporário”; é a parte onde o dispositivo recebe os estímulos corporais. A estrutura, que delimita o dispositivo em altura – é móvel e amorfa –, responde aos estímulos e contém os códigos, ligando-os à camada virtual.
Pensando na força das informações, da leitura através de hiperlinks e da possibilidade de pesquisar e criar camadas virtuais, a porção virtual do dispositivo tem o poder de revelar informações técnicas e relacionar dados (históricos, quantitativos, avaliações, curiosidades) e tornar uma camada informacional visível aos jogadores.
E a malha – de materialidade semi opaca e maleabilidade do tecido – é a conexão com a paisagem e o corpo do jogador, reflete forças aplicadas a ela, se conforma e deforma. A semi opacidade está relacionada à velocidade, ao velado
É nessa interface que os jogadores adicionam as imagens da cidade, ela possibilita sobreposições e intervenções, permite a adição de informações ou impressões, interferências como glitchs e hackeamentos.
REFERÊNCIAS ASSIS, Ana Paula. A agência dos jogos: Dissenso e emancipação na produção política do espaço. (Tese de Doutorado). Belo Horizonte: UFMG, 2017. ✦ ✦ ✦ BELTING, Hans. Imagem, Mídia e Corpo: uma nova abordagem à iconologia. Ghrebh, Revista de Comunicação, Cultura e Teoria da Mídia, São Paulo, n. 8, pp. 32-60, 2006. ✦ ✦ ✦ DELEUZE, G e GUATTARI, F. Mil Platôs. São Paulo: Editora 34, 1997. v. 5. ✦ ✦ ✦ HAN, Byung-Chul. Sociedade da transparência. Tradução de Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2017. ✦ ✦ ✦ HARVEY, David. Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. São Paulo: Martins Fontes, 2014. ✦ ✦ ✦ RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. 1. ed. São Paulo: EXO experimental; Ed. 34, 2005. ✦ ✦ ✦ SANTOS, Adriana Rosa Cruz. Para acabar com o juízo (de deus): Artaud, Foucault e os corpos ingovernáveis. Arq. bras. psicol., Rio de Janeiro, v. 70, n. spe, p. 132-141, 2018. ✦ ✦ ✦ WISNIK, Guilherme. Dentro do nevoeiro, arquitetura arte e tecnologia contemporâneas, São Paulo: Ubu editora, 2018.
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2,15 a 3,00m
dispositivo 0a
0,3
malha
0m
0,6
Detalhamento do encaixe da estrutura com as hastes pneumáticas, permitindo ampla variação de ângulos 0,15m
estrutura
0,
75
m
QR code que dá acesso a porção virtual do dispositivo
Detalhamento do encontro da estrutura com o piso
piso
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Fazendo jus ao isolamento devido a pandemia do covid-19, onde quem pode ficar em casa não aguenta mais de angústia. O entretenimento digital vem como válvula de escape. Estive diariamente jogando um jogo virtual de mundo aberto em que o personagem fica preso em uma ilha paradisíaca em busca da sobrevivência e de aprendizado com nativos. Um dos utensílios do personagem, além de diversas armas, é uma câmera fotográfica. Então, ao invés de seguir os objetivos do jogo, decidi observar e registrar o comportamento de "boots" programados como uma tentativa de sair de casa e não parar de fotografar e aprender... Obter o registro fotográfico acaba tornando-se uma ilusão satisfatória em meio de tantas verdades desagradáveis. O trabalho aborda como assunto a vontade e necessidade de imagens, sendo elas, registros cotidianos ou comportamentais sobre a vida do próximo; onde conhecendo nosso semelhante, seja ele real ou não, conhecemos a nós mesmos. Primeiro Lookdown do estado do RS, Abril - 2020
As ilhas rook
Henrique Bittencourt (Porto Alegre, RS, Brasil, 1997) atua como fotógrafo e artista visual. Graduando em Fotografia na instituição Unisinos, São Leopoldo. Realizou as exposições individuais: “Construção” (Centro Cultural, Butiá, 2017 e 2019) e “Toque” (Tokka, Porto Alegre, 2020). Participou de exposições coletivas, entre elas, “CARBO” (Fundação Iberê Camargo, trabalho desenvolvido via Residência Artística do Festfoto POA, Porto Alegre, 2019) e “Topo” (Brasília Foto Show na categoria “StreetView/Landscape”, Brasília, 2018/2019).
