POSTO68 Número 0 - “Revista Piloto” São Carlos - SP Março 2020 Corpo Editorial: Adriano Caro Florio Ana Luiza Vieira Gonçalves Felipe Leme de Andrade Giulia Ravanini Silva Agradecimentos:
Brianda de Oliveira Ordonho Sígolo Camila Moreno de Camargo Carlos R. Monteiro de Andrade Cibele Saliba Rizek Cleverci Aparecida Malaman Estefane Trindade Francisco Sales Trajano Filho Guilherme Wisnik João Marcos de Almeida Lopes Luiz Felipe Kataoka Fogo Miguel Buzzar Neuza Bernardino Projeto Canteiro Escola TCBC Ruy Sardinha Lopes Sérgio Ferro Sofia Fortunato R. da Costa Tia Celly Tomás Antonio Moreira Vilma Del Grossi Coutinho Projeto gráfico: Adriano Caro Florio
Capa:
Luiz Felipe Kataoka Fogo
“A imaginação no poder”. Foto: Jo Schnapp.
Editorial Posto como marco, o nosso espaço de democracia. A POSTO68 parte da necessidade de debater e se revoltar contra o atual momento. Com o fim da era PT, marcado pela articulação da direita em 2013 que culminou no golpe político, assistimos - em um “transe” glauberiano1 - ao escancaramento de políticas conservadoras e neoliberais. Somos futuros arquitetos e urbanistas, mas como é possível imaginar um “futuro”, se em nosso presente estamos sob o domínio dos perversos?2 A apatia e as incertezas consomem qualquer força revolucionária que tente nascer hoje, assim sofremos com o apagamento de quaisquer utopias. Temos um horizonte de disputa que precisa ser novamente construído, nem que seja dos destroços do que um dia foi o Brasil. Buscamos discutir nesta revista nossas mais profundas inquietações a cerca das produções arquitetônicas, urbanísticas, artísticas e culturais contemporâneas, procurando explorar através de um olhar crítico o que há de revolucionário e paradigmático. Trazemos duas entrevistas em que buscamos compreender o presente cenário político, artístico e arquitetônico. Sérgio Ferro relatou em sua fala a experiência vivida durante Maio de 68 e nos anos da ditadura militar no Brasil, além das suas investigações como membro do Grupo Arquitetura Nova, tal qual como professor. Guilherme Wisnik trouxe sua experiência como professor e crítico de arte e arquitetura e suas atuais perspectivas. Pretendemos com essas falas articular uma reflexão sobre a democracia e o papel político da arte e da arquitetura, bem como da atuação do(a) arquiteto(a) no passado e no presente. Os ensaios, escritos pela própria equipe editorial, partem de eixos temáticos que julgamos importantes para formar um posicionamento da POSTO68 em relação a situação atual. Em “Revisitando ‘68”, retomamos o significado de Maio de 68 para a revista, expondo seus principais acontecimentos políticos e culturais. Em “A queda do muro”, discutimos a atual conjuntura política na tentativa de desenhar formas de ação frente a ela. Em “O Brasil em tempos interessantes”, discutimos a produção artística nacional e latino americana no atual contexto de ataques às instituições e à legitimidade da arte hoje. Por fim, no ensaio “Entre a sátira e a tirania”, refletimos sobre como a democracia vem sendo posta em xeque e de quais formas podemos nos posicionar como arquitetos e urbanistas em relação à isso. Essa edição piloto busca se colocar como um primeiro espaço para a discussão dessas questões, procurando fomentar os debates no âmbito da arquitetura. Agradecemos aos amigos, ao IAU-USP por todo apoio, aos funcionários do instituto, aos professores e aos entrevistados. Equipe editorial 1 “Terra em Transe” (1967), de Glauber Rocha. 2 Eliane Brum, “Cem dias sob o domínio dos perversos” (2019).
