POSTO68 | N.04 - COLAPSOS programados, esperados, necessários

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POSTO68 volume 02 . número 04 dezembro 2021 issn 2675-7230 corpo editorial adriano caro florio ana luiza gonçalves bárbara barbosa machado beatrice volpato teixeira fernanda cassiano gustavo nicolau heloisa cizeski júlia simmelink marcela cordeiro carneiro rute oliveira yasmin carpenter CONTATO revistaposto68@gmail.com

revista semestral

E

m seu quarto número, a POSTO68 se propõe a questionar as relações entre o humano e a natureza, estabelecida de forma hierárquica e linear, pautada por um pensamento extremamente racionalista, e que nos trouxe aos colapsos que vivemos hoje. Por isso, tensionamos não só o debate, mas a própria forma e montagem da revista. Um pensamento central para essa organização foi a ideia de “início-meio-início” colocada por Nêgo Bispo, ao afirmar que nosso pensamento, enquanto seres da natureza, deve ser complexo e orgânico correspondendo aos ciclos da própria natureza. Apesar de nos aliarmos a uma noção complexa e harmônica, para a organização de um debate de futuro, foi fundamental adicionar um filtro de desarmonia e embate sob o qual essa relação se dá. Assim, elementos de construção, destruição e subtração são trazidos com o potencial de revelar camadas, como resultado da constante reconfiguração do meio, criando palimpsestos, apagamentos e aterramentos que materializam os colapsos programados, esperados e necessários. Durante a investigação, foram produzidas duas séries fotográficas pela equipe gráfica, reproduzindo processos de destruição e reconstrução. No primeiro ensaio, jornais contendo notícias dos últimos 4 meses sobre o desmatamento em aumento, os protestos contra a estátua do bandeirante Borba Gato e manifestações contra o governo Bolsonaro foram pintadas, queimadas, cortadas e costuradas. No segundo ensaio, em um processo de retroalimentação, uma primeira versão da capa da n.04, já impressa, foi dobrada, rasgada, amassada, queimada e, posteriormente, escaneada, compondo algumas das imagens que são trazidas ao longo desse número e na capa da revista. Quanto à sua estrutura, propomos uma outra forma de leitura e de interação do leitor com a revista. A proposta é de entrelaçamento dos trabalhos, com a possibilidade de fazer cruzamentos e criar ligações entre eles e, para isso, elaboramos uma revista dividida ao meio, de modo que os trabalhos apresentados na parte superior possam interagir com trabalhos na parte inferior, de forma não linear e única. Assim, diante da intenção de criar outras possibilidades de interação e leitura, propomos que os leitores interajam ativamente no material físico e façam os cortes das páginas indicadas. Apresentamos, por fim o que seugerimos como experiência de leitura da revista e esperamos que muitas outras relações e interações possam surgir desse experimento. Boa leitura!


POSTO 68

colapsos

programados, esperados, necessários


Heloisa Cizeski equipe editorial

Ana Luiza Gonçalves equipe editorial/produção

Rute Oliveira equipe de produção

Júlia Simmelink equipe de produção

Beatrice

Adriano

Volpato

Caro Florio equipe gráfica/produção

equipe editorial

Yasmin Carpenter

Bárbara

Gustavo

equipe editorial

Barbosa

Nicolau equipe de produção

Fernanda Cassiano equipe editorial

Machado equipe gráfica

Marcela Cordeiro Carneiro equipe gráfica


edit

orial

A POSTO68 nasceu com o objetivo de trazer, muito mais do que respostas, inquietações. Retomar debates de um período em que se acreditava em um horizonte de poder popular e acordar o sentimento de revolta que povoou 1968 pelo mundo - temática central da edição piloto da revista, lançada em março de 2020. A revista é nosso espaço de manifestação política, de debate, de troca; se colocando enquanto contraposição à apatia da juventude na busca por outros futuros possíveis a partir de uma ruptura com o capitalismo, o imperialismo, a colonialidade e as demais formas de controle e opressão. Com o acúmulo de debates trazidos em nossos segundo e terceiro números, que se propuseram a discutir, respectivamente, a retomada crítica do passado colonial e seus impactos, e o acirramento neoliberal dentro de uma realidade pandêmica por meio da utilização da tecnologia, entendemos esse quarto número como um cruzamento desses temas, somados a um debate sobre questões ambientais e perspectivas de soluções. A partir disso, propomos a construção de discussões acerca da realidade alicerçada em bases coloniais, que se estrutura na opressão e na desigualdade, desenhada de forma cada vez mais sofisticada e institucionalizada com o avanço de políticas neoliberais; estas, facilitadas pelas tecnologias digitais, vêm reinventando suas formas de exploração de seres humanos e da Natureza. Com isso, o quarto número traz trabalhos que discutem como o paradigma do progresso, hoje, sob a faceta do desenvolvimento, vem pautando uma estrutura econômica e social de reprodução de desigualdades, violências e sistemático desrespeito aos limites ambientais e ecológicos, que têm, como propósito único, a acumulação de capital. Procuramos, com isso, evidenciar como a lógica de busca por crescimento infinito está inerentemente atrelada ao descolamento entre humanidade e natureza. Por transformar a segunda em objeto de posse e em mero “recurso” da primeira, essa lógica legitimou séculos de exploração desenfreada e predatória dos seres humanos e não

humanos. O resultado é a condição de quase irreversibilidade da crise ecológica e do colapso climático presentes, que atingem, de forma mais acentuada, as populações indígenas, quilombolas e periféricas, ao passo que os principais responsáveis são as grandes corporações de países de capitalismo central e suas atuações ecocidas ao redor do planeta. Em nosso quarto número, buscamos colocar em questão, portanto, as bases da narrativa hegemônica de mundo, sobretudo a noção da inevitabilidade do modelo civilizatório colonial-capitalista-eurocêntrico, somandose aos esforços globais que apontam a urgência do debate e da construção de outros caminhos para a humanidade, por meio da ruptura com o capitalismo e com lógicas de exploração. A partir disso, apresentamos este número sob o título “COLAPSOS”, nos referindo àqueles que foram programados, pautados, sobretudo, pela lógica do desenvolvimento; àqueles esperados, referentes à crise ambiental, há anos, prevista e alertada; e àqueles necessários, para que possamos construir outras possibilidades de sociedade, a partir de mudanças de paradigmas efetivas, reforçando a urgência de uma ruptura radical. Para estruturar a temática, elaboramos 5 eixos que seguem uma lógica de: compreensão da natureza e das relações estabelecidas no primeiro, eixo 1: Relação humano-natureza; consolidação da hegemonia global de domínio e exploração capitalista, além da hierarquização dessas relações, no eixo 2: Desenvolvimentismo, Dependência, Neoliberalismo; consequências ambientais dessa relação mediada pelo capitalismo, no eixo 3: Colapsos Ecológicos; as soluções reformistas ou propostas de mudanças estruturais aos problemas apresentados, discutidos nos eixos 4: Os problemas das soluções reformistas e 5: Alternativas emergentes, mudanças emergenciais. Se, em nosso terceiro número, trazíamos, tanto no conteúdo quanto no título, um caráter distópico, nosso quarto número se esforça em combater a resignação e a crítica sem possibilidade de mudança; passo


importante para a temática do próximo número, que abordará os movimentos sociais e os recentes processos de luta e resistência à dominação neoliberal. A crise climática e ambiental contemporânea é pauta reincidente nos debates mundiais e entre grupos ambientalistas. Entretanto, a disseminação desse debate, a nível do cotidiano, parece, ainda, muito tímida e descolada de perspectivas mais radicais de mudança, sendo muito pautada em mudanças individuais de hábitos. A abstração que se tem ao correlacionarmos mudanças climáticas à nossa vivência, no dia a dia, transparece essa separação, tão enraizada, entre humanidade e natureza. É preciso que tomemos consciência de que a crise ambiental nos afeta diariamente, para que façamos parte da pauta constante de luta e reivindicação popular, a fim de que pensemos outras formas de organização econômica, social, territorial, cultural e política. Um novo relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS) coloca as mudanças climáticas como uma das emergências de saúde mais urgentes que enfrentamos. De acordo com a UNICEF, ao menos um bilhão de crianças e adolescentes vivem em um dos 33 países com risco climático extremamente alto e já convivem com, ao menos, um perigo ambiental, como ondas de calor, ciclones, poluição do ar, enchentes e escassez de água. Cinquenta cidades do planeta correm o risco de sofrer inundações ou, até mesmo, desaparecer, por completo, até o fim do século, devido ao aumento do nível dos oceanos, o que corresponde, nas projeções pessimistas, a 800 milhões de pessoas - 10% da população mundial. O agravamento das condições climáticas configura um cenário em que, até 2050, segundo o Relatório Groundswell, 216 milhões de pessoas, no mundo, poderão se tornar refugiados climáticos, com destaque da área de alerta para a América Latina e seus 17 milhões de migrantes climáticos. Esse recorte de números e relatórios evidencia a magnitude dos efeitos das mudanças climáticas, mas a analogia de que “estamos no mesmo barco” não dá conta da realidade concreta. Inseridos em um sistema desigual, as crises agravam as diferenças já existentes e afetam, com mais intensidade, as populações que já têm seus direitos fundamentais negados. Assim,

pessoas negras, indígenas, de comunidades tradicionais ou periféricas, quilombolas, mulheres, imigrantes e LGBTQIA+, além das populações expostas às situações de escassez de água, alimento, falta de condições dignas de moradia e saneamento básico, sofrerão as consequências de forma mais intensa. A realidade é que estamos todos no mesmo mar, mas alguns estão estão em um cruzeiro, alguns em uma canoa e alguns não possuem nem um colete salva-vidas. Outra camada que se sobrepõe aos grupos marginalizados é a localização geográfica destes. Dado o processo de colonização dos países do Sul global pelos países imperialistas e as decorrentes relações de dependência e subalternidade, os países que emitem menos gases do efeito estufa têm menores condições de arcar com os altos custos das catástrofes ambientais, por conta das mudanças climáticas; em contrapartida, os países mais responsáveis pelos altos índices de emissão possuem mais recursos e autonomia para atuarem no enfrentamentos dessas situações. Fala-se, assim, de racismo ambiental - desigualdade entre povos atingidos pelas mudanças climáticas - e justiça climática - defesa dos direitos dos grupos mais atingidos. 10% dos países mais ricos do mundo foram responsáveis por cerca de 50% das emissões globais de carbono em 2015, segundo relatório de 2020, da Oxfam e do Stockholm Environment Institute, enquanto isso, 50% dos países mais pobres do mundo foram responsáveis por, somente, 7% das emissões globais, e sofrerão a maior parte das consequências climáticas. Além disso, não nos tratamos, apenas, sobre o modo de consumo da elite que desconsidera as questões ambientais, mas também sobre esse grupo definir o estilo de vida desejável que todos aspiram, tornando, ambientalmente, insustentável o padrão de consumo concebido. Enquanto essa pequena parcela da população pode se proteger e ostentar uma vida “sem” efeitos diretos das mudanças climáticas - potencializando, muitas vezes, um discurso negacionista -, outra parcela da população sofre com as consequências diariamente. Neste ano, presenciamos alguns eventos e movimentações mundiais em torno das mudanças climáticas, em agosto, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) emitiu seu sexto relatório, fornecendo avaliações


EDITORIA

científicas sobre as mudanças climáticas, suas implicações, possíveis riscos futuros e propostas de adaptação. Ponto de grande relevância no relatório é o consenso científico de que as emissões de gases do efeito estufa foram intensificadas pelo homem e que, portanto, as atividades humanas são responsáveis por um planeta menos estável. Por isso é urgente e emergencial que ações governamentais sejam tomadas em prol da redução das emissões desses gases até 2030 - data limite para reduzir, pela metade, as emissões, o que dará, para a Terra, 67% de chance de manter o aquecimento abaixo de 1,5ºC de aumento, segundo dados do Mercator Research Institute on Global Commons and Climate Change (MCC). O debate sobre a redução da emissão dos gases do efeito estufa (GEE) é mais concreto do que ouvimos falar e depende da forma como nos organizamos, econômica e socialmente, nas cidades, nossa geração de energia, políticas de conservação dos biomas, fornecimento de água e saneamento, gestão dos resíduos sólidos, sistema de mobilidade urbana, produção e distribuição de alimentos, entre outros pontos que precisam ser elencados e repensados nos próximos anos. Esse foi o tema central da discussão na Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas, COP-26 - principal cúpula da ONU para debate sobre questões climáticas - realizada em novembro de 2021 em Glasgow, na Escócia: reduzir as emissões dos GEE para limitar o aumento da temperatura nas próximas duas décadas. Os combustíveis fósseis, nunca antes mencionados, foram colocados como agentes na crise climática e também a necessidade de substituição dessas fontes de energia. Obtivemos avanços nos acordos de futuras reduções de emissões, porém a COP-26 falhou com aqueles mais afetados pela crise climática agora; a União Europeia e os EUA recusaram-se a criar um fundo de financiamento climático, prometido aos países mais pobres, que possibilitaria que estes pudessem recorrer com uma resposta à crise climática. Esse resultado, para Mohamed Adow, diretor do Power Shift Africa, reflete uma COP realizada no mundo rico e o resultado contém as prioridades do mundo rico. As negociações entre governos e corporações, marcadas por práticas de greenwashing, a portas fechadas, que impediram a participação da sociedade civil organizada,

deixam claro a reprodução das mesmas lógicas imperialistas que marcam o neoliberalismo contemporâneo em sua face mais autoritária. Ao passo que mais de 100 milhões de ativistas se reuniram, nas ruas, denunciando as violências políticas nos diversos territórios do mundo, desmascarando a responsabilidade que os países ricos têm nas mudanças climáticas e na consequente vulnerabilidade dos países do Sul, o debate sobre cooperação internacional parece ter ficado, apenas, na teoria. A COP-26 teve a maior representatividade indígena e de comunidades tradicionais da história. A participação brasileira foi muito significativa, se contrapondo ao descaso com relação à essas populações no Brasil, durante o governo Bolsonaro, internacionalmente conhecido - e denunciado pelo tribunal de Haia - pelo genocídio de povos indígenas. Jair Bolsonaro, além das inúmeras denúncias quanto à má gestão da pandemia de Covid-19 no Brasil, tem seu governo marcado pelo maior desmatamento da Amazônia desde 2006. O governo brasileiro se coloca contra a corrente na luta contra a crise climática, respondendo não aos interesses coletivos de conservação de nossas estruturas ambientais, mas aos interesses privados de grandes corporações, principalmente do setor agropecuário. O Brasil, enquanto peça fundamental na tentativa de controle do aumento de temperatura da Terra, precisa estabelecer, com caráter de urgência, políticas efetivas de contingência à devastação e conservação de seus biomas. Enfrentar a crise ecológica exige que ampliemos nossos interesses para além do mundo e é nessa perspectiva que trazemos este número, buscando outros olhares e possibilidades de compreender e agir em defesa da nossa - humanos e não humanos - existência. O conteúdo apresentado, na revista, é composto de produções do corpo editorial e de trabalhos recebidos por meio de chamada aberta, sendo fruto do pensamento e dos acontecimentos de seu tempo. A partir disso, propomos uma construção de narrativa não linear e que exige que o(a) leitor(a) participe, ativamente, em sua construção. Sendo assim, a ordem de conteúdo apresentada, aqui, é meramente organizacional, não ligada à real concatenação de trabalhos presentes neste número. Como um dos conteúdos fixos da revista, propomos


uma linha do tempo com os principais acontecimentos dos meses correspondentes ao número, garantindo, assim, uma expressiva periodização do contexto dos trabalhos. Desta vez, a linha do tempo ganha um quadro irmão, a cartografia dos colapsos ambientais, que surgiu da necessidade de mapear e registrar os diversos eventos climáticos que acontecem com cada vez mais frequência e intensidade - como as tempestades e secas atípicas, tempestades de areia, queimadas e degelos, entre tantos outros -, em que fica evidente o desequilíbrio da natureza frente ao processo desenfreado de exploração. A partir das recorrentes notícias de desmatamento e incêndios nos principais biomas brasileiros que, não coincidentemente, aumentaram mais ainda desde o início do governo Bolsonaro - que fundiu os antagônicos Ministério da Agricultura e do Meio Ambiente e colocou um representante do agronegócio, Ricardo Salles, no comando da pasta - no quadro Perfil, deste número, optamos por trazer, não a história de uma pessoa ou de um grupo, mas sim do segundo maior bioma da América do Sul, o Cerrado. No quadro Projeto, trazemos um texto comissionado, produzido por Juliana Sampaio Farinaci, a respeito da iniciativa Divino Alimento de São Luís do Paraitinga, no Vale do Paraíba. A iniciativa se pauta na soberania alimentar e na busca de consolidar um ciclo entre produção e distribuição de produtos agroecológicos, garantido a alimentação de famílias em situação de vulnerabilidade social, em decorrência da pandemia de Covid-19. No mesmo sentido de trazer novas perspectivas e olhares para o debate, este número conta com uma entrevista com Geni Núñez, psicóloga e militante do povo Guarani, que nos convida a repensar a própria categoria e ideia de humanidade, bem como os caminhos da luta indígena no Brasil atual. Complementando o debate, a entrevista com Renato Emerson dos Santos, professor do IPPUR e geógrafo, traz a importante reflexão sobre o papel das ciências, em especial das humanas, como ferramenta de dominação de saberes culturais, instrumento que possibilitou a dominação colonial (no caso da geografia, em especial) e de seu potencial, quando subvertido, na autodeterminação dos povos.

Além das entrevistas, esse número conta com uma variedade de trabalhos que trazem a urgência de se pautar formas outras de se relacionar com o planeta e se soma aos esforços de frear a crise ambiental. Abrimos a seleção de contribuições com a poesia Encontraram Resquícios de Vida, de Luísa Acauan Lorentz, que nos permite vislumbrar para onde o terror expansionista, desse sistema de destruição, tem nos levado e nos convida a pensar em mudanças inadiáveis de percurso. Uma das editoras da revista, Ana Luiza Gonçalves, nos empresta sua imaginação na crônica Pedras no Caminho, para repensarmos a história que o Brasil conta de si mesmo. As bases coloniais desse país e sua narrativa - que sempre glorificou os algozes de seu próprio povo - é posta em cheque, numa história que bem que se gostaria que fosse real. O trabalho E se o crime da Braskem fosse em São Paulo?, de Desirée Carneiro, traz a inseparabilidade da questão racial e regional para o debate sobre justiça ambiental no contexto brasileiro, a partir do caso do crime da Braskem em Maceió. Em seu artigo, Desirée evidencia como diferenças de região, raça e classe, estão, diretamente, atreladas à negligência estatal e à visibilidade e impacto que crimes ambientais, que vulnerabilizam e destroem vidas e territórios inteiros, têm na sociedade. No artigo Interromper o silêncio, Guilherme Machado Giglio nos remete à necessidade de se buscar alternativas possíveis para a minero-dependência no Brasil, em especial, no Quadrilátero Ferrífero mineiro - vitimizado por incontáveis crimes que a atividade mineradora, de raízes e justificativas coloniais, produz. Em Desenvolvimento e Sustentabilidade, a autora Lívia Maria Vieira Pereira nos atenta para o perigo das falsas mudanças, evidenciando como a narrativa do desenvolvimento sustentável nada mais é do que uma contradição em si mesma; uma repaginação do neoliberalismo predatório que subordina a Natureza à busca pelo “progresso”, por trás de uma fachada, supostamente, ecológica. O ensaio Colapso, Escrita, Metáforas, de


EDITORIA

Eduardo Bruno, é um afago e um sacolejo. Nos relembra de que as realidades em que vivemos, ainda que compartilhadas, são, em muito, distintas - ao clube da humanidade é dado bote e colete salva-vidas em meio à tempestade, enquanto, aos outros, a única opção oferecida é a de congelar no mar. Ainda, o autor retoma o fato de que essa estrutura sócio-econômica, que vemos colapsar, tem cosmologia própria e que outras formas de se pensar e existir no mundo se fazem necessárias se quisermos construir uma nova sociedade que não devore a si mesma com sua busca por crescimento infinito e técnicas avançadas de autodestruição. Em diálogo com o ensaio anterior, caminhando na direção de apontar outras narrativas possíveis, Filosofia Indígena Descolonial: Ponchos Rojos de Bolívia, Rondas Campesinas do Peru, de Hilder Alberca Velasco, apresenta movimentos campesinos indo-andinos a partir do elemento comum à construção coletiva de um outro imaginário e, embasado nele, outras práticas que atuam como resistência e luta contra o colonialismo e o capitalismo desde o Sul Global. Os trabalhos gráficos desse número, além do material desenvolvido pela própria equipe gráfica da revista, contam, igualmente, com submissões enviadas por meio da chamada aberta. Iniciando a sessão de trabalhos gráficos, Carlos Eduardo Cano traz Agrotóxico, que, a partir de uma colagem digital, propõe a reflexão sobre a presença do composto químico 24D, presente no agente laranja - umas das principais armas químicas usadas pelos EUA durante a Guerra do Vietnã - e nos agrotóxicos usados em lavouras de soja e milho no Mato Grosso. Na série fotográfica Nós, Camila Ribeiro Castro, Marina Gil de Pádua e Makki Omura, trazem o reconhecimento de uma matriz comum de violência entre corpos e territórios, baseada na colonialidade do poder e sua relação intrínseca com a modernidade. Por meio de um olhar sensível e potente, elementos como racismo, patriarcado e capitalismo são trazidos para pensar a produção e agenciamento de corpos subalternizados de Abya Yala, colocando, em debates, as perspectivas binárias de masculino/ feminino, mente/corpo, sujeito/objeto,

ciência/misticismo, progresso/atraso. Nas charges Lupa Imperialista e A mão “invisível” do mercado, Gabriel Tropz debate a exploração desenfreada da natureza pelo capitalismo, a partir da lógica de desenvolvimento e crescimento permanente, ignorando os limites do planeta, entendido sempre como recurso a ser explorado. Na obra Delimitar, Bruno Oliveiras traz a questão do colonialismo, neocolonialismo e outras formas de exploração e controle a partir de uma estrutura de correntes e arame farpado em uma figura grotesca que traz, consigo, a representação dessas estruturas de poder. Na série de colagens ROTAS, Guilherme Borsatto propõe a sobreposição de elementos, criando quase que um código que nos faz identificá-los como parte do mesmo. As colagens são compostas de etiquetas postais recebidas durante o período do isolamento, propondo um debate acerca da estrutura social progressivamente mais verticalizada, que garante conforto a poucos em troca da exploração e precarização de muitos. O conjunto de imagens e vídeos intitulado JOSÉ, desenvolvido por Julie Dias, debate a relação entre corpo e espaço e a existência de objetos criados para suprir necessidades vitais e criados a partir de demandas artificiais do sistema capitalista, consolidando um ciclo insustentável de consumo e descarte. A artista propõe um debate acerca da memória e história desses objetos, a partir de uma narrativa não apenas poética, mas política. Por fim, na série de colagens Ir para a cidade, Lucas BRACO sobrepõe diferentes elementos para criar uma nova percepção sobre o urbano - em um processo que se aproxima da proposta estética colocada pelo presente número. A partir de fotografias autorais sobre o processo de urbanização e trechos escritos, o artista propõe evidenciar as contradições inerentes ao corpo marcado pelo urbano. Acreditamos que esse não seja um debate que se esgota nesse número, mas que ele possa trazer elementos de aprofundamento de questões para a construção de mudanças concretas. Desejamos uma boa e inquietante leitura e reflexão.


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o Silêncio: alternativas para minériodependência no Quadrilátero Ferrífero (MG)

_ Guilherme Machado Giglio_ Interromper

Du Cano _ Agrotóxico

Lucas BRACO _ Ir para a cidade

Heloisa Cizeski _ O Cerrado Brasileiro_ Perfil

Gabriel Tropz _ Lupa Imperialista

Pedras no caminho _Ana Luiza Gonçalves

_Gabriel Tropz

A mão invisível do mercado

Desenvolvimento e sustentabilidade: um casamento possível? _ Lívia Maria Vieira Pereira

Rotas _ Guilherme Borsatto

_Luísa Acauan Lorentz

Encontraram resquícios de vida

Nós _ Camila Ribeiro Castro, Marina Gil de Pádua e Makki Omura

b Entrevista _ Geni Núñez

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Braskem fosse em São Paulo?

_ Eduardo Bruno

Colapso, escrita, metáforas

Filosofía andina indígena descolonial: ponchos rojos de bolivia; rondas camponesas do Perú _ Hilder Alberca Velasco

Projeto _ Divino Alimento _ Juliana Sampaio Farinaci

Delimitar _ Bruno Oliveiras

JOSÉ _ Julie Dias

Desirée Carneiro _ E se o crime da

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Entrevista _ Renato Emerson dos Santos

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ár cartografia ambiental

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Entrevista com Geni Núñez por Heloisa Cizeski e Yasmin Carpenter

Geni: Meu nome é Geni Núñez, pertenço

Yasmin: A proposta da quarta

edição da revista é trazer alguns debates sobre o colapso ambiental e sobre o paradigma do desenvolvimento. Esse paradigma vem justificando inúmeras violências para que, enfim, se alcance um ideal de progresso, que está, na verdade, nos levando para um ponto quase irreversível de destruição da natureza - e nos incluímos enquanto natureza também. Pra gente abrir, a primeira coisa que queríamos trazer era justamente a discussão sobre a narrativa, a mentalidade, a forma de se pensar o mundo que nos trouxe até aqui. Temos vivido um somatório de diversas crises, uma crise espiritual, climática, econômica, uma crise da prórpia moral colonial capitalista, que são sintomas de uma estrutura social e de uma visão de mundo que já não tem soluções para propor - muito pelo contrário,

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Como você vê, essa monocultura de exploração da terra, da fé e dos afetos, suas origens e relações com o cristianismo e o colonialismo, e a consequente negação da vida na Terra e com a Terra? Como essa mentalidade, essa monocultura, nos separa da natureza e como, enfim, destrói essas possibilidades de outras formas de vida?

G: Que pergunta maravilhosa! Essas reflexões remontam ao que Fanon dizia sobre o mundo colonial ser um mundo dividido em compartimentos. Dos compartimentos que mais saltam, alguns são o de natureza e cultura humanoanimal, selvagem e civilizado, progresso e desenvolvimento... esses pares organizam o mundo colonial. Na leitura de Nietzsche, o cristianismo importa alguns pressupostos do Platonismo como fundamento explicativo do mundo. Esses pressupostos são, justamente, essa visão binária de um mundo real e um mundo ideal, como se esses fossem um par de oposição no qual corpo e mente estariam como inimigos. Acho que esse é um começo pra pensar essa questão. Tem toda essa narrativa de que a Terra seria o lugar amaldiçoado no qual já viveríamos em pecado e que seria, apenas, uma passagem para a vida verdadeira, a vida ideal. Essa noção de negação do corpo, de negação da Terra, se faz com a positivação dessa ideia do Céu como ideal.

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ao povo Guarani e minha formação é principalmente na área da psicologia; fiz minha graduação na área, depois, mestrado em psicologia social e, agora, faço doutorado no programa interdisciplinar em ciências humanas, todos na UFSC. Durante todo esse percurso, senti presente aquele embate entre academia e ativismo. Meu ativismo é anterior à minha entrada na universidade e, muitas vezes, é difícil a gente conciliar esses dois ambientes, mas fico muito contente porque, de certa forma, isso vem sendo repensado. Esse incômodo com determinados enquadramentos acadêmicos vem tomando um corpo mais forte nos últimos anos, e pessoas incomodadas juntas podem fazer muita coisa. Também faço parte da Articulação Brasileira de Indígenas Psicólogos (ABIPSI) - que convido as pessoas que forem ler a conhecerem -, e da comissão Guarani Yvyrupa (CGY). É por esses caminhos em que percorro com meu ativismo, nos movimentos sociais e na academia.

a gente sabe que ela só nos trouxe, historicamente, o desastre, a violência, o genocídio e, agora, está nos levando rumo ao colapso climático. Mesmo assim - e isso é uma coisa sobre a qual sempre me pergunto -, essa mesma monocultura da racionalidade colonial capitalista, que vem se repaginando desde 1492, que vem gerando tanta violência e destruição, mantém, ainda hoje, sua hegemonia - ela é a narrativa dominante de mundo, mesmo que seja evidente que ela causa muita destruição e sofrimento a todos os seres.


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Algo que sempre trazemos no movimento indígena é que não buscamos nossa saúde “lá em cima”, nessa ideia de paraíso, mas aqui embaixo, na Terra. Então, acho que o próprio mote de busca é outro.

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Você comenta na pergunta, como isso persiste sendo tão violento, tão desigual? Como isso tudo se atualiza? E uma das apostas que eu tenho é que a colonialidade é definida pelo seu lado bom. Isso é, também, uma forma de atualizar a vigência desses sistemas, o tempo todo; por exemplo, quando

eu me nto falo ind sobre o íge cristianismo na como essa sobreposição global de pensamento, muitas vezes, as pessoas comentam: “os maus cristãos são um problema, tem quem não segue o verdadeiro cristianismo” - isso me parece uma maneira de trazer esse viés moral, mesmo de um bom e de um mau cristão, do verdadeiro e do falso de novo. Eu tenho tencionado isso: se a gente atribui tudo aquilo que é violento a algo que não é a verdadeira essência da colonialidade, ela continua em vigência.

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Não é apenas a prática de quem tem esse enquadramento político cosmogônico cristão que é um problema, é a própria teoria, é a própria filosofia de mundo que traz, no seu bojo, uma infinidade de questões para se pensar. E, aqui, não vou no caminho de uma exegese cristianismo, porque não é a minha área de pesquisa, nem meu campo, mas é pensando nos efeitos disso no contemporâneo. Que efeito essas narrativas têm hoje?... Eu lembro que, quando criança, eu ouvia na igreja alguns trechos da Bíblia e me impressionava muito com o lugar que outros seres, outros bichos, especialmente, tinham nessa narrativa. A começar por Gênesis, quando se tem essa deixa de que Adão nomearia todo mundo e que o mundo todo teria sido feito (inclusive a Eva) para ele. A mensagem que fica é: “domine o mundo, o mundo foi feito para você” - o que eu tenho chamado de um terraplanismo simbólico, que orienta essa

lógica. Quando a hipótese heliocêntrica foi proposta, ela foi tida como muito herética, justamente porque quebrava essa ideia do humano como centro do mundo, já que ele seria espelho de Deus, criado à sua imagem e semelhança. Desses trechos, um que dialoga bastante com o nosso tema é de uma cena em que Jesus está caminhando e com fome e ele passa por uma figueira; naquele momento, a figueira estava sem frutos, não era época de dar frutos e ele, então, se enraivece com aquilo, amaldiçoa a figueira e ela morre. Essa cena, para mim, é muito importante para o que estamos falando; a figueira é uma árvore frondosa, gigante, que abriga centenas, milhares de seres, que é sombra, que é vento... ela não precisa dar frutos para um humano para justificar sua existência. Fico pensando muito nessa narrativa, porque esse lugar de colocar os bichos e os não-humanos, no geral, como algo que serve, como algo útil, como coisa e mercadoria, já vem de muito tempo. No pensamento de Aristóteles, tem um trecho que me marcou muito quando li, em que ele que comenta: não se pode nã ter amizade com ob objeto; e usc ele a

mo sn oss a sa úde

cita como objeto o escravo e o boi, que seriam dois seres com os quais não se pode ter amizade. O que a gente busca fazer é, justamente, o oposto. Toda pedra é preciosa e todo animal é de estimação, eles não estão no mundo para servir à nossa expectativa de utilidade e produção ou de desenvolvimento. Então a relação que a gente tem com os outros seres é de parentesco.

Um dos estudos que eu tenho feito, nos últimos anos, é sobre essa discussão do antropoceno; o chthulucene e todos os cenos que têm aparecido. Em alguns desses textos, eu via uma espécie de ressalva, que dizia que o problema do mundo, a violência, não estariam no “humano”, afinal, povos indígenas, de quilombos e outras comunidades originárias não teriam essa relação de violência, de predação, com os outros seres. Essa ressalva é feita como um suposto gesto antirracista, de dizer que não são todos os humanos que são violentos e o que tenho pensado, e ainda está se organizando, então vou compartilhar um


pouco desse caminho mesmo, é que sim, esse é um problema do humano em si. Para mim, como indígena, alguém que acha que é um elogio me chamar de humano está errando.

Essa é uma perspectiva que vejo até em espaços críticos e que me incomoda. É uma defesa do humano como se ele fosse uma descrição da nossa existência e não é, de fato, uma descrição, é uma invenção de uma hierarquia. Eu lembro,

Eu vejo que, nesse processo de tentarem nos reconhecer como humanos, às vezes, tem essa movida de que o racismo, por exemplo, se efetiva nessa ideia, de que nós não somos humanos; então a desumanização é uma forma de tornar nossa morte de alguma forma palatável afinal, se não é humano, não conta como morte, não conta como assassinato. Percebo que essa noção de humano precisa acabar e, às vezes, a gente fala disso e as pessoas associam o fim do humano com o fim concreto do corpo, só que eu falo do fim do humano como um fim absolutamente necessário, na minha perspectiva, para essa reparação dos danos que a gente têm feito aos outros seres e a nós mesmos, como o caminho inevitável de uma reparação. Essa ideia de um melhoramento do humano, que salva a Amazônia, que se coloca nesse lugar, nesse espectro de salvador, é algo que me incomoda muito e que a gente sempre pauta. Se tem alguém que salva alguém, é a Amazônia que nos salva. É possível que a gente se empenhe nessa luta sem se colocar nesse lugar de salvacionista dos outros seres. Então não é que nós, indígenas, somos humanos especialmente bons, é que a gente se afastou do humano, e não o contrário. Esse projeto, que busca colocar mais gente nessa noção de humano, me incomoda um pouco, porque retoma àquilo que eu falava no início, por essa ferrenha luta de defender algo pelo seu lado bom; e o que a gente pauta é que não tem o lado bom e o lado ruim, é que o direito à vida não seja sobre moral, nem de bem nem de mal. Parece, às vezes, que só é moral se você fala do lado ruim, mas é moral, também, se você fala do lado bom. Acho que esse é o desafio que tenho sentido de levar essas discussões.

para e d a i e d i a s s ís m cima”, ne o, m as inclusive, aq de ter na faculdade algumas matérias ui de psicologia do desenvolvimento que “lá e

explicavam que o macaco chega até tal ponto, mas o que torna as características do humano superiores a dos outros bichos é tal e tal. E isso, de novo, pra mim, é um terraplanismo, porque se a gente pega as características da formiga, do golfinho, da aranha, os outros seres também não as tem; é uma impossibilidade elencar características que tornariam determinado animal superior, se falamos de algo que os outros não terão; e reciprocamente. A existência passa por esse lugar de uma diferença recíproca, só que essa diferença, do humano, não é recíproca, ela é

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Y:

em ba ix o,

Incrível, Geni, isso já dá um giro tamanho no nosso pensamento, em várias dimensões. Acho que, até onde estou familiarizada com esses debates, reivindica-se muito o fim da separação entre humano e natureza, mas ainda há sempre um

na

Te rr a”

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A positivação do humano é feita a despeito de toda a chacina realizada em nome desse projeto. Até o vocabulário na área da saúde aponta isso - utilizamos ‘por um tratamento humanizado’, como sinônimo de tratamento bom, que é ser tratado como humano; da mesma forma, se utiliza ‘fui tratado como um animal’ como sinônimo de ser maltratado. Toda essa positivação do humano se faz de um parasitismo com os outros seres, o elogio do ‘humano’’ se faz de utilizar os outros seres como sinônimo de ofensa e isso em vários campos. Desde a misoginia, a gente pode ver ofensas como vaca, galinha, cachorra, veado; macaco no racismo, cobra, onça, rato, porco... é um vocabulário extremamente extenso de acionar esses outros seres como uma pretensa forma de nos ofender, dizendo que a gente se parece com os bichos. O humano, então, não se trata de um bicho dentre vários, mas se trata da negação do animal; é uma entidade que se define não por fazer parte, não por ser um dentre vários, mas por ser aquele que não é animal. Dentro dessa lógica colonial, se tornar civilizado, se tornar humano, é deixar de ser bicho.

hierárquica, é colonial...


certo apego na categoria “humano”; existe essa hierarquia, essa dicotomia, essa separabilidade, que coloca o humano como diferente, superior, que tem algo de especial em relação aos outros seres, ou à própria natureza - a montanha, o rio ou o que quer que seja. Sua fala dá um giro nessa lógica e acho que é um passo essencial pra gente superá-la.

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H: Me lembra bastante a passagem do Krenak quando ele fala sobre humanidade: “Que humanidade é essa que vocês estão me colocando?”. Acho que a gente está num momento em que todos esses conceitos precisam ser revistos intensamente e não é um processo fácil rever coisas que estão tão enraizadas na gente. Acho sensacional que você conseguiu entrar nessa questão, dar a volta e responder nossa pergunta. Y: Seguindo nessa linha de diferentes entendimentos de mundo, como você vê o papel dessa disputa de narrativas, hoje, na busca por uma sociedade mais justa e um planeta mais saudável? E como você vê isso dentro do contexto das redes sociais, fake news, polarização e negacionismo? Como você vê o seu próprio trabalho dentro desse espaço? G: Um mecanismo que eu observo no negacionismo é que ele tem, como objetivo, trazer uma conciliação emocional para quem perpetua essa lógica. Se a gente observa, por exemplo, a misoginia, quando surge um caso de denúncia de um “E estupro, essas pessoas que nt en se recusam a acreditar acionam muito essa do ideia “ah não, qu mas ele é meu e

tu

fazem não é afirmar “sim sou racista”, “sou misógino, negacionista”, mas sim questionar a legitimidade daquilo que é posto. Esse movimento negacionista tem um elemento de conciliação emocional; da pessoa se sentir bem consigo mesma, ao passo em que descredibiliza essas questões. Sobre fake news, a primeira é a de que o Brasil foi descoberto, que tem um componente político também na mentira. Eu, particularmente, não tenho muitas questões com mentira e verdade (porque acho que [a realidade] é mais complexa que isso), mas determinadas ficções podem produzir a vida, podem gerar saúde, e outras não. Não estou buscando a verdade em si, mas identificar que tipo de narrativa produz ou não uma saúde coletiva. O negacionismo me parece ser uma maneira de continuar o que está sendo feito e apartar esse incômodo que se apresenta quando a gente reconhece que aquilo é válido. Tenho lembrado que no livro “Condenados da terra”, Fanon comenta alguns estudos da época dele, em que alguns psiquiatras brancos diziam que os países colonizados inconscientemente desejavam ser invadidos. Ele toma esse exemplo que dialoga muito com a ideia de que uma relação de violência seja resultado do desejo da vítima, desde essas violências misóginas transfóbicas, até essa visão macro. Há um certo evolucionismo que é bem problemático neste campo, dito espiritual, e que me preocupa. É problemática essa noção de progresso, de evolução, mas parece que está tudo bem usar essa lógica no âmbito espiritual; isso me causa um incômodo porque a perspectiva do tempo como algo que é evolutivo (que faz parte do progresso), a ideia de que “vai melhorar” conforme o tempo passa, isso é, de novo, a lógica cristã que coloca o fim da vida terrena e essa vinda da vida futura como o único alívio possível da miséria dessa própria vida (como na expressão “passar dessa para uma melhor”), pra tentar ficar mais confortável com essa vida; por

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continua i a v , m i m antes de o t i u m m

do amigo, ele é uma ve pessoa que conheço super bem”. A defesa dessa estrutura [de violência] nunca se faz abertamente, como “eu sou a favor do estupro” - isso é presente em grupos muito pequenos de uma supremacia mais localizada. No geral, o que as pessoas

entender que uma melhor virá. Essa noção de que, no futuro, a vida vai ser melhor, de que o tempo cura tudo; essa ideia de que a passagem do tempo traz uma melhora… mas, a meu ver, às vezes, a passagem do tempo aumenta a ferida ao invés de curá-la, o tempo não é linear assim.