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“Vou por aí”, sobretudo, dialoga com a hiperexposição da qual estamos sujeitos, que tornam a privacidade um sonho efêmero no mundo digital, assim como controles que estão além de limites visíveis. Apesar de carregar esta linha tênue entre a possibilidade de presenciar, vivenciar outros ambientes e infringir privacidades, estas potencialidades podem conscientizar o público acerca das diversas câmeras espalhadas por aí, que são ainda “publicamente” acessíveis.
Wesley Lima Brito Nascido em São Paulo, tem 25 anos, formado no curso Técnico em Redes de Computadores – no Centro Educacional e Assistencial Pedreira – (CEAP), atualmente cursando Artes Visuais no Centro Universitário Belas Artes de São Paulo. Sua linha de pesquisa se desdobra em três áreas: Arte Sonora, Cultura Indígena e por fim, a Cidade.
Fotomontagem feita a partir das cenas do vídeo
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Vídeos completos pelos links: https://www.youtube.com/watch?v=Ioxx50EjcMs https://www.youtube.com/watch?v=sqxP4kbYyMo
as pessoas estão vociferando na internet por essas bandas grita-se alto aos quatro cantos cibernéticos as certezas de pontas de dedos as verdades que são difundidas em fake news nos grupos de família o tempo por aqui é nublado palavras coléricas no ar chocam-se com a pesada cloud a ignorância troveja ruidosa e descarrega-se uma chuva de conflitos raios trocados entre desconhecidos cardumes de pixels nadam agitados enchem os olhos dos mergulhadores que passeiam por esse mar de bits ou descem ao fundo da deep com seu oxigênio-pacote-de-dados arpão à mão pra caçar seguidores por aqui o ego bate no peito e bate-se de frente com os que ousam questionar a sagrada opinião alheia tendo em vista que nessas redes não há espaço para dúvidas somente verdades absolutas as pessoas estão vociferando na internet muitas também a gritar tristezas e na timeline qual estandarte pinta-se a ânsia de expor o vazio em tons P&B de algum photoshop qualquer jpeg transforma-se em arte Jono Lena Jono Lena é multiartiste do corpo, palavra e som e Bacharel em Artes pelo IHAC - UFBA. Seus primeiros contatos com a música e com a performance deram-se em 2014, sempre atravessade pela potência da palavra. Atualmente tem se dedicado à experimentação da vídeo e foto performance. É graduande em Psicologia também pela UFBA e escreve o seu primeiro compêndio de poesias autorais intitulado “escapismos”."
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anúncios pra financiar anti-vírus pra deixar vazar aplicativos pra distanciar google pra filosofar HD pra armazenar megabytes de puro ócio gigabytes de melancolia terabytes de hipocrisia likes para inflar indiretas para destilar vácuos para conquistar blocks pra radicalizar emoticons para expressar a fuga do mundo real o pavor do contato o medo do corpo-a-corpo no battery para desligar logoff para conectar e realidade realidade para delirar
*Adriano Braga investiga questões subjetivas num processo diretamente ligado ao corpo e seus significados. Sua investigação propõe uma reflexão de questões contemporâneas referentes a vida e a morte, a efemeridade, a imagem e o corpo. Seus processos experimentais com a performance fazem uso da fotografia e do vídeo como documentação e registro.
NITRATO DE PRATA Adriano Braga* Foto: Junior Ribeiro, 2020.
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TOUCH 2020 Isabella e Felipe*
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*Iniciaram sua trajetória enquanto dupla em 2013 na Escola de Artes Visuais do Parque Lage e não pararam de produzir juntos desde então. Desenvolvem trabalhos que buscam refletir sobre público/ privado, o mundo online e as relações interpessoais criadas em espaços conduzidos pela lógica capitalista. Sua pesquisa parte dessas vivências e de questões como a constituição da memória e a experiência da passagem do tempo na contemporaneidade e busca transmitir sensações e experiências através da imagem em movimento. A dupla tem o vídeo como principal meio de expressão, desenvolvendo, paralelamente à pesquisa poética, uma pesquisa técnica contínua para entender e dissecar os fundamentos do audiovisual. Em uma vida mediada por telas, onde tudo é gravado e registrado, não existe vida cotidiana. Não existe espontaneidade. A virtualidade projeta uma dimensão inalcançável que gera uma insatisfação constante com o real, uma dependência da tela e um distanciamento do eu. Como cuidar da saúde mental e atingir às expectativas do algoritmo? A necessidade dessa mediação transforma a vida na sombra do que ela realmente é. O eu é uma projeção que se dissolve nas telas.