POSTO
equipe editorial
Adriano Caro Florio
Ana Luiza Gonçalves
Integra o grupo de bolsistas do Centro Cultural USP São Carlos, sob orientação do professor David Sperling. Desenvolveu pesquisa de iniciação científica na área de mercado de arte sob orientação do professor Ruy Sardinha Lopes, com financiamento do Programa Unificado de Bolsas. Realizou intercâmbio no Politecnico di Milano, campus Mantova. Fez parte da diretoria do CAASO.
Realizou duas iniciações científicas sobre financeirização, remoções e regularização fundiária com financiamento do CNPq. Atualmente é bolsista FAPESP sob orientação da professora Cibele Rizek, investigando o caráter de resistência da regularização fundiária. Realizou intercâmbio de pesquisa no laboratório EVS-RIVES, da ENTPE na Université de Lyon. Fez parte da SAAU e da diretoria do CAASO. Compôs a Comissão Organizadora do EREA Carlão em 2018. Realizou estágio na Assessoria Técnica USINA CTAH.
Felipe Leme
Giulia Ravanini Silva
Desenvolve pesquisa de iniciação científica analisando convergências entre arte, ativismo político e práticas coletivas, sob orientação do professor Fábio Lopes de Souza Santos e financiamento do Programa Unificado de Bolsas. É representante discente suplente junto à Comissão de Cultura e Extensão Universitária (CCEx) do IAU-USP. Fez parte da Comissão Organizadora da V SEMANAU (2019) e atualmente da VI SEMANAU (2020).
Desenvolveu pesquisa de iniciação científica na área de representação digital de Patrimônio Arquitetônico, sob orientação da professora Simone Vizioli, com financiamento o Programa Unificado de Bolsas. Realizou intercâmbio no Politecnico di Milano, campus Mantova, onde fez estágio no grupo de pesquisa He.Su.Tech realizando o levantamento fotogramétrico da Basílica de San Marco, em Veneza. Fez parte da Comissão Organizadora das II, III e IV SEMANAU (2016, 2017 e 2018).
índice
04. revisitando ‘68 giulia ravanini silva
10. entrevista com sérgio ferro ana luiza gonçalves
28. a queda do muro ana luiza gonçalves
38. entrevista com guilherme wisnik felipe leme
56. o brasil em tempos interessantes adriano caro florio felipe leme
68. entre a sátira e a tirania giulia ravanini silva
77. loucura, loucura, loucura ana luiza gonçalves
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. revisitando ‘68 giulia ravanini silva
Poucos anos tem um legado na história tão extenso quanto o ano de 1968. Junto a 1789 e 1871 são anos que ecoam como anos de grande agitação social, que estabeleceram raízes para profundas mudanças que estavam por vir. Ao nomear seu livro como “1968: O Ano que não acabou”1, Zuenir Ventura escolheu um título apropriado pois, mesmo depois de mais de cinquenta anos os acontecimentos continuam ecoando, não apenas no Brasil - foco do livro -, mas por todo o mundo. Os movimentos revolucionários de 1968 são lembrados principalmente com um olhar romântico, em que a população, em sua maioria jovem, tomada por um intenso sentimento de insatisfação com o governo, com o establishment e com as tradições ocupa as ruas. Porém quais foram as consequências e desfechos destes acontecimentos? No Brasil de 2020, parece que voltamos quase à estaca zero. O país se encontra dividido, sentimento que após as eleições de 2018 cresce aceleradamente. As contestações de 1968 ainda estão presentes, seja na política, no sistema ou no embate entre as gerações. Novas discussões surgem, como a abordagem em relação à crise climática e o uso de redes sociais para o enfraquecimento de regimes democráticos. O ano de 1968 aparece para a juventude atual como um farol. A década de 1960 em geral foi turbulenta no campo político e social, porém - talvez por isso - extremamente fértil em seu legado cultural e intelectual. Surgiram novas maneiras de pensar, produzir, e consumir a cultura, tanto aquela voltada para as massas quanto aquela mais erudita - embora a linha 6