Pensando, agora, na segunda parte da questão, sobre meu trabalho, sempre digo que é um convite - é tudo que eu posso fazer. Eu não tenho a pretensão de catequizar nem converter ninguém. Agora, o que eu az busco fazer é ampliar o f leque de perspectivas te n sobre e

epoi s d o t i u m

o

que é um convite, fico muito feliz quando as pessoas aceitam, mas não entro num movimento ressentido quando isso não acontece. Entendo que tudo vem muito antes de mim, vai continuar muito depois e a gente faz o pouquinho que a gente pode. É, nesse sentido, que penso essas questões. Quando faço as postagens e tudo mais, fico muito contente que a maioria das pessoas é muito respeitosa e carinhosa. Mas sempre tem um outro lado de pessoas que têm uma discordância; entra, aqui, a desumanização: ela não me vê como humano, e como ela vê bicho de uma forma extremamente violenta, me tratar dessa forma é parte desse projeto. Muitas vezes, não vem uma discordância, a pessoa tenta me ofender pela minha pele, meu cabelo, minha existência e isso é muito difícil de lidar, porque uma coisa é a gente ter uma conversa, discussão, discordância, outra é quando a pessoa vem nesse movimento de ataque e desqualificação. Mas também não é diferente fora das redes sociais e do que a gente já vê. Fico pensando em estratégias para sobreviver no mundo, entendendo que o virtual também é real. Faz parte da nossa vida, ainda que não tenha materialidade sobre nosso dia a dia. Tenho tentado, junto ao fortalecimento do coletivo, não me deixar adoecer por esses espaços e as dificuldades que eles trazem muitas vezes.

ho que a ge n nte po ui de” q u

po

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determinada situação. Essa ampliação é aquilo que eu consigo fazer, mas o modo que as pessoas recebem, entendem, pegam para si ou não, é algo que eu sempre tenho muita tranquilidade de não me centralizar, não tomar pra mim esse tipo de tarefa, senão a gente adoece. Eu não pretendo mudar o mundo, é a gente que tem que mudar. O mundo está ótimo, não tenho nenhum projeto nesse sentido. Penso muito nesse caminho

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Y: Agradeço

muito, porque imagino que não seja fácil ocupar esses espaços. O mundo fora das redes é muito hostil e, dentro das redes, com esse suposto anonimato e distanciamento, as pessoas se permitem ser, às vezes, ainda mais hostis. Tenho visto seu trabalho chegando em cada vez mais pessoas e fico muito feliz quando vejo que elas estão dispostas a ouvir.

H: Gosto muito do jogo de palavras e do convite para desconstruir ditados que a gente já tem. “Mudar o mundo” parece muito simplório, mas tem uma força muito grande, porque a gente repete isso quando vemos tudo

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Sinto esse desafio do ponto de vista de não dividir mente e corpo, que ideias a gente corporifica, quais pensamentos circulam nossas veias, artérias, e que tornam nossa existência esse movimento de progresso e evolução. Esse movimento negacionista é uma barreira emocional muito grande e é um desafio para os movimentos sociais. Penso, por exemplo, na luta antirracista; há muito debate sobre a importância da educação - concordo -, mas, ao mesmo tempo, a educação, pensada nesse enquadramento de quem passa e de quem recebe, também tem uma severa limitação como projeto revolucionário, pois as pessoas nao são tábula rasa a receber o que a gente diz. Por outro lado, isso acaba nos trazendo uma responsabilidade e até uma culpabilização das violências que a gente sofre; fulano é machista porque a mãe não ensinou bem o suficiente, ou as pessoas negras e indígenas não estão conscientizando as pessoas brancas o suficiente - isso tem, pra mim, um problema que ignora o pacto emocional que se tem com o privilégio. Então, quando uma pessoa nega uma determinada situação, essa negação não necessariamente vem de uma falta de acesso ou consciência, mas pode vir, justamente, da defesa desses lugares tal como eles estão postos. Eu sinto que, às vezes, nós, como coletivo, precisamos pautar mais essa barreira emocional, psíquica, que tem uma dimensão política muito forte nessa afetação.


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acontecendo, a situação atual que fomos submetidos por conta desse sistema; e eu repito isso comigo mesma. E, ao ouvir você colocar uma outra abordagem para esse sentimento, em que não vou mudar o mundo, não quero, mas que eu possa me mudar, então, para ver como isso vai refletir no todo, dispara muitas reflexões.

Y: Mais especificamente sobre a crise ambiental e climática, um dado que eu tenho visto correndo muito por aí, que é importante chegar nas pessoas, é que os povos indígenas representam cerca de 5% da população do planeta (que é um número em disputa), mas que essa parcela reduzida tambem protege mais de 80% da biodiversidade do planeta (ONU), o que nos diz algo muito importante. Ouvimos muito falar de racismo ambiental e o impacto da distribuição desproporcional dos efeitos dessa crise ao redor do planeta e a gente queria saber se você pode falar um pouco mais sobre isso e como você acha que as diferentes cosmologias dos povos indígenas e suas práticas, desde toda sua pluralidade, oferecem alternativas ou caminhos para superar esse colapso. G: Tenho pensado que essa hierarquia entre humano e animal organiza todas as violências, porque, quando se assassina um rio, por exemplo, é porque não se considera aquele rio como pessoa, e nós consideramos como um parente querido, como uma vida. Então essa relação de se autorizar essa violência está, diretamente, relacionada a essa forma de se existir no mundo. Na Terra Indígena Morro dos Cavalo tem um projeto de reflorestamento da mata Atlântica, um dos biomas mais machucados que temos, e esse reflorestamento tem acontecido entendendo que nossa saúde está diretamente relacionada com a saúde da terra, com a possibilidade desses outros seres também estarem bem. Algo que a liderança Kerexu Yxapyry comenta é que não adianta fazermos esse projeto como povos indígenas, de reflorestar o mundo, se a violência continua acontecendo. Não basta, hoje, a gente fazer essa reparação se a violência não parar também. A gente precisa desse respiro, de fazer esse processo de cuidar da terra, mas é algo que é muito difícil e insustentável de seguir, na verdade, se a destruição não parar. Então é algo que

temos feito nossa parte. Quando a gente pensa desde a política institucional, que é um exemplo muito bom do que falei antes sobre a defesa do lado bom das coisas, as pessoas dizem: “a democracia está sob ataque”, e eu fico lembrando das aulas de escola quando conheci, pela primeira vez, a noção de democracia (como algo grego), e já lá ela não abarcava mulheres, pessoas escravizadas, crianças... Parece que a verdadeira democracia talvez nunca tenha existido. Talvez a verdadeira democracia seja justamente a que está aqui posta. Esse Estado colonial em que a gente vive mantém uma estrutura muito semelhante à de 1500, desde um ponto de vista de raça, gênero e classe. Muitas vezes, me entristece observar que parece que os caminhos que a gente encontra são sempre de colocar outras pessoas nesses lugares de poder e entendo que pode ser uma redução de danos, mas isso subestima a estrutura que está posta. Para mim, autonomia não é sobre encontrar alguém que use bem esse poder, é esse poder não estar na mão de ninguém. Isso é muito difícil… É solitário pautar essas questões. Tem uma frase que diz que é mais fácil pras pessoas imaginar o fim do mundo do que o fim da colonização. Parece que nunca é a hora, é muito radical. Quando [o que é] radical é essa violência. Até quando a gente precisa esperar? Até quando vamos continuar apostando nesse tipo de política, que, ao meu ver, está muito relacionada com o imperialismo também, outro dos grandes responsáveis por essas violências. Penso, então, esse tema do racismo ambiental como disputa política. É algo que nós, povos indígenas, sempre trazemos. Não tem como pensar uma luta antirracista dos indígenas sem pensar nos outros seres, tanto do ponto de vista imediato, no sentido da própria definição do que é um corpo. Essa, pra mim, é uma fake news de que o corpo termina na pele, de que há um núcleo individual que torna cada pessoa independente. Então mesmo que, literalmente, respirando vamos percebendo, na própria existência, que nosso corpo, nossa vida não existem sem a respiração com outro ser, que é o vento. A gente não tem vida se a gente não toma água, que é um outro ser, com os milhões de microorganismos que existem no nosso corpo... Essa ideia de que o corpo é uma unidade completa, inteira, permanece a despeito da concretude, dessa chocante existência desses outros seres que compõem nossa vida.


Penso muito nessa definição de um projeto político que, mesmo nas esquerdas, às vezes aparece como se fosse um problema secundário, como se a questão ambiental fosse menos importante que outras opressões, sendo que literalmente não vivemos sem esses outros seres que compõem a nossa vida. Acho que são desafios que a gente tem dentro da própria dissidência.

Inclusive, tenho meus incômodos com a própria narrativa da terra como mãe, porque entendo a metáfora que é feita com mãe e a relação de cuidado, só que nós, como mamíferos, de fato, temos essa figura da mãe, do pai, temos esse repertório. Tem muitos outros seres, talvez a maioria, que não tem essa parentalidade de pai e mãe, quem é pai do vidro? Quem é a tia da bactéria? Essa parentalidade não está posta desse jeito. Então não acho que exista um lugar moral de cuidado que seja posto nessa inspiração humana. Pra mim, esse repertório de colocar o humano como um signo de algo muito saudável e muito bom é um empecilho ante o todo. O meu convite é para as pessoas se tornarem menos humanas nesse processo. É algo que é muito difícil de fazer, inclusive para nós que estamos nesse tempo.

m o te “Nã

ens op com

O que mais observo é a tentativa de humano melhor, de dar uma maquiada nesse humano, de torná-lo menos violento e, no limite, até pensando as questões de gênero, quando se tem, por exemplo, um homem cis hetero não violento, muitas vezes, se tem

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Tenho pensado nesse caminho de primeiro reconhecer para, depois, reparar. Não há como reparar o que não se reconhece. Dentro do movimento indígena, temos tentado muito fazer esse processo de [reconhecer] que a colonização não acabou, que nossa existência é contemporânea, que estamos aqui e que é preciso uma reparação desse processo. Da escravização [por ar exemplo], não um houve, até al hoje, uma ut reparação aa de fato nt volta ao que ir ra a gente estava ci falando - como fica, sta emocionalmente, essa do elite branca frente a essa s não reparação; qual é o modo emocional de ficar confortável consigo sabendo dessa história. Me parece que um desses caminhos é da meritocracia, que faz essa ligação entre o merecimento. ”Se vocês, povos indígenas, negros, quilombolas, vocês não fizeram por onde…” e o contrario também. Essa lógica do mérito também me parece ser muito fundamental no processo de reparação histórica. [É importante] abrir mão dessa ideia de meritocracia, até porque, se fosse uma questão de mérito e a natureza fosse essa grande moral, a natureza está se vingando, o universo está conspirando. Eu acho que tem coisa mais importante para esses outros seres fazerem do que ficar em conspiração, sendo roteiristas da vida de humano. Esses seres não existem pra isso. Se fosse um processo com essa consciência moral, nós, povos indígenas, não seríamos afetados pela violência que os crimes ambientais trazem, haveria algum tipo de seleção moral dessas violências. A gente sabe que acontece o contrário. As populações mais precarizadas são as mais atingidas por essas violências. Esse

é outro fator que acho fundamental, a não moralizar esse debate. Não pressupor que é algo de uma consciência moral em jogo que estaria punindo, de novo, esse mesmo mecanismo.

in ” dí nos outros r a s n e p g enas sem

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essa ideia de que ele não é um homem de verdade - que seria esse patriarca controlador, com tudo que isso traz. Vejo que as disputas também acontecem nesse sentido... Um homem de verdade também pode chorar; tento apresentar esse outro caminho que é: qual é o problema de não ser tão homem de verdade assim, né? E ser menos homem, porque essa defesa tão ferrenha desses lugares de homem e mulher, que só existem por essa relação de serem humanos. Ninguém vê um pardal como homem, uma borboleta como mulher, porque o gênero é um atributo que diferenciaria o humano dos demais seres. Penso que, por mais que se tenha a importância de falar de teoria e prática como algo que nem sempre está junto, às vezes, o discurso não acompanha a prática, mas um ponto que tenho trazido muito e aprendido muito com Nego Bispo é de


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que aquilo que a gente pensa - cosmovisão, cosmogonia - orienta como determinados grupos que lidam com a vida. Nós, indígenas, não nascemos com uma moral especialmente boa em relação aos outros seres, é que a nossa narrativa de mundo nos orienta a nos vincularmos com os outros seres dessa forma. E essa narrativa de mundo euro colonial, euro cristã, tem uma instrução filosófica política que se interliga muito bem com a prática, até essa noção do mérito e da relação que isso tem, por exemplo, com o capitalismo. Essa ideia de que tem poucas vagas no céu e que existe uma espécie de vestibular celeste, em que muitos são chamados e poucos escolhidos, que, então, é preciso lutar muito para se diferenciar e merecer essa vaga tão disputada, perpassa a lógica da monogamia. Esse sistema para qual se existe uma vaga, uma lógica capitalista em que você precisa merecer para ter acesso a esses lugares. Inclusive a própria ideia de educação também se espelha nisso, muitas vezes. Parece que ter mais instrução foi uma saída nas últimas décadas para uma certa ideia de precariedade social. Na minha família, se ouvia “estuda para não ter a mesma vida que seus pais e avós tiveram”. Só que a despeito da importância disso tudo, uma coisa que sempre tenho dito é que eu, que terei doutorado em breve, não mereço ganhar um centavo a mais do que uma artesã não escolarizada. O estudo não deve ser um mérito para nosso bem viver. É para que todo mundo - e é importante não fazer nivelamento por baixo - viva bem, more bem, tenha alimentação digna. Penso que é uma luta que precisa de várias frentes em conjunto, mas que tenham alguns pontos em comum. Dentre esses pontos em comum, um dos fundamentais a meu ver é a da escolarização como único caminho possível de reparação dessas violências todas.

Y: Recentemente, vimos uma das

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maiores mobilizações indígenas de todos os tempos no país, que segue organizada e se preparando para continuar lutando contra o projeto do Marco temporal e contra as várias investidas desse governo genocida. Como você vê essa mobilização dentro da conjuntura bolsonarista?

G: Foi uma mobilização muito grande, e estamos nos organizando pra ser cada vez maior, cada vez mais forte. Fico muito emocionada de fazer parte desse tempo histórico que foi gestado e semeado pelos nossos ancestrais para que a gente pudesse estar aqui hoje. Ao mesmo tempo, tem sido muito dolorido, por causa da questão do reconhecimento e da reparação da sociedade dominante… Está muito distante a gente perguntar “você concorda que a colonização não acabou, que ela continua e tem seus efeitos?””... qual seria a resposta desse país? Tenho comentado que esse marco temporal vem desde 1500, o próprio “descobrimento” tem um componente temporal muito forte que descobre algo e a própria forma de narrá-lo traz esse marco temporal. Esse também é um marco espacial; falando da demarcação de terras isso se explicita. Tenho feito uma pesquisa nas cartas jesuíticas e em uma delas notei que o nomadismo era considerado um pecado. Isso é muito contemporâneo, de certa forma. Uma das narrativas que se tem no marco temporal é de que a gente deveria estar naquela mesma terra, naquele mesmo tempo e naquele mesmo espaço, sendo que, para vários povos - como o meu -, a caminhada faz parte da nossa própria saúde, a caminhada pela terra, não ter uma fixidez em um determinado território, faz parte da nossa própria cultura. Isso já vem de muito tempo e tem um impacto muito grande. Um dos motivos pelos quais o nomadismo era pecado, era porque dificultava e fragilizava a catequização. Se não estivesse sendo feita em um lugar demarcado e fechado, as outras violências também tinham uma demarcação espacial e, muitas vezes, as pessoas que sofrem violência não têm pra onde ir. Ficar num espaço e não poder sair dali tem uma continuidade com várias outras violências. Essa noção do marco também é muito violenta porque nos faz tentar responder uma pergunta cuja premissa a gente discorda. Pra mim, é de um desconforto imenso. Uma das perguntas é: “quem são os verdadeiros donos da terra?”, e nós não somos donos da terra, nós é que pertencemos à ela. Essa pergunta nos coloca em uma situação constrangedora, de responder algo que tem uma base ética que é radicalmente antagônica aos nossos modos de vida; é muito invasivo e violento.

cê c onco rda que a co loni zaçã f itos?” seus efe m te e o nã a u n o aca bou , que ela conti


Essa questão dos “verdadeiros” donos da terra aparece como essa ligação direta com essa invasão. Se a gente pensar que essas pessoas se julgam donas da terra, na verdade, invadiram esse território, então isso também é uma questão que explode várias questões, explode a própria narrativa que o Brasil tem de si mesmo.

É um antagonismo gigantesco por várias frentes, e nós temos feito esse enfrentamento institucional, burocrático, como uma das nossas linhas, não é a única. Temos essa disputa, mas temos outras formas de luta. As pessoas comentam que os direitos indígenas estão na constituição - eu retomo o que trouxe antes, a CF também promete saúde, educação, lazer e a promessa não foi cumprida porque é feita para não ser cumprida, precisamos parar de acreditar que é um problema de um desgoverno; não, é o governo, ele se estrutura através de prometer e não cumprir. Isso não é de agora, se instala desde sempre - aliás, cumpre a parte da punição desde que a gente não seja culpado. sistema que é feito dessa forma para nos oprimir. Mesmo assim, a gente tenciona essas leis e artigos todos como um caminho de luta, porém entendendo que há vários outros. Um deles é a autodemarcação, que vários povos têm feito. No meu povo, temos esse processo; que, depois de ter várias instituições, trouxemos essa demanda para a FUNAI, para várias instituições e nada... então a gente mesmo tem feito esse processo. Óbvio que há uma assimetria

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Mas esse movimento não acabou. Nós estamos ainda muito alertas porque ainda está em disputa, o julgamento segue. Ele espelha e ilustra algo que está presente, há muito tempo, aqui e que opera através da inversão colonial, que é nos chamar de invasores (como os latifundiários, que chamam nossas retomadas de invasão, quando o próprio latifúndio é a invasão). Então o marco temporal tenta fazer essa virada de que nós estaríamos fora de casa, do tempo, do espaço, até porque o tempo que essa galera gostaria que a gente estivesse é em 1500; nossa própria existência está fora desse marco etnocida. É uma disputa muito importante que se relaciona também com a temática do nosso encontro. Esse tempo colonial tem adoecido, inclusive, as pessoas em posições hegemônicas. Esse aceleramento do tempo… por exemplo, de uma galinha que viveria vários anos, cuja vida às vezes tem poucos meses, com uma falta imensa de qualidade de vida; esse é um tempo que também nos adoece. Se a gente pensar nas maiores psicopatologias do nosso século, depressão e ansiedade, vemos que estão muito relacionadas à uma certa forma do tempo acontecer. Seja esse tempo estagnado que não caminha, não flui, seja esse tempo acelerado que a gente não dá conta. De alguma forma, essa luta nossa pretende beneficiar todo mundo, porque nem mesmo para a hegemonia esse tempo tem sido saudável. Pelo fim de todos os tipos de marco temporais que esse sistema nos coloca, esse aceleramento todo, da terra e também dessa exploração, que incide sobre nosso corpo, que é um território, um emaranhado de conexões. O racismo anti-indígena tem um componente temporal central atrapalhamos o progresso (noção de tempo), o desenvolvimento (noção de tempo), somos povos do passado... o tempo tá martelando aí em todas essas violências que incidem sobre nós, não à toa esse julgamento tem esse nome.

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Lá no começo, vocês trouxeram essa questão da monocultura; além da monogamia, monossexismo, monoteísmo cristão, um ponto importante é o monoteísmo inspirado na própria língua, o monolinguismo que parece que não é isolado das outras violências. Essa narrativa de um Brasil que tem uma única religião - cristã -, única língua - o português -, essa “nação” só se faz, necessariamente, com o etnocídio. Afirmar que há uma língua oficial só é possível se negando as nossas outras línguas. Essa narrativa de Brasil como uma nação única nos coloca como inimigos. Lembro do então ministro da educação Weintraub dizendo “odeio o termo povos indígenas, só existe um povo nesse país, que é o povo brasileiro”. Falando desde o meu povo, estamos presentes no Paraguai, Bolívia, Brasil… como fica essa ideia de uma nação homogênea e única com o reconhecimento de que a nação guarani, por exemplo, tem uma presença que não obedece a essas fronteiras demarcadas pelos países?

de poder muito grande inclusive em termos armamentistas, é algo que tem essa hierarquia de poder muito grande.


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Y: Trazer esse tópico não é fácil, imagino. Algo que me chamou atenção, dentre vários pontos, é como a gente pensa desde o lugar mais próximo de onde eu falo - que é essa esquerda hegemônica, branca, bem ocidentalizada e Eurocêntrica nas suas pautas, como a luta muito ainda pautada pelo estado, pelas instituições, e como o que você falou sobre a luta ser desde uma premissa errada, ter que estar nessa posição para reivindicar um direito que é seu por natureza, você tem que entrar na lógica da disputa política dentro de uma lógica estatal jurídica que não responde às bases de como você se relaciona com esses territórios é de uma violência tamanha e de uma ignorância tamanha também da esquerda e de vários movimentos que se propõe revolucionários, ainda se pautam por essas mesmas noções, não existe, muitas vezes, disposição de pensar pra fora dessas instituições ou validar essas lutas como prioritárias - a ideia quase sempre é de disputar o que já está posto por ela, disputar essa tecnologia de violência que é o Estado e fazer com que todos se insiram dentro disso pra garantir coisas básicas. Esses direitos que deveriam ser naturais são pautados por esse espaço que exige que se seja incluído nele, o que leva a um etnocídio tremendo, como você falou, um genocídio, um epistemicidio, enfim, muito violento e acho - apesar da dificuldade de se trazer essa pauta - essencial se evidenciar isso. Muito grata de poder ouvir sua perspectiva. H: Adorei o que você falou, Yas, o quanto ser propositivo tem soado cada vez mais forte dentro de mim, o quanto a gente se diz de esquerda, mas a gente ta carregando o pêndulo pro mesmo lado quando, na verdade, precisávamos romper a lógica entre os opostos, criar uma outra alternativa. Quando a Geni coloca: “vocês vão perguntar pra gente se a gente é dono da terra e a gente vai responder que não, mas a gente vai responder que não?” Nunca havia pensado nessa questão, do quanto a própria pergunta, do quanto a lógica de pensar o conceito, as próprias questões, elas estão limitadas..

Y: Para finalizarmos, uma pergunta bem aberta, buscando não reproduzir uma lógica extrativista do conhecimento em que só ouvimos e não nos abrimos para oferecer nada em troca, algo que é importante, mas estamos engatinhando nesse sentido, é saber como podemos somar nessa luta indígenas nas várias frentes que ela atua, como podemos contribuir, dar apoio, como tornar isso uma troca. Como os leitores podem somar ao movimento? G: Penso que tem uma prática que traz muita incerteza, mas é, também, um espaço para criação: as pessoas comentam que se sentem impotentes e olhar com cuidado para essa noção de impotência parece que, às vezes, se a gente não pode fazer tudo, a gente não pode fazer nada. Fica um lugar extremo em que, se a gente não der conta de fazer tudo, não sobra nada. E aí tem até uma fala, que aprendi com a parenta Laís Santos, do povo maxacali, que diz que a floresta é feita pelas formigas. É um trabalho que é muito pequeno, mas é com ele, com esse cotidiano que a gente avança. Até essa estética que aparece em alguns espaços de uma grande revolução que vai chegar, em algum momento, e vai mudar tudo meio que do nada... eu acredito que não, que essa revolução é cotidiana, muito a pequenos passos e penso que o próprio exercício de criar essas saídas é algo muito importante de exercitar. Por exemplo, no meu caminho, tem várias situações que chegam pra gente e eu não vejo saída, acho que nesse momento - e é muito importante não romantizar isso tudo - tem um componente que é desse plantio que nos obriga a ter essa criatividade, muitas vezes, de pensar essas saídas, esses caminhos. E esse processo de pensar o como, já é o como, pensar o quê, já é a própria prática, exercitar essa ampliação do enquadramento imaginário que a gente foi posto. Pensando de um ponto de vista prático, uma das ações que a gente tem feito é, por exemplo, as idas a Brasília; para levar um ônibus para Brasília, saindo de muitas regiões do país, é um valor muito alto, e não temos apoio de nenhuma instituição, então, acaba sendo de maneira bastante autônoma, por meio de vaquinha, curso, rifa, e outras coisas nesse sentido. Penso que se a pessoa tem a possibilidade de colaborar dessa forma com nossa luta e não tiver o tempo disponível


para se engajar em outros movimentos mais organizados, parece pequeno, mas é, por exemplo, a alimentação na viagem que vai possibilitar a nossa presença lá. Então acho que apoio financeiro é um dos caminhos, não é o único, mas é uma possibilidade. E algo que sempre saliento, é muito importante que não seja feito no sentido da caridade, muitas vezes tem esse apelo, as pessoas fazem uma colaboração para nossa luta e aquilo retorna como um elogio moral muito grande, de como essa pessoa foi extremamente boa por ter dado uma bala pra uma criança indígena e isso é muito desconfortável. Mas é uma medida bem pequena de uma reparação possível. Um outro caminho que também tenho visto aumentar bastante é a própria visibilidade, porque no contexto que a gente vive, em que as redes sociais têm sido um ato político importante, essa pressão também tem feito a diferença em vários contextos. Às vezes, a pessoa não consegue apoiar financeiramente, mas pode ecoar conosco essas pautas.

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Tenho comentado que essa perspectiva colonial não é uma dentre muitas, ela é a negação das outras. Esse é outro ponto que, às vezes, é difícil de falar porque as pessoas pensam “ah vamos alargar as perspectivas, vamos manter essa perspectiva etnocida e genocida e colocar outras também”, como se o problema fosse a quantidade - que é uma questão, mas não é só. Ter uma perspectiva que se positiva através da negativação das outras, ela é parasitária da nossa existência, ela não pode continuar. Não basta nos incluir ao lado de outras que nos violentam. Acho que esse é um campo possível para disputarmos nas universidades também essas narrativas. Aqui na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) tivemos um avanço que ainda é parcial no reconhecimento das línguas indígenas como equivalência à língua estrangeira. Fiquei desconfortável com a premissa, mas entendo a importância dessa pauta, porque muitos dos nossos parentes são bilíngues, mas, na hora de fazer esse teste de segunda língua, se pedia uma língua estrangeira que não fosse o português. E ficamos nesse não lugar, já que a português é considerada a nativa (risos), nacional, nossas línguas teriam esse lugar de equivalência estrangeira. São enfrentamentos que a gente tem feito e precisam, cada vez mais, expandir, porque quem nos odeia está muito organizado. Então precisamos nos organizar muito bem em todas as áreas que a gente puder e tomar cuidado para que a luta não nos torne ressentidos, que não tire nossa alegria de se envolver. Como a parenta Kerexu Uxapyry ou Nego Bispo trazem, a importância da gente se afastar do desenvolvimento e pautar o envolvimento: qual é a qualidade do nosso vínculo com nós mesmos e com os outros seres? E festejar a nossa existência, reconhecendo que ela vai além do que aquilo que determinados humanos fazem de violência. É por isso que a gente se nutre, para manter a nossa alegria como uma forma de luta também.

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Terceiro ponto para os universitários, especialmente, é a disputa do currículo também. Eu escutei dos meus colegas da graduação, do mestrado e do doutorado, “ah eu nunca tinha lido esses autores, nunca tive acesso a essas perspectivas”, só que, muitas vezes, nem vamos atrás, por conta do nosso próprio desconforto. E é justamente por causa desse desconforto com suas epistemologias que a gente tenta encontrar outras, esse esforço precisa acontecer não só comigo, mas pressionar para cotas para professores universitários há pouquíssimos professores indígenas nas universidades, ao passo que as pesquisas sobre povos indígenas têm feito carreira de centenas, de várias áreas. Entra essa questão do “bem, vou dar voz”, mas chega ao final da tese e não vai ser a pessoa entrevistada que vai sair com o doutorado. Disputar nossa presença na universidade, não só nossas ideias - isso, de novo, é divisão de mente e corpo - entram nossas ideias, mas não entra nosso corpo. Fica, mais uma vez, nesse lugar de um afastamento da nossa comunidade, da nossa autoria. Essa noção do currículo, por exemplo, ouvi uma fala do parente Olivio Jekupe, que disse, de maneira simples, mas muito profunda, que os textos, essa referência teórica, não são indígenas na universidade, porque [a universidade] odeia os povos indígenas. Ele trouxe de maneira enxuta, mas que outro motivo teria? O fato dessa perspectiva europeia ser a única que é trazida na maior parte dos cursos, senão todos, como

essa hegemonia. O que eu tenho buscado convidar as pessoas é redistribuir conosco o constrangimento, você vê uma ementa em algum curso que você participa que não tenha presença indígena, nos facilite, se some conosco nesse constrangimento, é preciso, no mínimo, o constrangimento de que isso não pode continuar. É necessário que ele seja feito de forma coletiva pra ninguém ficar exposto, mas que seja feito, que tenha esse enfrentamento, essas noções.



NÓS

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série fotográfica

NÓS Camila Castro Estudante de arquitetura e urbanismo pelo IAU USP. Gosta de explorar as relações entre o desenho, o corpo, a dança, e a cenografia. Na universidade foi bolsista no Teatro da USP, realizou iniciação científica envolvendo gênero e arquitetura e no trabalho final de graduação investiga as relações entre mulheres, o direito à arte e à cidade.

Marina Gil de Pádua Mineira, graduanda em arquitetura e urbanismo pelo IAU USP. Curiosa das relações entre corpo e espaço, é artista do corpo e transita entre experimentações que envolvem dança, fotografia e direção de arte. Na universidade, realizou iniciações duas científicas direcionadas aos temas de gênero, cidade, corpo e território.

Artista em cena: Makki Omura

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Professora de física, com sonho de ser professora de dança. Busco estudar e tecer relações entre corpo, sexualidade e feminismo. Acredito no resgate da vitalidade, perdida nos tempos atuais, através do corpo em movimento.

“É do ouro de Oxum que é feita a armadura que guarda o meu corpo Garante meu sangue, minha garganta O veneno do mal não acha passagem” Romper com a distinção entre o humano e natureza, eu e o outro; reconhecer o estado coletivo das coisas, dos seres, dos processos; comunicar e agir como um corpo-coletivo, plural e não homogeneizante. Romper com o “eu” para assumir o(s) “nós”.


é nunca, é sempre “Onde vai, valente?” “chorando, eu refaço as nascentes que você secou” Partindo da negação do paradigma desenvolvimentista e de lógicas universais e duais, há um corpo-território que busca mobilizar as amarras dos processos de opressões para recriar os laços. Essa recriação emerge da proeminência de colapsos, que podem conter suas fagulhas no gesto de reconhecer a si, sua ancestralidade e suas práticas; no questionamento da cronologia e da narrativa historicizada; no ato de regresso e na negação do progresso, não os associando como início e fim absolutos; no choque cosmológico e nas (re)criações, de modo a encontrar novos caminhos para desatar os nós que se agarram através da racionalidade neoliberal e neoextrativista.

série fotofgráfica

O trabalho orienta-se a partir do reconhecimento de uma matriz comum de violência entre corpos e territórios (GAGO, 2018), baseada na colonialidade de poder (QUIJANO, 1992) e sua relação intrínseca com a modernidade (MIGNOLO, 2005). Assim, através da escavação de uma memória incorporada, associada a simbologias que fazem uma amarração entre nós e a terra, vislumbramos o relampejo de colapsos necessários frente aos colapsos programados. Racismo, patriarcado e capitalismo produzem e fincam seus agenciamentos nos corpos de Abya Yala, a fim de imperar as monoculturas do desejo, da crença e das plantações, além de outras clivagens fixas, como masculino/feminino, mente/corpo, sujeito/objeto, ciência/ misticismo, progresso/atraso.

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Tenho os Erês, Caboclo Boiadeiro, mãos de cura Morubixabas, cocares, arco-íris Zarabatanas, curare, flechas e altares A velocidade da luz no escuro da mata escura O breu, o silêncio, a espera Eu tenho Jesus, Maria e José Todos os pajés em minha companhia” Em consonância com a ruptura de uma perspectiva linear e evolucionista, organizamos o trabalho de modo que ele possa ser finalizado através da participação do corpo leitor. Assim, as associações e modos de leitura não são impositivos. Aqui, a colonização da memória e o apagamento de práticas pretendem ser amenizados.

“Pensou que eu ando só? Atente ao tempo Não começa nem termina, é nunca, é sempre” trechos retirados da música Carta de Amor, interpretada por Maria Bethânia.

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“Eu tenho Zumbi, Besouro, o chefe dos tupis, sou tupinambá


Encontraram resquícios de vida Luísa Acauan Lorentz*

Aquela terra convertida em câmara Anecoica, sem sons, a não ser os ecos De gritos de tempos outros Urros, silvos, uivos, Que não foram ouvidos por entre o fogo Não foi sem aviso ou De repente Que aquele mundo sem cor Ou gente - sem vida Deixou de ser esse que entre chamas Arde ainda Encontraram indícios de vida Em Vênus, regente do amor — a ironia contida — Presença de gás fosfina, Indicativo de algum Micróbio? Tamanho insignificante, Pr’um significado de cifras gigantes:

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*Internacionalista (UFRGS), estudante de Gestão Ambiental (IFRS) e mestranda no Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ). Pesquisadora e ativista apaixonada por discussões sobre desenvolvimento, sustentabilidade e justiça socioambiental, desde uma perspectiva de ecologia política.

E tudo era branco, cheio de vazio O dia interminável em clarão ofuscante, A cegar os olhares Inexistentes

Gabriel Tropz*

Lupa Imperialista

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zero base boneco cru A5 2020.indd 2-3

*Me chamo Gabriel Tropz e sou um chargista do interior de São Paulo. Crio composições utilizando ilustração, colagem e manipulação digital. Sempre com um teor auto-irônico para trazer uma reflexão ao espectador, numa linha visual didática e democrática. Geralmente busco uma crítica à sociedade de consumo, questões políticas ou só um trocadilho visual mesmo. Acredito na arte como fator revolucionário, por isso procuro fugir da arte elitizada acadêmica de maneira a trazer uma melhor compreensão e a partir dela: questionamento, riso ou revolta.


Pelo maremoto de ar quente Será rastro do tal foguete?

Bilhete de salvação [ao sistema que não renuncia a possibilidade de expansão] Deixando seu rastro neurocientífico Inacabado projeto mortífero, Os veios da Terra abertos, sangue de Minérios — quiçá até do genocida o nióbio, Escorrem enquanto Preparam os jalecos brancos A mando dos ternos de cortes precisos Nas verbas dos Ministérios, que daqui secam Aos rios e ao futuro das gentes O lançamento do foguete. Rota de fuga, rota de poucos Rumo a nova fronteira Da vida, a busca? Somente, Exploração. Pobre Vênus, do amor não sobrará resquício. Enquanto em Terra somos tragados

Mancha vermelha de fogo e sangue Ardente chama que de cor Não deixará vestígio Até ficar tudo branco. Até não restar mais gritos. Tem sido difícil respirar, esperança Como tomar o que é nosso Se nos queimam as mãos? Que ainda seja tempo de escuta Mesmo que a fumaça invada a garganta, Que a voz rouca, e até um pouco louca, Seja capaz de gritar Até que se ouça Até que se faça Mudança.

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por: Heloisa Cizeki

da sua área original já destruída, o que nos coloca em estado de alerta pela sua conservação. Diante da temática proposta por este número e ancorando a ideia de indistinção entre seres humanos e natureza, fundamento basilar nas cosmovisões dos povos originários, o quadro Perfil será ocupado não por uma pessoa ou um coletivo humano, mas pela própria mata e sua rede de sistemas complexos que possibilitam a nossa existência e que, hoje, é ameaçada de completa extinção1.

perfil

O Cerrado é um dos seis biomas brasileiros; o segundo maior do país e da América do Sul, ocupando cerca de 24% do território nacional (2 milhões de km2 ou 204 milhões de hectares). Se concentra, sobretudo, no Planalto Central Brasileiro, abrangendo os estados de Goiás, Tocantins, Maranhão, Piauí, Bahia, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais e São Paulo, além do Distrito Federal. Ao mesmo tempo, o Cerrado é o segundo bioma mais devastado pela presença humana, com cerca de 50%


Guilherme Borsatto*

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Rotas

a grandiosidade do cerrado: características físicas do bioma O Cerrado é considerado a savana - bioma terrestre - com maior biodiversidade do mundo, abrigando 5% da diversidade do planeta e 30% da biodiversidade do Brasil, sendo um dos hotspots mundiais de biodiversidade. O bioma apresenta rica abundância de espécies endêmicas - que só ocorrem em determinada área ou região geográfica - abrigando mais de 11 mil espécies de plantas nativas já catalogadas, 2.370, aproximadamente, de animais, 90 mil de insetos e 40 mil de fungos. Dessas espécies, 220 têm uso medicinal e mais 400 podem ser usadas na recuperação de solos degradados ou para criar

habitat de predadores naturais de pragas, sendo bastante empregadas pelas comunidades tradicionais que habitam esse território. Recebe, ainda, mais um título de grande importância: é o berço das águas do Brasil, uma vez que abriga nascentes de grandes rios brasileiros, que alimentam oito das doze regiões hídricas do país. O Cerrado consolida, portanto, sua importância em grande parte do território nacional, provendo a existência de outros biomas.

1 Esse cenário de intensa devastação e ameaça de extinção, em que se encontra o Bioma, fica muito evidente na temporada de seca, principalmente nos meses de agosto e setembro, com focos de incêndio muito comuns. Em São Carlos (SP), na região da Reserva de Cerrado da UFSCar, dezenas de hectares foram consumidos pelo fogo que se espalhou, rapidamente, e perdurou por alguns dias; o fluxo de fumaça tomou o céu da região, que ficou coberto pelo ar mais denso, chegando a ocorrer precipitação do material particulado na área urbana. Entrar em contato com esse cenário caótico de devastação, que deixa muito evidente o colapso ambiental que estamos vivenciando, foi um importante motivador para a escolha do Perfil deste número.