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Eu quero ensinar As mAquinas o que E ter um corpo por Lina Lopes*
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Lembro de acordar dentro de um tubo muito branco e iluminado. A posição estava incômoda e eu me movi um pouco. Ouço uma voz dizendo para eu não me mexer e que o procedimento estava acabando. Eu tinha 12 anos e estava fazendo uma ressonância magnética. Aquele procedimento acabou e depois passei por outros semelhantes no mesmo dia. Um raio-x do meu punho, um outro procedimento que não me lembro o nome - consistia em colocar uma espécie de agulha na mão e aproximar uma circunferência de metal da minha cabeça de modo a gerar uma descarga elétrica ao longo do meu braço. Essa eletricidade era um modo de analisar ou de identificar o funcionamento dos meus músculos e nervos. Eu realmente não lembro das explicações. Ao longo dos anos que se sucederam a essas e outras experiências em salas de hospital, comecei a pensar que a medicina é uma área de trabalho muito pesada. Parte da nossa prática, quando algo no corpo incomoda, é ir a um médico e delegar a essa pessoa as decisões sobre o nosso próprio corpo. Eu nasci com esse corpo e passei toda a minha vida com ele, parece um contrassenso e mesmo uma injustiça para com um profissional da saúde esperar que ele conheça meu corpo tão bem apenas observando o que dizem meus exames. Admito que sou fascinada por todas as máquinas que examinaram meu corpo. Todos esses mecanismos não nascem, crescem, reproduzem e morrem. São apenas engenhosidades da mente humana, mas que parecem ter uma pulsação própria. Digo isso porque criamos máquinas e depois depositamos fé de que elas são capazes de nos salvar. Provavelmente porque essas máquinas percorrem, esmiúçam e cavam o corpo à procura de qualquer sinal. Câmeras que entram pela boca e vão até o estômago ou ultrassons que fazem imagens de dentro do corpo sem precisar invadir. Não importa, são todas pequenas estruturas, pequenos tentáculos e extensões capazes de varrer todos os detalhes do corpo. Nessa relação íntima com as máquinas acabei incorporando (literalmente) dois chips no meu corpo, mais precisamente nas minhas mãos. De repente, a lógica da relação entre as máquinas e os corpos se inverte, passamos a imaginar nossos corpos com extensões, tentáculos e câmeras para escrutinar o mundo à nossa volta. Como se um ciborgue meio corpo orgânico misturado com partes mecânicas e eletrônicas otimizadas, nos possibilitasse um super poder. Quando as pessoas me perguntam o que eu faço com eles eu respondo que criei um instrumento musical que apenas eu sou capaz de tocar. Afinal, a mente humana não inventa apenas dispositivos para cuidar da saúde do corpo, mas também para expressar esse corpo e poder fazer ele dançar. Esse é meu super poder, ter uma máquina embutida nas minhas mãos que controla outra máquina que é capaz de controlar corpos! Ou, talvez, eu seja apenas uma artista mesmo.