1 VENTURA, Zuenir. 1968: O Ano que não acabou. 1ª Edição. São Paulo: Objetiva, 2013. 312p.
entre elas começa a se atenuar com o passar da década. Enquanto as ditaduras militares começam a se impor pela América do Sul2, a Guerra Fria atinge seu auge, marcada pela Crise dos Mísseis Cubana, ocorre a eclosão da Guerra do Vietnã e grandes figuras públicas defensoras dos direitos civis são assassinadas, como os americanos Martin Luther King ativista político - e John F. Kennedy - então presidente norte-americano. O ano de 1968 em seu legado social e político foi o estopim do clima de descontentamento e mudança que vinham escalando pela década. Foi a revolução da contracultura3, questionando os antigos valores e propondo novos. Um ano de batalhas, tanto reais, como a guerra do Vietnã que se intensificava, quanto pelos protestos urbanos que se espalharam pelas ruas do mundo. A “Passeata dos 100 mil”, no Rio de Janeiro, a “Primavera de Praga”, na então Tchecoslováquia e os “Protestos de Maio de 1968”, na França. Frases como “Il est interdit d’interdire”4 e “Soyez Realiste, demandez l’impossible”5 eram escritas em letras garrafais pelos muros de Paris, cidade que foi cenário também dos grandes acontecimentos da Revolução Francesa (1789) e da Comuna de Paris (1871). Um ano em que as pessoas ousaram sonhar expressando seu descontentamento através de lutas, bandeiras e protestos - fossem eles na Cidade do México, em Praga ou no Rio de Janeiro. A juventude queria deixar sua marca no mundo: arquitetos, artistas, cineastas, músicos e escritores ao mesmo tempo que se aventuravam no campo do experimentalismo também se engajaram politicamente. Como explicou Olgária Matos: “O maio de 68 inovou o sentido da ideia de revolução: não a poesia a serviço da revolução, mas a revolução a serviço 2 Golpes Militares ocorreram em 1962 na Argentina, em 1964 no Brasil e em 1968 no Peru. Na início da década eles ainda ocorreriam no Chile e no Uruguai (1973). 3 Movimento da década de 1960 liderado pelos jovens focados nas transformações de consciência, de valores e de comportamento. 4 Tradução livre: É proibido proibir 5 Tradução livre: Seja realista, demande o impossível
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da poesia. Nesse mês de maio a ‘ação foi irmã do sonho’.”6 Em 1968, o renomado festival de Cannes, que ocorre em maio, foi cancelado na metade, após um abaixo assinado liderado por cineastas da vanguarda, como Jean Luc-Godard e François Truffaut, pedindo solidariedade em relação aos protestos arrebatadores que se espalhavam pela França. “Nós falamos de solidariedade com estudantes e trabalhadores, e vocês de primeiros planos e filmagens. Vocês são uns imbecis”7, argumentava Truffaut. De maneira similar, na 34ª Bienal de Arte de Veneza, estudantes italianos pediram um boicote ao evento, o rotulando como um lugar de uma arte elitizada. Após os protestos daquele ano, a Bienal aboliu os grandes prêmios concedidos aos artistas e a venda das obras. Foi o ano da pop-culture e da guerrilha urbana, como cantava Caetano Veloso na música “Alegria, Alegria”8 presente no disco homônimo lançado em 1968. “O sol se reparte em crimes / Espaçonaves, guerrilhas / Em Cardinales bonitas / Eu vou / Em caras de presidentes / Em grandes beijos de amor / Em dentes, pernas, bandeiras / Bomba e Brigitte Bardot” A obra de Hélio Oiticica: “Seja Marginal, Seja Herói”, também foi realizada neste ano. Ao estampar o corpo assassinado do referido “marginal”, Oiticica levanta questionamentos sobre a resistência no Brasil, sob um profundo cenário de desigualdade 6 SUGIMOTO, Luiz. Maio de 68: depois da primavera. Jornal da Unicamp, 2018. 7 BELINCHON, Gregório. Maio de 1968, quando o Festival de Cannes parou. El País, 2018.