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ocupação humana do cerrado e suas consequências As ocupações humanas no Cerrado datam de mais de 11 mil anos e muitas populações sobrevivem de seus recursos naturais e detêm o conhecimento tradicional de sua biodiversidade. São 95 territórios indígenas, de tronco Macro-Jê (como os Xerente, Xakriabá, Apinajé e Xavante), também Tupi-Guarani (como os Guarani e Kaiowá) e Arawak (como os Terena), 44 territórios quilombolas, como os Kalunga, e 13 tipos de comunidades tradicionais não indígenas - as quebradeiras de coco-babaçu, raizeiras, geraizeiros, fecho de pasto, benzedeiras, retireiras, ribeirinhos e vazanteiros - que mantêm uma relação de respeito e harmonia com o bioma. Fazem do pequi, do babaçu, do buriti e tantos outros a base de alimentos, artesanatos e geração de renda; conhecem o ritmo das cheias e vazantes dos rios para cuidar da roça e realizar a pesca; manejam o gado em pastos naturais e cuidam da terra como lugares sagrados.

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Enquanto bioma de clima tropical, apresenta duas estações muito bem definidas: uma de seca, de maio a setembro, e uma chuvosa, de outubro a abril. Essa dualidade é bem clara na dinâmica do Cerrado, a estação da chuva se apresenta com altos índices pluviométricos e a estação do fogo, época de completa ausência de chuvas em que a presença de queimadas, em predisposições naturais, é parte da dinâmica do ecossistema para sua transformação e rebrotamento das vegetações rasteiras.

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A presença da vegetação não é uniforme por todo o território é pode se apresentar em três formações distintas: florestal, savânica e campestre. Cada qual com suas espécies mais características e ocupação do solo em níveis distintos, com a variação de vegetação de acordo com a umidade do solo, composição e pH. Nos fundos de vale, por exemplo, a vegetação é mais robusta e fechada, enquanto que, nos demais relevos, se conformam campos abertos com vegetação rasteira e árvores de pequeno e médio porte.


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Essa relação de simbiose e respeito com a natureza não é, no entanto, a regra geral que se aplica ao Cerrado.

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Metade da área do bioma original já foi desmatada e, ao menos, 80% já foi modificada de alguma forma pelo homem, seja devido à expansão agrícola, aglomerados urbanos ou construção de estradas. As principais causas dessa devastação são as queimadas e a retirada “Não se trata de buscar o ecocídio em casos específicos – embora estes sejam sua expressão mais concreta –, mas de compreender, a partir dos casos representativos e das análises para o conjunto do Cerrado, a sistematicidade geográfica (em todo o Cerrado) e temporal (no último meio século) do crime de ecocídio do Cerrado”, explicou a pesquisadora. Diana Aguiar, pesquisadora e membro da Campanha em Defesa do Cerrado, em live de lançamento do Tribunal Permanente dos Povos em Defesa dos Territórios do Cerrado, set. 2021.

das matas para a utilização do solo na agropecuária; só a área de pastagem, de acordo com os dados do Projeto TerraClass Cerrado, promovido pelo Ministério do Meio Ambiente - MMA, em 2013, cobria cerca de 30% do total da área devastada, aproximadamente 600.000 km2. O processo de desmatamento da savana brasileira se consolidou a partir da década de 1970, com a transformação do Cerrado na nova fronteira agrícola, o que levou a uma interiorização dos avanços da agropecuária. Hoje, a região é, notadamente, conhecida como principal fornecedora de grãos e carne do Brasil, tornando-se fundamental para a balança comercial brasileira, colocando o país como um dos principais produtores de commodities. Esse processo se consolidou a partir dos avanços científico-tecnológicos dos sistemas de cultivo, que permitiram a instalação de lavouras em locais de solo pouco propícios, como é o caso do Cerrado, que apresenta altos teores de acidez, demandando a correção do pH por meio da aplicação de calcário. Somente a soja produzida na região responde por 75% do plantio no país, em 2020, foram 90 milhões de toneladas, consolidando a região como


* Guilherme Borsatto nasceu em 1991 em São Paulo, onde reside e trabalha. Tendo percorrido, desde muito jovem, questões identitárias de gênero dentro de uma família fragmentada, o artista explora a identidade e a memória familiar a partir de suas fragilidades, pois acredita serem elas catalisadoras de experiências coletivas. Seus trabalhos costumam se apropriar de materiais extraídos de arquivos familiares e se desenvolvem em diversas linguagens como a pintura, a instalação, a cerâmica e o livro de artista. A

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33 Menos reconhecido que a Floresta Amazônica, apesar de sua grande importância ambiental, o Cerrado não recebe tanta atenção em momentos de crise em sua preservação. Entre agosto de 2019 e julho de 2020, foram desmatados 7.340 km2, uma área que corresponde a 1,5 vezes o Distrito Federal, e, no ano de 2020, foram registrados mais de 63 mil alertas de incêndio2. Mesmo sendo um bioma adaptado ao fogo, as queimadas excessivas causam perdas de nutrientes, compactação e erosão dos solos e, ainda, podem causar degradação da biota nativa por conta das temperaturas extremamente elevadas. Apenas 8,3% de seu território é legalmente protegido, uma porcentagem mínima e insuficiente quando comparada às áreas utilizadas pelo setor agropecuário. Inúmeras espécies da fauna e flora correm o risco

2 O portal TerraBrasilis, plataforma web desenvolvida pelo INPE, possibilita acompanhar os níveis de desmatamento de biomas brasileiros, a partir do acesso aos dados geográficos de monitoramento da vegetação nativa, gerados pelos projetos do instituto como o PRODES e o DETER. Disponível em:

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Além da degradação nas últimas cinco décadas, motivada pela expansão da fronteira agrícola nacional, o Cerrado sofre uma exploração extremamente predatória de seu material lenhoso para a produção de carvão. Assim se configura um cenário de extremo esgotamento de seu solo e de suas espécies e severos danos ambientais, como a fragmentação de habitats, extinção de biodiversidade, invasão de espécies exóticas, erosão dos solos, contaminação de aquíferos, degradação de ecossistemas, alteração dos regimes de queimadas, desequilíbrios no ciclo do carbono e modificações climáticas

regionais (KLINK; MACHADO, 2005).

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referência em produtividade agrícola. Hoje, se estabelece uma nova fronteira agrícola, na região de Matopiba, localizada nos encontros do Maranhão, Piauí, Tocantins e Bahia, onde a expansão agropecuária acontece em alta velocidade, devido às terras férteis, planas e disponibilidade de água, o que coloca questões cruciais para a conservação do Cerrado.


artigo

nvolvimento e es D tentabilidade: s su e um casamento possível?

Lívia Maria Vieira Pereira*

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*Professora de Ciências e Matemática no ensino fundamental e médio, trabalhou com educação popular. Ambientalista, marxista, compõe o Coletivo Ambientalista Comunista. Busca fazer parte de uma luta revolucionária contra todas as formas de opressão (de classe, gênero, sexualidade, raça, religião), trazendo uma perspectiva anticolonial contra o imperialismo e a monocultura das relações sociais. Deseja somar na luta coletiva da classe trabalhadora e contribuir da melhor forma possível.

de extinção - 266 espécies da fauna estão ameaçadas e 637 da flora; e, mesmo dentro de áreas protegidas, estima-se, ainda, que 20% das espécies nativas e endêmicas já não existam. Adicionalmente, quando falamos da região referência em produção agrícola, devemos considerar a quantidade de agrotóxicos despejados no solo e que, além de sua própria contaminação, atingem os reservatórios subterrâneos de água, causando inúmeros danos ambientais e colocando em risco dezenas de milhares de vidas de espécies, incluindo a humana. O Cerrado compreende uma área formada por

diversas bacias hidrográficas e grandes aquíferos, como já apresentamos, o que representa cerca de 8% da disponibilidade de água a nível nacional. Com a alta exploração da terra e o intenso uso de agrotóxicos, o solo fica compactado, o que seca os rios e compromete a disponibilidade de água para todo o país. O arranjo complexo de todas essas questões nos coloca frente à necessidade de mudanças emergenciais e estruturais, ou de simplesmente aceitarmos a ameaça do irreversível ecocídio e extinção do bioma nos próximos anos.

movimentos e ações para conservação do cerrado Diante do cenário atual, agravado pelo fascismo, racismo e antiambientalismo do governo regente, e das projeções futuras alarmantes, muita energia tem sido empregada na luta pelo Cerrado por diferentes organizações, movimentos e campanhas. A intenção é apresentar alguns desses movimentos, fazendo ecoar suas pautas também em outros espaços.

No âmbito acadêmico e de estudos sobre e no Cerrado, destacamos duas propostas de relação território e universidade: o Centro de Estudos do Cerrado da Chapada dos Veadeiros, da Universidade de Brasília (UnB Cerrado), e o Núcleo de Estudos do Cerrado, da Universidade Federal de São Carlos (NEC/UFSCar).


Desenvolvimento susentável e as grandes empresas

Um exemplo claro da lógica de mercado pode ser observado em um memorando interno do Banco Mundial, que foi reproduzido pela revista The Economist em 1992. Neste memorando, é incentivada a transferência de

Seria este exemplo um caso isolado? É possível aliar desenvolvimento num modelo de Estado neoliberal e sustentabilidade? Para responder essas perguntas, é preciso olhar as políticas ambientais de um ponto de vista histórico e crítico, questionando o modelo socioambiental que estamos construindo e os órgãos reguladores internacionais. Também é importante nos questionarmos o quanto

artigo

Vimos, nas últimas décadas, com a emergente crise ecológica, a incorporação da sustentabilidade e desenvolvimento sustentável nas políticas de empresas capitalistas. O uso da expressão “desenvolvimento sustentável” está largamente difundido na comunidade científica, nas políticas internacionais, nos órgãos e conferências mundiais e na busca por um modelo que alie crescimento econômico à manutenção dos recursos naturais. Agências reguladoras, como as International Chamber of Commerce (ICC), Business Council for Sustainable Development (BCSD) e World Business Council for Sustainable Development (WBCSD), trazem a bandeira do desenvolvimento sustentável nas suas próprias concepções, encarecendo os produtos para o consumidor final e subordinando os critérios ambientais à lógica do mercado.

indústrias poluentes de países desenvolvidos para países subdesenvolvidos, sob os pretextos de: menores indenizações por poluição, haver salários mais baixos em países subdesenvolvidos (assim, trabalhadores adoecidos pela poluição geram menos custos para empresa), e uma menor expectativa de vida (dentro da lógica do memorando, é menos custoso lidar com trabalhadores adoecidos em países com menor expectativa de vida e maior mortalidade infantil). Tais medidas expressam a transferência da degradação ambiental dos países desenvolvidos para os subdesenvolvidos e a perversa lógica do mercado.

empresas e políticos têm se apropriado do termo para melhorar suas imagens. Este

trabalho é uma contribuição para o debate.

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35 No âmbito de organizações e associações sem fins lucrativos que realizam diversos projetos na região do Cerrado, trazemos a Rede Semente do Cerrado e a WWF-Brasil. Não podemos deixar de destacar que a presença e atuação dessas organizações se dão frente à abstenção e negação do Estado em implantar medidas efetivas de conservação; ainda, destacamos que, muitas das associações, se aliam às empresas de capital privado, buscando financiamento para suas ações, porém, em muitos casos, caem em contradições de discursos3.

3 Para mais informações sobre: Sabrina Fernandes. A enganação verde. Publicado pelo canal Tese Onze, 10 nov. 2021. Disponível em:

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O NEC - UFSCar tem como principal objetivo estabelecer um programa de monitoramento participativo da biodiversidade do Cerrado da UFSCar, implementando estratégias de integração entre a comunidade local e a comunidade acadêmica. O campus universitário abarca um fragmento de, aproximadamente, 260 hectares do Bioma com prioridade de conservação, além de um laboratório a céu aberto. Esse espaço é utilizado como área de lazer, de contato com a natureza

e de observação de aves com fotografias de paisagens, coletas de frutos nativos e ecoturismo. Como parte das atividades de conscientização da importância do Cerrado, desde 2018, o Núcleo organiza, anualmente, um concurso de fotografia que visa incentivar mais pessoas a conhecerem o fragmento de Cerrado na UFSCar, além de reunir as fotos como acervo de espécies.

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A UnB Cerrado, em atividade desde 2009, é um centro de natureza multidisciplinar que tem como objetivo desenvolver atividades de ensino, pesquisa e extensão, buscando integrar comunidades acadêmicas e a sociedade na produção de conhecimentos relativos ao Bioma. Hoje, conta com 15 projetos em diversas áreas, que vão de mapeamentos, caracterizações geoquímicas e tratamento das águas a expressões artísticas, fazeres tradicionais e economia solidária.


A partir dos anos 1960, temos uma ascensão no ambientalismo da Ecologia Política. A Ecologia Política reforça a importância de olhar para os agentes sociais, com suas diferenças e desigualdades, com diferentes níveis de poder e interesses. Esses agentes requerem, para a reprodução de suas existências, recursos naturais em um certo contexto ecológico, em cooperação ou competição com outros agentes. Assim, devemos olhar para as diferentes necessidades naturais de populações campesinas, populações indígenas, povos da floresta, assim como o baixo acesso ao nível de poder que essas têm no sistema capitalista, em contraste com as elites. Também ressalta-se a desigualdade da luta de classes na disputa entre os agentes sociais: alguns agentes são muito mais fortes do que outros. A inovação que a Ecologia Política trouxe, na época, foi em associar ambientalismo e política. Colocando o modo de produção capitalista como determinante social, essa ciência começou a questionar não mais apenas o quanto a humanidade

era capaz de transformar a natureza, mas como isso se dava e com quais objetivos. Entendendo, assim, que o sistema capitalista usa de exploração do meio natural e de algumas classes sociais para benefício de uma minoria, com objetivo único de acumulação de riquezas, temos, na base do mesmo, a sua insustentabilidade. Esse debate também estabelece a necessidade de não homogeneizar a humanidade na análise da ação predatória, pelos diferentes modos de vida e de relações sociais, e deve ser analisada nas suas relações concretas e desigualdades impostas pelo sistema. A incorporação das perguntas “como” e com “quais objetivos” também embasa uma crítica ao atual Ecomodernismo: modelo ambientalista que considera a tecnologia como resposta às crises ambientais. Tal modelo dá a falsa noção de que tecnologia e Ciências são separadas das relações sociais e politicamente neutras. As análises econômicas já incorporam a essencialidade da natureza para suas relações de produção, mas a Ecologia Política vai além, ao situar as atividades econômicas e sociais de um certo grupo no território e seus limites. Assim, modo de produção e modo de vida se relacionam de forma dialética. Uma

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Desenvolvimento e sustentabilidade: um casamento possível?

Ecologia Política e o questionamento da sustentabilidade

A Rede Sementes do Cerrado surgiu em 2001, como projeto do Fundo Nacional do Meio Ambiente para formação de redes de sementes florestais, visto que a recomposição de ambientes degradados depende de sementes e mudas de boa qualidade, com origem conhecida. Assim, a RSC tem, entre seus objetivos, o intuito de captar e difundir conhecimentos e informações referentes às etapas necessárias à conservação e restauração do Bioma, atuando para a regulamentação da atividade de coleta de sementes, fomento do comércio e qualidade das sementes e mudas nativas. Em 2005, obteve o título de Organização Social da Sociedade Civil de Interesse Público Federal e tem como missão a defesa, preservação, conservação, manejo, recuperação, promoção de estudos e pesquisas e a divulgação de informações científicas relativas ao meio-ambiente do Cerrado. A WWF-Brasil trabalha, desde 1994, no estabelecimento da Reserva da Biosfera na região do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros e tem projetos-pilotos que apoiam comunidades indígenas e locais

na promoção de atividades econômicas alternativas para sua sobrevivência. Porém, cabe ressaltar que muitas das práticas estabelecidas pela ONG se caracterizam por medidas meramente reformistas, aliadas ao capitalismo verde e grandes corporações, não colocando em pauta a origem dos problemas atuais e o próprio sistema que a mantém. Em 2020, em parceria com a Rede Cerrado, foi lançada a Campanha Cerrados, que contou com a produção de 10 episódios de podcast sob o mesmo título, com o objetivo de sensibilizar a valorização do bioma por meio de histórias reais de populações locais que mostram os desafios ambientais da região. Ainda no mesmo ano, várias instituições da Coalização Brasil Clima, Florestas e Agricultura coordenaram um estudo sobre a rastreabilidade da carne bovina no Brasil, que demonstra a possibilidade de um monitoramento da origem da carne no Cerrado, visando rastrear produções pecuárias em áreas ilegais. Uma outra abordagem e atuação nessa pauta de luta pelo Cerrado são as articulações entre os movimentos sociais, dentre os


das grandes dificuldades em compreender a totalidade é a fragmentação da realidade, quando separamos o consumo, a produção, o modo de vida, os agentes sociais envolvidos, as desigualdades entre eles, caímos em visões particularizadas, que tendem a analisar a problemática apenas pelo consumidor final. Fazendo uma análise mais complexa e totalizante, chegamos a uma conclusão: o sistema que temos é inerentemente insustentável.

a partir de um dos mitos da Modernidade: o crescimento econômico por meio do progresso positivista. Usa de um apelo ético para transferir a responsabilidade para a sociedade, sem questionar o modo de produção. Como abordei em outro artigo, a política do desenvolvimento nega outras formas de relações nos países chamados de Sul global, principalmente formas de relações dos povos originários. A integração desses países, na divisão internacional do trabalho, se dá pela entrada de multinacionais dos países do Norte global, aproveitando mão-de-obra barata e grande exploração de recursos naturais, criando, nesses países, um capitalismo dependente. O desenvolvimento prometido nunca se deu, ocorrendo o aprofundamento das desigualdades sociais e a exploração nos países do Sul. Com isso, começaram a ser discutidas, na metade do século XX, novas propostas de políticas ambientais.

O que é desenvolvimento sustentável? O enfoque do desenvolvimento sustentável, a partir dos anos 1990, envolvia um aprofundamento da industrialização e do pensamento neoliberal. Surgiram vários órgãos internacionais e conferências para debater o desenvolvimento sustentável, mas a situação da crise ecológica só tem se agravado. Se o problema não está na quantidade de medidas, provavelmente está na qualidade delas. E, aqui, fazemos a crítica, observada entre vários autores, de que o desenvolvimento sustentável tenta conciliar lados inconciliáveis (produtivismo e preservação ambiental), não questiona, mas aprofunda as raízes neoliberais

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cinquenta movimentos, organizações e pastorais sociais com uma longa trajetória de “lutas com o pé no chão do Cerrado”. A Campanha, que busca sensibilizar e expressar a beleza, singularidade e sociobiodiversidade do Cerrado para o Brasil e para o mundo, caminha lado a lado com os povos tradicionais do Cerrado. O diálogo entre saberes tradicionais e científicos é premissa fundante da metodologia de ação da Campanha, esse diálogo, sobretudo, traz a possibilidade de desconstrução das visões coloniais equivocadas acerca desse Bioma, que acabam validando a imagem do Cerrado como passível de devastação pelo agronegócio e mineradoras.

“Com o Adote um Parque [programa do Governo Federal], as terras dos indígenas no Tocantins já estão sendo griladas. Vamos perder o babaçu também porque não vai resistir ao agrotóxico e às queimadas. O Cerrado é vida. O cerrado não é uma coisa que você usa e joga fora. Nós precisamos do cerrado em pé. Da onde eu vou tirar o babaçu, o pequi, os frutos do Cerrado se não tiver Cerrado? Sem o Cerrado, a Amazônia não vai existir. É caixão e vela preta”. Maria do Socorro Teixeira, quebradeira de coco babaçu e coordenadora da Rede Cerrado, em live de lançamento do Tribunal Permanente dos Povos em Defesa dos Territórios do Cerrado, set. 2021.

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“Não nós não defendemos, nós protegemos as águas e as florestas. Eles chamam de progresso o que fazem. Pra mim, progresso sustentável quais destacamos a Campanha Nacional é meu pé de pequi porque todo em Defesa do Cerrado, lançada em 2016, e que conta com a articulação de ano dá pequi.”


Desenvolvimento e sustentabilidade: um casamento possível? O Cerrado brasileiro

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Raízes históricas: ecodesenvolvimento Ainda em 1972, com a crescente preocupação e desenvolvimento sustentável com o meio ambiente associada ao desenvolvimento econômico, surge o Em 1972, temos o popular estudo feito por termo Ecodesenvolvimento. Ele foi Dennis Meadows e pesquisadores do Clube introduzido e definido por Maurice Strong, de Roma chamado “Limites do Crescimento”. na Conferência de Estocolmo - 1972, como: O estudo estimou, em 100 anos, o tempo “desenvolvimento endógeno e dependente para alcançar os limites do planeta, caso de suas próprias forças [de um país ou mantidos os níveis de exploração dos recursos região], tendo por objetivo responder naturais. Em 1974, temos a Declaração de a problemática da harmonização Cocoyok, na ONU, que coloca a pobreza e a dos objetivos sociais e econômicos expansão demográfica nos países da América do desenvolvimento com uma gestão Latina, África e Ásia como responsáveis pela ecologicamente prudente dos recursos e degradação ambiental, por forçar a população do meio". a super utilização dos recursos naturais. Essa visão ignora a superexploração dos países do O desenvolvimento endógeno seria não Sul, pelos do Norte global, e como estes usam necessitar de forças externas. Ele nega os primeiros para exportação de pobreza e soluções pretensamente universalistas e poluição. propõe que, em cada região particular, se proponha soluções específicas, respeitando a Aqui, é importante falar um pouco da teoria territorialidade, articulando sustentabilidade malthusiana, que, basicamente, associa ecológica e questões culturais, e nega o crescimento populacional e destruição otimismo tecnológico. Também traz a ambiental, principalmente sobre os países preocupação com um horizonte temporal de do Sul global. Tal teoria, muito usada nesses desenvolvimento décadas ou mesmo séculos primeiros relatórios, ignora as desigualdades adiante. impostas pela exploração imperialista e o racismo ambiental, e é fortemente criticada Esse termo foi difundido por Ignacy Sachs, por Foster. a partir de 1974, pela promessa de aliar

A Campanha amplia seu escopo neste ano ao peticionar, ao Tribunal Permanente dos Povos (TPP), a realização de uma Sessão Especial para julgar o crime de ecocídio contra o Cerrado. O TPP, institucionalmente, é definido como um tribunal internacional de opinião, sediado em Roma; foi instituído em Bolonha, no ano de 1979, como um instrumento de apoio e promoção das lutas dos povos em busca e defesa do direito à autodeterminação (princípios da Declaração Universal dos Direitos dos Povos, 1976). A Campanha denuncia que a inação diante da devastação do Cerrado pode nos colocar frente a um aprofundamento irreversível do ecocídio em curso, com a extinção do Bioma nos próximos anos e, assim, a configuração de um genocídio cultural, pela perda da base material da reprodução social dos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais. A morte do Cerrado é o fim

daquilo que os define enquanto povos, culturalmente, diferenciados. Se ainda há Cerrado em pé é porque esses povos estão com os pés no chão do Cerrado, lutando para permanecer, retomar e r-existir em seus territórios de direito. E é por isso que não existe defesa do Cerrado sem a defesa dos territórios do Cerrado, onde esses povos conservam e multiplicam essa rica biodiversidade por meio de seus modos de vida. A defesa dos territórios dos povos dos cerrados é, assim, o compromisso que deve guiar as lutas em defesa do Cerrado, em especial em um momento histórico marcado pelo esforço sistemático de poderes públicos e privados em promover a desterritorialização desses povos e comunidades. Trecho retirado da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, 2021.

Como informação complementar sobre os projetos e outros materiais indicados no texto, indicamos a leitura do material anexado ao QRcode:


a qualidade de vida da população com a preservação ambiental e reprodução da vida para gerações futuras pela capacidade de “gerir a natureza de forma a assegurar aos homens de nossa geração e das gerações futuras a possibilidade de se desenvolver” (SACHS apud MONTELLIER).

Foram os debates em torno do ecodesenvolvimento, trazendo novos paradigmas na convergência entre economia, ecologia, cultura e ciência política, que deram a base para o surgimento do desenvolvimento sustentável, que ganhou notoriedade a partir de 1980. Ele é definido, em 1987, no Relatório Brundtland na Comissão Mundial sobre o Desenvolvimento e Meio Ambiente, como "desenvolvimento que responde às necessidades do presente sem comprometer as possibilidades das gerações futuras de satisfazer suas próprias necessidades". Tal

Em contraposição às propostas do ecodesenvolvimento, o desenvolvimento sustentável, partindo da premissa de que a crise ecológica é um problema global, coloca as soluções como comuns à humanidade.

Busca generalizar soluções e ignora os diferentes atores sociais envolvidos. O

relatório de Brundtland enfatiza o papel da pobreza (ignorando suas causas materiais) na crise ambiental: “a pobreza é uma das principais causas e um dos principais efeitos dos problemas ambientais no mundo” (LAYRARGUES, 1997). Dessa forma, colocase a necessidade de crescimento econômico para superação da pobreza, para, então, superar a crise ecológica.

Lívia Maria Vieira Pereira

Se propõe a ser um projeto de civilização baseado num novo estilo de vida e de valores, que carreguem o que Sachs determinou como cinco dimensões da sustentabilidade: Social; Econômica; Ecológica; Espacial; Cultural. Também traz a necessidade de ajuda externa para as soluções de uma região ou país.

relatório não traz as críticas à concentração de terras pelos países colonizadores como outros da época trouxeram, e, inclusive, coloca o crescimento constante dos países desenvolvidos como fator aliado à superação da pobreza nos outros, ignorando o processo histórico que levou à crise. Então, foi bem aceito dentro da comunidade internacional.

Em 1992, na Conferência Rio+20, são apresentados pontos de mudança civilizatória. Porém, a delegação dos A

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referências BIOMA Cerrado. Embrapa, Contando Ciência na Web. Disponível em: (1);

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BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Mapa do Uso e Cobertura do Cerrado 2013. TerraClass, 2015. Disponível em: (2);

FREAR o fogo, as motosserras e o genocídio: saiba como foi o lançamento do Tribunal dos Povos do Cerrado. Campanha Nacional em Defesa do Cerrado. 11 set. 2021. Disponível em: (4);

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KLINK, C.; MACHADO, R.. A conservação do Cerrado brasileiro. In: Megadiversidade, vol 01, n 01, julho, 2005. p. 147-155. Disponível em: (5). 4

*As imagens utilizadas no ensaio são de autoria de Humberto Mauro e Roney Marcos M Cordeiro, retiradas do livro eletrônico Olhares para o Cerrado na UFSCAR (São Paulo, UFSCAR, 2021), editadas pela equipe de edição gráfica da Revista POSTO68.

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BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Mapeamento do Uso e Cobertura do Cerrado: Projeto TerraClass Cerrado 2013. sbf.Brasília: MMA, 2015. Disponível em: (3);


Desenvolvimento e sustentabilidade: um casamento possível?

Estados Unidos exigiu a retirada das metas para eliminação de emissão de gás carbônico, fator preponderante no aumento do aquecimento global. Este exemplo mostra, de forma muito clara, a interferência do neoliberalismo nas políticas ambientais e o porque não conseguimos, ainda, mudanças significativas, mesmo com tantas conferências e organizações internacionais buscando propostas para reverter os desastres ambientais. Não se admite parar de crescer, ao mesmo tempo que a tecnologia é colocada como conciliadora das contradições entre desenvolvimento e sustentabilidade, algo que Loureiro chama de “otimismo tecnológico”. No Brasil, se luta para flexibilizar a legislação sobre hidrelétricas, consideradas menos poluidoras do que combustíveis fósseis, sob protesto de populações indígenas que têm seus modos de vida completamente prejudicados. Que tecnologia

Alguns autores dizem que o desenvolvimento sustentável não seria nem um conceito em si, mas uma "ideia mobilizadora” de desenvolvimento. A noção de desenvolvimento tem sua base na ciência positivista, que é mecanicista. Ela trata a evolução como algo a ser conseguido pela razão e industrialização, com base no modelo civilizatório europeu. Tal visão positivista coloca a natureza como um ser estático e imutável, um objeto fornecedor de recursos, contrastando a própria visão biológica.

Um grande problema com o desenvolvimento sustentável, entendido como “ideia mobilizadora”, é que há uma escolha ideológica por um discurso, aparentemente, neutro, centrado em uma moral solidária, em valores éticos limpa é essa que gera maior exploração em universais que orientem a humanidade, e classes negligenciadas e promove guerras e em soluções tecnológicas. É preciso muito invasões? Retomo a preocupação que Loureiro cuidado com linhas de argumentação de traz com o Ecomodernismo e a importância da defesa de modelos socioambientais que Ecologia Política para questionar não apenas o se baseiam em apelos por um espírito quanto a humanidade transforma a natureza, solidário, em supostos consensos de mas como a faz e com quais objetivos. Não existe classes antagônicas e em crenças na tecnologia limpa dentro de um sistema predatório. neutralidade da tecnologia.


A noção de desenvolvimento sustentável traz, à tona, a ideia de que temos um planeta finito e que precisamos analisar os seus limites físicos. É nisso que muitos grupos e organizações ambientalistas anticapitalistas vem pautando sua luta: “não existe planeta B”. Enquanto bilionários, que concentram cerca de metade das riquezas mundiais, fazem excursões ao espaço e constroem bunkers para estocar recursos, populações marginalizadas lutam para, simplesmente, sobreviver. Porém o pesquisador Guillermo Foladori vai além ao dizer que o problema não são os limites físicos externos. Ao estudar várias teorias sobre a origem da vida [Os estudos do biólogo Aleksandr Oparin sobre a origem da vida orgânica a partir de elementos inorgânicos são revolucionários para o entendimento da origem da vida] e do Universo, ele argumenta que a Terra não seria um mundo físico fixo, mas um sistema aberto em relação dinâmica com o restante do Universo. Também se baseia na teoria de Vladimir Vernadsky,

Lívia Maria Vieira Pereira

Ainda que o desenvolvimento sustentável apareça como uma evolução do conceito de ecodesenvolvimento, por ambos trazerem a preocupação com o futuro, Layrargues explica que eles carregam ideologias muito distintas. O ecodesenvolvimento fala sobre justiça social, enquanto o desenvolvimento sustentável ignora o peso da responsabilidade dos países do Norte global. O ecodesenvolvimento reforça o perigo da fé inalienável na tecnologia, priorizando os conhecimentos e tecnologias endógenas, além do respeito às diferenças culturais de relação com a natureza em cada território. Mas o desenvolvimento sustentável se baseia numa universalização de soluções, na crença total no mercado e monocultura da economia e relações sociais baseada na Modernidade.

Limites físicos do planeta e a sustentabilidade

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“Meu nome é Lucas Brandão, sou artista independente da Zona Leste de São Paulo, experimento linguagens visuais que vão do desenho ao cinema, assim como práticas artísticas que atingem a performance, a escrita, a música e a dança. Atualmente, curso a faculdade de artes visuais na Universidade Estadual de Campinas. Minhas principais investigações focam na memória, nos arquivos, o espaço privado assim como as relações entre morte e corporalidade no contexto brasileiro sempre trazendo as minhas vivências enquanto uma bicha racializada!”

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Ir Para a Cidade


Desenvolvimento e sustentabilidade: um casamento possível?

importante cientista soviético, que ainda na primeira metade do século XX argumenta que a vida não apenas é modificada pelos fatores abióticos do ecossistema em volta, mas também os modifica numa relação dialética, com profundas transformações na química atmosférica, na geologia e demais elementos abióticos. Entendendo que a matéria biótica e a abiótica se transformam mutuamente e continuamente, precisamos entender um pouco da noção de equilíbrio dinâmico, tão buscado quando trabalhamos com sustentabilidade. Nas Ciências Biológicas, entende-se sustentabilidade como a capacidade de suporte de um ecossistema, que permita sua reprodução ou permanência no tempo. E o equilíbrio, dentro desse ecossistema, é estudado olhando as espécies como formadoras de um bloco unitário, com dois níveis de relação: i) relação com outras espécies; ii) relação com o meio abiótico. Se considera uma espécie bem adaptada, ao meio natural, quando ela sobrevive, ainda que a maioria dos seus indivíduos morram.

em classes antagônicas, conflituosas. Por isso, deve-se acrescentar um terceiro ponto ao analisar equilíbrio com a sociedade humana: iii) inter-relação entre indivíduos da mesma espécie. Foladori argumenta que esta terceira relação é mais forte para balançar o equilíbrio dinâmico do que as outras duas... E, por isso, não é negando os limites

físicos do planeta, mas se entende que as contradições internas, nas relações entre indivíduos (ou classes sociais), têm força maior para a crise ambiental moderna do que os limites físicos do planeta.

Fica evidente, assim, os perigos em transpor conceitos diretamente da Ecologia para a política. A importância da sustentabilidade não é questionada dentro da sociedade, mas o problema se dá em entender os níveis da sustentabilidade, como realizá-la e com qual finalidade. Decrescimento e alternativas

Muitos economistas, inclusive o vencedor do Prêmio Nobel de Economia de 1998, Amartya Sen, mesmo sem questionar o mercado, tecem altas críticas ao crescimento Na sociedade humana, a espécie não pode ser analisada desta forma. A sociedade se organiza econômico ilimitado. Há uma urgência por


segundo Foladori. O problema é, como explicitam vários cientistas e ambientalistas a partir de dados do IPCC 2021, que tais limites já foram alcançados.

Podemos entender a ideologia do crescimento como parte de uma perspectiva, assim como a positivista do século XIX, que coloca, na quantidade de produção e consumo e nas complexidades tecnológicas da vida social, uma estética futurista, o ideal de “boa vida”. Mas tal crescimento é insustentável, porque se imbrica com os limites e desigualdades sociais impostos pela exploração capitalista muito antes de encontrar os limites da Biosfera,

“o projeto de decrescimento desafia a hegemonia do crescimento econômico e exige uma redução redistributiva, liderada democraticamente, da produção e do consumo nos países industrializados, como meio de alcançar a sustentabilidade ambiental, a justiça social e o bem-estar” (DEMARIA, F.; LATOUCHE, S., 2021).

O decrescimento se trata de uma política Olhando para a declaração, em 2002, do então radical e revolucionária para uma profunda presidente estadunidense George Bush de que transformação pós-capitalista. Esse debate se coloca muito mais como uma marcação “Por ser a chave do progresso do meio radical do fim da ideologia do crescimento ambiente, por fornecer os recursos que pelo crescimento. A ativista ambiental permitem investir nas tecnologias limpas, o Geneviève Azam chama o decrescimento de crescimento é a solução, não o problema.” (Le uma provocação e uma blasfêmia e enfatiza Monde Diplomatique, fevereiro de 2002), que não se trata de um crescimento negativo, vemos que essa visão traz o perigo do mas de uma mudança urgente dos valores otimismo tecnológico para justificar o que definem a qualidade de vida de uma contínuo crescimento. Infelizmente, ela sociedade. O cientista Federico Demaria também se adentra na ideologia de parte da explica que o decrescimento se trata de uma esquerda anticapitalista. mudança qualitativa e não quantitativa:

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Lívia Maria Vieira Pereira

novos modelos econômicos que proponham um sentido contrário, um sentido de decrescimento. O problema não está na Natureza em si, mas em como a economia se organiza nas relações de produção e consumo.


Tal política não pode ser lida como um crescimento alternativo, mas como uma ruptura do crescimento a partir da construção de uma nova sociedade. Usando, como base, a Ecologia Política, o decrescimento traz uma superação da dicotomia entre economia e Natureza. Ao pensarmos, por exemplo, na alimentação humana, temos uma cultura, na sociedade atual, de que quanto mais carne for consumida, melhor a qualidade de vida do povo. Porém, a alta produção de carne vem associada com alguns dos principais problemas socioambientais, principalmente para a realidade brasileira: concentração fundiária, genocídio indígena, insegurança alimentar, destruição ambiental, uso de agrotóxicos extremamente nocivos e monocultura de produções. A Ecologia Política se coloca como uma ferramenta para propor um decrescimento estratégico do setor de produção de carne do Brasil e crescimento de produções agroecológicas, associadas a uma radical reforma agrária popular, demarcação de terras indígenas e soberania alimentar.

Algumas das políticas ambientais propostas até o momento, por trazer conceitos esvaziados de sentido (“sustentabilidade”, “equilíbrio” etc.) e mascarar a necessária crítica do sistema capitalista, são incapazes de fazer a transformação socioecológica tão urgente. Por isso, uma política com vistas ao decrescimento se torna cada vez mais popular entre diferentes movimentos sociais, como os ecossocialistas, e dentro do próprio meio acadêmico (AZAM, 2019; ACOSTA et al 2018; DEMARIA, 2013). O decrescimento questiona o imperativo do modelo capitalista ao mesmo tempo em que valoriza propostas concretas, como as do Bem Viver, e as diversas lutas sociais contra megaprojetos capitalistas ligados à mineração e ao agronegócio, como o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Liga dos Camponeses Pobres (LCP), Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), entre outros. Como desafio sociocultural e de pensamento por uma transformação das relações sociais, à construção de uma agenda climática radical, o decrescimento é especialmente importante para países do Sul global e para o planeta. Para termos alguma chance de lutar

contra a crise ecológica, precisamos de uma perspectiva de outras formas de produção e reprodução da vida, tanto em pequena quanto em grande escala. E precisamos com urgência.


Referências: ACOSTA, A.; BRAND, U. Pós-extrativismo e decrescimento: saídas do labirinto capitalista. Editora Elefante & Autonomia Literária. 2018. AZAM, Geneviève. 2019. “Decrescimento”. In: SOLÓN, Pablo (ed.). Alternativas Sistêmicas: Bem Viver, decrescimento, comuns, ecofeminismo, direitos da Mãe Terra e desglobalização. São Paulo: Editora Elefante, p. 65-84. 2019. DA SILVA, Pollyana Luz Macedo. Desenvolvimento sustentável e suas contradições. Revista Internacional de Ciências, v. 4, n. 2, p. 107-119, 2014. DEMARIA, F.; LATOUCHE, S. “Decrescimento”. In: BREDA, Tadeu (ed.). Pluriverso: um dicionário do pós-desenvolvimento. Editora Elefante, p. 241-245. 2021.

FOLADORI, Guillermo. Limites do desenvolvimento sustentável; tradução de Marise Manoel - Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2001. FOSTER, John Bellamy. A ecologia de Marx: materialismo e natureza/ John Bellamy Foster; tradução de Maria Teresa Machado - Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. LATOUCHE, Serve. As vantagens do decrescimento. Le Monde Diplomatique. Brasil, 2003. LAYRARGUES, Philippe Pomier. Do ecodesenvolvimento ao desenvolvimento sustentável: evolução de um conceito? Revista Proposta, v. 25, n. 71, p. 5-10, 1997.

Lívia Maria Vieira Pereira

EPIPHÂNIO, Pedro Paulo Diniz; ARAUJO, Handrey Borges. É o desenvolvimento Sustentável, sustentável? (Uma Análise Crítica A Toda A Retórica Que Se Tem Feito Em Torno Do Tema). Revista Científica Eletrônica de Engenharia Florestal, n. 11, 2008.

08/12/2021 11:38:29

LOUREIRO, Carlos Frederico B. Sustentabilidade e educação: um olhar da ecologia política. Cortez Editora, 2014. MONTIBELLER FILHO, Gilberto. Ecodesenvolvimento e desenvolvimento sustentável; conceitos e princípios. Textos de economia, v. 4, n. 1, p. 131-142, 1993.