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Se alguém dissesse que a profissão de ciborgue artista estaria disponível não sei se teria me interessado. Afinal, quando eu era criança, a imagem de um ciborgue era o Robocop. Talvez porque, quando pensamos em eletrônica, pensamos em materiais rígidos. Provavelmente porque lembramos da família dos metais e seus derivados. Nesse sentido, um corpo vestindo tecnologia seria como vestir o tubo de ressonância magnética. Ainda bem que já inventaram os wearables - um modo para colocar a eletrônica de modo vestível usando materiais flexíveis condutivos. Tecidos, linhas e até velcro condutivo eu já me deparei para produzir peças wearables. Percebe-se que citei materiais da produção de vestuário que foram adaptados para a área de eletrônica. Mais curioso é perceber que todo processo de invenção necessita de certo modo usar metáforas cognitivas e comparações possíveis com as tecnologias existentes. Um editor de texto digital como esse em que escrevo aproveitou a experiência do usuário com máquinas de escrever. A área de wearables também tenta aproveitar os materiais e a capacidade de produção da indústria das roupas. Hoje, temos a oportunidade de criar máquinas e ciborgues que parecem mais que foram tricotados por uma avó do que com o Robocop. O Cellular Instalation é um exemplo de projeto que aborda a costura e o toque como produção de tecnologia. A instalação interativa funciona com bordados condutivos que ao serem tocados espalham luzes por toda a obra. Feito com peças modulares de feltro que se encaixam sem a necessidade de costura, eu propus que as pessoas participassem da instalação fazendo seus próprios bordados e ampliando o trabalho, fazendo-o crescer pelo galpão como um organismo vivo. Gosto de usar metáforas da natureza para fazer meus trabalhos tecnológicos. Mas gosto mais ainda da inversão que a biologia sintética trouxe como linha de raciocínio. E, se a gente usasse as metáforas da engenharia e das máquinas para fazer biologia? Uma bactéria capaz de identificar metal pesado em amostras de água, por exemplo. A ideia é modificar geneticamente bactérias ou células e transformá-las em máquinas. Essas máquinas sim são capazes de comer, reproduzir e morrer. Me parece que no lugar de pensar em aperfeiçoar corpos tornando eles mais maquínicos e biônicos, podemos pensar em aperfeiçoar máquinas tornando-as mais biológicas. Em certa medida, o Homo Sapiens ampliou sua atuação pelo mundo representando o que via em desenhos nas paredes da caverna, coreografando agradecimento aos deuses da chuva e cantando para a terra. Ao mesmo tempo, desenvolveu sistemas mais eficientes de moradia, saúde, transporte, enfim, ciência e tecnologia. Parece que em ambas expressões, o ser humano demonstra as vulnerabilidades de ter um corpo sem modo de superar. Como se todos os receios do corpo (morte, doença, fome, teto ou amor) fossem propulsores da criação, experimentação e inovação, tanto no âmbito da arte quanto da tecnologia. 1 1 1
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Isso me fez pensar que se eu ensinar uma máquina o que é um corpo, ela seria capaz de sentir insegurança, de produzir ciência ou se expressar artisticamente? Recentemente, eu e Mari Nagem despendemos algumas horas pesquisando imagens de nu vintages. De fotografias a filmes pornográficos produzidos em película que apresentassem a imagem de um corpo inteiro. Recolhemos uma média de 500 imagens. Com elas, treinamos um sistema de machine learning. Uma vez “ensinado”, pedimos a máquina para gerar imagens do que seria um corpo. Ela retornou uma média de 100 imagens de nus distorcidos. Para mim, pareciam imagens como as que o artista Hans Bellmer fazia em suas fotografias montadas de bonecas. Para a Mari lembravam as pinturas do Francis Bacon. Curiosamente, ambos são artistas contemporâneos entre si e das fotografias e filmes vintage que usamos como base de dados. O que não é curioso é que nossa máquina gerou apenas corpos femininos. Afinal, nossa base de dados não apresentava imagens de corpo inteiro de nus masculinos. Talvez porque não encontramos imagens o suficiente (7 apenas), talvez porque essas imagens não existam. Fico pensando se as máquinas estão aprendendo, quem é que está ensinando elas? E o quê estão ensinando? Eu sei que quero ensinar às máquinas o que é ter um corpo. Talvez nessa troca, eu mesma chegue a entender o que significa ter um corpo.
Imagem da série CRYPTONUDES. Desenvolvida a partir do sistema de machine learning. (@ cryptonudes_)
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MY MEDICAL BODIES por Lina Lopes* Por conta da pandemia, o interesse pelo meu próprio corpo e sua representação voltaram. Meu interesse pelo corpo provavelmente tem algo a ver com minha coluna. Fui diagnosticada com escoliose idiopática de 42 graus. Lembro que com 9 anos de idade eu ficava no hospital fazendo exames dentro de máquinas em um espaço sem cores e cheirando a esterilização. Acho muito interessante as máquinas que foram desenvolvidas para mostrar dentro de nós. Bem no início da pandemia, encontrei um material da época em que fiz fotos baseadas no corpo humano. Algumas fotos para referência e algumas fotos que fiz durante minhas aulas de fotografia na Universidade (tenho formação em em cinema). Estudei na época da transição entre as fotografias analógicas e digitais. Então, para fazer algumas fotos, eu precisava de um filme especial, alguns produtos químicos, uma sala preta. E os
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My Medical Bodies foi uma série de experimentos criando pequenas performances e objetos registrados em diário e fotografia digitais. Toda a série foi feita no primeiro mês da pandemia de 2020.