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8 VELOSO, Caetano. Alegria, Alegria. Caetano Veloso. Philips Record: 1968.
Obra de Hélio Oiticica
revisitando 68’
como o da ditadura militar, que em 13 de Dezembro daquele ano decretaria o Ato Institucional Número Cinco (AI-5), e seria a maior ação do governo em relação a censura, repressão e perseguição, iniciando então os anos de chumbo do período ditatorial. Um ano em que a história foi escrita com sangue, fosse de anônimos: da população, principalmente composta de jovens, estudantes e operários, que saíram pelas ruas de todo o mundo para protestar; ou de figuras como Martin Luther King, covardemente assassinado em Memphis em abril daquele ano. Em um de seus mais famosos discursos, feito em fevereiro de 1968 em Atlanta, o reverendo e ativista inicia sua fala questionando: “Where do we go from here?”9. Em meio a uma década marcada pela luta de maiores direitos civis para negros, mulheres e para a comunidade LGBTQIA+, King argumentava “This is no time for romantic illusions and empty philosophical debates about freedom. This is a time for action.”1011 52 anos depois ainda estamos nos questionando: onde iremos a partir de 1968?
9 Tradução livre: Para onde iremos a partir de agora? 10 Tradução livre: Não é tempo para ilusões românticas e debates filosóficos vazios sobre a liberdade. É tempo de ação”. 11 KING, Martin Luther. Discurso: “Where do we go from here?”. Atlanta, EUA. 1968.
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Foto: Ilka Apocalypse
. entrevista com sérgio ferro
Sérgio Ferro é arquiteto, pintor, desenhista e professor. Integrou o Grupo Arquitetura Nova junto de Rodrigo Lefèvre e Flávio Império. Lecionou na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e na École Nationale Supérieure d’Architecture de Grenoble.
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Ana Gonçalves: Nossa revista teve como “partido” (ou ponto de partida)
um profundo sentimento de revolta contra a atual conjuntura política e uma série de questionamentos acerca das produções artísticas, arquitetônicas e urbanísticas contemporâneas. Em nossas discussões, os cinquenta anos de Maio de 1968 ressurgiu como marco importante para a retomada de um horizonte utópico. “POSTO68” contempla, portanto, esta idéia de um marco (“posto”) histórico a ser retomado e também rediscutido para construirmos novos propostas e possibilidades. Fazemos referência também ao nosso “Postão”, que é um espaço no IAU que pode ser comparado ao Salão Caramelo da FAU. Gostaria de começar a entrevista partindo da sua atuação como militante e professor na FAU-USP durante o período de 1968. Nesse sentido, o senhor, o Rodrigo Lefevre e o Flávio Império, ao realizarem críticas ao modernismo e às formas de exploração no canteiro de obras, buscavam um novo paradigma para a produção de arquitetura no país. Mesmo já tendo sido respondido pelo senhor em outras ocasiões, achamos pertinente questionar como essa “pesquisa” se situava em um debate mais amplo da esquerda que culminaria nos movimentos políticos antiditatoriais e anticapitalistas dos anos 1960 e 1970? Como os acontecimentos de 68 repercutiram na FAU?