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Designer Du Cano, natural de São Carlos/SP. Graduado em desenho industrial pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2014), trabalhos desenvolvidos na área de produto, cenografia, gráfico e moda. Atualmente, pesquisa processos criativos e equipes criativas, as inspirações do cotidiano e experiências pessoais na experimentação do novo e do inexplorado pela vivência pessoal.

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Agrotóxico Du Cano

Agrotóxico

VIEIRA, Lívia Maria. Queremos ser desenvolvidos? Uma visão sobre o desenvolvimento sustentável a partir da ecologia marxista. Lavra Palavra, 2021. Disponível em:

Designer Du Cano, natural de São Carlos/SP. Graduado em desenho industrial pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2014), trabalhos desenvolvidos na área de produto, cenografia, gráfico e moda. Atualmente, pesquisa processos criativos e equipes criativas, as inspirações do cotidiano e experiências pessoais na experimentação do novo e do inexplorado pela vivência pessoal.

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alternativas para minério-dependência no Quadrilátero Ferrífero (MG)* *Este artigo é uma adaptação do trabalho de mesmo nome apresentado à disciplina de Trabalho de Graduação Integrado II do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Comissão de acompanhamento permanente: Joubert José Lancha. Coordenador do grupo de trabalho: João Marcos de Almeida Lopes. São Carlos, fevereiro de 2021. **Arquiteto e Urbanista pelo Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP-São Carlos). Desenvolveu pesquisa teórico-prática Canteiro Escola - “Introdução às Tecnologias Construtivas de Baixo Carbono (TCBC’s)” junto ao Grupo HABIS - Grupo de Pesquisa em Habitação e Sustentabilidade. Foi membro do núcleo de Bioconstrução do Grupo de Estudos e Intervenções Socioambientais - GEISA e da Secretaria Acadêmica de Arquitetura e Urbanismo - SAAU.


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O presente trabalho pretende somar-se ao coro de vozes1 que se propõe a interromper o silêncio do qual comenta Cleiton Cândido da Silva, morador da comunidade do Córrego do Feijão, dias após o rompimento da Barragem I em Brumadinho, no ano de 2019:

Para isso, procurou-se analisar os problemas da atividade mineradora no Brasil investigando, conjuntamente, as possibilidades de contribuição do campo da arquitetura e urbanismo para o debate

“abrir mão dos ideais de autoria e integridade do trabalho arquitetônico,

bem como do pressuposto de que usuários e construtores sejam sujeitos passivos, dispostos a conformar suas ações à imaginação do arquiteto” (KAPP; BALTAZAR; MORADO, 2008).

Ou seja, entendendo-o como um entre os diversos atores na produção do espaço, e não o único. Dito isto, a questão central a ser desenvolvida é a dependência econômica da extração de recursos minerais (minério-dependência) nos municípios do Quadrilátero Ferrífero (QFe) em Minas Gerais, de modo a identificar um dos possíveis caminhos para a diversificação econômica da região através de uma rede

1 como o trabalho fotográfico e documental de Julia Pontés e Isis Medeiros; o trabalho acadêmico íntegro dedicado à pesquisa e divulgação de Valêncio (2009), Trocate & Coelho (2020), Milanez et al (2019), Acselrad (2010); a luta e organização dos movimentos sociais como Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST); o apoio das organizações não governamentais como a Justiça nos Trilhos; e a resistência dos moradores.

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“Eu fico imaginando depois que acabar tudo, o barulho, e vier o silêncio [...] Porque agora tem movimento. Movimenta daqui, movimento dali. Mas na hora que o silêncio vier, aí que vai ser duro. Na hora que se der conta dos estragos que fizeram por aí. Todo lado que você andar pela região, você vai ver marca de alguma coisa. Toda hora você vai estar lembrando. O problema vai ser quando vier o silêncio.” (in WEIMANN, 2019).

a respeito da superação do atual modelo de extração mineral. Pretende-se pensar na figura do arquiteto como profissional dotado de uma perspectiva crítica a respeito dos problemas estruturantes. Isso significa, para o arquiteto,

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RESUMO


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Ana Luiza Gonçalves*

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*Arquiteta e urbanista pelo IAU USP e mestranda em Planejamento e Gestão do Território na UFABC, pesquisa as relações entre neoliberalismo, violência e conflitos fundiários a partir de um olhar centrado em territórios e populações marginalizadas. É pesquisadora do LabJuta (UFABC) e da rede SAGEMM-IAU (IAU USP). É editora da revista POSTO68 desde sua idealização, em 2019.

de escolas de ofícios ligada à preservação e valorização de seu patrimônio cultural edificado.

Interromper o Silêncio

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Esse artigo se estrutura, inicialmente, com uma leitura a respeito do Problema Mineral Brasileiro e do conceito de minério-dependência. Em seguida, destaca-se a proposta na escala regional do Quadrilátero Ferrífero, onde apresenta-se a rede de escolas de ofícios tradicionais. Por fim, determina-se um dos núcleos desta rede - no caso, o município de Barão de Cocais - para a intervenção junto a um edifício tombado, dando novos usos correspondentes à dinâmica da escola de ofícios. O PROBLEMA MINERAL Segundo o EM-DAT (Emergency Events Database), banco de dados internacional que reúne informações sobre desastres, no período de 1991 a 2010, foram registrados 7.602 desastres no mundo. Segundo

Valêncio (2009), entende-se, por desastres, a junção entre o risco e a vulnerabilidade. O risco seria a combinação da probabilidade de um evento com a sua consequência (ABNT, 2009) e a vulnerabilidade se revela nas situações em que a população afetada não tem condições de antecipar, resistir ou se recuperar dos impactos recebidos. Dado seu caráter multidisciplinar - envolvendo diversos campos da ciência como a Engenharia, Geografia, Sociologia, Antropologia, entre outras - não há um consenso sobre sua definição de “desastre”, o que demonstra que o termo é um conceito em disputa e sua definição seria um desafio cognitivo e político (MATTEDI, 2017). Na perspectiva sociológica, estes são observados, não como “desastres naturais” que acontecem a partir de uma sucessão de eventos com responsabilidade exclusiva das forças da natureza, mas em decorrência da dinâmica social alocada no território, o encontro do risco e da vulnerabilidade (VALÊNCIO, 2009).2

2 Sobre a desigual exposição aos riscos ambientais ou Racismo Ambiental, ver o capítulo sobre Justiça Ambiental em Giglio, G. - INTERROMPER O SILÊNCIO, alternativas para minério-dependência no Quadrilátero Ferrífero (MG). Trabalho de Graduação Integrado apresentado ao IAUUSP, p. 26-31, 2021.


A cidade amanheceu coberta por uma fina camada cinza. Nada de muito novo frente ao longo histórico de incêndios que atingem os museus cariocas. Mas esse foi bastante inesperado. Ninguém ouviu, sentiu o cheiro da fumaça ou viu as chamas arderem madrugada adentro. Um museu inteiro transformado em cinzas pouco tempo após sua criação.

Com a tomada de poder por governos mais à esquerda — depois de uma trágica gestão neonazista e de imensos retrocessos — foi promulgada uma lei que determinava a retirada de monumentos, nomes de ruas e feriados que glorificassem os grandes heróis nacionais responsáveis pelo tráfico negreiro, pelo genocídio indígena, perseguições religiosas, a ditadura militar e toda leva de cidadãos de bem que deram as cartas desde 1500. É de se esperar que não foi um processo pacífico: manifestações de fanáticos de extrema direita preocupados com o apagamento da história do Brasil; prefeitos se recusando a destinar verba para rebatizar as ruas; supremacistas brancos falando em racismo reverso… Um grande show de horrores.

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No início dos anos 2020, com a tardia tomada de consciência da população, acerca do passado de colonização e exploração dos corpos das pessoas e da natureza, teve início um movimento de ressignificação das figuras que eram consideradas heróis nacionais e dos monumentos que contavam, com honras, uma história de genocídio, estupro, apagamento cultural, exploração e doutrinação.

Alguns monumentos foram destruídos ou degradados durante as manifestações políticas, e os que conseguiram ficar em pé foram removidos de seus locais e concentrados no que ficou conhecido como Museu da Exploração. O museu tinha como objetivo principal subverter a forma como a história era contada, colocando os “heróis” em seu lugar de direito: assassinos, estupradores, grileiros, capitalistas cruéis que só se interessavam pelo próprio enriquecimento. A

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49 Outro problema do oligopólio desse mercado

3 A empresa Glencore trabalha com a intermediação de minerais, energia e produtos agrícolas e seu faturamento, em 2012, foi de 150 bilhões de dólares. A BlackRock é uma gigante do setor, gerindo em torno de 7% dos US $225 trilhões em ativos financeiros globais. 26,7% da população mundial possui 97,6% da riqueza, em torno de 73% da humanidade está partilhando o restante. (TROCATE & COELHO, 2020).

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Guilherme Machado Giglio

Sobre as barragens de mineração, das 425 inseridas na Política Nacional de Segurança de Barragens (PNSB), 56 têm problemas de estabilidade, sendo que 36 estão localizadas em Minas Gerais (Lei.A, 2019). Nota-se, dessa forma, a baixa confiabilidade nesses empreendimentos e o risco que a sociedade civil está exposta com a possibilidade de rompimento da barragem.

Para refletir sobre como chegou-se a estes números, cabe entender o consumo e usufruto assimétrico dos bens naturais dentro das escalas globais de desigualdade (TROCATE & COELHO, 2020, p. 42). O afrouxamento da regulação dos mercados financeiros e oligopolização do setor intermediário de comercialização de commodities são peças importantes na construção desse cenário. Segundo Dowbor (2017, apud TROCATE & COELHO, 2020) entre aqueles que concentram maior riqueza no mundo, figuram os proprietários de ativos financeiros e intermediários do mercado de commodities. Além disso, a oligopolização, ou seja, o domínio por poucas empresas, do trajeto feito pela mercadoria desde seu produtor até o consumidor gera grandes desvantagens para os países exportadores de commodities, uma vez que a maior parte do custo que chega, ao consumidor final, fica na intermediação (beneficiamento da matéria-prima para a produção do produto final).

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Diante dos dados presentes no Relatório de Segurança de Barragens (RSB), de 2019, elaborado pela Agência Nacional de Águas (ANA), vê-se que 68% das barragens submetidas à Política Nacional de Segurança de Barragens (PNSB) apresentam Dano Potencial Associado (DPA) alto - que se relaciona ao potencial de perdas humanas, econômicas e ambientais -, 23% das barragens apresentam Categoria de Risco (CRI) alta - relacionada às características técnicas e estado de conservação - e há 909 barragens, no País, que possuem tanto a CRI como o DPA altos, o que representa 19% das barragens classificadas.


O museu era frequentado, basicamente, por estudantes de escolas primárias em excursões das aulas de história e por turistas europeus que sofriam de algum tipo de culpa burguesa por seus antepassados. Um público bastante distinto daquele passava, diariamente, em frente a essas estátuas, estrategicamente localizadas nos principais pontos turísticos das cidades, com vista privilegiada para as bundas brasileiras em biquínis cavados, os avantajados peitos europeus expostos em amplos decotes, as novelas da vida cotidiana, a companhia diária de moradores de rua, catadores e cachorros vadios. Pedras no Caminho

Se a reação, nas ruas, foi intensa, a reação das estátuas e monumentos não ficou muito atrás. Todas as noites, as poucas estátuas que sentiam algum tipo de culpa ou arrependimento se afundavam em álcool, tentando esquecer seus atos do passado — ou, pelo menos, suas consequências póstumas. De manhã, os funcionários do museu ficavam bastante intrigados com as garrafas de cachaça barata espalhadas pelos corredores do museu, que estavam limpos quando o museu era fechado. Algumas figuras, em especial os traficantes de escravos, não se conformam de estarem na mesma categoria de ditadores, torturadores e estupradores, achando que eles eram alguma coisa melhor. A diminuta ala das mulheres passava a noite toda fumando cigarrilhas, jogando cartas e falando mal umas das outras discretamente.

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Com o passar do tempo, novos moradores começaram a ser transportados para o museu, vindos de cidades que não sabiam o que fazer com seus renegados monumentos. Foi, em uma dessas, que chegou ao museu um traficante de escravizados vindo de Salvador, onde já estava guardado no porão da prefeitura havia alguns anos.

é que gigantes da intermediação das commodities minerais, como os grupos Glencore e a BlackRock, são capazes de influenciar no preço das commodities (TROCATE & COELHO, 2020, p. 31). Isso significa que o preço passa pelo interesse desses grupos e não está sujeito, apenas, à função de oferta e demanda. Dessa maneira, pelo fato de uma parcela muito pequena da população mundial condicionar esse sistema de apropriação de bens naturais, a concentração de riqueza em escala global torna-se também a concentração do usufruto dos bens naturais.3

alta complexidade tecnológica. A partir daí, é possível pensar na noção de desenvolvimento e subdesenvolvimento elaborada por André Gunder Frank, Ruy Mauro Marini, Theotonio dos Santos, Vania Bambirra, entre outros4.

Os autores entendem o subdesenvolvimento como produto histórico das relações entre os países subdesenvolvidos e os que se tornaram desenvolvidos. Eles criticam a noção histórica que via nas sociedades dos países subdesenvolvidos uma cópia dos estágios anteriores pelos quais passaram as sociedades dos países desenvolvidos e apontam para um nova compreensão: “o subdesenvolvimento não como consequência da falta da economia capitalista, Ainda dentro da perspectiva de correlação mas como fruto do desenvolvimento do próprio de forças internacionais, Trocate & Coelho capitalismo” (FRANK, 2010 apud TROCATE & COELHO 2020). Ou seja, não é a ausência (2020) apontam, com base nos estudos de relação com o capitalismo que produz o de Hartmann et al. (2016), que os países subdesenvolvimento, mas o próprio capitalismo o exportadores de bens, tecnologicamente, gera. menos complexos são os mais desiguais e sugerem que a estrutura produtiva A ascensão da China no sistema mundial, na de um país pode limitar a distribuição virada do século XXI, constitui outro fator de renda, sendo, portanto, os países importante na constituição desse quadro primário-exportadores mais desiguais geopolítico da mineração. Mudanças na do que os países que produzem bens de indústria e, consequentemente, na estrutura 4 5

Teoria da Dependência ver TROCATE & COELHO (2020, p. 45-6).


O português começou seus ilustres trabalhos após a proibição do tráfico de escravos em 1831 e foi responsável pelo transporte de mais de 11 mil pessoas para o Novo Mundo. Como bom homem que era, ajudou as vítimas da seca no Nordeste brasileiro, apoiou obras de caridade e foi patrono da Santa Casa de Misericórdia, eximindo-se de suas atividades menos, digamos, bondosas aos olhos da história e rendendo, à sua estátua, uma localização privilegiada diante de um importante hospital de Salvador. Quando sua estátua chegou ao museu, ele já tinha bastante raiva acumulada dentro de si, pelos anos de solidão e encarceramento e pela destruição de sua reputação de herói, cuja conquista lhe custou amplas somas de dinheiro doadas a instituições. Já em suas primeiras noites no museu, começou a fazer amizade com outros monumentos, cujo passado também estava ligado ao comércio. Ana Luiza Gonçalves

Em uma outra ala do museu, de pé direito mais alto e mobilidade mais baixa, se encontrava a horrorosa e controversa estátua dedicada a um bandeirante, transportada, com dificuldade, da cidade de São Paulo para uma sala construída, especialmente, para receber esse antigo herói nacional. O bandeirante já não vinha de uma cena muito privilegiada em sua cidade natal. Além disso, talvez por sua falta de qualidade estética, a pobre estátua já vinha sendo atacada por manifestantes há muitos anos antes de sua remoção. Ele não entendia muito bem o motivo da diferença de tratamento: ninguém saía por aí falando mal da Rodovia dos Bandeirantes, nem dos monumentos dedicados a seus colegas de profissão… Ele era sempre o mais atacado, coberto de tinta, passando pela humilhação da urina de cães e moradores de rua e de manifestações em torno de sua derrubada.

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No entanto, esta situação criou muitos casos de especialização na exportação de matérias primas, gerando os fenômenos de reprimarização e desindustrialização. A desindustrialização caracteriza-se por diminuir o setor industrial proporcionalmente e em tamanho absoluto no conjunto da economia. Em geral, esse processo causa efeitos negativos pelo fato de diminuir o conteúdo tecnológico dos bens produzidos e aumentar a vulnerabilidade do país às pressões externas e às flutuações no mercado internacional, reforçando a dependência da exportação de produtos básicos Devido a demanda crescente, houve e gerando uma constante transferência de investimento maciço na criação de infraestruturas de extração mineral. Trocate valor em favor dos países centrais, devido à troca desigual entre países produtores de & Coelho (2020) comentam, com base matérias-primas e países industrializados em Humphreys (2015), que entre 2002 e (TROCATE & COELHO, 2020). 2013, os gastos em exploração mineral, na América Latina, aumentaram 660%. Na O quadro internacional apresentado África, esse crescimento foi de 725%, na ganha corpo, no Brasil, através do aparato Ásia, 940% do Pacífico e 100% no resto do institucional e econômico que organiza a mundo. Com a demanda muito superior atividade mineradora. Esta é a chave para à oferta, os preços dos commodities são compreender o modelo de mineração pressionados para cima, fato este que coloca brasileiro, em que houve oito grandes os países primário-exportadores numa rompimentos de barragens de rejeitos de situação favorável ao obterem vantagens mineração em Minas Gerais, entre 2001 e 2019, no intercâmbio internacional durante com o rompimento da barragem da Mineração determinado período. socioeconômica chinesa5 transformaram o país no maior consumidor de matérias primas durante os anos 2000, direcionando investimentos a países ricos em matérias primas. Essas transformações afetaram, de maneira decisiva, as atividades de extração e produção de commodities e elevaram violentamente o preço dos commodities no mercado internacional, fenômeno que ficou conhecido como boom das commodities.


Pedras no Caminho

A transferência foi um grande alívio para o pobre homem. Ele gostava do belo edifício no qual estava, da sala ornamentada, da proteção contra o sol e a chuva, de sua limpeza diária e, sobretudo, da solidão, imensamente melhor que viver em meio ao intenso fluxo de carros sendo odiado por todos. Ainda mais sendo ele um honrado bandeirante, um desbravador de florestas antes ocupadas por indígenas selvagens. Os bandeirantes, como é sabido, foram importantes descobridores do território brasileiro, ainda que, para que as novas terras pudessem ser ocupadas, alguns corpos tenham ficado pelo caminho. Grande conhecedor do interior brasileiro, passou a indicar diversas fontes minerais, o que garantiu que o bandeirante fosse sendo, finalmente, reconhecido por atividades altruístas, sempre agindo em prol do enriquecimento do Estado. Aos poucos, chegou ao posto de Tenentegeneral do Mato, sendo bastante estimado pelos governadores de São Paulo. Apesar do sangue indígena em suas mãos, nenhum dos bandeirantes que residia no museu considerava, de forma alguma, que seu lugar, na história do Brasil, era a mesma dos traficantes de escravos, uma vez que eles eram homens de bem, responsáveis pelo descobrimento do ouro de Minas Gerais, de Goiás e do Mato Grosso e pelo crescimento econômico desses grandes estados da nação brasileira. Os bandeirantes defendiam veementemente a destruição dos monumentos dos traficantes, argumentando que eles sujavam a história daquele honrado museu.

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Os traficantes, por outro lado, não se conformavam em estar presos entre 4 paredes, sendo vistos por crianças catarrentas que não entendiam nada de economia ou política.

Rio Verde, em Nova Lima (Milanez et al., 2019). Neste ponto, cabe fazer uma breve explicação sobre o processo de beneficiamento dos minérios e de geração de rejeitos.

diretamente à expansão das barragens de rejeitos.

O boom das commodities tornou economicamente viável explorar minerais onde antes não havia condições, este fato levou Após a extração, há uma sucessão de à expansão da extração no setor minerador, processos para separar o mineral de com consequente expansão do volume total de interesse de outras substâncias. Para se rejeitos, particularmente em Minas Gerais. obter o minério de ferro, a tecnologia mais Trocate & Coelho (2020) esclarecem a relação entre altos e baixos nos preços e as dinâmicas dos utilizada é a “via úmida”, na qual ocorre a separação por diferença de densidade. empreendimentos minerários: Esse processo consome grande quantidade Para aproveitar os picos dos preços dos de água e gera rejeitos na forma de lama. minérios, as obras são aceleradas sem Por isso, a necessidade de construir se considerar as medidas de segurança barragens que sirvam como reservatórios necessárias. Também utilizavam para deposição destes rejeitos. Esta última financiamento disponível para expandir é uma atividade de alto risco, dado elevado e instalar empreendimentos minerários, potencial de dano no caso de falhas. Outra questão importante é o teor de pureza (porcentagem) de um determinado mineral em uma rocha ou minério. Para o minério de ferro, o teor de 66% é considerado como material de alta qualidade. Quanto maior for o teor de pureza, menor será a geração de estéril e rejeitos, no caso contrário, com menor teor de pureza, haverá maior volume de rejeitos. Dessa maneira, as dimensões de extração mineral, no Brasil, se relacionam

o que aumentava o endividamento das mineradoras. Nos períodos de baixa nos preços, devido à queda das receitas e ao alto endividamento criado no período anterior, impõem-se esforços para diminuir os custos. Dessa forma, gastos com manutenção e segurança acabam sendo preteridos em nome da rentabilidade das minas. O esforço tem como objetivo diminuir gastos ambientais e trabalhistas, além de diminuir gastos de manutenção com as barragens de rejeitos. (TROCATE & COELHO, 2020, p. 100).


O conflito entre os grupos começou já regado a cachaça de baixa qualidade, trazida para o interior do museu a partir de contatos externos de monumentos de profissões menos pomposas e que não foram alcançados pela lei de cancelamento dos demais moradores do museu. A demanda por álcool começou a aumentar na mesma velocidade que a rivalidade entre os grupos liderados por Orgulho Ferido e Coração Partido.

Depois de uma briga um pouco mais acalorada, que causou estragos significativos em diversas estátuas, a direção do museu decidiu por fechar as portas até que as investigações sobre os responsáveis pelo ocorrido fossem concluídas. Como não havia nenhuma suspeita e o ocorrido não fazia sentido nenhum - já que o museu tinha sido uma proposta de conciliação dos conflitos das ruas -, as investigações não avançaram com muita velocidade, o que fez com que o museu ficasse fechado por meses sem qualquer possibilidade de reabertura. E a guerra entre as facções de estátuas foi ganhando corpo.

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Aos poucos, a troca de farpas começou a se transformar em pequenas sabotagens vindas das duas partes, tirando pequenas lascas das estátuas, desgastando o acabamento e dando muito trabalho aos responsáveis pela manutenção das figuras, que não tinham ideia de como um museu tão pouco frequentado poderia precisar de tanta manutenção.

Cada um dos grupos responsabilizava o outro pelo fechamento do museu, que resultou em sua completa exclusão do mundo externo. Nem os funcionários de limpeza e manutenção vinham mais com tanta frequência, visto que, com a ausência de visitação, esperava-se uma redução na necessidade de manutenção das figuras. Doce ilusão. Cada manhã, a situação do museu ficava pior. As garrafas de bebida se acumulavam nos corredores, já haviam estátuas em um estado de degradação tão elevado que seria mais fácil destruí-las e criar réplicas a partir dos destroços. 3A

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Por exemplo, no caso da barragem de Fundão, 2015, propriedade da Samarco, localizada em Mariana, as obras e o rompimento ocorreram no pós-boom da mineração, ou seja, quando os preços da commodities estavam em baixa. Fato este que a pressionava a diminuir os gastos com segurança e manutenção na barragem. No caso da Barragem I, 2019, na mina do Córrego do Feijão, em Brumadinho, pode-se apontar a correlação entre o teor do minério e o risco de rompimento como possível explicação para o que aconteceu (MILANEZ et al., 2019).

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O fogo reviveu bombas esquecidas que haviam sido plantadas em pontos estratégicos ao longo dos meses de conflito, o que prejudicou a estrutura do edifício, já bastante antigo e sensibilizado pelas reformas e expansões recentes para receber os novos moradores. O pânico das estátuas presas só acendeu, ainda mais, a rivalidade entre elas, terminando o trabalho iniciado por elas mesmas e acelerado pelo fogo. No lugar onde o quase esquecido museu se localizava, não havia nada além de uma montanha irreconhecível de pedras e cinzas que não sensibilizou ninguém. Apesar das mobilizações no momento de sua fundação, depois do fechamento, ele já não fazia mais parte do imaginário popular. Ninguém pensava no museu ou em suas estátuas, ninguém se mobilizava por sua reabertura, ninguém se importou quando ele, e tudo que ele representava, veio abaixo. A história da glorificação da exploração queimou com o fogo do ódio produzido por ela mesma. E a fina camada de poeira que cobriu a cidade foi lavada e esquecida.

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Não se sabe ao certo de quem foi a brilhante ideia de começar a brincar com fogo como forma de provocação, nem onde eles conseguiram as pequenas bombas que começaram a ser instaladas nas alas uns dos outros, mas acredita-se que foram elas as responsáveis pela destruição do museu, dos monumentos de estética duvidável e de suas reputações já destruídas. Não houve um grande ponto de incêndio, foram pequenos focos de incêndio iniciados em várias alas e salas do museu ao mesmo tempo. Pequenos incêndios que foram se espalhando, alimentados pelo aerosol das latas de tinta em spray baratas usadas nos conflitos, das garrafas com restos de álcool que se acumulavam, das estruturas de madeira usadas como pedestais das estátuas e monumentos, dos tecidos das cortinas que forravam as janelas…

MINÉRIO-DEPENDÊNCIA No atual modelo de sociedade, praticamente todos os bens de consumo dependem da mineração para serem produzidos. Desde os tijolos, cimento e vergalhões para construção civil (mineração da argila, calcário e ferro), as lâmpadas (mineração do quartzo, tungstênio e alumínio) e até os aparelhos eletrônicos (mineração de cobre, lítio, prata etc.). Esta situação nos coloca em uma encruzilhada, onde precisamos dos materiais minerados em quase todos os âmbitos da vida enquanto que, por outro lado, estes materiais minerados são recursos naturais finitos. Luiz Marques (2015) aponta que a lógica do capitalismo, desde suas origens, se associa à necessidade constante de expansão, havendo uma incompatibilidade entre o capitalismo e a sustentabilidade ambiental. Fontes (2010) também argumenta, quando discute o conceito de “acumulação primitiva”, que a expansão do capital se dá por meio das condições que exacerbam a disponibilidade de trabalhador para o capital, que podem ser lidas como dois tipos de expropriação: a expropriação do

trabalhador, quando lhe é tirado a propriedade direta dos meios de produção; e a conversão dos meios de vida em capital, por meio da privatização de bens públicos e da retirada de direitos trabalhistas junto à propriedade monopolista dos recursos naturais (como a água, florestas, etc.). Dessa maneira, pelo fato do crescimento ser um elemento intrínseco do capitalismo, o sistema pode ser caracterizado como ambientalmente destrutivo, sendo a mineração e o agronegócio as suas faces mais predatórias. Não pretende-se, aqui, apresentar uma discussão aprofundada sobre decrescimento econômico; no âmbito deste trabalho, é suficiente destacar que o atual sistema de produção é incompatível com o ecossistema global e não há nenhuma perspectiva de redução do atual ritmo de extração mineral, uma vez que o capitalismo se baseia na busca pela maior extração de lucro possível. Junto a isso, tem-se a financeirização das commodities ou comoditização da natureza, processo em que o modo de acumulação de riqueza é pautado no poder excessivo do setor financeiro (organismos financeiros internacionais, bancos centrais, grandes bancos privados etc.), transformando


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31 anos, é um artista independente de São Paulo/ SP. Também formado em Artes Visuais, do qual esse processo ajudou a desenvolver sua poética visual. Aborda em seu trabalho a luta de classes e o imaginário, a partir das representações negras no Brasil.

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Forma-se um quadro de relações assimétricas de poder em que as 6

que ocorreu aproximadamente entre 2000 e 2014.

“situação na qual, devido à especialização da estrutura produtiva de um município, região ou país na extração de minerais, os rumos da estrutura local são definidos em centros decisórios externos”.

Na perspectiva da Teoria da Dependência, comentada anteriormente, as relações assimétricas que geram dependência ocorrem a nível internacional e nacional. Na escala global, situa os países e regiões dependentes no atraso e sob a exploração de países dominantes. Internamente, a assimetria gera, nos países periféricos do capitalismo - majoritariamente do sul global -, a manutenção da estrutura primárioexportadora que condiciona a formação de centros internos metropolitanos e satélites internos interdependentes.

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No caso do Quadrilátero Ferrífero (MG), junto ao acelerado nível da extração mineral a partir do boom das commodities6, há um conjunto de “efeitos e danos causados pela atividade mineradora, em âmbito local, regional ou nacional, durante a instalação, funcionamento ou finalização do empreendimento” (TROCATE & COELHO, 2020, p. 86). As decisões que incidem diretamente sobre as regiões dependentes são tomadas através de relações que consideram pouco ou nada os interesses da sociedade local, das comunidades diretamente impactadas pelos empreendimentos e dos trabalhadores do setor.

deliberações - ou o condicionamento destas - a respeito da estrutura produtiva local se dão exclusivamente a partir dos interesses das empresas mineradoras multinacionais e/ ou do mercado de commodities minerais, determinando quem serão os atingidos por esta atividade. Coelho (2017, p. 2) denomina esse quadro como minério-dependência, ou seja,

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os bens naturais em mercadorias padronizadas de acordo com normas do mercado internacional. Assim, além de criar uma falsa dependência dos recursos naturais não renováveis, também é gerada uma dependência econômica e social nas regiões onde estes recursos são extraídos.


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por Juliana Sampaio Farinaci* *Bióloga, Mestre em Genética e Biologia Molecular e Doutora em Ambiente e Sociedade pela UNICAMP. Tem experiência de pesquisa e extensão em resiliência socioecológica, ação coletiva e dinâmicas de uso e cobertuta de terras em paisagens rurais. Atualmente trabalha na OSCIP Akarui, no fortalecimento de circuitos agroalimentares locais e restauração ecológica. É batuqueira e brincante da cultura popular.

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De maneira geral, dependência não é uma situação imposta pelo ambiente externo, de fora para dentro, mas sim condicionada pelas forças internas que compõem a sociedade dependente. É a combinação entre estas forças internas e forças externas que explica a posição subalterna e sua baixa capacidade de enfrentamento no mercado internacional. (SANTOS, 2011 apud COELHO, 2017).

Entrando na escala regional, a minériodependência se manifesta através da arrecadação municipal e da geração de emprego e renda. Estas dinâmicas são “impulsionadas pela atividade na qual a estrutura produtiva está especializada, o que cria dificuldade em criar alternativas econômicas, uma vez que os investimentos públicos serão direcionados para a manutenção e incentivo da atividade principal” (COELHO, 2017. p. 2).

Alguns dados também nos ajudam a compor esse quadro de especialização produtiva que asfixia alternativas econômicas. Em Congonhas (MG), 40% dos empregos formais estão concentrados no setor da mineração. Em 2012, a mineração correspondeu a quase 30% da receita da prefeitura de Mariana através da CFEM (Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais)7 (SECRETARIA DO TESOURO NACIONAL, 2016) e, em 2015, foi o município onde mais se arrecadou CFEM em Minas Gerais, totalizando R$ 104 milhões (DNPM, 2015), valor que corresponde a menos de 3,7% do lucro líquido da Samarco em 2014. Além disso, vale destacar a fragilidade dos postos de trabalho criados no setor mineral, sendo a maior parte deles de caráter temporário, criados durante a construção da infraestrutura do complexo minerador e fechados após a finalização das obras. Junto a isso, o setor empregava cerca de três milhões

Os recursos minerais são bens da União, para explorá-los, as mineradoras pagam, ao Estado, uma Compensação Financeira, que é a CFEM: Compensação Financeira pela Exploração Mineral. Ela é paga pelas mineradoras para o órgão regulador federal, que é a Agência Nacional de Mineração (ANM). Diferentes tipos de minérios resultam em diferentes taxas de CFEM. No caso do minério de ferro, varia entre 2% e 3,5% (COMITÊ NACIONAL EM DEFESA DOS TERRITÓRIO FRENTE À MINERAÇÃO). 7


Sem desmerecer nenhuma dessas iniciativas solidárias que levaram comida a milhares de pessoas que estavam precisando, era desconfortável ver tanta gente arrecadando donativos para comprar alimentos de grandes indústrias, enquanto os agricultores familiares da região não podiam ver, sequer, uma luz no fim do túnel. Foi aí que surgiu a sementinha da ideia que deu origem à iniciativa “Divino Alimento – alimento de todo mundo”: arrecadar dinheiro de pessoas físicas para comprar alimentos da agricultura familiar e doá-los às pessoas mais vulneráveis do nosso município.

Ao mesmo tempo, não paravam de chegar, pelas redes sociais, pedidos de doação para entregar alimentos às pessoas mais vulneráveis. No entanto, a maioria desses pedidos era para arrecadar dinheiro para doar cestas básicas. As cestas básicas – e aí tem margem para um outro tanto de discussões que não caberiam aqui2 – são compostas por alimentos produzidos por grandes indústrias, muitos deles na categoria de ultraprocessados3.

Este é o momento em que é preciso abrir um parênteses para contextualizar tudo que gerou as condições para que a iniciativa Divino Alimento se concretizasse e continuasse a crescer.

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Março de 2020, o governo de São Paulo havia estabelecido medidas para controle da disseminação da Covid-19. Feiras proibidas, escolas fechadas, supermercados operando com sérias restrições. Com o cancelamento das compras para a merenda escolar1 e sem as feiras e mercados, como os agricultores familiares iriam escoar a produção dos alimentos que já estavam lá, plantados e a ponto de serem colhidos? E quanto tempo duraria isso?

1 Muitos agricultores familiares têm no PNAE – Programa Nacional de Alimentação Escolar – um de seus principais mercados. 2 Ouça o programa “Pobre come qualquer coisa?” do podcast Prato Cheio, de O Joio e o Trigo (28 de julho de 2020), disponível, gratuitamente, em diversas plataformas. 3 Para saber mais sobre as categorias de alimentos, leia o “Guia Alimentar para a População Brasileira” (Ministério da Saúde, 2ª ed. 2014), disponível em:

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Contudo, é possível observar a expressão clara do minério-dependência quando uma parte da população de Mariana pede a volta das atividades da Samarco, em 2016, mesmo após o rompimento da barragem em 2015. Situações como esta são ocasionadas pelo anseio dos empregos associado ao temor dos efeitos nocivos que a paralisação das atividades de extração

Com esses elementos, forma-se a cadeia de dependência do minério, combinando especialização da estrutura produtiva com a dificuldade de se criar alternativas econômicas. Trocate & Coelho (2020) argumentam que “a dependência não é algo dado por uma suposta vocação natural das regiões que apresentam jazidas minerais, mas é criada, reproduzida e aprofundada ao longo do funcionamento da atividade mineradora”, que desestrutura, limita e sabota outras setores econômicos. Coelho (2017) defende que romper com a dependência do minério passa, necessariamente, pela diversificação produtiva que vai além das alternativas ligadas à mineração. O autor completa:

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De modo geral, a extração mineral é realizada em regiões que apresentam baixa renda média, o que faz com que os postos de trabalho gerados pela mineração sejam superestimados em discursos das empresas mineradoras, tanto em relação aos salários quanto às condições de trabalho. [...] Ainda, boa parte é criada em condições de terceirização e tende a diminuir durante os ciclos de baixa nos preços dos minerais no mercado internacional. (COELHO, 2017, p. 3).

pode gerar sobre a arrecadação municipal, o que condiciona a população local a aceitar o pacote completo dos empreendimentos minerários, inclusive os danos gerados pela mineração.

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de pessoas, das quais metade é terceirizada (ZONTA, 2016). De acordo com Coelho (2017),


A Akarui foi fundada em 2003 e, há mais de 10 anos, definiu que seu trabalho seria pautado pelos princípios da agroecologia, ou seja, pensando no território de forma integrada e considerando sempre os eixos de justiça social, viabilidade econômica e sustentabilidade ambiental. Estamos numa região que conecta dois grandes eixos consumidores de alimentos, água e serviços ecossistêmicos em geral: o Vale do Paraíba está entre as capitais de SP e RJ e, além disso, São Luiz do Paraitinga está no acesso entre o Vale do Paraíba e o litoral Norte de SP/litoral Sul do RJ (veja mapa na página ao lado).

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Trabalho em uma organização da sociedade civil de interesse público (OSCIP) chamada Akarui, em São Luiz do Paraitinga, que fica na porção paulista do Vale do Rio Paraíba do Sul. Muitos conhecem São Luiz do Paraitinga como a cidade das mil festas, onde a cultura popular tem seu lugar de destaque e que preserva o maior conjunto arquitetônico tombado do estado de SP. São Luiz também ficou conhecida como a cidade que sobreviveu a uma grande enchente no início de 2010.

A diversificação produtiva deve ser entendida como estímulos a diversos setores econômicos para além da industrialização. Deve se tratar

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de diversificação econômica popular em municípios minerados. A reforma agrária,

formas alternativas de produção rural (agricultura familiar e agroecologia), pequenas empresas (intensivas em mão de obra) e setor de serviços (turismo e polos de geração de conhecimento) são alguns desses setores. (COELHO, 2017. pág. 6).

Dessa maneira, a postura a ser adotada é a de lutar pela construção de formas autônomas de sociedade e economia que vão no sentido oposto daquela da minério-dependência, e não a validação do atual modelo de mineração. Dessa forma, discutir a minério-dependência é discutir o problema mineral no Brasil, e a busca por uma diversificação econômica popular nos municípios minerados é a busca pela aplicação da justiça ambiental nestas realidades.

Portanto, não parece coerente que a grande extensão de zonas rurais, do nosso município e de nossos vizinhos, esteja dominada por pastagens degradadas, abandonadas ou pouco produtivas, com solos mostrando claros sinais de erosão. Resultado de um processo secular de sucessivos ciclos econômicos predatórios, que pouco consideraram a integridade ambiental e o bem-viver da população rural, que, praticamente, expulsou os habitantes rurais para os grandes centros urbanos com promessas de uma vida mais próspera. Inconformados com esta situação e acreditando no grande potencial de nossa região para o desenvolvimento de uma agricultura regenerativa, temos trabalhado na Akarui, apoiando a agricultura familiar de base agroecológica, e também em projetos de sensibilização ambiental, mobilização comunitária e restauração ecológica.


Nessa trajetória, executamos diversos projetos e tecemos parcerias com muita gente: poder público, iniciativa privada, outras organizações da sociedade civil, agricultores, proprietários antigos de terras e neo-rurais, além de muitos voluntários. Assim, formaram-se as bases para que fosse possível articular muitas mentes, corações e estruturas que viabilizaram o Divino Alimento.

Juliana Sampaio Farinaci

Feita essa digressão, é possível, então, retornar a março de 2020.

Assim, bem despretensiosamente, telefonei para a Daniela Coura (Diretora da Akarui) e expus a ideia: “por que a gente não arrecada doações em dinheiro, compra alimentos dos agricultores parceiros e doa para quem está precisando?”. Tinha visto uma iniciativa semelhante de um pessoal de Morungaba, da pertim.org, e achei genial. A ideia, tão simples, era até difícil de explicar… Doar alimentos? A Akarui nunca trabalhou dessa forma, nunca tínhamos feito uma campanha assim. Mas a coragem foi maior do que a incerteza.