resultados foram fotos em preto e branco semelhantes a imagens de raio-x. Na mesma época que achei as caixas, no início de abril de 2020, eu coletei meu sangue menstrual para fazer uma espécie de visualização de dados. Percebi que é uma curva gaussiana. Na teoria da probabilidade, uma distribuição gaussiana é um tipo de distribuição de probabilidade contínua encontrada na natureza. Como a altura das pessoas em uma população, por exemplo. É um parâmetro para um mundo analógico. Lembro que quando a fotografia digital estava se popularizando, a questão toda era como migrar para o mundo digitalbinário respeitando essa curva. A resposta foi colocar mais bits em cada ponto da curva. E aqui estou, tentando digitalizar meu sangue e meu corpo e pensando que meu gêmeo digital não pode sangrar ... então, ele está vivo?
My Medical Bodies foi um exercício intenso entre o físico e o digital. Eu decidi fazer um caderno sanfona com partes do esqueleto humano na escala necessária para montar uma Lina de papel. Ao mesmo tempo eu ensaiei um caderno digital de artista:
*Lina Lopes é artista tecnológica, consultora em inovação e empreendedora. Na área de wearables, possui experiência em projetos de pesquisa e prototipagem com materiais flexíveis condutivos, soft robotics e biomateriais. Em 2016, realizou o projeto Touch Skin, uma residência artístico-científica no Media Lab da UFG para desenvolver uma tatuagem temporária condutiva. Em 2018 fundou o BioLiLoLab, laboratório de biohacking onde está conduzindo projetos de pesquisa em biomateriais e bioarte.
AUTORRETRATO CIBORGUE2020, Blue* *Blue é artista visual de Betim (Minas Gerais) e graduada em História com formação complementar em Artes Visuais pela UFMG. Interessada nos diálogos entre as diferentes linguagens e suportes. Percorre as linguagens da fotografia, vídeo, gravura, poesia, música, pintura, e outras. Todas elas tensionadas por questões como a memória, o Progresso, a melancolia, as narrativas de si, a morte, o tempo e a história.
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Podemos tradicionalmente pensar o ciborgue como um organismo composto por partes orgânicas e cibernéticas. Em “autorretrato ciborgue”, contudo, o que interessa é a ciborguização não-cutânea dos corpos. Isto é, em como incorporamos de tal modo as tecnologias em nosso cotidiano, que elas se tornaram capazes de alterar por si só nosso modo de existência no mundo, sem qualquer tipo de intervenção transcutânea. Seja pelos estímulos provocados a partir dos barulhos e cores de notificações, pela impossibilidade de uma vida offline, ou pelo aumento expressivo dos transtornos de saúde mental como depressão e ansiedade, a ciborguização é um dado da sociedade contemporânea. Com a pandemia de covid-19, a despeito dos corpos que estão totalmente à margem do acesso às tecnologias, todo esse processo de ciborguização deu um enorme salto em um curto período de tempo. Dessas inquietações e do luto coletivo que atravessamos sem trégua é que nasce a série “autorretrato ciborgue”, feita a partir de fotografias, print screens, e código ASCII.
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Christian Gustavo de Sousa
“Corpos em Quarentena” é uma série fotográfica online e à distância que começou a se desenhar em março de 2020, logo no início da quarentena. Esta série surge do medo, da angústia diante do desconhecido, do vírus invisível. Surge da presenfalta de ar do quarto que se torna presen ça 24 horas. “Corpos em Quarentena” é um refúgio, uma busca, uma ponte entre mim e todas as pessoas que se colocaram quarentediretamente de seus espaços de quarente na para que pudesse fotografá-las, ainda que a distância.
Chris, The Red é designer gráfico, artista visual e fotógrafo. Mestrando em Poéticas Visuais (PPGAV/UFRGS). Especialista em Artes Visuais (SENAC/DF). Bacharel em Relações Internacionais (UnB). Desde 2002, CEO e fundador da The Red Studio. Tem focado sua carreira artística, principalmente fotográfica, pesquisando temas como o corpo, a nudez, a sexualidade e a pós-pornografia. Trabalhos exibidos em São Paulo, Santos, Campinas, Amparo, São José do Rio Preto, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Londres, Berlim e outras. Com o artista visual Bruno Novadvorski, criou o DUOCU. Editor-chefe da revista [pós]CORPOS e colaborador da revista Falo Magazine. As imagens constantes na série Corpos em Quarentena são de autoria do artista Chris, The Red, que, gentilmente, as cederam para serem publicadas com as devidas permissões de direitos autorais. Nenhuma das imagens pode ser reproduzida de forma mecânica ou digital sem autorização prévia por escrito do artista. Se houver uso injusto e/ou direitos autorais violados, entre em contato.