Sérgio Ferro: A relação de boa parte dos franceses com o Maio de 1968 é bastante
ambígua. Quando os movimentos sociais se aproximam muito de uma possível revolução a mídia, em geral conservadora, tende a descrevê-los negativamente. São raros os historiadores ou testemunhas mediatizados que analisam o que se passou nesses casos de maneira objetiva. É o que acontece, por exemplo, com a Comuna de 1871, um dos momentos mais bonitos da história do povo de Paris. Napoleão III provocou uma guerra quase gratuita contra a Prússia. As tropas francesas foram facilmente derrotadas. Napoleão III foi preso e o Segundo Império foi substituído pela Terceira República. O novo governo assinou imediatamente uma rendição humilhante. Cedeu parte do território aos alemães que ocuparam o resto do país. O povo parisiense, entretanto, não quis render-se, nem deixar as tropas prussianas entrar na capital. O governo se exilou em Versalhes e iniciou uma guerra de usura contra Paris. Em 1871 quis retirar os canhões instalados em Montmartre. O povo não permitiu. A partir de então a guerra tornou-se violenta e sangrenta. Versailles começou a bombardear Paris cercada por tropas prussianas, uma vergonha. Depois conseguiu invadir a cidade e massacrou muita gente. Foi uma das maiores matanças da história da França. Em nenhuma outra revolução houve tanta morte concentrada. Hoje ainda há embaraço, desconforto e talvez remorso quando a Comuna é lembrada por quem não a admira. Vou contar uma anedota. Foi construída em Paris uma igreja, chamada Sacré Coeur. É, a meu ver, o monumento mais horroroso da cidade, um neo-neo-neo sei lá o que. Foi construída depois do fim da Comuna pelos católicos para agradecerem a Deus por ter permitido o massacre
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dos communards1. Mas a França não era composta somente por carolas reacionárias. Muitos não tinham a mesma opinião sobre a Comuna e propuseram erguer ali perto um monumento com uma mensagem oposta. Seria uma estátua gigantesca para poder fazer frente à igreja. Há fotografias dela nascendo e ultrapassando os telhados de Paris, mas o governo, retrógrado e bastante anti-republicano, não deixou instalála no local previsto. Os promotores da homenagem decidiram então doar a obra praticamente pronta aos Estados Unidos, naquele tempo o país considerado como o mais democrático do mundo apesar da segregação. Você conhece muito bem essa estátua.
AG: A Estátua da Liberdade. SF: Ela mesma. O Trump não pode saber disso. (risos). A estátua é uma homenagem
aos communards. Pensando bem, seria ótimo que soubesse. (risos).
Este episódio dá o tom das reações às revoluções ou quase-revoluções na França. O movimento de 1968 foi uma quase-revolução linda. Foi a maior greve jamais realizada na Europa em todos os tempos: 10 milhões de operários ocupando usinas e instaurando autogestão. Poderia ser o início um processo revolucionário importantíssimo. Manobras tortuosas de sindicatos pouco representativos, desmobilizaram a greve operária. Houve também greve de estudantes a qual, obviamente, chamou mais a atenção da mídia. Até hoje é a mais comentada e divulgada. Mas a outra greve, muito mais séria e profunda, quase desapareceu. Lógico, estudantes de esquerda colaboraram com os operários nas usinas. Mas sobrou como símbolo de 68 sobretudo o Daniel Cohn-Bendit, hoje membro do partido Die Grünen, um partido verde da Alemanha. (Ele) Aproveitou muito da aura obtida, mas sua carreira política é muito duvidosa. Por ocasião de qualquer comemoração sobre este período, ele é sempre o convidado principal. A maioria dos numerosos vira-casacas faz o que pode para renegar a memória deste período - evidentemente para aplacar sua consciência. Acho que vocês fazem muito bem homenageando o que houve aqui (na França) em 68 e no mundo inteiro nos anos 60. Anos de muita efervescência, de muita luta, de muita esperança. E de muita frustração. Roberto Schwarz escreveu um excelente artigo2 sobre o que ocorreu no Brasil nestes anos. Foi publicado no Temps Moderne por volta de 1970. É a síntese mais perfeita deste período. Vale a pena ser lido e discutido. Ele consegue, com sua bela prosa e muito talento, articular com maestria uma série de aparentes contradições. A tese 1 Communard era a denominação dos membros e apoiadores da Comuna de Paris.
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2 “Cultura e política, 1964-1969” (1970).