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Projeto: Iniciativa Divino Alimento

Por whatsapp, no grupo de associados da Akarui, falamos sobre a ideia de fazer uma campanha e todo mundo gostou. Mas ainda não tínhamos um nome. Por sugestão da Luciana Gomes, todos votaram a favor de Divino Alimento, nome muito significativo, pois faz referência a uma das manifestações culturais que o povo de São Luiz do Paraitinga conserva com maior cuidado: a festa do Divino Espírito Santo4, em que o sagrado e o profano dão as mãos para celebrar a abundância da cultura desse povo, com muita fartura de alimentos e de alegria para todos que quiserem chegar. Assim nascia o Divino Alimento – alimento de todo mundo. Mas ainda precisávamos tomar várias providências para concretizar a ideia. Durante o isolamento social, como faríamos os alimentos chegarem às pessoas em situação de vulnerabilidade? Conversamos com a Prefeitura Municipal de São Luiz do Paraitinga, por meio da Secretaria de

Também era necessário articular, planejar e dar assistência aos agricultores para entrega dos alimentos. E isso foi feito por meio do contato já estabelecido, em projetos dos quais a Akarui participa, entre as agrônomas e técnicos do Projeto Conexão Mata Atlântica5, Associação Brasileira de Agricultura Biodonâmica6 e o - hoje extinto - Programa de Desenvolvimento Rural Territorial da Cia. Suzano. Também tivemos o apoio da organização de agricultores Associação Minhoca – Parceiros Agroecológicos e da ONG Serafim (@serafimrede).

5 Coordenado pela Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente e pela Fundação Florestal do Estado de São Paulo. Mais informações em:

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4 Para mais informações, veja a Dissertação de Mestrado de João Rafael Cursino dos Santos “A festa do Divino de São Luiz do Paraitinga: o desafio da cultura popular na contemporaneidade” (2008, FFLCH/USP) e também a bela viagem virtual em:

Promoção e Desenvolvimento Social, que disponibilizou o local para a montagem das cestas de alimentos e entrega às famílias cadastradas em programas sociais.

PROPOSTA Dado o panorama apresentado, cabe discutir quais as possíveis entradas para uma proposta que traga a reflexão - no campo da arquitetura e urbanismo - sobre a superação da dependência econômica da extração mineral. A hipótese levantada, no presente trabalho, é a de que a riqueza cultural desenvolvida ao longo da ocupação desse território se apresenta como uma via fecunda para se conjecturar uma das possibilidades de diversificação econômica, pautadas no usufruto dos bens produzidos pela própria população local. Ao contrário da constante transferência de valor para os países centrais do capitalismo, que acontece na mineração, uma vez que a maior parte dos custos que chegam, ao consumidor final, fica no trajeto entre a matéria-prima e o produto final, trajeto este dominado pelo oligopólio do mercado de intermediação das commodities minerais já comentado anteriormente. Dentro dessa perspectiva, é importante destacar que o expressivo patrimônio cultural existente na região tem ligação íntima com a exploração predatória dos recursos naturais. Inicialmente, com a corrida do ouro no

século XVIII, que motivou a ocupação do interior do país, visto que, desta etapa de povoamento, permaneceu um conjunto expressivo de patrimônio cultural, com destaque para os conjuntos urbanos setecentistas - Congonhas, Ouro Preto e Mariana tem seu conjunto arquitetônico e urbanístico tombados pelo IPHAN - e, para a Arte Barroca, que teve ecos nas artes plásticas, na arquitetura, música e literatura. Mais adiante, no final do século XIX e início do XX, a efervescência urbana se intensifica com a instalação dos pólos de extração dos minerais metálicos ferrosos na região. Quando pensamos a temática do patrimônio cultural no campo da arquitetura e urbanismo, é possível entendê-lo como a arte e técnica de construir espaços, sendo uma manifestação cultural feita pelo coletivo e para o coletivo, capaz de representar, através da sua matéria, uma sociedade e seus conflitos, ou seja, é símbolo de ideais e testemunha de práticas e feitos históricos (FURLONI, 2019). Podemos apontar, então, que o debate sobre o patrimônio arquitetônico


Abrimos conta em banco, fizemos website7, perfis em redes sociais (@divinoalimentooficial), identidade visual com logomarca, mobilizamos possíveis doadores, tudo para viabilizar os canais para que qualquer pessoa pudesse fazer suas doações.

Juliana Sampaio Farinaci

No dia 7 de abril de 2020, menos de um mês depois de decretadas, oficialmente, as medidas de isolamento social, entregamos as primeiras cestas de alimentos agroecológicos e passamos a fazer isso semanalmente. Investindo na regularidade, para além de matar a fome das pessoas, nosso objetivo sempre foi trabalhar com a mudança dos hábitos alimentares que, atualmente, são muito baseados em produtos industrializados.

À parte a doação dos primeiros R$ 700,00 que a Akarui aportou de seus cofres para doação, tudo que recebemos, em dinheiro, foi dado por pessoas físicas. Atualmente, ainda contamos com doações esporádicas ou regulares de pessoas físicas, algumas das quais contribuíram em todos os 19 meses de existência do Divino Alimento. Recebemos desde R$ 5,00 a R$ 1000,00 e, cada centavo, – exceto as taxas bancárias das quais o Banco do Brasil não nos isentou – foi usado para comprar alimentos em transição agroecológica ou orgânicos, produzidos por agricultores familiares de São Luiz do Paraitinga, Natividade da Serra e Redenção da Serra, que foram doados às pessoas cadastradas nos programas sociais de São Luiz do Paraitinga.

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8 Ver Giglio, G. - INTERROMPER O SILÊNCIO, alternativas para minério-dependência no Quadrilátero Ferrífero (MG). Trabalho de Graduação Integrado apresentado ao IAUUSP, p. 50C. M - A restauração enquanto arte 858, 2021. Ver Vertambém Giglio, G.Furloni, - INTERROMPER O SILÊNCIO, alternativas e alegria e alegria no trabalho: formação profissional em canteiros para minério-dependência no Quadrilátero Ferrífero (MG). de obra. Dissertação de Integrado Mestrado,apresentado São Carlos: IAUUSP, 2019. Trabalho de Graduação ao IAUUSP, p. 5058, 2021. Ver também Furloni, C. M - A restauração enquanto arte e alegria e alegria no trabalho: formação profissional em canteiros de obra. Dissertação de Mestrado, São Carlos: IAUUSP, 2019.

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e urbanístico está diretamente ligado com a ação humana sobre o território, neste caso, com os processos e técnicas construtivas. e urbanístico está diretamente ligado com a A partir destesobre entendimento, do neste território ação humana o território, caso, e do patrimônio cultural, propõe-se uma rede com os processos e técnicas construtivas. de escolas de ofícios tradicionais na região A partir deste entendimento, do território e do QFe. A proposição tem como objetivo do patrimônio cultural, propõe-se uma rede implementar uma dinâmica econômica de escolas de ofícios tradicionais na região alternativa à mineração com potencial que do QFe. A proposição tem como objetivo excede a mera geração de empregos para implementar uma dinâmica econômica trabalhadores e técnicos que atuariam junto alternativa à mineração com potencial que a preservação e manutenção do patrimônio excede a mera geração de empregos para cultural edificado, funcionando como trabalhadores e técnicos que atuariam junto catalisador para impulsionar outras frentes a preservação e manutenção do patrimônio como a justiça social, o desenvolvimento cultural edificado, funcionando como humano, o desenvolvimento local, a educação e catalisador para impulsionar outras frentes a cultura, tendo, como base, a experiência do como a justiça social, o desenvolvimento programa das Oficinas-Escola8. humano, o desenvolvimento local, a educação e a cultura, tendo, como base, a experiência do programa das Oficinas-Escola8.


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A princípio, sem ter noção do tempo que demoraria a crise desencadeada pela Covid-19, estabelecemos, como meta, fazer a campanha até julho de 2020. Percebendo que a crise seria bem mais longa, passamos a refletir sobre os futuros do Divino Alimento e idealizamos que deveria ser um programa permanente, não apenas de doações, mas de acesso à alimentação para mais pessoas, e que isso deveria ser assumido – ao

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E então, surpresa! Quando passamos a divulgar a campanha nas redes sociais, começamos a receber mensagens de pessoas perguntando como fazer para comprar aquelas maravilhosas cestas de alimentos frescos e sem agrotóxicos. Mais uma vez, recorremos à nossa base de parceiros da Akarui e outra ideia surgiu: mediar a venda direta dos alimentos, a preço de custo, mas cada comprador pagaria uma quantia extra, suficiente para garantir a doação de, pelo menos, uma cesta mensal para uma outra família que não pode pagar. Foi criado, então, o grupo de compradores das cestas do Divino Alimento. Esses compradores passaram a doar, voluntariamente, além de dinheiro, seu tempo para ajudar a organizar a logística envolvida na organização e na entrega das cestas.

Em síntese, as escolas de ofícios tradicionais seriam pólos permanentes da preservação e pesquisa do patrimônio cultural, atuando, simultaneamente, na formação de indivíduos para realizarem ofícios que demandam não só o conhecimento técnico, mas também um saber histórico e cultural. Mostrandose como uma das possibilidades de movimentar a economia regional de forma autônoma em relação à mineração. Assim, não pautamos, aqui, o fim da mineração, mas sim um modelo de mineração que não seja conduzido pelo neoextrativismo minerador, enquanto modelo de desenvolvimento, fato que reforça as características socioeconômicas próprias do subdesenvolvimento e aumenta a dependência da mega mineração (TROCATE & COELHO, 2020). Após definir os núcleos da rede de escolas de ofícios, na escala do Quadrilátero Ferrífero, toma-se como estudo de caso, para a implantação da escola o município de Barão de Cocais. A rede tenta abranger os municípios que costumam ser negligenciados por iniciativas de estudo e

conservação do patrimônio. Dessa forma, para o desenvolvimento deste trabalho, escolhese um dos núcleos para realização do ensaio projetual, de forma a entender sua dinâmica de formação e o possível lugar de implantação da escola de ofícios. O município de Barão de Cocais, assim como outros municípios do QFe, tem sua ocupação territorial caracterizada pela exploração das jazidas de ouro presentes neste território e, posteriormente, ligadas à implantação do pólo siderúrgico. Atualmente, o município de Barão de Cocais conta com aproximadamente 241,7 km2 e população estimada de 32.866 habitantes, localizando-se na macrorregião Central do Estado de Minas Gerais, a 93 km de Belo Horizonte. A economia do município é representada pela indústria, pelo setor de serviços e comércio e pelo setor agropecuário. As principais indústrias são a Gerdau S/A e a mineradora Vale do Rio Doce.


menos em parte - por políticas públicas.

Contribuímos para o cadastramento de São Luiz do Paraitinga (entre outros municípios da região) no Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), tanto federal como estadual. Infelizmente, o PAA federal sofreu severos cortes e, embora classificado, São Luiz do Paraitinga não conseguiu acessar os recursos. Mas, felizmente, veio o PAA estadual, suficiente para atender a 289 famílias com cestas verdes de alimentos da agricultura familiar. Neste ponto, exatamente um ano

Fizemos também um trabalho de pesquisas por meio de entrevistas com representantes das famílias que recebiam cestas por doação e por compra, com os agricultores parceiros e com profissionais ligadas à Sec. Promoção Social e à Vila São Vicente. Nosso objetivo era investigar a aceitação e os efeitos dos alimentos que estavam sendo entregues. Alguns dos resultados que observamos foi o aumento da diversidade de alimentos consumidos, com significativo aporte nutricional, tanto pelas pessoas que recebem via doação

Juliana Sampaio Farinaci

Trata-se, portanto, de muito mais do que caridade: visamos soberania alimentar e segurança nutricional, viabilidade da agricultura familiar agroecológica e fortalecimento da economia local. Somos hoje um movimento formado por pessoas que acreditam no poder transformador que o alimento e a alimentação têm em todas as dimensões de nossa vida neste planeta8.

após o início do Divino Alimento, a maior parte das famílias passou a ser atendida pelo PAA. Seguimos com um número menor de famílias, as quais atendemos, semanalmente, até hoje e passamos também a fazer doações semanais à Vila São Vicente de Paulo, uma instituição que é lar de cerca de 20 idosos.

8 Para conhecer mais do projeto, indicamos o trabalho: SILVA, Kenia Cristina Barbosa. 2021. Divino alimento: construção e consolidação de políticas públicas de soberania e segurança alimentar e nutricional (SSAN) a partir de uma iniciativa de doação de cestas de alimentos à população em situação de vulnerabilidade em São Luiz do Paraitinga - SP. Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Nutrição da Universidade Cruzeiro do Sul. In prep. 9 Plantas alimentícias que crescem, espontaneamente, em canteiros e jardins, cujo uso alimentar é pouco conhecido atualmente e que possuem alto valor nutricional (ex.: caruru, lambari da horta, ora-pro-nobis, almeirão roxo, beldroega, maria-gorda, entre uma infinidade de outras).

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ENSAIO PROJETUAL O ensaio projetual é constituído pela alocação de um corpo edificado junto ao Sobrado de Dona Ely9. Para tal, propõe-se o remembramento do lote atual do Sobrado junto ao terreno que se encontra vago, a oeste, e não será considerado na proposta o edifício que se encontra no mesmo lote do Sobrado. Para a intervenção no Sobrado foi levado em consideração as Diretrizes de Intervenção presentes no Dossiê de Tombamento do Sobrado. 9 Patrimônio histórico tombado junto com o Cine Rex, a Casa do Artesão e o Santuário de São João Batista, sendo parte da memória edificada do município.

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Pouco a pouco, as pessoas envolvidas foram participando, cada vez mais, da iniciativa e propondo outras ações. No final de outubro de 2021, um grupo de consumidores/ empreendedores e agricultores organizaram, conjuntamente, a 1a Feira Divino Alimento, em que puderam vender seus produtos, ao mesmo tempo contribuindo com um percentual que será revertido para doação de cestas de Natal agroecológicas. A feira foi realizada num espaço cedido pela Prefeitura no Mercado Municipal e os clientes também puderam optar por contribuir para a ação solidária com um percentual extra sobre suas compras. A expectativa é de que a Feira Divino Alimento

passe a acontecer mensalmente. Também foi realizado, recentemente, um ciclo de oficinas oferecidas, gratuitamente, às mulheres da comunidade, sobre aproveitamento integral de alimentos e plantas medicinais. Esperamos expandir esses diálogos e trocas de conhecimentos. Isso tudo é parte do Divino Alimento, realizado graças ao trabalho persistente de dezenas de pessoas, a uma grande dose de trabalho voluntário, ao apoio dos projetos, instituições e organizações aqui mencionados. Eu, que tenho pensamento forjado na academia e em ciências que prezam muito pelas métricas quantitativas, poderia colocar, aqui, todos os resultados do Divino Alimento em termos de toneladas de alimentos, em famílias beneficiárias e em R$ movimentados em compras da agricultura familiar. Mas, hoje, decidi resistir a esse caminho. Não foi fácil resistir, já estava atualizando as planilhas. Mas, de repente, essas métricas me pareceram, mais do que nunca, muito relativas comparadas aos milhões que, hoje, estão em situação de insegurança alimentar em nosso país.

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como via compra, além da divulgação de plantas alimentícias não-convencionais9 e frutas nativas da Mata Atlântica. As pessoas que compram as cestas relatam o seu bem-estar por se sentirem agentes de um movimento cidadão com potencial de transformação. Já os agricultores parceiros relataram que, apesar da crise generalizada, as vendas melhoraram depois do início do Divino Alimento, pois a demanda certa e regular deu condições para um melhor planejamento de produção, redução de perdas e racionalização de gastos com transporte/frete.

O Sobrado passa a abrigar funções administrativas e um café no primeiro pavimento, onde anteriormente tinha o uso residencial, e, no térreo, aloca-se o setor de atendimento ao público, exposição de trabalhos e sanitários, tirando proveito de seu fácil acesso à rua. A intervenção se distribui no lote irregular de, aproximadamente, 850 m2, com um desnível de 8m entre a Av. Desembargador Moreira dos Santos e Rua Domingos Maia, ligadas através da escadaria que orienta os fluxos e acessos aos quatro níveis: 1. nível 0,0m abriga o térreo do sobrado e o galpão das aulas práticas - que conta com maquinário e infraestrutura; 2. nível 2,35m, natural do terreno, acomoda às funções administrativas e o café no primeiro pavimento do sobrado, e o nível 3,0m, se encontra o mezanino do galpão dedicado atividades mais delicadas que necessitam de um ambiente de higiêne controlada (os níveis serão tratados, conjuntamente, para facilitar sua compreensão); 3. nível 3,55m, também natural do terreno, destinase ao auditório, laboratório de fabricação digital e o bloco de sanitários, sendo todos estes parcialmente enterrados no terreno; 4. nível 6,55m é reservado às salas de aula, a laje para aulas práticas a céu aberto e um bloco de sanitários.


Com o que os nossos resultados deveriam ser comparados? A serviço de que essas métricas estariam aqui neste artigo? Ocorre que, talvez, elas estariam a serviço de convencer você, leitor e, de certa forma, a colonizar sua mente. Seria pra provar que o que digo tem algum valor? Mas esse valor se mede em números?

E, paradoxalmente, termino, aqui, refletindo que o sucesso da iniciativa Divino Alimento será cada vez maior à medida que ela se tornar independente de suas criadoras para funcionar, passando a ser um movimento auto-organizado por diversos agentes sociais. Essa é a métrica que, hoje, mais me interessa.

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Também poderia tecer análises relacionadas à teoria dos comuns (Commons theory), à teoria de sistemas complexos, autoorganização e resiliência9, no que se refere à ação coletiva, temas aos quais tenho dedicado mais de dez anos de meu esforço intelectual. Mas minha tarefa, aqui, é outra. Escolho falar sobre a minha maneira de mobilizar todo o conhecimento teórico e conceitual que adquiri no sentido de disparar uma ideia geradora, que deixou de ser minha, deixou de habitar apenas a minha mente para que pudesse se concretizar, ganhando, assim, a força e a beleza que só a ação coletiva pode alcançar. Mais uma vez, não quero desmerecer ninguém

que se dedique aos estudos acadêmicos e construções teóricas – ao contrário: o mundo precisa disso e sou fruto dessa construção. Mas, paradoxalmente, para falar de ação coletiva, trouxe a mim mesma como referência.

10 Devo prestar homenagem aos autores, como Elinor Ostrom, Buzz Holling, Fikret Berkes, Brian Walker, Carlos R. Brandão, Antonio Candido, Marten Scheffer, Francis Heylighen, entre outras/os que iluminaram meus pensamentos no campo da ação coletiva, bem como à Cristiana Simão Seixas, que me introduziu a esse campo de pensamento e incentivou, desde sempre, minhas pesquisas nessa área.

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FILOSOFIA ANDINA INDÍGENA DESCOLONIAL: ensaio

PONCHOS ROJOS DE BOLÍVIA; RONDAS CAMPONESAS DO PERÚ

Hilder Alberca Velasco* “O apus, engendro ao índio, ou seja, à alma indiana cheia de habilidades e possibilidades criativas, e deu brilho e sentido a esse mundo caótico e fetal.” (URIEL GARCÍA, 1973, p. 23)

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*Natural da Provincia e da cultura Indoandinacampesina de Huancabamba, Piura, Peru. Licenciado em Ciência Política e Sociologia pela Universidade Federal da Integração Latino-americana (UNILA). Mestrando em Planejamento Urbano e Regional na Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGPUR/ IPPUR/UFRJ).

Em relação ao sistema construtivo, utiliza-se duas soluções: os edifícios que estão em contato direto com o terreno e receberão esforços de uma laje ou de outro edifício (galpão da prática, auditório e laboratório fabricação digital) possuem colunas de tijolos maciços concretadas em seu miolo, onde se apoiam as vigas metálicas. Já os dois blocos de sala, que se acomodam acima do auditório e do laboratório de fabricação digital, são de alvenaria estrutural de tijolinho maciço com telhado de uma água. A laje plana de concreto, que cobre a circulação entre auditório e fabricação digital, no nível 3,55m, e, entre as salas de aula, a laje das aulas práticas, no nível 6,55m, são apoiadas nas colunas espessas de tijolos maciços concretados em seu interior.


O estudo propõe problematizar a existência viva da colonialidade do poder da qual falava Quijano (2014). Uriel García (1973) aborda o conceito de novo índio1 como aquele que deve buscar a sua liberdade já não pelo sangue, mas pelo seu espírito. O espírito, neste sentido, seria o que unifica povos e lutas. Se contrapõe ao sangue que divide, fraciona e individualiza as lutas e os povos, porque os torna egocentrados. Fausto Reinaga (2014) expressou sua insatisfação sobre a alienação dos homens e das mulheres indígenas em razão de esquecerem a essência de sua identidade e cosmologia na resistência

introdução

colonial. Valcárcel (1972) enfatizou que a tempestade dos andes, ou o próprio indígena, deve se manter vivo como a palpitação da terra porque, dela, nasce sua indianidade. Neste sentido, ao pensar o capitalismo presente nas formas de neoliberalismo e neoliberalização, em que a opressão se amplia e aprofunda, o novo índio contemporâneo tem que buscar a unidade orgânica pelo espírito de luta abrangente. Então, o que, aqui, chamamos de Sul Andino Indígena Plurinacional, tem sido, desde 1492, uma existência real de divergências entre o que foi a opressão e o genocídio, mas também de resistência, como evidencia Guaman Poma de Ayala, no Bom Governo (1980). Com isso, movimentos como os Ponchos Rojos e as Rondas Camponesas são, na atualidade, uma imagem viva dessa identidade indígena que se coloca como ação e opção em pé de luta.

ensaio

Neste ensaio, tomamos como objetivo problematizar dois movimentos indoandino camponeses: os Ponchos Rojos da Bolívia e as Rondas Camponesas do Peru. Novos movimentos sociais que, desde suas pedagogias do equilíbrio ou práticas de imaginários, apresentam repertórios e formas de ações coletivas indígenas que se conformam como resistências anticoloniais e anticapitalistas, desde o Sul Andino Indígena Plurinacional (outra forma de chamar América Latina) e para o mundo.

Neste ensaio, ainda que de forma sucinta, buscamos mostrar a construção dos dois movimentos sociais - Ponchos Rojos e Rondas Camponesas - no Peru e na Bolívia, identificar as mudanças e continuidades A

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nas agendas dos dois movimentos políticos indígenas andinos e caracterizar o comportamento e a relação estabelecida entre o Estado Bolivariano e os Ponchos Rojos e o Estado Peruano e as Rondas Camponesas.

Os Ponchos Rojos na Bolívia e as Rondas Camponesas no Peru como novos movimentos indígenas Desde a chegada do expansionismo europeu, em 1492, até as independências do século XVIII, os indígenas peruanos e bolivianos tinham laços de estigmatização colonial - porque estiveram submetidos aos

mesmos processos violentos de controle e dominação impostos pela coroa espanhola – que não se rompe com o estabelecimento do que se configura como Estado-Nação. Possivelmente, esta é a razão de Sérgio Barnett (2021) enfatizar a ideia de que os povos andinos e seus atores históricos, como Tupac Amaru (Peru) e Tupak Katari (Bolívia), lideraram ações contra a ordem colonial, buscando a autonomia do índio e sua liberdade em todas as suas formas. Os movimentos andinos, para Blithz Lozada (2006), observados desde sua forma de articulação, mostram uma visão de mundo original e, ao mesmo tempo, em constante vanguarda. O que se quer dizer é que os Ponchos Rojos, enquanto movimento político andino, é formado por indígenas que operam em seus próprios territórios entre os quéchuas e os aimarás2 e conservam a sua cosmologia. Essa forma de ver e atuar sobre o mundo transborda no

1 Ainda que, na contemporaneidade, se oriente a inequação do uso do termo índio, o qual deve ser substituído pelo termo indígena, não se pode falar de indígena sem refletir sempre sobre sua base histórica, o índio. Há que se concordar com Mires (1991) ao assinalar o termo índio como uma suposta adesão à busca pelas Índias e, também, com Batalla (1972) de que o termo poderia levar a um reducionismo da luta dos povos indígenas. Ainda assim, parece ser importante fazer o exercício constante de contextualização no uso do termo índio à luz do indigenismo. O indigenista clássico peruano Uriel Garcia faz uma distinção entre índio e novo índio. O primeiro se refere àquele ocupante das Américas, sem contato com o branco europeu, ou seja, aquele que era puro de espírito e de sangue, sem contaminação europeia. O novo índio mantém as raízes espirituais do antigo índio e necessita, hoje, ser mais espírito que sangue para que possa se opor às práticas instituídas pelo colonialismo persistente. Neste sentido, e tão somente nele, o uso do termo índio, neste trabalho,


modo como se apresentam a ele desde sua identidade cultural, que se coloca nas cores das vestimentas que os acompanham. Cada linha e costura que compõe os seus ponchos refletem uma força da sua própria visão de mundo e do modo como escrevem a sua história e filosofia. O índio, segundo Uriel García (1973), é o descendente do apu, e o novo índio tem vindo desde aí, passa pelo ayllu de onde nasce sua alma indígena. Se pensamos no presente, os novos índios criam uma dinâmica e lógica particular para as suas comunidades que, ainda que pressionadas pela cosmologia ocidental contemporânea, mantém os seus princípios básicos do Ayni e da Minka dentro de seu conceito de comunidade. Ayni e Minka são expressões indoandinas relacionadas à dinâmica do equilíbrio entre entes e sua cultura. Como ressalta Martin Heidegger (1997), o ente se refere ao ser humano, seu modo

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como é. O Ayni pode ser interpretado como uma estrutura ôntica que mostra a essência própria de um ente (o novo índio, o novo indígena) e sua identidade. Portanto, evocam nas relações entre natureza-homem-comunidade, em laços de pertencimento e nos princípios como solidariedade, reciprocidade, complemento e cooperação. Falar de Ayni e Minka, no contemporâneo, é falar da relação histórica do que, hoje, se conhece como Bem Viver. Neste sentido, Josef Estermann (2006) ressalta que a negação da alma ou do ser das culturas do Abya Yala foi um caso a não ser esquecido, por trás de uma pacificação e controle das populações pela via religiosa, se promoveu uma ocultação ou uma negação de valores imbricados na cultura desses povos originários. Em seu estudo sobre os Ponchos Rojos, Choque Bautista (2019) os descreve como uma resistência étnica e uma

parece ser oportuno para reforçar as práticas e formas autóctones que subsistem em nossa cultura, mesmo no contemporâneo, e que estão dentro do termo indígena na atualidade. O uso do termo índio, neste ensaio, não reafirma a colonização do ser, mas sim ressalta o que, desde o primeiro contato, tão fortemente o diferenciou dos europeus.

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2 Nota do editor: Quéchuas e Aimarás são grupos de indígenas que vivem nas montanhas da Cordilheira dos Andes na América do Sul, distintos pela língua falada.

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Nota do editor: ressaltamos que a utilização do termo índio, adotado pelo autor, ao invés de indígena - termo reivindicado e utilizado em língua portuguesa - foi de escolha e justificativa do mesmo. Reconhecemos a reivindicação dos povos originários brasileiros pela adoção do termo indígena, entretanto, tratando-se de um autor igualmente indígena, optamos por respeitar a escolha de palavras do mesmo.

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Referências: ABNT. (2009). NBR ISO 31000:2009 Gestão de riscos - Princípios e diretrizes Agência Nacional de Águas (Brasil). Relatório de segurança de barragens 2018. Brasília: ANA, 2019. COELHO, T. P. (2017) Minério-dependência e alternativas em economias locais. Versos - Textos para Discussão PoEMAS, 1(3), 1-8. COMITÊ NACIONAL EM DEFESA DOS TERRITÓRIO FRENTE À MINERAÇÃO. De Olho no CFEM. Disponível em: 1 FURLONI, C. M - A restauração enquanto arte e alegria e alegria no trabalho: formação profissional em canteiros de obra. Dissertação de Mestrado, São Carlos: IAUUSP, 2019. KAPP, S.; BALTAZAR, A. P.; MORADO, D. Architecture as Critical Exercise: Little pointers towards alternative practices. Field: A free journal for Architecture (Sheffield), v. 2, p.7-29, 2008. LEI.A. 2/3 das barragens do Brasil com riscos de instabilidade estão em Minas Gerais. 2019. Disponível em: 2 MARQUES, Luiz. Capitalismo e o colapso ambiental. Campinas: Editora da Unicamp, 2015. MATTEDI, Marcos. Dilemas e perspectivas da abordagem sociológica dos desastres naturais. Tempo Social : Revista de Sociologia da USP, São Paulo, v. 29, n. 3, p.261-285, dez. 2017. Disponível em: 3 MILANEZ, Bruno; MAGNO, Lucas; SANTOS, Rodrigo; COELHO, Tádzio; PINTO, Raquel; WANDERLEY, Luiz; MANSUR, Maíra; GONÇALVES, Ricardo. Minas não há mais: Avaliação dos aspectos econômicos e institucionais do desastre da Vale na bacia do rio Paraopeba.

Versos – Textos para Discussão PoEMAS, 3(1), 2019

TROCATE, Charles; COELHO, Tádzio. Quando vier o silêncio : o problema mineral brasileiro. 1.ed. —São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo, Expressão Popular, 2020. 146 p. VALÊNCIO, Norma. Da morte da Quimera à procura de Pégaso: A importância da interpretação sociológica na análise do fenômeno denominado desastre. In: VALÊNCIO, Norma et al (Org.).

Sociologia dos Desastres: Construção, interfaces e perspectivas no Brasil. São Carlos: Rima, 2009. Cap. 1. p. 3-18. WEIMANN, Guilherme. “O problema vai ser quando vier o silêncio”, afirma atingido de Brumadinho (MG). Brasil de Fato. 8 fev. 2019. Disponível em: 4 ZONTA, M. Passar “dez anos sem férias” é condição comum na mineração brasileira, diz sindicato. Brasil de Fato, 04 Jul 2016. Disponível em: 5 1

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Paralelamente, em seu estudo sobre as Rondas Camponesas, Alberca Velasco (2019) afirma que estas comunidades se originam em 1976, na localidade de Cuyumalca, em Cajamarca, no Peru, sendo compreendidas, desde seus próprios atores, como a reserva moral de seus territórios e do Peru, por

conservarem práticas com características autóctones. São compreendidas, desde Orin Starn (1991), como um movimento invisibilizado pela literatura dominante pelos aparelhos do Estado peruano. Os chamados ronderos e ronderas surgem como buscadores da reivindicação do índio (indígena) ou o andino que, mais tarde, seria chamado de camponês. Neste sentido, as Rondas Camponesas também se configuram como um novo movimento social, formado por esses novos índios que devem ser percebidos em sua historicidade, daí a importância de compreendê-los como sujeitos indoandinoscampesinos. Em sua práxis coletiva, se propõem a cuidar de seus membros e das comunidades e lutar contra o abandono do Estado e a opressão capitalista, neoliberal e neoextrativistas que vem, desde os anos 1990, se impondo sobre os territórios comunais e ronderis. Ao reconhecer os Ponchos Rojos e as Rondas Camponesas como movimentos indoandinoscampesinos, há a conformidade com um paradigma para a restituição do sujeito andino ou “índio” nos campos

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reivindicação linguística e política, parte das nações de origem. Dotadas, portanto, de uma ideologia dinâmica que parte da premissa de erradicar qualquer ato de discriminação, marginalização e política social exclusão no território boliviano. Esses pressupostos se relacionam com a forma como homem e natureza são percebidos. Os Poncho Rojos nascem em Achacachi, província de Omasuyos. Seu território e suas comunidades estão localizados às margens do Lago Titicaca. No que se refere à categoria de movimentos sociais, trata-se de um novo movimento social composto por grupos, ideólogos, que encontram, na cooperação, uma forma de assumir sua participação política, direcionando suas ações para a transformação da sociedade em suas ideias, valores, crenças, normas para os comportamentos.

Desirée Carneiro *

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*Sou uma mulher cearense que mora no interior do estado de São Paulo, em São Carlos, e estuda arquitetura e urbanismo. No campo acadêmico já desenvolvi pesquisas que discutem a produção capitalista urbana e habitacional. No campo profissional, já participei de assessorias técnicas a movimentos populares em luta por moradia. Ademais, participei do movimento estudantil e do movimento negro.

o crime da Braskem fosse em São Paulo?

O artigo discute a invisibilização de eventos como estratégia de apagamento e de manutenção de desigualdades regionais, raciais e de classe. Para tal discussão, utiliza-se o caso do crime da Braskem cometido em Maceió, que ocasionou uma fragilidade geológica gerando consequências ambientais, sociais e urbanas graves. O artigo almeja jogar luz aos principais agentes envolvidos, no âmbito da disputa por justiça ambiental, e as principais consequências. Palavras chave: Crime Braskem Maceió; Invisibilização; Discriminação origem regional; Justiça ambiental


político, social e democrático de seus países. Em Bolívia, possuem um maior protagonismo e avanço em razão do Novo Constitucionalismo Plurinacional de 2009. Neste 2021, com a eleição de Pedro Castillo, em Peru, as Rondas Camponesas acabam ganhando espaço no cenário político peruano dentro da proposta de revisão constitucional e é possível que se abra espaço para um novo paradigma de Estado.

É possível encontrar, em ambos os movimentos sociais, elementos de ruptura com o capitalismo. As agendas dos Ponchos Rojos e das Rondas Camponesas do Peru trazem, como possibilidade, a retomada e reafirmação do conceito de

Ao estabelecer novos paradigmas para a relação com o seu entorno criam uma lógica de equilíbrio que impede a expansão dos marcos neoliberais tais como eles se configuram. Os movimentos estão vinculados à Confederação Sindical Única de Trabalhadores Campesinos de Bolívia (CSUTCB). Felipe Quispe (2013) escreveu, em seu diário, em 10 de setembro de 2003, que seria um engano, para o indígena, acreditar em um sistema neoliberal e que, ainda que venham a buscar consensos, não pode haver acordo com o capital. O capitalismo, em sua interpretação, é um diabo hegemônico e com ele não se negocia, porque sua luta é frontal contra a

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Ponchos Rojos e Rondas Camponesas, mudanças e continuidades: suas agendas e propostas

novo índio e de conformação de novas formas estatais que se expressam por meio de suas constituições plurinacionais. A partir de suas estruturas comunitárias, sociais e políticas, ambos os movimentos apresentam similitudes ao não adotarem, como princípio, a exploração do homem e da natureza, isso faz com que promovam uma quebra nos pressupostos capitalistas que vivem da permanente exploração, seja do homem, da natureza ou de ambos.

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introdução

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Escrevo esse texto para questionar : porque o Brasil não está falando sobre isso? Acredito que a explicação dependa de um mosaico de questões, mas me atrevo a destacar uma delas : a localização. É sabido que nosso país é constituído por desigualdades regionais que favorecem, principalmente, as regiões do sul do país, sudeste em especial. Surge, então, outra pergunta: quem ganha e quem perde com a invisibilização dessa catástrofe urbana? Não almejo esgotar as questões levantadas, mas penso esse texto em seu papel de denúncia, de nos instrumentalizar, minimamente, com informações, para que possamos, coletivamente, buscar tais respostas. Esse texto é fruto de uma pesquisa

1 O elemento natural sal-gema é formado a partir da evaporação de águas marinhas em camadas subsuperficiais. Ele pode ser utilizado como matéria prima em diversas áreas, como cloro, água sanitária, soda caustica, PVC, entre outros (FRAGOSO, LIMA, NASCIMENTO, SILVA, TEIXEIRA, 2020).

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ARTIGo

Esse texto discute o maior desastre ambiental urbano do mundo. E sim, ele está localizado no Brasil. Nosso país, que, em meio a tantas outras crises – política, sanitária, habitacional, ambiental – também abriga tal tragédia. Em 2018, no bairro do Pinheiro, em Maceió, houve um tremor de terras que evidenciou um crime ambiental já em curso há décadas. A empresa do ramo petroquímico Braskem, com autorização do poder público, extraia sal-gema1 de bairros tradicionais da cidade, sob solo urbano, entretanto, a falta de emprego da técnica adequada, aliada à fiscalização ineficaz dos órgãos ambientais, resultou na fragilização do solo que foi evidenciada por tal tremor. Em bom português, o solo estava – e ainda está – colapsando sob os pés da população.


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filosofia dominante. (QUISPE, 2013). Do mesmo modo, as Rondas Camponesas do norte do Peru, desde Alberca Velasco (2020), se definem autônomas; e sua forma de decisão não considera o Estado, mas a assembleia, como um círculo em espiral para a tomada de decisões que, depois, se tornam correspondências práticas entre as hierarquias ronderas. O direito consuetudinário é aplicado em seus arranjos e na geração de soluções para os problemas internos que aparecem em seus territórios. Esta forma de atuação se vincula pelo direito positivo, por meio de sua Lei N. 27908/2006, e de sua representação via Central Única Nacional de Rondas Camponesas (CUNARC), criada em 2006, em Lima; uma estrutura ronderil a nível nacional, cuja função é apoiar logisticamente e criar uma rede que permita vincularem-se com outras experiências que compartilham de seus diálogos e lutas.

Comportamento do Estado com os Ponchos Rojos na Bolívia e as Rondas Camponesas no Peru O Estado, para este ensaio, é definido desde Mariátegui (2007) para quem a independência republicana moderna não favorece ao indígena, pelo contrário o estigmatiza. Alvaro García Linera (2010)

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Os Ponchos Rojos e as Rondas Camponesas continuam na luta pela refundação de sua identidade, como vêm demonstrando na ação política de seus povos. O que está por

vir é que esses movimentos camponeses indoandinos seguiram uma linha do passado e reconstruíram as experiências daqueles que os precederam. Ambos movimentos seguem as lutas de Tupac Amaru e Tupac Katari. Por fim, a filosofia andina indígena pode ser olhada desde o mito de Arguedas (2006), Kori Ojllo, mulher indígena que evitou o colonizador até sua morte. Dessa forma, se poderia reinterpretar a cultura senti pensante dos andes.

independente e utiliza, como método de pesquisa, a revisão bibliográfica. Para tal, discutiremos brevemente a noção de invisibilização de certos processos e corpos e as desigualdades regionais brasileiras. Levantarei o contexto mais amplo sobre o crime da Braskem, entendendo a extração como uma atividade inerente ao

modelo de sociedade capitalista. Então, partiremos de uma leitura urbana, para entendermos o que representa a área atingida no âmbito da cidade de Maceió e como ocorreu a tragédia, principalmente, a partir de 2018, bem como suas consequências.

Invisibilização como chave de desumanização Esse texto busca uma leitura da situação alagoana, entendendo que está sendo publicado em uma revista paulista. A divulgação do crime da Braskem, na grande mídia, foi feita de forma irrisória em relação à gravidade do fato, e as redes sociais e mídias alternativas também não foram suficientes para mostrar, para o Brasil e para o mundo, a dimensão do problema ambiental enfrentado. Afinal, porque não estamos falando sobre isso?