Diante deste novo contexto – ficar transmuem casa – o ato de fotografar se transmu tecnolota, se transforma e entra no ar, a tecnolo gia e os tais whatsapps, wherebys, skypes, facetimes e tantos outros possibilitando a explodincomunicação entre estas corpas, explodin do a ideia do próprio espaço - o real e o virtual, e é neste que o ato de fotografar acontece. Repensando as nossas próprias percepções da fotografia. “Corpos em Quarentena” teve seu primeiro registro em 2 de abril de 2020 e desde então, ultrapassou barreiras e alcançou o mundo. Até o momento, 76 pessoas já foram fotografadas, em 42 cidades diferentes, no Brasil – São Paulo, Recife, Garanhuns, Pelotas, Porto Alegre, Itaquaquecetuba, Rio de Janeiro, Goiânia, Cabreúva, São Bernardo do Campo, São José do Rio Preto, Imperatriz, Florianópolis, Praia Seca, Itu, Brasília, Salvador, Rio Largo, Brusque, Canoas, Santos, Curitiba, Teresina, Cajazeiras, Vilhena, Parati, Toledo, São Luís – e do mundo: Santiago (Chile), Los Angeles (EUA), Assunção (Paraguai), Berlim (Alemanha), Barcelona, Madrid (Espanha), Lisboa, Porto (Portugal), Medellín (Colômbia), Varsóvia (Polônia). Em tempos tão imprevisíveis, a arte se transforma. O medo vai sendo superado e novas conexões, construídas.
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1 1 1 Gianlluca (@glluca.art)
Jornaleco da Pandemia. 2020.
“Artista mineiro, natural de Mariana, graduado em direito pela Universidade Federal de Viçosa. A arte sempre fez parte da minha vida mas, a guinada se deu durante a pandemia. Formado e desempregado comecei a empreender esforços no estudo e desenvolvimento da minha arte. Utilizei do momento para criar séries como “Jornaleco da Pandemia”; e, mais recentemente, “Doses de sentimento” Ambos inspirados pela pandemia, pelos sentimento exasperados durante o período e, principalmente, como forma de alívio pessoal. Sigo agora buscando oportunidades de compartilhar com as pessoas o meu trabalho.”
Gianlluca
"O que existe é o mesmo ovo de sempre, chocando o mesmo novo" - Paulo Leminski Colagem analógica, 2020
Fernando Valverde - @fevalvex Nascido e criado em São Paulo, através de colagens, transpassa anseios, devaneios e vontades que não consegue expressar de outra maneira.
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O lugar onde anoitece mais cedo por Gastón J. Oviedo *
2021 Naquele dia, o homem parecia genuinamente feliz e, ao contrário de outras vezes, de bom humor. Certamente não por ajudar as pessoas. Claro que não. Provavelmente porque tinha feito um excelente negócio por debaixo do tapete. Ou talvez por todas as repercussões favoráveis para sua pessoa que o ato que aconteceria naquele dia teria. Pensava nisso tudo enquanto arrumava o nó da sua gravata. Alguém bateu na porta. Era sua secretária, dizendo-lhe que estava tudo pronto. Bebeu um gole do café que estava pela metade e saiu do escritório. Sobre a mesa ficaram alguns pedaços de pão doce. Ele gostava apenas da parte com creme e deixava o resto sem comer. Foi verificar pessoalmente que tudo estava indo de acordo com o planejado. Dobrou por alguns corredores seguido por uma pequena comitiva até sair do prédio, e foi direto para um furgão estacionado entre alguns carros de alta gama. Pediu que alguém abrisse a van. Dentro, dezenas de caixas estavam perfeitamente empilhadas. Abriu uma delas e tirou um notebook novinho em folha. Centenas de computadores seriam distribuídos e doados em todo o país, e tudo por iniciativa sua. Ou pelo menos isso é o que dizia a propaganda. E, como se isso não bastasse, ele mesmo em carne e osso começaria esta impressionante campanha visitando a primeira instituição que seria beneficiada. Sua equipe havia escolhido uma escola do interior, da qual, francamente, ele não conhecia muito bem o nome e nem fazia ideia de onde ficava. Entretanto, vários veículos se aproximaram e seus passageiros estavam descendo. Era a imprensa, que fora convocada para testemunhar os acontecimentos.