Discutiremos sobre essa invisibilização midiática do caso alagoano a partir das populações humanas e não humanas vitimizadas pelo crime, entendendo-os como o “Outro” do qual trata Butler (2011). A autora mobiliza o conceito de Rosto de Levianas para realizar suas leituras. Ela aponta que o


apresenta uma concepção de Estado entendido como correlação política de forças; uma máquina de fabricar normas, regras, pressupostos, hierarquias, burocracia; organizador de ideias e crenças coletivas generalizadas. Adotando a fala de Bourdieu (2014), o Estado é assinalado como uma estrutura de exercício de poder e de violência simbólica. Tanto os Ponchos Rojos quanto as Rondas Camponesas são movimentos em seu espaço de luta e nasceram da necessidade de fazer prevalecer sua identidade cultural sobre a opressão e abandono do Estado moderno nos últimos 200 anos.

dirigentes, como Felipe Quispe, deram respaldo a Luís Arce, atual presidente Bolívia, apoiando sua candidatura após o golpe de Estado de 2019.

Por essa razão, os Ponchos Rojos têm desempenhado um papel decisivo no enfrentamento ao Estado colonial, como é o caso recente do golpe de Estado que a Bolívia sofreu no final de 2019, após 13 anos de governo de Evo Morales. Ainda assim, foram determinantes para a Constituição Política do Estado de 2009 e do estabelecimento de uma ordem democrática que reconhecesse os direitos indígenas e a plurinacionalidade. Assim, em 2020, o movimento indígena e seus

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Sobre o Estado peruano e as Rondas Camponesas, sua luta é constante. O movimento andino-indígena-campesino conquistou um espaço na Constituição Política do Estado de 1993, mediante Decreto Supremo 025-2003 e sua Lei N. 27908/2003, em que são reconhecidas como organizações originárias e com autonomia para cuidar de seus territórios. Ressaltase que a luta travada pelos ronderos e ronderas com o Estado peruano se deve aos programas extrativistas mineiros em seus territórios, que chegam com o programa neoliberal de Fujimori nos anos 1990. As Rondas Camponesas nos últimos 45 anos têm sido um voto rebelde contra os governos neoliberais; um exemplo recente seria a atuação direta na política democrática do Peru, com a última eleição em 2021 e o triunfo de Pedro Castillo. No Peru, o Estado pode ser visto, como assinala Hector Béjar (2019), como uma colônia que não conseguiu empreender as reformas

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A autora (2011) também destaca que o rosto e o discurso estão relacionados diretamente. Para ela, precisamos ser dirigidos por um Outro, para fazermos uso da linguagem, e, então, necessariamente sermos remetidos por um discurso. Eles se interligam e, com isso, o outro se torna condição do discurso. Como diz a autora, “Se o Outro for anulado, também o será a linguagem, uma vez que esta não pode sobreviver fora da condição do discurso” (BUTLER, 2011, p. 22).

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[...] Esses esquemas normativos operam não apenas produzindo ideais do humano que fazem diferença entre aqueles que são mais e os que são menos humanos. Às vezes eles produzem imagens do menos que humano, à guisa do humano, a fim de mostrar como o menos humano se disfarça e ameaça enganar aqueles de nós que poderiam pensar que conseguem reconhecer outro humano ali, naquele rosto. Mas muitas vezes esses esquemas normativos funcionam precisamente sem fornecer nenhuma imagem, nenhum nome, nenhuma narrativa, de forma que ali nunca houve morte, tampouco houve vida. [...] (BUTLER, 2011, p. 28).

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Rosto seria a extrema precariedade do Outro, como explica: “[...] Responder ao rosto, entender seu significado quer dizer acordar para aquilo que é precário em outra vida ou, antes, àquilo que é precário à vida em si mesma. [...]” (BUTLER, 2011, p. 19). Assim, o rosto não representa, necessariamente, uma face humana em seu sentido literal, mas, sim, a precariedade da vida de outrem.

Nosso interesse nessa discussão está no apagamento do Outro e esvaziamento de sua humanidade, pela falta de representação ou representação inadequada. Ele deve ser entendido dentro de uma questão mais ampla, na qual esquemas normativos de inteligibilidade, ainda nos termos de Butler (2011), definem, a partir da imagem e da ausência dela, o que será humano, portanto, qual sofrimento é passível de lamentação (e de ações reparadoras). Como explica a autora:


Considerações Finais Ao término desse ensaio, se assinala que os Ponchos Rojos e as Rondas Camponesas são movimentos sociais indoandinocampesinos, organizados culturalmente e cuja cosmologia abarca princípios e formas comunais de existência e isso os diferencia e contrapõe à ordem capitalista hegemônica e neoliberal. Ambos movimentos resgatam a figura do novo índio, cuja identidade vem sendo apagada com a finalidade de inseri-

los na situação da classe trabalhadora do campo e assalariada, o que permite um maior controle e dominação pelo sistema capitalista e sua conformação política naturalizada pelo Estado. No caso do Peru, a reforma agrária de 1969, de Juan Velasco Alvarado, mudou a nominação indígena para campesino. Tal fato foi criticado por Quijano (1996), em razão de se constituir tanto em uma perda para o conjunto do sistema de garantias e proteções para os povos indígenas quanto pela mudança na sua identidade. O termo campesino não contempla as especificidades dos povos indígenas em Peru, que apresentava singularidades como, por exemplo, a presença de indígenas andinos, indígenas da costa e indígenas amazônicos. O câmbio indígena-campesino, promovido por Velasco Alvarado, converte os indígenas não-amazônicos em pessoas do campo e, com isso, adota uma lógica, para esses povos, completamente alinhada com a ideia de classe e, portanto, os insere em uma dinâmica capitalista, como proletariado. No caso Boliviano, as mudanças

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necessárias para que se constitua como um Estado neoliberal, a exemplo de outros países latino-americanos. A centralidade das Rondas Camponesas, no enfrentamento a esta ordem, é determinante para a ruptura com o uso e permanente acumulação das riquezas naturais e da conversão dos bens coletivos em commodities, porque, ao ressuscitar esses paradigmas originários e trazer ao cenário contemporâneo, propõe uma nova forma de governo para o território.

É, precisamente, essa última estratégia citada pela autora que nos pede mais atenção a partir do caso alagoano. Assim, a exclusão de uma imagem do domínio da aparência torna-se o não reconhecimento daquelas humanidades. A autora destaca a urgência em estabelecermos “modos públicos de ver e ouvir que possam responder ao clamor do humano no interior da esfera da aparência” (BUTLER, 2011, p. 28), ou seja, consolidarmos outros canais de comunicação e mídia para tentarmos superar essa questão. A autora complementa que essas estratégias podem ser consideradas como uma das implicações representacionais da guerra2, já que passam pelo modo de operar da política e do poder regular o que pode aparecer. Butler (2011) utiliza o exemplo estadunidense da guerra com o Iraque para discutir tal questão:

Obviamente, esses esquemas de inteligibilidade são tácita e forçosamente impostos pelas corporações que monopolizam o controle sobre a mídia hegemônica com forte interesse em manter o poderio militar dos Estados Unidos. A cobertura da guerra revelou a necessidade de um amplo processo de quebra de monopólio dos interesses da mídia. A legislação para esse fim foi, como era previsível, altamente contestada em Capitol Hill. Pensamos nesses interesses como direitos de controle sobre propriedade, mas eles são também, simultaneamente, aqueles que decidem o que será e o que não será reconhecido publicamente como realidade. Eles não mostram violência, mas há uma violência na moldura do que é mostrado. Esta violência é o mecanismo por meio do qual certas vidas e certas mortes permanecem não representadas ou

2 A fala de Butler ganha mais significado ao ser analisada junto à uma cena do documentário “A Braskem passou por aqui” (2021), no qual um morador anda pelo bairro atingido pelo risco geológico descrevendo a situação atual e comparando-a com um cenário de guerra.


Cabe destacar que os movimentos emergem como uma insurgência à colonialidade do poder e do saber da ontologia moderna. Com a captura das culturas e redução das autonomias de povos e comunidades tradicionais, pelo aparato estatal, buscam a conformação de um novo contrato social, orientado por seu Bem Viver, de acordo com o entender de Apu, Ayllu, y o Ayni, inseridos no contemporâneo na concepção da ideia de comunidades indígenas. Os Apus representam os deuses dos primeiros homens, entes que se relacionam ao homem

simbólico expresso em seres da natureza. O Ayllu é uma das primeiras formas como se organizaram as comunidades indoandinas e se referem à essência da estrutura da família e suas interações com o meio. São, portanto, paradigmas de equilíbrio entre o social, o econômico e o político; fontes de saber e resistências contrahegemônicas, atores políticos originários do endógeno do Sul Indígena Plurinacional, mostrando seus modos da ação social para o exógeno. Neste sentido, quando se aborda Ayni, Minka, Ayllu, Apu, há uma ocorrência aos campos culturais, amplos e próprios dos povos e comunidades autóctones dos Andes e da construção de uma identidade indígena que se baseia em pressupostos próprios de uma ética do cuidado com o ente, o ambiente e a comunidade.

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introduzidas pela Constituição, como o reconhecimento de um Estado Plurinacional, reposiciona os povos indígenas daquele país reposiciona o próprio indigenismo e a possibilidade de contracultura e a existência de práticas não capitalistas nos moldes hegemônicos. Neste sentido, as ideias de campesino e campesinato teriam que passar, obrigatoriamente, por uma abordagem crítica e de suas representações e efeitos para aqueles povos e nações próprios do lugar.

Na região andina, o passado é vital para entender o presente. O andino indígena é uma relação de diversos e não de uns poucos. Os ancestrais andinos perceberam que a diversidade era a chave para sua organização e para salvaguardar seu simbolismo. O ingresso dos europeus expressa o advento do capitalismo como A

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Nesse sentido, a falta de ampla divulgação midiática sobre o crime da Braskem torna-se a segunda violência sofrida pelas populações habitantes das localidades colocadas em risco ambiental. Violência essa que impede uma indignação nacional e internacional pelas imensuráveis perdas provocadas por aquele que seria o maior crime ambiental urbano do mundo. Fragiliza também a capacidade de denúncia dos moradores e suas possibilidades de fechar parcerias. Dificulta a cobrança pela aplicação das soluções ambientais devidas, entre tantas outras espoliações sofridas, as quais, em última instância, operam em um processo de desumanização daquelas pessoas.

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são representadas de maneiras que efetivam sua captura (mais uma vez) pelo esforço de guerra. A primeira é um apagamento por meio da oclusão. A segunda é um apagamento por meio da própria representação. (BUTLER, 2011, p. 29).


As Rondas Camponesas do Peru, desde um giro ontológico descolonial, neste Bicentenário, deveriam, com urgência, optar por agregar a noção indígena em sua nominação, como reivindicação éticomoral, histórico, material e filosófica de seus territórios e memórias ancestrais de sua identidade andina indígena ainda negada. Os povos conheceram o mundo sendo indígenas. Com urgência, se tem que revisar conceitos e buscar consensos reivindicantes, essa reivindicação tem que estar presente em sua própria Lei

N. 27908/2003. Finalmente, este ensaio retoma a necessidade de se (Re)pensar e (Re)construir as bases sobre as quais se mobilizam os movimentos indoandinos latino-americanos em Peru e Bolívia. O que, na atualidade, em Peru, se denomina como “Rondas Camponesas do Peru”, deveria autonomear-se como “Rondas Andinas Indígenas e Campesinas do Peru”, com a finalidade de deixar claro quais são matrizes culturais deste novo movimento social indoandino e sua essência, problematizando e reconhecendo o fato de que a América Latina não foi camponesa, mas a fizeram camponesa para levar o indígena a uma situação de classe.

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uma estrutura violenta, entre indivíduoindivíduo e entre indivíduo-natureza, que logo se materializam como bases da exploração capitalista. No capitalismo, a tomada de consciência dessa base exploratória e expropriatória permite compreender que o trabalho não é próprio, mas alienado de quem o realiza. Neste sentido, os Ponchos Rojos e as Rondas Camponesas, ao acionarem seus repertórios comunais, estabelecem uma prática de resistência contra os avanços do sistema moderno capitalista, com maior clareza em Bolívia que em Peru.

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O que o Nordeste tem a ver com isso? Gostaria de contextualizar essa discussão em território brasileiro. Na escala nacional, interpreto a negligência na divulgação da tragédia ambiental alagoana como um sintoma do sistema político, econômico e midiático que estrutura as desigualdades regionais em nosso país, destacando o olhar discriminatório contra a região Nordeste e o povo nordestino. Tal olhar é marcado por alguns elementos que se repetem e se reinventam – a seca, o coronelismo, o cangaço e o messianismo ou fanatismo religioso (ALBUQUERQUE JUNIOR, 2012).

Essa imagem congelada do que seria o nordeste foi, inicialmente, construída pela própria elite agrária nordestina que, com a migração de poder nacional da produção açucareira pelo café, passa a utilizar a narrativa das secas como forma de solicitar mais recursos nacionais e pleitear, assim, mais poder político e econômico. Ela é alimentada por uma vasta produção cultural, notadamente literária e musical, que vai construir a imagem do nordeste para o restante do país a partir da posição de carência e dando o monopólio a essa região de dinâmicas que, na realidade, se alastravam por todo o país, como a corrupção. O regionalismo, enquanto movimento, se contrapõe ao modernismo, trazendo a dimensão agrária na qual tiveram poder as elites açucareiras e de outras produções,


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A paulistanidade, colocada, aqui, como símbolo do poder econômico nacional, foca na branquidade e no ódio ao pobre, fenômeno que está presente em todo território nacional. Ao fazê-lo, ela também invisibiliza uma parcela da própria população. A construção do nordeste, enquanto pobre e não branco, serviu para o domínio social das elites de todo o país, inclusive das

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Entretanto, é importante destacarmos que a discriminação é relacional e que foi largamente mobilizada por outras regiões contra as populações nordestinas. É notório o preconceito sofrido por imigrantes nas grandes cidades do sudeste, na medida em que eles indicam concorrência com a população local ou, por exemplo, população imigrante branca muito presente em São Paulo no início do século XX. É necessário salientar também que o preconceito, por origem geográfica, se conecta com o preconceito racial e de classe, como explica Albuquerque Junior (2012):

Como eco dos discursos eugenistas e racistas do final do séc. XIX e início do século XX, ao nordestino são atribuídas características psicológicas que adviriam de sua condição racial de mestiço, como a ideia de que o nordestino é tendente à violência e a agressividade, alimentada pelo mito do cabra macho, elaborado na própria região. A palavra ‘cabra’ já possuía um sentido racial e de classe, visto que era um termo utilizado na região para se referir ao homem pobre e pardo, homem subordinado ao mando de um poderoso. Bem como a ideia de que o nordestino é preguiçoso, pencha que passou a acompanhar negros e mestiços [...]. (ALBUQUERQUE JUNIOR, 2012, p. 130).

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o “verdadeiro brasil”, em oposição à dimensão urbana que tem São Paulo como símbolo maior. A defesa da cultura nordestina (intacta ao modernismo) traz, na verdade, a defesa de uma dominação de classe (ALBUQUERQUE JUNIOR, 2012).


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nordestinas. Como nos aponta Rego (2018, p. 102): “[...] notadamente locais marcados pela ruralidade e por possuir grande concentração indígena e negra são estigmatizados como atrasados, enquanto locais urbanos e com maiores compostos brancos são afirmados como arautos do progresso”. Tal homogeneização do território nordestino e monopólio fornecido a ele sobre as mazelas brasileiras são falaciosos. A narrativa do paulista, enquanto homem branco de classe média, no anseio da europeidade, estigmatiza o outro regional e afasta os grupos estigmatizados de forma geral. Essa dinâmica possibilita a manutenção das desigualdades de raça e classe (REGO, 2018). A mídia, em seus vários formatos, possui papel fundamental na construção desses imaginários que reafirmam sistemas desiguais de poder. Destaca-se a capa da revista VEJA, em janeiro de 2021, que trouxe estampado imigrantes nordestinos na capital paulista, essa como a “capital do nordeste”. Como

nos mostrou Butler (2011), a construção de narrativas falaciosas que afastam o Outro de sua humanidade real e a própria inexistência de imagens são ambas estratégias da mesma intenção, invisibilizar o rosto. A leitura da população nordestina, enquanto racializada, nos ajuda com outras chaves de reflexão a respeito do caso de Maceió. É necessário aprofundar estudos, por exemplo, na linha do racismo ambiental. Bullard (1993)3 trata desse tema a partir da perspectiva de que as dinâmicas que conformam o espaço desigual colocam a população não branca em posição de maior vulnerabilidade aos riscos e ameaças ambientais, além de terem menos acesso aos benefícios ambientais. A falta de voz política e o enfraquecimento de órgãos ambientais de regulação podem ser apontados como fatores que favorecem esse cenário. Nesse sentido, urge a necessidade de estudarmos os significados embutidos na noção de Nordeste e suas implicações em escala nacional.

3 Acselrad (2010, p. 110) destaca alguns autores que trabalham a noção de desigualdade ambiental: Murphy (1994); Schnaiberg et al. (2004); Peter Newell (2005).


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Movimento por justiça ambiental

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As dinâmicas que constroem as desigualdades discutidas anteriormente fazem parte do modelo socioeconômico em que vivemos, marcado pelo capitalismo e pelo racismo estrutural. A questão ambiental ganha cada vez mais relevância, e, recentemente, passa por uma ressignificação com a noção de justiça ambiental. Acselrad (2010) explica que a questão ambiental é permeada pela disputa de dois significados, que o autor chama de utilitarista ou cultural. O primeiro entende o meio ambiente enquanto reserva de recursos materiais, e homogeneizado, do ponto de vista de conteúdos socioculturais. Essa vertente enxerga o risco ambiental no sentido de risco à “inviabilização crescente da cidade produtiva”. Já a razão cultural questiona os fins da apropriação dos recursos naturais, entendendo o meio


* Doutorando em Artes – UFPA, mestre em Artes – ECA/USP, especialista em SemióticaUECE, graduado em Lic. em Teatro – IFCE e Gastronomia – UFC. Faz parte dos coletivos e grupos: Grupo EmFoco, Coletivo WE e Núcleo de Estudos da Performance. Tem experiência na área de Artes com ênfase nos seguintes temas: arte contemporânea, performance e intervenção urbana. Possui textos em diversas publicações sobre arte contemporânea e é autor dos livros: “Nomadismo Urbano: Performance e Cartografia” e “O que é performance: 31 programas performáticos para confundir a pergunta”. Desde o começo da vida acadêmica, vem ministrando formações em arte contemporânea, performance e intervenção urbana nacionalmente. É curador do Festival Imaginário Urbanos (2018, 2020, 2021), foi curador da Mostra Sistema Aberto (2019, 2020) e é um dos editores chefes da coleção bibliográfica Imaginários.

Colapso, escrita, metáforas

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enquanto território múltiplo do ponto de vista sociocultural. Nessa lógica, os riscos são distribuídos de maneira desigual e “[...] abre-se espaço para a percepção e denúncia de que o ambiente de certos sujeitos sociais prevaleça sobre o de outros, fazendo surgir o que se chama de ‘conflitos ambientais’[...]” (ACSELRAD, 2010, p. 109). Como explica o autor, trata-se de uma disputa a respeito das “condições materiais e espaciais de produção e reprodução da sociedade” (Idem, p. 111), a distribuição das formas de apropriação de recursos naturais e como elas afetam outras práticas sociais. No contexto capitalista, o meio ambiente e a sustentabilidade passam a ser oportunidade de mercado, instrumentos na competitividade territorial. Como contraposição dessa vertente, a dimensão da justiça ambiental trata da distribuição desigual do risco como resultado da lógica de acumulação de riqueza, que penaliza as parcelas mais pobres da população. A justiça ambiental está, portanto, ancorada na chave dos direitos. Como explica Acselrad (2010):

As lutas por justiça ambiental, tal como caracterizadas no caso brasileiro, combinam assim: a defesa dos direitos a ambientes culturalmente específicos – comunidades tradicionais situadas na fronteira da expansão das atividades capitalistas e de mercado; a defesa dos direitos a uma proteção ambiental equânime contra a segregação socioterritorial e a desigualdade ambiental promovidas pelo mercado; a defesa dos direitos de acesso equânime aos recursos ambientais, contra a concentração das terras férteis, das águas e do solo seguro nas mãos dos interesses econômicos fortes no mercado. Mas cabe ressaltar também a defesa dos direitos das populações futuras. E como os representantes do movimento fazem a articulação lógica entre lutas presentes e “direitos futuros”? Propondo a interrupção dos mecanismos de transferência dos custos ambientais do desenvolvimento para os mais pobres. Pois o que esses movimentos tentam mostrar é que, enquanto os males ambientais puderem ser transferidos para os mais pobres, a pressão geral


Nessa ligação, entre tantas coisas, falamos o seguinte: “Bixa, em nossas conversas sempre falávamos que esse sistema social está ruindo, que ele não se sustentava mais, se é que um dia se sustentou. Mas eu não esperava que iríamos ver o colapso massivo dele em vida. Não esperava que ia ser assim: senhoras e senhores passageiros, o avião está caindo. Sem aviso nem para colocar os cintos”. Esse breve devaneio metafórico era como, naquele momento, conseguíamos, de supetão, responder ao começo da pandemia do Covid-19. Estávamos em um avião em queda livre, sem o aviso de emergência soar antes e, para a maioria, sem a possibilidade de atar os cintos, muito menos de usar as máscaras de ar.

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Por onde começar a escrever um texto e para quem escrever quando se está colapsando? No começo da pandemia do Covid-19, lembro-me de ligar para um amigo, que, infelizmente, faleceu no final de agosto do ano passado (não pelo vírus, mas por complicações cardíacas) e conversar, por horas, sobre quais seriam os efeitos socio-político-humanitário-históricos da pandemia. Durante a longa conversa, eu e Marcelo Denny1 chegamos a uma ideia-metáfora simples que, por ora, me parece ser um bom motivo para começar esse texto – para quem o texto será endereçado, ainda não sei.

1 Diretor teatral, cenógrafo, professor, artista plástico, performer, pesquisador, curador e diretor de arte, com mestrado e doutorado em Artes pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/ USP), onde lecionou por quase 20 anos e desenvolveu pesquisas sobre visualidades, corpo e performatividades, performance, performance urbana e cena contemporânea. A

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sobre o ambiente não cessará. Fazem assim a ligação entre o discurso genérico sobre o futuro e as condições históricas concretas pelas quais, no presente, se está definindo o futuro. Aí se dá a junção estratégica entre justiça social e proteção ambiental: pela afirmação de que, para barrar a pressão destrutiva sobre o ambiente de todos, é preciso começar protegendo os mais fracos. (ACSELRAD, 2010, p. 114).


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Hoje em dia, penso que essa metáfora - a imagem de uma queda de avião, talvez, não fosse a melhor, tendo em vista que, em uma queda de avião, quase sempre os tripulantes morrem todos de uma só vez. O que não foi/está sendo o caso da pandemia. Sabemos que o vírus não escolhe classe social para infectar, contudo, os números de mortos não são iguais quando comparamos as classes sociais mais empobrecidas e em total desamparo sócio-político, com as mais enriquecidas e privilegiadas. Há uma formulação interseccional (AKOTIRENE, 2018) presente nos efeitos colaterais do vírus.

Nesse sentido, como um segundo experimento, acredito que a figura de um navio – ou melhor, a figura do Titanic – funcione um pouco melhor como metáfora. Assim como sabemos pela narrativa da história e do cinema, o navio colidiu com um iceberg que não foi previamente identificado, mas que poderia ter sido, caso o navio não estivesse na sua potência máxima, na ganância de se apresentar/afirmar como o melhor do mundo. Entretanto, ao colidir, mesmo que inesperadamente, o desfortúnio foi bem diferente para cada uma das classes sociais que ocupavam o navio. Algumas poucas pessoas tiveram direito aos poucos botes existentes no navio, outras tiveram direito apenas aos coletes salva-vidas e, a maioria, não teve direito a nada, apenas experienciaram o colapso do navio no maior grau de terror e pânico que um colapso pode causar.

Nesse contexto, acredita-se que as narrativas que disputam a história do caso maceioense se inserem em um conflito ambiental, na busca por justiça ambiental, no sentido tratado por Acselrad (2010). A atividade extrativista de sal-gema4 é iniciada em Maceió muito antes dos abalos de 2018. A empresa foi instalada em 1966 (período ditatorial), inicialmente, com o nome de Salgema Industrias Quimicas LTDA (FRAGOSO et al., 2020). Desde sua instalação, a Braskem5 foi alocada em território inadequado, um “Santuário Ecológico”, região de mangue que é ambientalmente sensível e deveria

ter sido protegida. O documentário “A BRASKEM passou por aqui” (2021) mostra que a implantação da empresa, no local, mobilizou forças políticas, já que, do ponto de vista ambiental, a localidade foi vista como questionável6. Ademais, é mostrado também a incoerência técnica realizada na extração, por exemplo, sem distanciamento adequado entre poços. Tanto as vantagens locacionais como as vantagens fiscais fazem parte, também, da visão empreendedora a respeito do local mais rentável (ACSELRAD, 2010). A extração realizada na cidade foi feita por meio da técnica de lavra por solução, que é a perfuração de poços verticais e direcionais nos bairros, hoje, correspondentes aos do Pinheiro, Mutange, Farol e Bebedouro (Fragoso et al., 2020). Ela se desenvolveu por décadas,

4 A extração de sal-gema, no Brasil, foi atribuída principalmente aos estados de Alagoas e Bahia (FRAGOSO, LIMA, NASCIMENTO, SILVA, TEIXEIRA, 2020). 5 O grupo Braskem S.A. afirma, desde a Eco-92, seu compromisso com o desenvolvimento sustentável e, durante sua atuação, foi responsável pelo desenvolvimento de materiais renováveis e outras frentes. Entendo que caiba, aqui, a reflexão de Acselrad (2010) sobre uma das narrativas correntes sobre a sustentabilidade que trata do “esverdeamento” dos sistemas de produção, mas não questiona, em profundidade, nossos modelos de produção e reprodução social.


Entretanto, ainda me questiono se essa é a melhor metáfora para como me sinto nesse momento histórico enquanto brasileiro. Pensando melhor, acho que a metáfora anterior também se constitui de modo ruim, pois continua a ser um pensamento antropocêntrico e como já nos vem afirmando, de diversas formas e há vários anos, o ativista indígena Ailton Krenak: “A terra não suporta a nossa demanda” (2019, p. 45). Não chegaríamos a este colapso se não fossem nossas políticas sociais de posicionamento de uma grande parte da sociedade fora do clube da humanidade (ibidem), além da “ideia de nós, os humanos, nos descolarmos da terra, vivendo numa abstração civilizatória” (ibidem, p. 22).

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Nesse sentido, sinto-me perdido sobre para quem eu escrevo esse texto. Sei que os que estão salvos em seus botes não o lerão, pois seus lugares de mais alto privilégio, não os faz querer ver o colapso – “todos conseguem se salvar, basta querer”, dizem eles. Também sei que, assim como eu, os que conseguiram alguns dos coletes salva-vidas, sabem que esses coletes não lhe salvarão realmente a vida, são apenas um paliativo, uma forma de manter-se vivo por um tempo ainda indeterminado, mas sempre em grande movimento e dispêndio de energia, para não congelar no frio das águas. Não acredito que estes irão conseguir ter tempo/disposição para ler esse texto. Por último, para aqueles que estão sem coletes salva-vidas e muito menos com qualquer chance de chegar em um bote, as urgências são outras. De que lhes serviria esse texto?

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83 Apenas posteriormente, a causa é atribuída à Braskem, pelo relatório de análise realizado pela Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM): “Das hipóteses investigadas pela CPRM duas foram confirmadas. A primeira, com relação a presença de vazios no solo provenientes da extração do recurso, aponta para evidências que confirmam deformação nas cavernas de mineração, influenciando diretamente no surgimento dos fenômenos externados. A segunda sinaliza que a extração de sal-gema está diretamente atrelada a ativação das estruturas tectônicas dispostas abaixo das zonas de risco, sendo este fator o desencadeador do processo (FRAGOSO et al, 2020, p.38).

6 Professor Geraldo Marques, à época, à frente do órgão de regulação ambiental, negou autorização para a implementação da empresa. Sofreu retaliação e sua decisão foi desconsiderada (A BRASKEM passou por aqui, 2021). 7 Fragoso, Lima, Nascimento, Silva, Teixeira (2020, p.37) trazem, à cidade russa de Berezniki, o colapso da mina sal Varangeville com exemplos de outros impactos resultantes de atividades mineradoras subterrâneas.

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Implantar a Braskem em orla lagunar, certamente, impactou bastante a flora e fauna local, proporcionando, inicialmente, preocupações com a área do Pontal da Barra. Mesmo sem os problemas geológicos nessa área, a interferência na ecologia da lagoa é clara, narrada também pelos marisqueiros e pescadores que vivem da lagoa em “A BRASKEM passou por aqui” (2021). Os abalos sísmicos, de 2018, surpreenderam a população de forma geral pela gravidade das consequências7 imprimidas naquele solo por décadas de extração. As rachaduras passaram a ser vistas nas ruas e no interior de casas e edifícios. Se apresentava, para a população, o risco de colapso do solo.

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permitindo a vivência urbana daqueles bairros, nos quais seus moradores não possuíam nenhuma informação a respeito dos riscos da extração realizada ali.


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É urgente pensarmos em uma outra ordem de compreensão cosmológica: somos parte do mundo, não o mundo. O que entendemos, como humanidade, é apenas um tipo de relação que aprendemos a ter com o mundo e os demais seres. Pertinente destacar que foi essa herança cosmológica do colonizador que nos fez chegar a esta pandemia e ao atual fracasso do binário homem-natureza, entre tantos outros binários. Contudo, importante afirmar que, com o fracasso desse modelo de humanidade, quem está em pânico são os povos humanos e seu mundo artificial, seu modo de funcionamento que entrou em crise (KRENAK, 2020, p. 81).

O planeta, certamente, segue e seguirá sem nós.

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Com isto, fico pensando que, para nós, enquanto uma população assaltada por uma colonização extremamente violenta, não há a necessidade de uma metáfora para tentarmos compreender nossa experiência de colapso. Basta lembrarmos de uma figura simbólica muito marcante para o início da história de desapropriação do corpo, da terra e da vida local: as caravelas da colonização. Já passam de 521 anos da chegada dos portugueses à costa marinha que, atualmente, é conhecida como Bahia. Com essa chegada, é certo que sabemos que o projeto de invasão foi genocida para a população autóctone e para os povos trazidos de diversas regiões da África, para serem escravizados. Junto a isso, é urgente afirmarmos, com ênfase, a violência que foi para os nãohumanos locais (animais, plantas, pedras, rios, mares, florestas etc.) a invasão e a colonização deles. Na verdade, a própria bifurcação homem-natureza, que separa e escalona todas as formas de existência sobre a terra, é também parte da herança de prejuízos que nos foi dada a aceitar como sendo a norma e o normal.

Os bairros atingidos diretamente foram: Pinheiro, Mutange e Bebedouro. O bairro do Pinheiro, o mais atingido, data de 1944, e seu desenvolvimento, está associado à construção da Avenida Fernandes Lima e do Quartel do 20o Batalhão de Caçadores. Localizado no “Alto do Farol”, até a década de 1980, ele era considerado externo ao perímetro urbano. Hoje, ele encontra a Fernandes Lima como limite de seu perímetro, sendo ela também importante marco urbano na dinâmica local, por ser uma prestigiada avenida da cidade. O bairro do Mutange encontra-se à esquerda de Pinheiro, fazendo fronteira com a margem da Lagoa Mundaú. Dentre as marcas desse local, estava o estádio do clube alagoano Centro Sportivo Alagoano (CSA), importante referência da cultura local. A linha do trem também marca o bairro. Ademais, o bairro de Bebedouro já foi lembrado pelos passeios de bonde e festejos tradicionais no início do século XX. Atualmente, esses bairros são ocupados por populações de baixa renda e classe média, com aproximadamente 55 mil famílias.

Esse processo provocou a evasão de muitas dessas famílias, inicialmente, porque se encontravam em área de risco iminente e, posteriormente, pelas condições que a própria evasão gerou no bairro. Para os moradores que permaneceram, os danos iniciais, como a perda do acesso ao Veículo Leve sobre Trilhos (VLT), somou-se a proliferação de vetores de doenças, insegurança e perda de fontes de renda – por falta de clientes ou impactos ambientais, como as mortes de sururu. Nesse cenário, uma parcela dessas famílias resistentes passaram a revender parte do material construtivo das casas abandonadas, como uma estratégia de sobrevivência. Nesse contexto, as famílias que saíram dos bairros também não tiveram alternativa fácil, tendo que reconstruir suas vidas. De forma geral, os moradores sofreram com o desmantelamento de suas redes pessoais de vizinhança, com a perda de bens imobiliários e bens simbólicos e com a necessidade de reinventar suas formas de subsistência (A BRASKEM passou por aqui, 2021). Ademais, a cidade, como um todo, sofre, por exemplo, com


Nesse conjunto de afirmações e manutenção das caravelas, nossos governos operam em uma lógica colonialista, continuando, assim, a afirmar/construir o clube da humanidade, excluindo povos desde os espaços urbanos até as comunidades indígenas: quando um vereador aparece na sua comunidade dizendo que vai sanear é preciso desconfiar, pois, quando dizem isto, em geral, é conosco que querem desaparecer. Esse colonialismo está impregnado na cabeça do vereador, do prefeito, do governador, de tudo quanto é gente que tem o status de apertar algum botão, de abrir algum portão. Esses caras continuam a serviço da invasão (ibidem, p. 67).

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Então, por ora, a metáfora que me parece possível é: as terras que hoje são chamadas de Brasil, tornaram-se um apêndice das caravelas, um certo espectro fantasmagórico destas embarcações se fez/faz presente em nosso tecido social-espacial-histórico. Falo do Brasil, pois este é o país no qual nasci e neste momento escrevo esse texto (mesmo que na dúvida de para quem endereçá-lo), enquanto vivencio uma pandemia e um chefe de governo negacionista e genocida. Contudo, essas caravelas da invasão se ampliaram por todo um vasto campo do território da Terra, suas presenças fantasmagóricas estão materializadas em quase todos os atuais países do que chamamos de Ocidente.

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Nessa leitura, as populações mais sujeitas aos riscos naturais ou artificiais, como terremotos ou desemprego, são as populações mais pobres, sendo, portanto, essas populações que vão reivindicar ações das empresas, tornando-se risco social. A pobreza é vista enquanto falta de ânimo empreendedor, portanto, ao encontrarse na situação de vulnerabilidade, o indivíduo é culpabilizado.

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Nesse contexto, destaco o que Acselrad e Pinto (2009) discutem como noção de risco social e sua gestão. Aqui, eles não pensam no risco ambiental sofrido pelas populações, mas na noção de que a própria população se torna um risco do ponto de vista empreendedor, sendo um potencial fragilizador da atratividade da empresa, ferindo sua competitividade, por exemplo, por meio de reivindicações ou denúncias de ações das empresas. Como explicam os autores (ACSERLRAD; PINTO, 2009).

“[...] Hoje, portanto, as grandes empresas estariam mais sujeitas a pressões de ordem ambiental, social e trabalhista do que antes. A essas pressões da sociedade civil, os autores chamaram de risco social: “O risco social” – dizem eles - “ocorre quando um stakeholder empoderado leva adiante uma questão social e pressiona a corporação (explorando sua vulnerabilidade através da reputação, da imagem corporativa)” (KYTLE; RUGGIE, 2005). Para estes consultores, a probabilidade de um risco social ser difundido aumentou com a proliferação dos poderes de ONGs e das novas formas de mídia. [...]” (Idem, p. 54).

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as alterações dos valores imobiliários de diversos bairros, com a interrupção de rotas e falência de comércios locais, aumentando as taxas de desemprego, além da não utilização de infraestrutura urbana pública desses bairros, possível limite da capacidade de equipamentos urbanos de outras áreas por conta das migrações e perdas de patrimônios da cidade, gerando desequilíbrio ambiental do ecossistema e impossibilidade de realizar práticas culturais locais, entre outros.


Colapso, escrita, metáforas

Nesse sentido, nossas instituições, como por exemplo: as escolas, os hospitais, as igrejas, as famílias, os espaços de arte, entre outras, em sua grande maioria, servem a continuação da invasão colonial de 1500. Vivemos em um território que é apêndice das caravelas e dos seus processos de morte, silenciamento e binarismo. Essas são as constituições estruturantes desta sociedade que partilhamos. Precisamos queimar as caravelas, elas não irão nos levar muito além do que já estamos atualmente. É urgente compreender que, quando se colapsa, é necessário produzir um giro radical no próprio eixo, não adianta só levar para o conserto na autorizada ou ligar para o call center. Mesmo que,

(Re)organizar, (re)imaginar, (re)sonhar nosso modo de vida, abandonando o processo de se organizar enquanto um apêndice das caravelas, é gerar deslocamento nas redes e sistemas que constituem nosso modo de estar neste mundo. Romper binarismos, hierarquias, políticas e poéticas do mundo posto é necessário, pois vamos ter que produzir outros corpos, outros afetos, sonhar outros sonhos para sermos acolhidos por esse mundo e nele podermos habitar (ibidem, p. 47).

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para muita gente, na epistemologia ocidental, a ideia de outro mundo é apenas um outro mundo capitalista consertado: você pega esse mundo, leva para a oficina, troca o chassi, o parabrisa, arruma o eixo e bota para rodar mais uma vez (KRENAK, 2020, p. 68),

essa não é a mesma compreensão da Terra. Ela está exausta de nós.

A forma como a Braskem lida com as populações vitimizadas segue uma linha muito semelhante, utilizando a lógica dos interesses empresariais e não a chave dos direitos. No caso analisado aqui, a população espoliada, por anos, torna-se um risco social mais evidente a partir do cenário descrito anteriormente, o episódio de 2018. Atualmente, a empresa, mesmo ainda negando a responsabilidade no caso, promove, como uma das estratégias, um acordo no qual as famílias que aceitam recebem o pagamento de um aluguel social, que, muitas vezes, não é suficiente para promover uma habitação na mesma qualidade da anterior, em contrapartida à evasão da família do bairro e propriedade da moradia. É efetivamente uma compra. A construção dessa estratégia não contou com a participação dos moradores, mas da Braskem e do Ministério Público. Entretanto, tal acordo não objetiva a compensação das famílias, mas uma solução social para permitir atratividade suficiente para a venda posterior da empresa (A BRASKEM passou por aqui, 2021). É uma ferramenta de gestão do risco social.

Tal estratégia, baseada na individualização das relações entre a empresa e os moradores, promove uma verdadeira desarticulação dos movimentos de resistência do bairro, a partir de um acordo que não olha para as necessidades e urgências de famílias que perderam tudo, focando na lógica abstrata do lucro. Ela desterritorializa antigos moradores, afastando-os do problema em sua materialidade, mas também afastando antigos vizinhos e parceiros de luta. Como estratégia de gerenciamento do risco social, busca-se, então, “[...] a separação entre as comunidades locais e sua força crítica [...]” (ACSELRAD; PINTO, 2009, p. 62), aqui realizada de forma bastante literal. Como apontam Acserlrad e Pinto (2009, p. 53), o problema deve ser lido do ponto de vista relacional e coletivo:


Logo nas primeiras páginas do livro “A queda do céu: palavras de um xamã yanomami”, o indígena, Davi Kopenawa, faz uma afirmativa direcionada ao antropólogo francês Bruce Albert, acerca da dimensão do sonho na cultura branca: “Seus professores não o haviam ensinado a sonhar, como nós fazemos. Apesar disso, você veio até mim” (KOPENAWA, 2015, p. 63). Penso que essa breve frase coloca em xeque não apenas a dimensão da dificuldade que Bruce Albert tem de exercitar a potência disruptiva do sonho. Essa é uma questão que se apresenta para nós, o contínuo da humanidade que vivencia o mundo como sendo o mundo que conhecemos e que fomos postos a conhecer, pouco além disto, é considerado impalpável, utópico.

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Se relocar no mundo, como um exercício ativo de buscar por outros entendimentos de mundo, queimando físico-epistemologicamente as caravelas que ainda habitam nossos espaços/ subjetividades, é um posicionamento ético urgente. Queimar não só como metáfora, mas como ação e tentativa de chamar a atenção para essa necessidade. Queimar como forma de pular todas as burocracias a serviço da invasão colonial, que mantém, fantasmagoricamente, as caravelas. Queimar a estátua de Borba Gato, pixar a fachada do Pátio do Colégio, incendiar a estátua de Pedro Álvares Cabral e saber ler a poética que é a natureza derrubar uma réplica da Estátua da Liberdade, torna-se urgente.

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Outro aspecto importante é a efetivação da Braskem como proprietária de boa parte dos bairros atingidos. Como apontado no documentário “A BRASKEM passou por aqui” (2021), supondo a correção dos problemas geológicos da área, a empresa possuiria terras em uma área com uma importante vista natural da lagoa, um potencial urbano, sendo possível a realização de empreendimentos imobiliários que poderiam gerar lucros até quatro vezes maiores aos gastos aplicados, hoje, nos pagamentos compensatórios aos moradores. Ou seja, além de não ser devidamente punida a empresa ainda seria recompensada8 –

com bilhões – pelo crime socioambiental urbano que ela mesma cometeu. Outra ação realizada, pela empresa, foi o anúncio de interesse de deslocamento para o Espírito Santo – maior reserva de sal-gema do país – após as manifestações vinculadas aos impactos da exploração,

8 Os lucros da Braskem não são apenas potenciais, a empresa conseguiu lucro de 7,4 bilhões de reais no segundo trimestre de 2021 (FONTES, 2021).

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[...] Pois sendo a vulnerabilidade uma relação e não uma carência, ela não pode ser atacada eficazmente através da oferta compensatória de bens ou de supostas competências gerenciais, como sugerem os programas das agências multilaterais. Para interromper o processo de vulnerabilização de determinados grupos sociais, seria preciso, [...] interromper os processos que concentram os riscos do projeto desenvolvimentista sobre os mais desprotegidos (ACSELRAD, 2006. p. 2).


Colapso, escrita, metáforas

Kopenawa, ao longo do livro acima citado, constantemente retoma a dimensão do sonhar, do imaginar e da comunicação. Em uma crítica à forma autocentrada do homem branco, afirma: não há dúvida de que eles [os brancos] têm muitas antenas e rádios em suas cidades, mas estes servem apenas para escutar a si mesmos. Seu saber não vai além das palavras que dirigem uns aos outros em todos os lugares onde vivem (2015, p. 461).

Falar que o branco escuta só a si, é afirmar a incapacidade que nos foi construída de ouvir outros saberes humanos e não-humanos (em todas as dimensões possíveis para esse termo). A dificuldade que temos de fugir da língua/linguagem do colonizador e o nosso descomprometimento de sonhar para além dos sonhos do capitalismo e dos sistemas/redes da colonização, é o que tem nos feito continuar em um descompasso com o mundo.

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Essa imensa dificuldade de sonhar, de imaginar outros mundos possíveis, nos coloca presos aos sistemas de representação que vêm sendo atualizados nos moldes do colonialismo desde as invasões portuguesas. Com pouca ou quase nenhuma capacidade de sonhar, replicamos modos de compreensão sobre nós, os outros e o mundo, tanto na forma quanto nos conteúdos possíveis de serem articulados pela língua do colonizador. Importante dizer que a língua, no sentido que aqui apresento, não está limitada ao idioma português (no nosso caso), mas se refere a todo um espectro fantasmagórico que produz nossos modos de produção, validação e difusão do que é conhecido e do que é o conhecimento.

tal migração acarretaria uma série de consequências locais, como redução de coleta de impostos, diminuição da oferta de empregos, realizando, como nos fala Acselrad (2010), chantagem locacional. É essencial destacar os movimentos que se mobilizaram por justiça ambiental no caso. Nesse contexto, é possível citar os grupos SOS Pinheiros, Movimento Unificado das Vítimas da Braskem (MUVB), Associação de empreendedores do bairro Pinheiro, Sindicato dos Trabalhadores da pesca do Trapiche da Barra, entre outros. Sendo esses os representantes mais explícitos do risco social, eles tencionam as narrativas e soluções apresentadas pela empresa e pelo poder público, sendo essenciais para a disputa da cidade a partir da chave do direito. Destaco também seu papel essencial de midiatização do caso, no esforço de fortalecer as pautas sociais e ambientais.


Quando falam da floresta, os brancos muitas vezes usam uma outra palavra: meio ambiente. Essa palavra também não é uma das nossas e nós a desconhecíamos até pouco tempo atrás. Para nós, o que os brancos chamam assim é o que resta da terra e da floresta ferida por suas máquinas. É o que resta de tudo o que A corrida espacial não é sobre eles destruíram até agora (ibidem, p. 484). salvar o planeta ou a espécie

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Como é possível operar em um sistema que só pensa no crescimento constante e infinito em um mundo finito? A resposta é simples: não é possível, e os colonizadores sabem disso. Eles estão veementemente projetando estratégias de invadir e colonizar outro planeta, eles só sabem fazer isso: invadir, colonizar e roubar. Para que um dos atuais bilionários, no ano de 2021, conseguisse ter dinheiro para criar toda uma rede de conhecimento científico que o fizesse ir dar uma volta de alguns minutos no espaço, toda uma rede dos excluídos do clube da humanidade teve de ser explorada2 e uma quantidade de plástico bolha, referente a embrulhar 500 vezes a terra3, ter sido produzida para embalar as encomendas enviadas por correspondência, pela empresa do bilionário.

humana. A corrida da colonização espacial é sobre salvar a si mesmo e os seus, monoculturizar o mundo já parece pouco. Contudo, estabelecer um novo pacto com a terra é o contrário de explorá-la, mais ainda, com o objetivo de conseguir usá-la ao extremo até encontrar locais possíveis de sobrevivência de vida fora dela. Certamente, essa sobrevivência será para poucos, o clube da humanidade ficará cada vez mais seleto.

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Acessado em: 16 de setembro de 2021.

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Esse texto não almeja produzir respostas sobre o caso, mas se propõe a levantar perguntas. Qual o futuro geológico da área? Por que a remoção foi priorizada em relação à solução técnica do risco? Qual a saúde da fauna e flora locais? Qual o papel do planejamento urbano nesse cenário? Como ficam a infraestrutura e os equipamentos urbanos do bairro? Para onde foram as famílias? Quem perdeu e quem ganhou? Entendo esse texto como um novo “modo de ver e ouvir” que fala Butler (2011). Trago-o, então, enquanto denúncia, forma de visibilização do Outro, no caso alagoano, e questionamento a respeito dos Outros que não sabemos. O caso dos bairros do Pinheiro, Mutange e Bebedouro possui particularidades, mas lê-lo na perspectiva da justiça ambiental nos ajuda a interpretar os agentes e modelos que possibilitaram esse cenário, assim como nos possibilita pensar a partir de uma conexão entre justiça social e justiça ambiental e potências organizativas e populares, essenciais para construção de territórios que promovam bem-estar urbano e qualidade ambiental.

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O texto aqui apresentado buscou questionar a invisibilização nacional a respeito do crime ambiental urbano realizado pela Braskem em Maceió. A partir de Butler (2011), pensou-se a não apresentação de imagens como uma das estratégias de invisibilização do Outro e de sua humanidade. Notadamente, entendo o Outro como o ser nordestino, que está inserido no sistema econômico e político que é, regionalmente, desigual. As desigualdades também estão presentes na distribuição territorial dos riscos ambientais, sendo necessário uma luta conjunta por justiça social e ambiental, como nos explica Acselrad (2010). O caso alagoano se insere nesse contexto, em que se disputam – até hoje – a visão empreendedora da cidade e os direitos de populações humanas e animais.


Colapso, escrita, metáforas

Esse projeto não nos contempla; na verdade, ele nunca nos contemplou. Nós, a periferia do capitalismo, os que tiveram os corpos, as terras e a subjetividade colonizados por um eurocentrismo doente, não seremos, nem na última espaçonave, tripulantes. E, nesse caso, não adianta colete salva-vidas, ou estamos dentro do bote, ou estamosmortos. Nossa revolução precisa passar por outra ordem. Se há algum futuro para nós, ele precisa passar pela Amazônia, como se pode ver/sentir/experienciar na produção artística de artiste indígena Uýra Sodoma4. Amazônia, nesse caso, é, juntamente com o espaço geográfico, uma outra epistemologia e cosmologia de mundo, um saber que tem outra ordem de se saber e de ser sabido. Não é bíblico, não vem em caravelas, não segue um rei. Eu mesmo ainda não sei muito bem sobre ela, escrevo esse texto para tateá-la entre meus dedos, confrontando-me e deixando-me ser questionado.

Talvez seja isso, esse texto é a própria metáfora que tanto busquei construir. Esse texto é endereçado a si mesmo, ele questiona e se questiona sobre como escrever em colapso. Há um colapso em curso, há um clube da humanidade que colapsou esse mundo, muito antes da pandemia do Covid-19 chegar. É necessário criarmos uma multidão dos deserdados do clube da humanidade, não devemos nos interessar em entrar nele, não devemos ser pegos pela armadilha da campanha publicitária e das representações midiáticas de inclusão. Não há mais nada que o sistema construído por esse clube possa fazer pela terra. Ele nunca fez.

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4 É uma entidade híbrida, o entrelaçar dos conhecimentos científicos da biologia às sabedorias ancestrais indígenas. Nasceu em 2016, durante o processo de impeachment de Dilma Rousseff, quando o biólogo Emerson decidiu expandir sua pesquisa acadêmica e buscar formas de levar o debate sobre a conservação ambiental e os direitos indígenas e LGBTQIA+ às comunidades de Manaus e seus arredores.

referências A BRASKEM PASSOU POR AQUI: A catátofre de Maceió / Documentario completo de Carlos Pronzato. Youtube, 05/08/2021. Disponível em: (QRcode1). Acesso em: 09/10/2021. ACSELRAD, Henri. Ambientalização das lutas sociais – o caso do movimento por justiça ambiental. Estudos Avançados 24 (68), 2010. ACSELRAD, Henri; PINTO, Raquel Giffoni. A gestão empresarial do “risco social” e a neutralização da crítica. Revista PRAIA VERMELHA, v. 19 no 2. Rio de Janeiro, 2009. BULLARD, Robert D. Race and Environmental Justice in the United States. Yale Journal of International Law, Vol. 18:319, 1993.

1

BUTLER, Judith. Vida precária. Contemporânea – Revista de Sociologia da UFSCar. São Carlos, Departamento e Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCar, 2011, n.1, p. 13-33. CANIL, Kátia; CARVALHO, Celso Santos; MORETTI, Ricardo de Sousa. A utilização do risco como argumento para remoções generalizadas. Observatório das Metrópoles, 2019. Disponível em: (QRcode2). Acesso em: 09/10/2021

2


Referências: AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Polém, 2019. KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhias das Letras, 2019.

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Há um colapso em curso. De que maneira colapsar como forma de fuga?

_____. A vida não é útil. São Paulo: Companhias das Letras, 2020.

Obs.: Se possível, após ler esse texto, converse sobre o atual colapso com alguém.

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KOPENAWA, Davi. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhias das Letras, 2015.

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FRAGOSO, Marilia Lacerda Barbora; LIMA, Jessé Rafael Bento de; NASCIMENTO Carlos Henrique de Vasconcelos; SILVA, Clayton dos Santos, TEIXEIRA, Arthur Felipe de Melo. A lógica do discurso ambientalista empresarial: da extração de sal-gema aos impactos no ambiente urbano. Revista Movimento sociais e dinâmicas espaciais, Volume 9. Recife, 2020. FONTES, Stella. Braskem encerra 2º trimestre com lucro de R$ 7,4 bilhões. Valor Investe, 2021. Disponível em: (QRcode3). Acesso em: 09/10/2021.

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REGO, Marina. Paulistanidade e Racialização: O Caso Nordestino. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Sociologia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade se São Paulo (FFLCH USP). São Paulo, 2018. MACEIO. Plano Municipal de Assistência Social de Maceió 2014 - 2017, 2014. Bairros de Maceió. Disponível em: (QRcode5). Acesso em: 09/10/2021. Projeto RUPTURA. Moradias e vidas rachadas. Disponível em: (QRcode6). Acesso em> 09/10/2021.

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Desireée Carneiro

GANTUS, Talita. A crise do atual modelo de exploração mineral. A ponte pro norte, 2020. Disponível em: (QRcode4). Acesso em: 09/10/2021.


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*Julie Dias (São Paulo, 1997) mora e trabalha em São Paulo. Sua produção existe em diferentes materialidades, sendo conduzida pelo uso de objetos e estratégias gráficas do desenho que tendem a pensar as linguagens e a passagem humana pelo mundo a partir das coisas. Em 2020, ganhou o Prêmio Respirarte oferecido pela Fundação Nacional de Artes (FUNARTE), foi selecionada para o Edital Meios e Processos da Fundação Marcos Amaro (FAMA). Também integrou mostras, feiras e ocupações, como a 3a Edição do programa de Ocupações artísticas de 2018, e a exposição “A menina mais feia da turma” com curadoria da Juliana Bernardino, no ateliê397.

Julie Dias*

José e Só (São Paulo, 1968) “Viúvo, trabalho como pedreiro e costureiro, anuncie aqui, brasileiro gostoso, uso uma jaqueta jeans e muitas bolsa, não estudo mas sei ler e digitar, sou mudo, mão de vaca, caipirinha, observador.”

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JOSÉ VÍDEO 4MIN 20S PRODUÇÃO DE JULIE DIAS 2020

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Era muito difícil estar ali e não teria problema não ser uma tragédia tosca, ficava dizendo que sim o tempo todo sem ser avisado que o não é o novo futuro. Estava muito cansado do que estava fazendo mas continuava mesmo assim. Conhecer era agora desconhecer e esse é o maior impasse das relações secretas e burras.

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Estava ligado como um mané zé, esticando de um lado pro outro e ficando bem frouxo e velho. As vezes tinha medo da natureza pq sabia que ela e ele eram a mesma coisa. Andava acanhado e olhava pra toda ignorância como se fosse sua. Ouvia a zombaria do lado de fora e fingia não se importar com a incoerência dos acontecimentos

Se estrupiava morro adentro deixando de julgar tudo o que falavam e percebia que certas coisas só poderiam ser ditas se pensadas previamente. Sentia dores na lombar e via a vida passar mais devagar do que gostaria. Fazia anos que olhava pra si mesmo como um bagaço, achava necessário cair de boca na frente do boteco enquanto ainda tinha um centavo de saúde. Nessas condições climáticas adversas o valor que eu tenho é um pouco culpa do terminal Pirituba mas passou outro dia de noite e de manhã e isso cansa a gente. Gostaria de ver um ataque contra essa decisão de fazer mal por besteira mas não é meio fácil chegar em um lugar chamado campo-santo. Para quem dizia que não sabe coisa nenhuma sobre suas atribuições legais demorou menos de dois minutos pra ir pra cadeia produtiva de cabeça muito feliz.

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Estava ficando mais velho e se vestia para dar uma volta pelo quarteirão como quem não sabe mais o que fazer. Não existiam mais paredes emocionais para dar abrigo e além de ser um recém viúvo sua irmã crente não morava mais por perto e não tinha ninguém para conversar além do padeiro que vivia no telefone falando com a mãe que estava presa na zona. É verdade que pensava muito e que todas as suas ideias eram ruins, gostava de rir dos outros enquanto toda vida dava certo. É uma droga não saber como alguém ficaria cansado e um pouco morto de entender como tudo acontece.

Era um pouco burro o jeito como fizemos as coisas, mas gostava de comer as sobras acordar e dormir.

Estava ficando com os órgãos ocos e não tinha coragem de sentir medo. Naquele dia ouviu no rádio uma oração pra um grupo de detentos que fazia guerra e logo depois uma propaganda de shampoo que prometia deixar os cabelos mais fortes e longos.

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Quase nunca falava a verdade e estava sempre pensando em como seria o passado se tivesse feito tudo diferente. Sentia medo de perder o ônibus mas ria quando isso acontecia. Era alguém que não valoriza a si mesmo e achava um barato quando as pessoas ficavam bobas sobre algum assunto constrangedor. É ótimo ter gente por perto que não para de falar, acabamos sempre en en-trando e saindo da nossa própria cabeça nessas horas e isso é até um pouco como fazer sexo sexo..

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Agora vai dar tempo de fazer com que os outros homens olhem para mim e pensem como são uma merda. É muito top ver que fofo os arquivos do sistema e como boa parte do que existe agora não tem nada de novo pq a gente não tá muito feliz.


Foram na casa de alguém que não conheço, comi tudo o que consegui, depois voltei para onde estava. Algumas horas antes não sabia o que fazer, pintar as unhas ou correr na chuva, franzir a testa ou roer os lábios. Precisavam de algum tipo de ajuda. Dar de comer e de beber, estalar os dedos enquanto dorme. Conversavam sobre fazer as pazes e como a amizade não era verdadeira.

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A mamãe disse que estava envergonhada com medo e muito linda. Por isso digo a ela que irei fazer uma paródia de algo que pareça vazio, mas com bom gosto. Tomamos sorvete sabor chiclete e inalamos fumaça, fizemos uma pulseira verde que arrebentou, contamos até trinta oito vezes seguidas, arrumamos o guarda roupa e não jogamos nada fora, assistimos novela, matamos centenas de baratas com um rodo e também com a palma da mão

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RECEITA DE PÃO

½ kg de... 10 g de... 15 g de... 20 g de... 1 colher de sopa de...

Era cedo demais, e se esquecia como tudo era engraçado. Todo mundo vivia iludido pelos cantos das ruas, ficava torcendo pra assustar os amigos assim que fosse a hora certa. Lançou a cabeça e quando acordou ainda respirava mal. Via as construções intactas e pedia para deus transformar suas tralhas em ouro.

A despedida do mundo vai ficar na fila de espera para fazer uma pessoa normal e uma merda.

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Entrevista com Renato Emerson dos Santos

por Ana Luiza Gonçalves e Beatrice Volpato Teixeira

Ana: Antes de apresentar a POSTO,

queria começar com algo que a Rebecca, uma das pessoas que passou pela revista, falou em uma conversa e eu peguei muito para mim, que é pedir para a pessoa se apresentar, e não a gente fazer uma apresentação dela com base em critérios arbitrários. Porque, às vezes, o que a gente acha de relevante sobre a sua biografia não é tão relevante para você. Se você puder começar se apresentando, depois, a gente inicia a entrevista em si.

Pesquiso sobre relações raciais desde que eu posso (risos). Durante um tempo, na minha formação, esse tema tinha pouca

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Renato: Esse é o pior desafio que se pode enfrentar, né? (risos) Porque... o que eu vou dizer? Meu nome é Renato Emerson dos Santos, sou professor do IPPUR da UFRJ (Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional) há 3 anos. Mas, antes disso, fui professor, durante 18 anos, da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), de um campus da UERJ, uma unidade periférica, que é a Faculdade de Formação de Professores em São Gonçalo, na periferia da região metropolitana do Rio de Janeiro. Eu costumava dizer que era uma condição triplamente periférica: a periferia da região metropolitana, a periferia dentro da própria Universidade, porque é uma unidade externa, com a reitoria e administração toda concentrada num lugar sempre longe, e periferia, também, do sistema acadêmico, porque era uma faculdade de formação de professores, ou seja, cursos de licenciatura da área da educação, que, dentro do sistema acadêmico brasileiro, é periferia; é a parte menos nobre do nosso sistema acadêmico. Eu sou geógrafo de formação, fiz mestrado no IPPUR, onde eu sou professor. Comecei o doutorado no IPPUR também, mas, depois, terminei o doutorado em geografia na UFF (Universidade Federal Fluminense).

abertura dentro do campo universitário, sobretudo dentro do campo das leituras espaciais - da geografia, planejamento urbano etc. - que davam isso como uma questão não existente no nosso padrão de relações sociais. Havia uma primazia das clivagens de classe, então falar de raça era visto como importação de agendas dos Estados Unidos (risos), algo que não tinha pertinência na nossa realidade. Desde os anos 2000, nós conseguimos ter um regime epistêmico mais aberto para trabalhar isso. Como professor do IPPUR, coordeno o núcleo NEGRAM (Núcleo de Estudos e Pesquisas em Geografia, Relações Raciais e Movimentos Sociais) - comecei na UERJ e continuo no IPPUR. Enquanto não dava para fazer isso, em termos de trajetória, é importante situar que, nos anos 1990, fui professor do Pré-Vestibular para Negros e Carentes; fui professor de geografia no núcleo da Rocinha durante sete anos (de 1996 até 2002); fui coordenador, também, desse núcleo; fui professor de geografia e de uma outra disciplina que tinha nos pré-vestibulares para negros, que é a disciplina de cultura e cidadania. Dei aula também em um outro pré-vestibular para negros e carentes da Tijuca; dei aula no pré-vestibular do CEASM da Maré (Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré) que é um núcleo importante, onde a Marielle Franco estudou. Ela fez o curso em 1998 e eu dei aula em 1999. Mas é [um núcleo] que formou outras lideranças importantes da Maré também! Acho que isso dá um pouco a ideia da minha trajetória para chegar até aqui e estar trabalhando a questão racial hoje.


A: Inicialmente, a gente

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queria que você comentasse um pouco sobre o papel desempenhado pelo campo da geografia durante o período da colonização europeia, não apenas como conhecimento técnico que possibilitou a realização das navegações, mas também na hierarquização territorial e cultural que perdura na sociedade contemporânea.

R: É uma pergunta bastante importante, eu diria. De grande importância para mim, como geógrafo que tem uma crítica forte a esse papel. Se fala muito, na nossa formação em geografia, sobre essa dimensão que você chamou atenção, da geografia como saber que, ao construir descrições sobre a terra, permitiu a expansão da colonização, que permitiu, aos europeus, constituir repositórios de informações sobre os contextos sobre os quais eles iam empreender as suas buscas por riquezas. Essa outra dimensão que a pergunta traz é uma dimensão que, primeiro, opera com esse deslocamento das relações de poder para uma complexificação destas. Eu diria que aparece, como horizonte de análise, para nós, desde a teoria da dependência, quando chama atenção de que centro e periferia não é só centro versus periferia, mas que as elites das periferias também têm um papel na constituição dessas relações. Acho que isso se conecta com a dimensão que vocês estão colocando: de como as nossas matrizes de conhecimento são fundamentais para entender as hierarquizações culturais e territoriais nos nossos contextos. E a geografia tem um papel crucial, porque ela construiu um arcabouço de conhecimento que conecta essa dimensão na escala mundo do eurocentrismo, da ideia da Europa como a

experiência mais avançada da existência humana, a partir da Revolução Industrial, Iluminismo etc. E, por outro lado, as hierarquizações entre outras experiências humanas que se dão em regiões periféricas como a nossa. Como é que se opera essa transformação da experiência europeia em experiência canônica, como a experiência modelar a ser seguida, e isso se conectando com uma hierarquização e subalternização de outras matrizes de conhecimento e de existência em contextos periféricos como o nosso. A geografia teve um papel fundamental nisso, porque permitiu o enredamento de um conjunto de mecanismos de compreensão que são mecanismos classificatórios. E aí você conecta classificação racial como uma primeira forma de classificação ou de divisão de experiências humanas distintas. A geografia difundiu a ideia de que, a cada continente, se tem um grupo racial e que cada grupo racial corresponde uma experiência diferenciada. E tais experiências, se você pensa na matriz do

‘universalismo europeu’, como batiza Immanuel Wallerstein, um universalismo que é hierarquizante, essas experiências dos diferentes grupos raciais vão ser classificadas e hierarquizadas, umas colocadas como superiores às outras. Assim, ao mesmo tempo, a raça ganha um atributo corpóreo de classificação (que pode ser tanto fenotípico quanto genotípico) e um atributo cultural também. Cada grupo racial vai ser visto como uma experiência cultural distinta, ou famílias de experiências culturais distintas. Nesse movimento é que a geografia se torna uma matriz de conhecimento que alicerça esses processos, evidentemente que junto com outras matrizes. Estamos falando de enredamentos de saberes e de conhecimentos que vão viabilizar essa imposição de uma matriz sobre outras. Isso vem, por exemplo, desde Friedrich Ratzel, geógrafo alemão da virada do século XIX para o século XX, fundamental para a afirmação da


geografia como disciplina tanto acadêmica quanto escolar. Ele cunhou o conceito de espaço vital, de que um povo desenvolve sua relação com o solo e à medida que intensifica essa relação, necessita de mais solo. Essa ideia da evolução da relação com o solo tinha, como um dos seus indicadores, a formação e construção de um Estado. Ou seja, povos com Estado eram considerados mais evoluídos do que povos sem Estado. Nesse movimento, segundo Ratzel, era justo que povos mais evoluídos em sua relação com o solo avançassem ampliando seu espaço vital sobre povos menos evoluídos, que não tinham a sua relação tão evoluída com o solo.

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submissas a nós, submissas ao nosso devir, ao nosso desejo, ou, trocando em miúdos, a transformação de tudo que existe em recurso à serviço do nosso avanço, da nossa evolução. Essa matriz que conecta classificação racial, cultural, de experiências, é o que vai sustentar a importância desse conhecimento, dessa geografia, não só como ciência explicativa, mas como ciência de formação humana. A necessidade de formar sujeitos para construir este tipo de relação é fundamental para a nossa experiência periférica, de instauração do

Tem um geógrafo falecido, professor da USP, o Antonio Carlos Robert de Moraes, que define o olhar hegemônico sobre o território brasileiro como “fundos territoriais”. Ele mostra que isso começa na colonização portuguesa, que vê o território como um grande fundo a ser apropriado em um momento oportuno, mas essa ideia do território como fundo, como recurso, permanece. Ela está presente na nossa colonização, está presente, por exemplo, no século XIX, quando começa esse processo que historiadores e antropólogos chamam de branqueamento da população e que eu chamo de branqueamento do território, que se baseia, fundamentalmente, na estratégia do assentamento de núcleos de colonização por imigrantes, desde o século XIX e também em grande parte do século XX. Por que eu chamo de branqueamento do território? Porque isso engendra não só o assentamento de contingente populacionais brancos e, com isso, a expulsão e/ou dizimação de grupos não brancos - estou falando de populações negras e indígenas,

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Isso se conecta, por exemplo, com leituras na antropologia que classificam povos como animistas - aqueles que não aprenderam a separar a experiência humana do resto das coisas. Povos animistas são aqueles que veem alma em tudo e não são capazes de perceber que somente nós, seres humanos, temos alma. Estamos falando, aqui, de um enredamento de formas de leitura de mundo que classificam; diferenciam experiências para hierarquizá-las. Isso nos nossos contextos periféricos é, a partir de certo momento, trágico para populações indígenas e para grupos negros, por exemplo, que têm matrizes culturais e religiosas que não são antropocêntricas como essa, que não são baseadas nessa dissociação radical entre nós e o resto das coisas que existem. E essa dissociação radical é a base para que possamos transformar tudo que existe em coisas

capitalismo. Todo processo de formação territorial no Brasil, por exemplo, - e eu estou falando do Brasil como esse país de formação colonial, que não é acabada e que permanece, se materializa, se complexifica e se diversifica ainda hoje - tem como base este tipo de relação, dada por nossas elites e que vê território como um conjunto de recursos, tanto naturais quanto humanos. Em cima dessa matriz de conhecimento, nossos principais processos de formação territorial se constituíram vendo este território como recurso.


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lembrando que este modelo permanece até hoje. É não só o assentamento de população, mudando a composição populacional do território, mas também o branqueamento da matriz cultural do território, das matrizes culturais de relação sociedadenatureza, em prol dessa mimetização da forma eurocêntrica de relação sociedadenatureza. Essa forma vê o território como recurso, e isso aparece na relação sociedadenatureza (naquilo que, dentro da matriz eurocêntrica, é visto como natureza), mas também na forma de relação social, pois também os próprios indivíduos - seres humanos – são vistos como recurso, força de trabalho que é apropriada por essa matriz. Então, este processo de branqueamento do território que começa no século XIX, é branqueamento da população, mas também é branqueamento da matriz cultural, e, junto com isso, também vem o branqueamento da narrativa sobre este território: As histórias territoriais no Brasil são contadas a partir da chegada desses sujeitos brancos. Essa mesma forma é construída através dessa estratégia de produção de assentamentos, mas também de expansão da fronteira econômica da ocupação colonial vinculada a esses circuitos internacionais do capital. Nesse sentido, nós vamos ter também, por exemplo, a expansão cafeeira na direção do oeste paulista, noroeste do Paraná, e, posteriormente, o processo de modernização da agricultura que é antecipado pela campanha da marcha para o oeste desde Getúlio Vargas, que vai iniciar essa expansão da frente econômica em direção do Centro-Oeste, numa recolonização da região; posteriormente, a ideia de conquista da Amazônia... tudo isso atualiza essas matrizes. Você vai nos geógrafos, desde o começo do século XX, isso já aparece. Essa leitura classificatória de contextos raciais, culturais, sociais como sendo a base que lastreia esse processo de expansão, da recolonização do território. Pega o momento da afirmação da geografia como disciplina acadêmica no Brasil, que está localizada na década de 1930, quando os franceses vêm pra cá, mas não só a geografia, outras ciências também; vemos os franceses que vêm para fundar as universidades no Brasil, para criar a USP (também aqui, no Rio de Janeiro, a UFRJ), como Pierre Monbeig, por exemplo, que tem um livro clássico que é o “Pioneiros e Fazendeiros em São Paulo…” Ou seja, essa matriz que articula classificação racial,

classificação de experiências culturais e classificação de relações com o território está presente ali. Então, a geografia é fundamental e isso vai se espraiar também para a geografia escolar. A geografia escolar é aquela que forma os sujeitos para ter esse tipo de visão de mundo. Um tipo de visão de mundo que, no cotidiano das relações sociais, por exemplo, opera com a adjetivação de indígenas como preguiçosos. Por que preguiçosos? Porque eles não têm o mesmo tipo de relação com o território que essa matriz ocidental tem, que é ver o território como recurso. Então, a frase é: “é muita terra pra pouco índio”, ou “mas eles não plantam, eles não fazem garimpo, eles não exploram os recursos que tem”. Esse é o momento em que vemos o sucesso desse processo de formação humana baseada nessa matriz de relação [sociedade-natureza]. Até hoje, no ensino de geografia, mesmo que se fale de educação ambiental, por exemplo, ainda temos uma matriz curricular que constrói uma leitura de mundo, que toma o mundo como um conjunto de recursos a ser o mais otimamente aproveitados. Essa é uma geografia racista, que opera através dessas matrizes de classificação racial, conectada com classificação de continentes, de contextos sociais e de formas de relação sociedade-natureza. Milton Santos tem uma apropriação muito interessante disso quando ele fala do meio técnico-científico-informacional, como sendo esse processo de imposição dessa matriz civilizacional de relação sociedadenatureza, baseada na técnica, na ciência e na informação controladas pelas forças do capital. Eu diria que essa expansão do meio técnico-científico-informacional, do Milton Santos, é uma leitura desse processo de branqueamento do território, como sendo uma imposição não só de uma composição populacional mais branca, que já aparecia desde o século XIX no desiderato das nossas elites, mas também essa imposição de matrizes culturais centradas no modelo arquetípico europeu-ocidental. Temos que valorizar outras formas de relação com a natureza, eu diria.

A: Pensando no período contemporâneo, de que forma as ciências humanas atuam no sentido de limitar os países do Sul Global na sua autodeterminação, dialogando com as proposições de Anibal Quijano a


respeito da colonialidade do saber, bem como a hierarquização da produção de conhecimento - entendendo a Europa/ Estado Unidos como o espaço de produção da “teoria pura” e os países do Sul Global, quando muito, como espaço de produção de “estudos de caso”.

Veja, por exemplo, o regime de trabalho na universidade, hoje, cada vez mais burocratizado, já nos dificulta a produção de teoria. Só para vocês terem um exemplo, eu estive, em 2012, em um seminário em Londres e, lá, encontrei um colega paulista que era do CEBRAP-USP. Só que ele fez o concurso e ficou dando

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Agora, é importante a gente tentar compreender como é que essa divisão internacional do trabalho científico se viabiliza não só por esse comportamento brancocêntrico-periférico das nossas elites intelectuais, mas opera também com arquiteturas institucionais de poder. Nós temos, hoje, arquiteturas institucionais de poder que nos canalizam para esse tipo de divisão.

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R: A gente tem aí o que o Walter Mignolo chama de geopolítica do conhecimento. É importante lembrar dessa dimensão multiescalar das relações de dominação e de poder. No campo do conhecimento, a gente vai ter essa relação centro e periferia, mas, dentro das nossas periferias, temos a reprodução dessa dominação - ou seja, a gente tem, aqui, a formação de elites não só econômicas e políticas, mas também elites intelectuais que vão viabilizar essas cadeias de relação de poder. Elites intelectuais que vão operar com matrizes eurocêntricas: estão situadas na periferia, mas que vão se posicionar epistemicamente, como se estivessem no centro; ou com base nesse desejo, talvez narcísico, de ser como o centro. As nossas elites intelectuais são um elo dessas cadeias de imposição do eurocentrismo e isso se dá na forma desta geopolítica do conhecimento que institui essa divisão do trabalho centroperiferia, onde o centro produz teoria e a periferia aplica a teoria. Por isso nós somos destituídos da possibilidade de produção de teoria.

aula lá. E, depois do evento, fomos conversar e perguntei para ele como estava sendo a experiência de trabalho lá. Ele dava 60 horas de aula por ano! 60 horas de aula que eram distribuídas em 3 cursos de 20 horas, com uma carga horária de 2 horas semanais. Essa era a carga horária dele. Eu falei “mas 60 horas por ano?”, ele confirmou. 60 horas é o equivalente a uma disciplina de graduação, que é, no mínimo, metade da minha carga horária por semestre. É um outro tipo de relação... É claro que ele falava que, em compensação, tem alguns elementos aqui de segurança trabalhista que eles [na Europa] não tem mais, que se preserva com a ideia de emprego público nas universidades aqui no Brasil. e que, lá, ele não tem mais. Mas é um outro tipo de regime de trabalho, outro regime acadêmico, com um peso menor dessa dimensão da burocracia, com uma outra forma de relação com o conhecimento - estou falando, no caso, do ensino. Nós temos


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um tipo de relação pedagógica muito “aulocêntrica”, muito centrada na aula expositiva. Isso tem a ver com matrizes curriculares que extrapolam a dimensão da universidade. Não adianta só diminuir a quantidade de aulas em uma universidade ou transformar nosso ensino presencial em remoto para a gente mudar isso. Há uma série de outras coisas para proceder esse tipo de transformação. Eu estou exemplificando o nosso regime de trabalho como sendo um fator de restrição das nossas possibilidades. Em segundo lugar, tem uma outra dimensão dessa arquitetura institucional que é o controle, como as nossas instituições de controle da pesquisa e da ciência se submetem a essa geopolítica. Então, você é obrigado a publicar no exterior e publicar no exterior significa publicar no chamado “primeiro mundo”, no centro. Não é publicar no Peru. Não! Você tem que publicar nos Estados Unidos e na Europa. É isso que nosso sistema de avaliação nos impõe. Hoje em dia, você tem que ter um cadastro no chamado ORCId, você tem que estar cadastrado nas bases de indexação, que são as bases internacionais, que são conectadas com os sistemas de monetização da produção de conhecimento. Eu estou falando aqui de controle financeirizado da produção de conhecimento. Não só da subjugação da produção de conhecimento científico à busca de tecnologia e inovação - isso desde o século XIX já é assim. O novo é você quantificar e monetizar isso em termos de produção de propriedade intelectual e de patente que interessa a mercados financeiros lastreados em direitos de patentes. Esse sistema de indexação, ao qual estamos, cada vez mais, subordinados, tem a ver com uma geopolítica financeira do capital e como essa geopolítica financeira do capital se traduz em uma subordinação dos nossos papéis. Então você é obrigado a publicar nesses espaços, que são controlados por esses sistemas, e, nesses espaços, só se admite que você, intelectual periférico, faça estudos de caso e que obedeçam à teoria deles. E isso cada vez mais no varejo, no miúdo. Então, se você quer publicar em uma revista, ela exige que você cite outros textos da mesma revista. Se você não citar nenhum artigo daquela revista, os pareceristas te dão retornos negativos. Então, você tem uma geopolítica do conhecimento que se conecta com

outras arquiteturas de poder: financeiras, institucionais... Tem um autor chamado Syed Farid Alatas que vai fazer uma análise bastante interessante de como essas arquiteturas institucionais se reproduzem no campo das ciências humanas. Ele usa a ideia de dependência, como é que as estruturas de dependência se reproduzem nas ciências humanas. Nós, cientistas da área de humanas dos países periféricos, somos dependentes de recursos dos países centrais, não temos financiamento para pesquisa aqui - e vemos o governo atual aplicando menos recursos para as ciências humanas e mais recursos para áreas chamadas de aplicadas -, o que nos torna dependentes de recursos de fundações estrangeiras. Nós somos dependentes das teorias produzidas por eles, porque, nessa relação, nós acabamos tendo que nos remeter todo tempo à produção teórica que advém dos países centrais. Temos uma complexidade da constituição da geopolítica de conhecimento não só de uma divisão do trabalho, mas que se reitera através de formas de arquiteturas institucionais que são subordinadas às arquiteturas econômicas do capitalismo global. Tem uma série de mecanismos que reproduzem esse nosso papel. Além desse outro aspecto quero terminar ressaltando que, já que estamos falando de dinâmicas encadeadas de relações de poder, nós temos também a dimensão de distribuição de poder no nosso próprio contexto. Isso reforça a questão que chamei de brancocêntrica-européia, de frações da nossa intelectualidade que, mesmo estando na periferia, se posicionam epistemicamente como se tivessem no centro e tem a mimetização do centro como horizonte de produção de conhecimento. Isso localiza esses sujeitos em uma posição de poder no nosso contexto. Você tem a distribuição de bônus para esses sujeitos que operam dessa forma, além do encadeamento dessas ordens globais com ordens internas, locais, regionais de poder que reproduzem essas matrizes de conhecimento eurocêntricas.