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Juan Grifone A expulsão, a reclusão e a exclusão gerada pelos sistemas sociais junto aos padrões externos e a pressão do tempo como modus operandi, são as formas de pensar a poesia visual e plástica de Grifone (n. 1986), quem trabalha com a transformação dos dejetos em afetos como materia prima. Para contrabalançar os efeitos da pressão que impõem os sistemas para encaixar as pessoas em modelos padronizados que privam as liberdades subjetivas, viajou pelo Brasil desenvolvendo murais por vários Estados, reconectandose à natureza, e tentando fugir dos modelos preestabelecidos. Atualmente mora em Belo Horizonte.
“Sem titulo” Juan Grifone, 2020. 83 x 62 cm. Óleo e látex em papelão.
Rapidamente, um dos seus funcionários sussurrou o nome e a localização da escola em seu ouvido. O homem disse ali mesmo algumas palavras aos jornalistas e depois os convidou a segui-lo em seus carros até ao seu destino final: “a orgulhosa e guerreira escolinha do interior” segundo disse em suas próprias palavras antes de pronunciar o nome perfeitamente memorizado da instituição. Na verdade, não tão perfeitamente memorizado, porque ele confundiu o primeiro nome do prócer ou professor ou fundador ou herói regional que a escola homenageava ao lembrar sua memória. Mas certamente ninguém tinha notado ou ninguém realmente se importou. De qualquer maneira, isso não faria nenhuma diferença.
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A viagem foi tranquila. O efeito da cafeína diminuiu um tanto e o movimento do carro o deixou um pouco sonolento. Mas seu celular tocou, tirando-o de seu ensimesmamento, e ele passou o resto da viagem resolvendo outras questões. Finalmente, depois de andar um tempo por uma estrada de terra, um de seus assistentes sinalizou que estavam chegando. Apressou a conversa e desligou o telefone. O seguinte foi o mesmo de sempre. Articulou o seu melhor sorriso. Olhou para o seu cabelo no espelho retrovisor. Saiu do carro olhando para a imprensa com uma mal disfarçada surpresa. Caminhou com uma naturalidade forçada em direção à entrada da escola enquanto conversava com um membro do pessoal do lugar escolhido aleatoriamente por um indivíduo de sua equipe.
* Gastón J. Oviedo Nasci na Argentina. Em 2013, deixei minha terra e fiz um mochilão pelo Brasil. Desde então, nunca parei de viajar. Viajei com um grupo fazendo artes plásticas e música e depois comecei a viajar sozinho. Durante a viagem também trabalhei como fotógrafo, recepcionista de hostel e pousadas, cozinheiro e muitas outras coisas, até que finalmente comecei a trabalhar 100% online como nômade digital. Atualmente trabalho como lingüista e escritor fazendo principalmente traduções, redações comerciais e criativas, letras de canções, roteiros, contos, poemas, romances, revisões e legendas.
Cumprimentou algumas pessoas e as crianças. Quantas crianças! A maioria amontoava-se do lado de fora da escola olhando com curiosidade para aquele espetáculo alienígena. Mas alguns formaram um barulhento círculo em torno do homem, que fingia entusiasmo apesar das melecas penduradas nas narinas das crianças e do cheiro de bosta de vaca e cavalo e burro e humano. Chegou perto da porta, onde uma senhora com olheiras e resignação penduradas na cara o esperava. Ela se identificou como a diretora. Sem entender o que estava acontecendo, ela ouviu as palavras eufóricas do homem que a atordoavam - um pouco porque ele gritava ao lado dela para que todo mundo pudesse ouvir e outro pouco por causa do sono ruim. Aquele cara enfatizava palavras como inclusão, empatia, sociedade, igualdade, crise, educação, problema, democracia, trabalhadores, liberdade. No meio da sua perorata, alguém lhe entregou um dos notebooks e o homem o ergueu como se fosse a própria pedra filosofal. Ele o entregou para a diretora, ao mesmo tempo em que olhava para as câmeras e alguns flashes refulgiam. Então o homem olhou nos olhos dela e houve um momento de silêncio antes que a senhora dissesse em voz baixa e constrangida: — Mas senhor, se aqui não temos eletricidade...