A: Ainda nessa mesma linha, seria possível pensar em epistemologias do Sul Global como alternativa à


colonialidade do saber? Não corremos o risco de cair em uma narrativa que homogeneiza continentes, países, culturas e povos extremamente plurais sob o guarda chuva de “Sul Global”?

R: Esse é o dilema de um projeto anti-

Retomando, é repetir isso como um mantra: qualquer forma de classificação é sempre homogeneização e apagamento da diversidade. Essa ideia de América Latina também é uma forma que traz, no seu bojo, apagamentos. Hoje, se busca uma ideia de América Latina, não a tradicional, que opera como uma unidade apenas como uma oposição aos Estados Unidos, por exemplo. Temos, hoje, a ideia de povos originários dessa região que tentam ir além da ideia de América Latina, como sendo o recorte regional que é berço de povos e civilizações que são anteriores a essa própria denominação, que é homenagem a um colonizador, o Américo Vespúcio.

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Ora, latino-américa também é uma regionalização que é fruto do imperialismo. No caso, do imperialismo cultural francês, vinculado à disputa econômica da França, em relação ao avanço da influência estadunidense no começo do século XX, que funda essa ideia de América Latina. É latina em oposição, sobretudo, aos Estados Unidos. Agora, tem lutas sociais que se apropriam dessa regionalização, transformam essa invenção do imperialismo em chave territorial de aliança política contrahegemônica.

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hegemônico, de qualquer projeto antihegemônico que opere, necessariamente, com base em classificações. Toda classificação é homogeneizante, baseada na generalização de algum traço que é considerado definidor da classe, do grupo que se constitui. Toda classificação tem um quê de homogeneização e, evidentemente, tem um quê de apagamento de diversidade. Isso é um dilema com o qual nós precisamos nos confrontar na constituição de qualquer projeto antihegemônico. Esse é um ponto fundamental! Epistemologias do sul, da periferia ou do terceiro mundo… eu estou falando, aqui, de três regionalizações que foram, durante muito tempo, e que ainda são mobilizadas como regionalizações antihegemônicas, como base para constituição de pactos e alianças anti-hegemônicas. Mais recentemente, temos o debate sobre colonialidade, trazendo uma dimensão de latino-américa como uma outra regionalização anti-hegemônica, como uma tentativa de complexificação dessas outras regionalizações (periferia, sul global ou terceiro mundista). Tanto é que utiliza o termo colonialidade para se diferenciar dos pós-coloniais, que têm tradições enraizadas, primeiro, no ponto de vista geopolítico da África. Não necessariamente as pessoas são africanas, Frantz Fanon não era africano, mas, em termos de contexto geopolítico da constituição do conhecimento, tem forte enraizamento no processo de descolonização da África. Tanto Fanon ou Said, que é palestino, ou dos indianos, que vão constituir os estudos

subalternos, esse conjunto de epistemes chamado de pós-colonial. Os autores na perspectiva do giro decolonial vão tentar trazer essa ideia de um latinoamericanismo como localização epistêmica que complexifica essas três anteriores.


Existem muitos grupos defendendo, por exemplo, uma disputa de nomeação: ao invés de falar em América Latina, se fala de Abya Yala, que é a forma como os povos Kuna chamavam. Tem outros que defendem que, ao invés de Abya Yala, nós, brasileiros, chamemos de Pindorama - que é como outros grupos, daqui, chamavam.

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Enfim, qualquer forma de regionalização vai, necessariamente, ser homogeneizante. O desafio é como comportar, na constituição de um projeto político-teórico ou seja, epistêmico - anti-hegemônico, que, na primeira linha, significa diversidade, pluralidade de condições sociais e de epistemes. “Sul Global” pode ser homogeneizante se for pensado como uma totalidade, como uma unidade. Agora, se falarmos em Sul Global como sendo diversidade, nós conseguimos superar [esse apagamento], ou pelo menos, tentar. E vamos para uma possibilidade de consideração de que, enquanto posicionamento de pensamento epistêmico, o Sul Global pode estar no norte, inclusive. Assim como o norte, muitas vezes, está no sul. Acabei de falar, na resposta da pergunta anterior, que tem uma parte da nossa elite intelectual que se posiciona epistemicamente como do norte. E que, aliás, vão ser os primeiros, muitas vezes, a dizer “mas esse negócio de colonialidade aí, esses autores estão boa parte em universidades do norte” para questionar a posição epistêmica deles. Sempre que me disseram isso e eu falei “ok, mas eles estão tentando se posicionar epistemicamente a partir do sul, a minha preocupação maior é com os intelectuais do sul que se posicionam a partir do norte do ponto de vista epistêmico”. Então, antes de questionar se eles estão no norte falando em pensar a partir do sul, eu quero questionar você, que está no sul, defendendo posicionamentos teóricos-políticos e epistêmicos a partir de conhecimento do norte formulado por, a partir de, e para o norte, além das nossas elites econômicas que se beneficiam dessa imposição da hierarquização de matrizes de forma de conhecimento. Então, eu acho que esse é o desafio. Alguns autores dessa perspectiva, do chamado giro decolonial, falam da ideia da produção de uma diversidade ou um termo que, acho, o Ramón Grosfoguel usa, da ideia de uma diversalidade global anticapitalista. Ou seja, a ideia de uma formulação que tome como pressuposto fundamental e inegociável a consideração da pluralidade, e não de uma homogeneidade do campo

anti-hegemônico, do ponto de vista da produção de conhecimento. É considerar a pluralidade de localizações sociais que as experiências do capitalismo nos impõe, como uma pluralidade epistêmica global. Essa diversalidade global anticapitalista tem que considerar conhecimentos produzidos por localizações sociais epistêmicas distintas. Organizações sociais, culturais, políticas distintas. E aí você valoriza epistemologias, conhecimentos, produções e formulações de mulheres negras, por exemplo, ou de grupos negros e populações negras outras, como quilombolas. É preciso pensar pluralidade epistêmica, de grupos originários, como base para constituição desta episteme. Então, você pode pensar no termo Sul Global, se considerar, como pressuposto, a ideia de que Sul Global é pluralidade, e não homogeneidade. Segundo, é pensar em pluralidade social, cultural e epistêmica, lembrando que, como já dizia Gayatri Spivak, no livro clássico “Pode o subalterno falar?”, essa construção da subalternização é uma posição plural. Temos que tentar valorizar o conhecimento produzido a partir das experiências sociais específicas, que é algo que, se formos buscar mais, está presente em formulações, por exemplo, do Alberto Guerreiro Ramos, aqui no Brasil, já na década de 1950, enfim... Está presente em uma série de outros antecedentes dessa construção e formulação. O Boaventura de Sousa Santos é outro que defende algo próximo disso, ele vai falar essa ideia de Epistemologias do sul, tem o livro dele “Epistemologias” no plural, então não é no singular; o Boaventura fala da ideia hermenêutica diatópica, de diversas formas de se pensar o encontro e diálogo entre matrizes culturais, de conhecimento, epistêmicas que são constituídas por essa pluralidade de experiências sociais.

Beatrice: Várias questões e termos já foram antecipados para essa próxima parte da entrevista. Mas, ainda que o espaço da universidade brasileira seja resultado do processo de colonização, é importante considerar as influências de mobilizações populares, como o movimento de 1968, a reforma universitária de Córdoba e até as mobilizações estudantis ao longo do período da Ditadura Militar. A ciência, nos dias de hoje, é essencial para garantir soberania nacional ao


desenvolver tecnologias e saberes próprios para ter autonomia do que é produzido nos países centrais do capitalismo. Entretanto, a matriz do pensamento científico é, majoritariamente, importada do Norte Global e tida como neutra, básica e universal. A partir dessa análise, gostaríamos que comentasse sobre as contradições entre o potencial de emancipação social da educação formal e o caráter colonial da mesma, que, nas palavras de autoras como Winkler, “nos socializam para ser pensadores do Norte Global”.

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Eu estou chamando a atenção para o fato de que nosso ponto de partida tem que ser: as forças hegemônicas do capital são capazes de se apropriar de tudo! Esse é o ponto fundamental. A gente já viu o capital se apropriar

Tomando isso como ponto de partida, se as forças hegemônicas são capazes de se apropriar de todas as matrizes de conhecimento e exemplos disso não faltam - vemos hoje, isso por exemplo, com frações do capital financeiro global junto com frações do capital ligadas aos setores que têm seus horizontes futuros de ganho em cima de biotecnologias, que, cada vez mais, são bio-sóciotecnologias, por exemplo, fazendo enfrentamento contra oligarquias nacionais e regionais aqui no Brasil que prevêem modelos predatórios de exploração em áreas da região amazônica. Vemos o mercado de crédito de carbono que fala que é “melhor manter a floresta em pé” contra interesse de garimpeiros, madeireiros e pecuaristas cujos ganhos advém da derrubada da floresta. Temos frações do capital ligados à biosociotecnologia que querem a preservação dessa bio-sociodiversidade. Para essas frações, a manutenção de lutas contra essas oligarquias regionais e locais predatórias é interessante. Nós estamos aqui falando da valorização de matrizes culturais nãoeurocêntricas? Sim! Para algumas frações hegemônicas do capital? Sim!

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R: Para pensar essa questão, o primeiro ponto é a gente pensar na complexidade dos nossos paradigmas de transformação social. Por muito tempo, fomos influenciados por uma formulação hegemônica do marxismo estruturalista que colocava, como horizonte de transformação social, a transformação absoluta, numa matriz de contraposição. Então, o conhecimento anti-hegemônico tinha que ser um conhecimento outro que se contrapusesse, em absoluto, em relação àquilo que é o conhecimento hegemônico. Eu estou explorando aqui a imagem, a forma de construção desse raciocínio, o que envolve obviamente algum nível de simplificação. Essa contraposição em absoluto nos leva a essa forma de construir a ideia de que esse conhecimento antihegemônico não só é diferente do conhecimento hegemônico, mas que ele jamais pode ser transformado em conhecimento hegemônico, ou seja, a impossibilidade de apropriação dele pelas forças hegemônicas. Esse é o ponto fundamental que nós temos que relativizar e tomar como ponto de partida para a crítica dessa formulação.

até de reforma agrária, de fazê-la como forma de sobrevivência. Aliás, se formos a Marx, seria uma outra apropriação. O “18 de brumário”, de Marx, mostra como é que ações contraditórias de frações de classe podem produzir resultados diversos dos interesses de classe daquele próprio grupo. Isso vale tanto para as frações hegemônicas quanto para as frações subalternizadas.


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Ok, vamos preservar essas matrizes aí! Porque é dessas matrizes que nós vamos descobrir nossos produtos futuros, usos de elementos da natureza, não só elementos que talvez ainda não tenhamos catalogado, mas os próprios usos deles. Por que determinados povos podem ser resistentes a determinadas coisas? Eu posso criar produtos novos aí! Eu estou falando do capital se apropriando da nossa defesa, por exemplo, da pluralidade e da diversidade cultural. Se o capital é capaz de se apropriar de tudo, nós temos que tomar as diferentes matrizes de conhecimento como também passíveis de apropriação por nós. É claro que isso, necessariamente, tem que engendrar um apuro crítico. A experiência socialista soviética se apropriou, por exemplo, do desenvolvimento das forças produtivas do ocidente. Então, implementou formas alienantes de produção também, tayloristas e fordistas, por exemplo, baseadas no avanço da ciência, nos mesmos modelos dos outros países. É claro que, com algumas diretrizes diferentes, pensando na universalização de padrões etc. Então temos que ter cuidado crítico com isso. Mas nós temos que tomar a ideia de que o conhecimento pode ser apropriado por nós, todas as matrizes. Se eles se apropriam das nossas matrizes de conhecimento, por que é que nós não podemos nos apropriar das matrizes deles? Tomar o conhecimento como objeto de disputa: esse é o ponto fundamental! Não podemos operar com uma ideia de transformação que seja a destruição - que é esse mito prometeico da ideia de destruição criativa -, vamos destruir tudo que é do capital e vamos criar algo novo que, aliás, como o David Harvey mostra, em alguns trabalhos dele, como o “Condição PósModerna”, é o que o capital mais faz, essa ideia da destruição criativa. De destruir para iniciar um novo ciclo de acumulação. Queima capital, queima patrimônio, queima ambiente construído para instaurar um novo ciclo de acumulação. Não podemos operar com essa ideia de que a busca da transformação é a anulação de tudo que existe pelo capital. Temos que valorizar a diversidade e pluralidade de saberes, mas sem achar que isso, necessariamente, será a destruição do conhecimento que foi formulado. O que precisamos é colocar esse conhecimento a serviço de projetos transformadores, sempre lembrando que produzir com essa intenção também pode ser apropriado pelo capital. O capital se apropria do nosso conhecimento, se

apropria das nossas lutas. Quem opera como eu, por exemplo, vinculado à luta antirracismo, que tem a luta antirracismo como mote da sua produção do conhecimento, vê que existe o antirracismo liberal, apropriado pelo capital. Mas é isso, o capital já fez até reforma agrária, não podemos esquecer disso. Todo o debate que o urbanismo marxista anticapitalista fez, nos anos 1970, sobre os meios de consumo coletivos como arena de disputa contra o capital, isso também foi apropriado como forma de compreensão da gestão das cidades pelas forças do capital. A única forma de fugirmos disso, que a Tânia Winkler chama, de sermos socializados como pensadores do norte global, é tentar ter nitidez sobre quais são os usos possíveis do conhecimento que nós formulamos e saber que eles podem ser utilizados contra nós. Temos que nos vacinar contra isso. Se o Bourdieu falava de uma vigilância epistemológica naquele livro ‘Condição do sociólogo’, em conjunto com o Jean-Claude Passeron e Jean-Claude Chamboredon, nós temos que ter uma vigilância política epistêmica do nosso conhecimento. Pensar, o tempo todo, quais são os efeitos de poder do nosso conhecimento. Não se pode produzir conhecimento sem uma reflexão sobre os efeitos de poder do conhecimento que se está produzindo. Acho que essa é a reflexão fundamental que precisamos fazer.

B: Por fim, então, se ligando a essas questões do que fazer com todas essas críticas, crises e polêmicas. Quais as suas reflexões a respeito das alternativas que nos cabem? É possível pensar em brechas dentro da estrutura de ensino vigente? Descolonizar o saber é o bastante e, caso não, qual o caminho a seguir? R: Qual o caminho seguir não sou eu que vou dizer! (risos) Essa parte eu não vou responder, porque eu não me sinto qualificado e habilitado para isso. Eu vou dizer quais os caminhos que eu venho tentando seguir, acho que esse é o ponto. Acho que descolonizar é fundamental, apesar de que a gente não sabe o que é descolonizar o conhecimento. O que é descolonizar o conhecimento? Isso é um projeto aberto, no qual nós nos colocamos, seguindo as pistas deixadas por


Quijano, Fanon, Guerreiro Ramos, entre outros e outras, mas nós não sabemos o que é. Vejo conhecimento como essa arena de disputas e, ao mesmo tempo, instrumento em disputas. Acho que essa dupla dimensão é fundamental. Nós disputamos o conhecimento e também os usos do conhecimento e os processos de disputa social, territorial. E então, acho que o projeto decolonial, a ideia da descolonização, é fundamental. Temos que ter esse acúmulo crítico sobre o conhecimento que nós construímos e produzimos, os efeitos de poder desse conhecimento, as formas de produção, os usos... Acho que esse é o mote que eu venho me colocando.

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Na semana passada, eu participei de um debate... é ruim esse termo, mas eu vou chamar de um debate ‘negro’,

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Se há brechas? Eu acho que sim! Acho que se nós estamos aqui, hoje, é porque brechas foram abertas. Eu não posso dizer que não há brechas sendo um professor negro dando aula sobre a questão racial em uma universidade. Hoje, por exemplo, dou aula em um curso de gestão pública sobre relações raciais e políticas públicas. Isso era absolutamente inimaginável por todo o meu ciclo de formação - graduação, mestrado e doutorado. Isso é resultado de brechas abertas pela luta do movimento negro. Se há brechas? Eu só posso dizer que sim. Afinal, eu sou a comprovação dessas brechas, o que eu venho fazendo é a comprovação dessas brechas. Se não fosse o movimento negro, talvez, eu poderia me tornar um professor universitário como me tornei antes disso, mas provavelmente eu não estaria falando sobre essas coisas. Estou falando da institucionalização desse debate dentro de um currículo de formação, como disciplina obrigatória, que é o coração da nossa formação acadêmica. Não é qualquer coisa. Agora, nós temos que identificar essas brechas dessas construções teóricas e epistêmicas e institucionais. Tomar instituições como arenas de disputa. E elas são arenas de disputas e vão ser instrumentos em disputas.

porque era um debate feito por um núcleo universitário, acadêmico da UFBA que trabalha a questão racial, protagonizado por docentes e estudantes negros e negras, não exclusivamente, que têm esse locus político-epistêmico como um ponto de partida para a construção do conhecimento e que reflete sobre o conhecimento e sobre a mobilização desse conhecimento do planejamento urbano para a luta antirracismo. E a pergunta final que foi colocada, para nós, era sobre que opção adotamos, que estratégias, caminhos, tomamos? E a pergunta trazia um certo apuro crítico em relação a uma estratégia estadocêntrica que vem sendo a tônica da luta antirracismo das últimas décadas, de focar e centrar no Estado. E a pessoa que formulou a pergunta colocava: “será que ao invés de nos voltar para pensar Estado, legislações e políticas públicas antirracismo, não é fundamental a gente se virar para as construções sociais, para construção de sociabilidades negras?”. E a minha resposta foi que isso sempre foi feito. A comunidade negra sempre teve suas formas de resistência social, desde os quilombos aos terreiros, como mostra Muniz Sodré, por exemplo, no livro “O Terreiro e a Cidade”. Nós estamos falando sobre a construção urbana, as formas culturais como a capoeira são formas engendradas como mecanismo de resistência, mas, ao mesmo tempo, como


mecanismo de socialização negra. E, hoje, a gente começa a enxergar outros espaços.

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Há uma politização crescente dentro de nossas epistemes universitárias da ideia do cuidado com uma dimensão importante de resistência, e isso tem a ver com a valorização dessas localizações sociais que, historicamente, foram invisibilizadas, porque a produção de conhecimento se baseava na generalização de outras experiências sociais, e não na nossa experiência. Essa construção de resistência sempre existiu. O novo é nós conseguirmos, por exemplo, mobilizar alguém como a Raquel Rolnik, que mostra o quanto o Estado produziu a ilegalidade das nossas comunidades. Então, ao invés de achar que planos e legislações não nos servem, temos que olhar que eles sempre nos colocavam na ilegalidade. Temos que valorizar as nossas experiências sociais. Ao invés de pensarmos em um plano que vai nos desenvolver, nós conseguirmos, pelo menos, colocar, visibilizar, na formação de planejadores e planejadoras e também do ponto de vista jurídico-legal, as nossas formas culturais de existência. Assim, a gente já está fazendo esse confronto de matrizes. Então eu acho que sim, o conhecimento científico é uma arena para nós disputarmos, é uma ferramenta das nossas disputas políticas e sociais; e sim, ele comporta brechas, tanto na sua construção quanto na sua mobilização. Acho que nós, aqui, somos a expressão de uma brecha. A POSTO68 é a expressão de uma brecha. Aliás, a significação que se atribui desde o final dos anos 1960 e começo dos anos 1970, aos 68, já era uma brecha. Nós estamos falando de um marco que é

contra-hegemônico. Acho que, ainda, na sua constituição inicial, enquanto marco invisibiizador de outras dimensões: não é só o maio de 68 na Europa, são os anos 1960 com os negros dos Estados Unidos, são os anos 1960 com a descolonização na África e na Ásia, com o terceiro mundismo, com a conferência de Bandung, são os anos 1960 que têm, ao mesmo tempo, esses processos eclodindo, em alguns espaços, em momento de recrudescimento da dominação hegemônica na América Latina para frear esses avanços aqui. Por isso que tivemos o movimento estudantil, aqui, que era tão importante e tão forte naquele momento. Mas nós estamos falando, hoje, da semana de estreia no cinema de Marighella, nós estamos falando do momento em que a questão racial tem que ser visibilizada nessas lutas aqui [no Brasil]. Brechas são o que nos constitui. Elas já existem hoje e já existiam antes. O que não podemos é transformar essas brechas em uma tampa para outros; uma brecha em que só algumas lutas aparecem e outras desaparecem. Por isso que eu acho que essa ideia de diversalidade global anticapitalista, retomando o que Grosfoguel fala naquele livro “Epistemologias do Sul” do Boaventura de Sousa Santos, ao tomar o contrahegemônico como pluralidade, amplia as brechas, necessariamente. Descolonizar o saber é importante, precisamos muito, mas a gente sempre tem que ter essa vigilância epistemológica, política, de saber que o que nós fazemos pode sim ser apropriado pelo capital. Mas descolonizar o conhecimento é fundamental, tomando essa dupla dimensão do conhecimento como arena de disputa e, também, instrumento em disputas sociais, políticas e de poder.


Indicações de bibliografia para aprofundamento na temática: ALATAS, Syed Farid. Academic Dependency and the Global Division of Labour in the Social Science. Current Sociology. Novembro 2003, Vol 51 (6): 599-613. Sage Publications. London, Thousand Oaks, CA and New Delhi. FANON, Frantz. Pele Negra, máscaras brancas. São Paulo: Editora Ubu, 2021. GROSFOGUEL, Ramón. Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-coloniais: transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 80, p. 115-147, mar. 2008. Disponível em: <https:// journals.openedition.org/rccs/697> HARVEY, David. A condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1992. MIGNOLO, W. “La colonialidad a lo largo y a lo ancho: el hemisfério occidental en el horizonte colonial de la modernidad”. In: Lander, Edgardo (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais, perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: Clacso, 2005; pg. 34-52. Disponível em: <http://www.clacso.org/wwwclacso/espanol/html/ libros/lander/4. pdf )>. MORAES, Antonio C. R. “Los Circuitos Espaciales de la Producción y los Círculos de Cooperación en el Espacio” in L. A. JANES e A. LIBERALLI (orgs) – Aportes para el estudio del Espacio Socioeconómico, Ed. El Coloquio, Buenos Aires, 1989. _________. Ideologías Geográficas. Espaço, Cultura e Política no Brasil, Ed. Hucitec, São Paulo, 1988. _________. “Notas sobre IDENTIDADE Nacional e Institucionalização da Geografia no Brasil” In Estudos Históricos S. Rio de Janeiro, 1991.

SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula. (Orgs.) Epistemologias do Sul. São Paulo; Editora Cortez. 2010. SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Ed. Hucitec, 1996. SANTOS, R. E.. Ativismos cartográficos: notas sobre formas e usos da representação espacial e jogos de poder. Revista Geográfica de América Central. Número Especial EGAL, 2011Costa Rica. II Semestre 2011. pp. 1-17. Disponível em: <https://www.revistas.una.ac.cr/index.php/ geografica/article/view/2299>. SANTOS, Renato Emerson dos; Silva, Karoline Santos da; Ribeiro, Lisyanne Pereira; Silva, Naiara do Carmo. Disputas de lugar e a Pequena África no Centro do Rio de Janeiro: Reação ou ação? Resistência ou r-existência e protagonismo? Seminário Indisciplinar UFMG, 2017. Belo Horizonte: UFMG, 2017. SODRÉ, Muniz. O terreiro e a cidade: a forma social negro-brasileira. Rio de Janeiro: Mauad, 2019. SPIVAK, Guayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte, Editora UFMG, 2010. WINKLER, T. A Short Position Paper for Session A: Knowledge, Praxis and Ethics. (University of Cape Town, South Africa).

POSTO68

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ROLNIK, R. Informal, ilegal, ambíguo: a construção da transitoriedade permanente. In: Guerra dos Lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. São Paulo, Boitempo Editorial, parte II, cap. 2, p. 169-194, 2015.

11

QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina. ”. In: Lander, Edgardo (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais, perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: Clacso, p. 120-151, 2005. Disponível em: <http://www.clacso. org/wwwclacso/espanol/html/ libros/lander/4.pdf )>.


Cartografia Ambiental A presente cartografia propõe colocar em diálogo eventos climáticos extremos que aconteceram nos últimos meses em escala global. Nosso principal objetivo é evidenciar as relações e conexões entre os eventos e a necessidade de ações radicais e concretas para frear o aquecimento global e as mudanças climáticas não a partir de ações localizadas, mas como política mundial de sobrevivência. Por questões práticas, optamos por seguir o mesmo recorte temporal da linha do tempo (maio a novembro de 2021). Não ambicionamos mapear todos os eventos extremos que podem estar ligados ao aquecimento global e às mudanças climáticas, mas, com essa diminuta mostra, é visível a proximidade do colapso climático e a correlação entre os eventos ao redor do planeta. O relatório da COP26, de 2021, traz alguns elementos importantes para pensar a atividade humana nos próximos anos, mas é preciso destacar que a radicalização do movimento climático é urgente. O colapso ambiental tem consequências na vida de todos os seres da terra, mas não podemos ignorar o caráter desigual das crises. Dentro de um sistema que sobrevive pela produção de desigualdades e pela acumulação de uns pela expropriação de outros, o colapso climático atinge países e populações de formas distintas, produzindo uma população de refugiados do clima. Entender a relação entre as camadas de exploração produzidas pelo capitalismo é central para a superação do sistema e para que possamos propor mudanças estruturais para garantir a sobrevivência do planeta.

Canadá registra onda de calor histórica [julho] Morte de 1 bilhão de animais (mariscos, mexilhões e moluscos) por conta da onda de calor no hemisfério norte [julho] Temperatura recorde de 18,3 ºC é registrada na Antártica [julho] Rio Paraguai registra nível mais baixo desde 1965 [julho] Onda de calor na Grécia, Turquia, Itália, Albânia, Macedônia do Norte e nos países do norte da África eleva a temperatura 10ºC acima da média do ano passado. [julho] Fumaça do incêndio das florestas da Sibéria chegam até o Alasca, nos EUA [julho] BR Processo de desertificação do semiárido brasileiro (região Alagoas) [agosto] Calor intenso nos EUA interfere nos ventos e na atmosfera [agosto] No Irã, Lago Urmia está evaporando, perdendo grande área de superfície [agosto] BR Pantanal perdeu 74% da água desde 1985 [agosto] BR Cuiabá bateu recorde mundial de altas temperaturas em 8 de setembro de 2021. [setembro] 54,4ºC no Vale da Morte, Califórnia, EUA, o lugar mais quente do planeta [setembro] Ártico está aquecendo três vezes mais rápido do que o resto do planeta [novembro]

Ciclone Yaas em Bangladesh [maio] BR Ribeirinhos passam fome devido a cheia histórica de rios no Amazonas [julho] 29 de julho de 2021, Dia de Sobrecarga da Terra [julho] Terremoto de 7,2 na escala Richter no Haiti deixou mais de 7 mil feridos e destruiu 84 mil edificações [agosto] 28% das espécies classificadas do planeta correm risco de extinção [setembro] Animais estão mudando o corpo para sobreviver às mudanças climáticas [setembro] Plantações de alimentos básicos podem diminuir em pelo menos 80% até 2050 em oito países africanos [relatório COP26, novembro] Madagascar poderá ter a primeira situação de fome por mudança climática [novembro] Aquecimento global está mudando o tamanho dos pássaros na Amazônia [novembro] Recorde de desmatamento na Amazônia, pelo terceiro ano consecutivo, coloca a Floresta mais próxima de seu ponto de ruptura ecológica [novembro] Vida marinha ameaçada.


Maior iceberg do mundo se desprende da Antártica [maio] BR Maior cheia do Rio Negro desde 1902 [junho] Enchentes na Alemanha, Bélgica, Turquia, China, Paquistão, Afeganistão e Inglaterra [julho] A precipitação no ponto mais alto da Groenlândia caiu como chuva, e não como neve pela primeira vez na história [agosto] BR Cidades brasileiras que estão ameaçadas pelo aumento do nível do mar: Rio de Janeiro (RJ), Recife (PE), Fortaleza (CE), Porto Alegre (RS), Salvador (BA), Santos (SP) e São Luís (MA). [novembro]

Frio intenso na América do Sul, temperaturas muito abaixo da média [julho] Werda, em Botswana, tem a menor temperatura registrada desde 1953, 9,7ºC abaixo de zero.[julho] Frio intenso na região sul-africana, com queda incomum de neve na cidade de Kimberley [julho] BR Massa polar intensa vinda da Antártica [julho]

BR Queimadas no Brasil são as maiores desde 2007 Incêndios na Rússia, Grécia, EUA, Turquia, Itália, Austrália, Argélia [julho]

FONTES: Portais de notícias: Casa NINJA Amazônia; Mídia NINJA; MetSul Meterologia.


MAIO

JUNHO

29_ Atos contra Bolsonaro e suas políticas

genocidas tomaram as ruas por todo o Brasil. 31_Desmatamento da Amazônia bateu recorde no

mês de Maio.

12_Bolsonaro organiza motociata em São Paulo intitulada ‘Acelera para Cristo’, com custo de R$ 1,2 milhão para os cofres públicos. 19_Brasil ultrapassa 500 mil mortos pela covid-19. 22_Ministério Público Federal

encontra irregularidades na negociação entre o Ministério da Saúde e a empresa Precisa Medicamento na compra das vacinas Covaxin. 23_Ricardo Salles, acusado de desviar

JULHO 05_Bolsonaro foi considerado pela

organização Repórteres sem Fronteira como um predador da liberdade de imprensa.

06_Festival de Cannes volta a acontecer depois de cancelada por conta da pandemia. 20_O bilionário Jeff Bezos completa vôo de 10 minutos sem pilotos ao espaço, com custo de R$146 milhões.

madeira ilegal e de facilitar processos de desmatamento, pede demissão do Ministério do Meio Ambiente. 24_Sérgio Moro é declarado parcial em todas as ações contra Lula.

28_Brasil é citado na ONU por risco de genocídio de indígenas.

_Na Argentina, o cuidado materno passa a ser reconhecido como trabalho.

tem po

linh a

d

Tóquio após serem adiados por conta da pandemia de Covid-19.

o

23_Início dos Jogos Olímpicos de

24_Atos contra Bolsonaro voltam a acontecer por todo o Brasil.

_Estátua de bandeirante Borba Gato é incendiado em ação de protesto do grupo “Revolução Periférica”. 26_Rayssa Leal, segunda brasileira

mais jovem nas Olimpíadas, leva a medalha de prata na primeira vez em que o skate é disputado como esporte olímpico. 28_Pedro Castillo, professor, líder

sindical e político de esquerda, toma posse como Presidente do Peru. 29_Após meses de descaso e alerta de funcionários, Cinemateca pega fogo e tem grande parte de acervo destruído.

AGOsTO 05_Câmara dos Deputados aprova processo de privatização

dos Correios.

10_ _Câmara Câmara dos Deputados rejeita e arquiva PEC que

propunha votos impressos.

_Parada militar acontece em Brasília com a presença de Bolsonaro e vira alvo de críticas e chacota. 13_Roberto Jefferson, aliado de Bolsonaro, é preso por organização criminosa digital. 14_Terremoto de magnitude 7,2 na escala Richter atinge

o Haiti.

15_Talibã toma o controle de Cabul e volta ao poder do Afeganistão. 16_Afegãos tentam escapar do país após tomada de poder do Talibã. 17_Talibã anuncia a anistia geral do Afeganistão para

demonstrar moderação, mas mantém afegãos céticos pelo histórico do grupo. 29_Jogos Paralímpicos de Tóquio são iniciados.

31_Taxa de homicídio de indígenas aumentou 22% no Brasil de 2009 a 2019, acompanhada de queda de 20% na taxa de homicídios da população geral no mesmo período.


OUTUBRO 02_Novos protestos contra Bolsonaro tomam as ruas do país.

SETEMBRO 04_Abertura da 34 Bienal a

de São Paulo sob o tema “faz escuro, mas eu canto”, marcada por forte presença indígena.

07_Atos contra Bolsonaro acontecem pelo Brasil.

_Atos pró Bolsonaro pautam ameaça ao STF e presidente declara que só sai de Brasília “morto, preso ou com vitória”. 13_Arco do Triunfo é

embrulhado como ação de obra póstuma dos artistas Christo e Jeanne-Claude.

19_Centenário de Paulo

Freire.

21_Bolsonaro discursa em Assembleia da ONU, defende kit Covid, mente sobre apoio popular, preservação ambiental e desempenho econômico do país.

04_Os serviços do Facebook, Instagram e WhatsApp entraram em pane global de mais de 5 horas, gerando queda de 5,5% nas ações da empresa. 08_Brasil ultrapassa 600 mil mortos por Covid-19. 10_Leuvis Manuel Olivero Ramos, autor de livro que homenageia Marielle Franco, é morto à tiros no Rio de Janeiro. 14_Obra de Banksy parcialmente triturada em leilão, Love is in the bin, é leiloada novamente por $25.4 milhões de dólares, estabelecendo novo recorde de preço para o artista. 22_Nova onda de Covid atinge Leste Europeu. 24_Exposição Histórias Afro-Atlânticas do MASP estreia no Museum of Fine Arts, Houston, Texas. 26_Após 6 meses de trabalho, a CPI da pandemia chega ao fim com o indiciamento de Bolsonaro, seus filhos e outros mais de 70 pessoas, além de 2 empresas. 28_A companhia Facebook anunciou mudança de nome para Meta e foco em desenvolvimento de realidade virtual. 31_Início da COP26 - Conferência das

Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas, em Glasgow, Reino Unido.

23_Ato contra fome, desemprego e inflação organizado pelo MTST ocupa sede da Bolsa de Valores Brasileira.

exposição “Carolina Maria de Jesus: um Brasil para os brasileiros” no Instituto Moreira Salles em São Paulo.

29_Em depoimento à CPI da Covid-19, Luciano Hang, dono da Havan, afirma, após denúncias de manipulação de atestado de óbito, que sua mãe tomou “kit covid” e que morreu da doença no Hospital Prevent Senior.

01_Com medo de críticas, Bolsonaro envia vídeo para cerimônia de abertura da COP26, permanecendo em viagem na Itália. 02_Jaider Esbell, artista plástico de destaque da edição de 2021 da Bienal de São Paulo, morre aos 41 anos 04_O filme Marighella, dirigido por Wagner Moura, estreia oficialmente nos cinema brasileiros quase 3 anos após seu lançamento no Festival de Cinema de Berlim

15_Lula é aplaudido em pé após discurso no Parlamento Europeu. 17_Brasil supera EUA, com mais de 59% da população totalmente imunizada contra Covid-19.

_O Touro de Ouro instalado em frente a Bolsa de Valores de São Paulo é alvo de protestos contra a fome no país. 19_Bolsonaro espera fim da COP26

para divulgar desmatamento recorde na Amazônia.

l

_Em sinal de luto, Bienal de São Paulo cobre as obras de Jaider Esbell

a p s o

_Advogada que representa médicos da Prevent Senior revela práticas ilegais da empresa envolvendo ‘tratamento precoce’ - “óbito também é alta”.

NOVEMBRO

linh a do co

25_Inauguração da


POSTO68-N.05

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N05 A história, quando contada pela perspectiva dos vencedores, produz apagamentos de outros agentes responsáveis pelos processos de mudança. Essa forma de narrativa linear - e baseada na racionalidade europeia de referenciar o passado - reproduz a lógica opressora que faz com que os vencedores assumam esse lugar a partir da derrota de outros grupos. Na história do Brasil, por exemplo, destaca-se a figura da Princesa Isabel, na abolição da escravidão, como principal agente de mudança, remetendo a uma ideia de “salvadora branca”, à revelia da importante organização dos movimentos negros de resistência, como os Quilombos, nessa luta. A força motriz capaz de mudanças significativas se dá pela mobilização de muitos corpos coordenados, se organizando em prol de um objetivo comum. Essa obliteração do coletivo e escolha de protagonistas das narrativas tem, na mídia dominante, um importante veículo de informação e relato dos fatos, atuando principalmente nas plataformas de grande alcance, com base em seus próprios interesses, que coincidem com os das classes dominantes. Essa disputa de narrativa é evidenciada, hoje, pela organização de movimentos sociais que reivindicam o protagonismo na mídia contra-hegemônica, se apropriando das ferramentas de comunicação. A disputa de sentidos possibilita outras formas de organização social. O sistema moderno colonial em que vivemos promove uma forma única de se existir no mundo e tenta, continuamente, apagar e exterminar quaisquer movimentos ou organizações, mesmo que pontuais, que desafiem sua hegemonia. Apesar da potência de destruição e dominação do sistema capitalista e do sequestro da narrativa histórica por ele produzida, inúmeros grupos estiveram, historicamente, presentes na disputa por outras formas de organização social, na busca por combater violências e injustiças e promover o bem estar coletivo.

Em seu quinto número, a POSTO68 pretende pautar, a partir de experiências contemporâneas, o protagonismo da atuação política de grupos subalternos na luta contra diferentes formas de opressão e de dominação e na busca por outros mundos possíveis. Adicionalmente, reconhecer e tecer análises quanto às mobilizações, progressistas ou conservadoras, que ganharam espaço nos últimos anos, trará tensionamentos e desdobramentos importantes à discussão.

POS

Mais do que leituras teóricas desses movimentos, buscamos apontar caminhos possíveis para a superação do sistema capitalista-imperialista-branco-patriarcal, enfatizando seus horizontes, para além do idealismo, em como processos em construção, à muitas mãos, por todas, todos e todes aqueles que acreditam na mudança, podem concretizar a potência transformadora da luta coletiva.


Prevemos que a abertura da chamada de trabalhos, para quem queira somar suas contribuições à esse esforço, se inicie em março de 2022.

STO68 STO 68 Siga a @revistaposto68 no Instagram para mais informações.


impresso em dezembro de 2021 miolo em offset 90g, capa em couche brilhante 250g tipografias utilizadas Avara e collisio tiragem 250 exemplares

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agradecimentos apoiadoras e apoiadores do apoia.se

Aline Coelho Sanches + Ana Luiza Vieira Gonçalves + Andreia Caro Florio + Bárbara Barbosa Machado + Beatriz Silva Costa + Bia Godoy + Chiara keese montanhesi + Cia da Arte FW + Consuelo Volpato Quilice + Fabrício Ribeiro dos Santos Godoi + Gabriel Garcia de Aguiar + Guilherme Garcia + Guilherme Giglio + Gustavo Nicolau Goncçalves + Jaqueline Barbosa + Joana D'Arc de Oliveira + José Vitor dos Santos Coelho + Julia Simmelink Clemente de Souza + Leo Yutaka Marra Niizu + Letícia Jardini Braulino de Melo + Lucas Campana + Manoel Rodrigues Alves + Marcela Cordeiro Carneiro + Marcelo Suzuki + Marcos Ribeiro + Maria Alice Messias + Marilia Daniela + Marina Gil + Mayara Maruiti Serra + Millena Cristny de Morais + Sandra Caro Florio + Simone Vieira + Sofia Fortunato Ribeiro da Costa + Vinicius Galbieri Severino + Yasmin Carpenter +

||| Geni Núñez ||| Renato Emerson dos Santos ||| Juliana Sampaio Farinaci ||| Gabriela Sarmet ||| Coletivo Ambientalista Comunista (CAC) a todas e todos que enviaram seus trabalhos, artes e projetos e que depositaram sua confiança no nosso trabalho



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