Esta crônica está baseada em acontecimentos que, como se fossem cópias de um mesmo fiasco, ocorreram de fato em vários lugares da América Latina. 1 1 1
Quadro de referencias
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Fahrenheit 451
Ano de lançamento: 1966 | País de origem: Reino Unido | Direção: François Truffaut Adaptação do livro homônimo de Ray Bradbury, Fahrenheit 451 é uma obra sobre uma sociedade distópica que proibiu os livros e qualquer coisa que faça as pessoas questionarem a política, a vida e a natureza. O bombeiro Guy Montag - que não mais apaga incêndios, mas queima livros começa a repensar sua função ao conhecer uma jovem encantadora e, principalmente, curiosa.
Ex-Machina: Instinto Artificial
Ano de lançamento: 2014 | País de origem: Reino Unido e Estados Unidos | Direção: Alex Garland O jovem programador, Caleb é convidado à casa do CEO (Nathan) da empresa em que trabalha para fazer um teste em uma Inteligência Artificial que está sendo desenvolvida e acaba entrando em uma situação de manipulação.
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Rede de Ódio
Ano de lançamento: 2020 | País de origem: Polônia | Direção: Jan Komasa A trama principal gira em torno de Tomasz, um rapaz que faz faculdade paga por uma família rica e se envolve em serviços de campanhas incitando o ódio nas redes sociais.
Eu, Daniel Blake
Ano de lançamento: 2016 | País de origem: Reino Unido |Direção: Ken Loach e Laura Obiols Após uma parada cardíaca, Daniel se afasta do trabalho e busca auxílio financeiro do governo. No meio da burocracia e a barreira da tecnologia que o impede de acessar o auxílio ou voltar ao trabalho, ele conhece uma mãe solteira na mesma situação e eles desenvolvem uma forte amizade, mediada pelas dificuldades de acessar direitos sociais.
Uma história de amor e fúria
Ano de lançamento: 2013 | País de origem: Brasil | Direção: Luiz Bolognesi A trama da animação se desenvolve a partir do amor entre um imortal espírito heróico e Janaína, pela qual ele é apaixonado por mais de 600 anos. O espírito, que habita diferentes corpos ao longo da história do Brasil, vive a colonização, o genocídio indígena, a escravidão, a ditadura militar e finalmente, um futuro distópico de um Brasil no qual somente as classes mais altas tem acesso a água.
O Congresso Futurista
Ano de lançamento: 2013 | País de origem: França e Israel | Direção: Ari Folman Uma atriz em decadência, Robin, não vê outra alternativa senão vender o escaneamento de sua imagem para uma empresa da indústria cinematográfica. A utilização de sua imagem faz sucesso e ela é convidada a um congresso em um local onde tudo é animação.
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impresso em maio de 2021 miolo em offset 90g, capa em couché fosco 250g tipografias utilizadas covik Sans e SK Cuber tiragem 150 exemplares
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agradecimentos apoiadoras e apoiadores do apoia.se Adriano Caro Florio Garcia de Aguiar de Souza
Ana Luiza Vieira Gonçalves Bruno Sangali Cristiana Aprile Leme de Andrade Gabriel
Jeziel E S Matos
Julia Simmelink Clemente
Manoel Rodrigues Alves
Marilia Daniela
Marcelo Suzuki Millena Cristny de Morais
Fortunato Ribeiro da Costa
Sofia
Andreia Caro Florio
Beatriz Silva Costa
Felipe Leme de Andrade Guilherme Garcia Jaqueline Barbosa Joana D’Arc de Oliveira Lucas Campana Marcela C Carneiro Maria Alice Messias Maria do Val da Fonseca Mayara Maruiti Serra Sandra Caro Florio Aline Coelho Sanches Bia Godoy
Chiara Keese Montanhesi
Guilherme Giglio
Leo Yutaka Marra Niizu
Letícia Jardini Braulino de Melo
Marcos Ribeiro Pedro Vieira Gonçalves
Armond
Rayana
Bárbara Barbosa Machado Gustavo Nicolau Gonçalves Mainara Prado Franceschini Chade Simone Vieira
Maria Cristina Rachel Buzzini
Vinicius Galbieri
Severino ✦✦✦ André Ferreira ✦✦✦Gustavo Nicolau Gonçalves ✦✦✦Thiago Ávila ✦✦✦ ✦✦✦ Toni Baptiste ✦✦✦Flávio Camargo✦✦✦ a todas e todos que enviaram seus trabalhos, artes e projetos e que depositaram sua confiança no nosso trabalho