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central é, em resumo, a seguinte: apesar da ditadura de 64, a vida cultural continuou surpreendentemente na mão da esquerda - nas universidade, no CPC (Centro Popular de Cultura), no movimento estudantil, no teatro, no cinema, etc. Dominou até 1968/1969. O “Ato Inconstitucional número 5”3 marcou o fim dessa hegemonia. Esse predominância da esquerda não ocorreu somente no Brasil: foi uma tendência internacional e assumiu formas variadas. No mundo inteiro os anos 60 foram anos de agitação, de guerrilha, de guerra de independência nacional, etc. Os casos mais lembrados são o 68 francês e a guerra do Vietnã, mas houve levante de estudantes no México, lutas de libertação nacional no norte da África, guerrilhas diversas por todo canto, intervenções do Che Guevara em Angola e na Bolívia, etc. O clima era de forte agitação social e muita esperança. Acreditava-se estar chegando a hora de virar a mesa. Esse clima também influenciou as universidades. É nesse período que se inicia uma releitura intensa e internacional de Marx. Até então ele tinha sido muito maltratado pelos partidos comunistas dependentes da URSS, os quais difundiram e enrijeceram ainda mais o discutível esquema das etapas tidas como inevitáveis para poder chegar à revolução. Primeiro a instauração do capitalismo, depois seu desenvolvimento e somente quando ele estiver bem maduro torna-se possível iniciar a revolução. Esta foi a versão da Primeira e da Segunda Internacional, divulgada dogmaticamente pelo mundo inteiro. Pouca gente até então lia Marx com seriedade e pouco mais que a introdução da “Ideologia Alemã” e o “Manifesto do Partido Comunista”. Os que estudavam sociologia liam o “18 Brumário”, “A luta de classes na França”, etc - mas “O Capital”, era pouco frequentado. Os grandes teóricos do marxismo que não seguiam a linha de Moscou só eram conhecidos por intelectuais, de mesma tendência. Começou por volta dos anos 1960 um período de releitura aprofundada dos todos os trabalhos de Marx publicados até então. Ela provocou um feliz renascimento do marxismo. Até então tínhamos graves lacunas. Por exemplo, para somente mencionar o que nos toca mais de perto, quase ninguém prestava muita atenção aos capítulos XIII, XIV e XV do livro 1 de “O Capital”, capítulos considerados chatos.
AG: Só uma pergunta, esse capítulo é o que fala do canteiro? SF: Não diretamente, mas inspiraram 80% do que digo. Estes três capítulos tratam,
respectivamente, da cooperação, da manufatura e da grande indústria. A inspiração dos 20% restantes, a lei sobre a queda tendencial da taxa de lucro, aparece no livro 3, capítulos IX e X. São quatro capítulos essenciais. Os arquitetos têm a obrigação de os ler. 3 Ato Institucional Número Cinco (1968).
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AG: E com relação à FAU, como esses movimentos repercutiram dentro da FAU. SF: Através de alguns professores como Gabriel Bolaffi, Juarez Brandão Lopes,
nós da Arquitetura Nova (Flávio Império, Rodrigo Lefévre, eu), Sergio Souza Lima, Mayume Watanabe, estudantes ligados ao TUSP e alguns outros. Mas isto não abalou a hegemonia do Vilanova Artigas. Ele era merecidamente muito respeitado: fundador da escola, do IAB, programou e desenhou a FAUUSP, etc. Ele era, na opinião de muitos, inclusive nós, o melhor arquiteto do Brasil naquela época. Não era possível que não dominasse. Muitos alunos, entretanto, ficaram do nosso lado. Em 1968, quando houve o fórum de arquitetura na FAU Maranhão, tomamos posições bem diferentes das defendidas por ele. Rodrigo, Flávio e eu, tivemos participação bastante intensa, mas evidentemente ele ganhou. Foi decidido o que ele queria que fosse decidido. Nós tivemos sorte e azar de termos sido convidados no mesmo momento para compor e aplicar um programa para a escola de arquitetura de Santos. Aplicamos as nossas idéias, pelo menos por um ano. Depois quase todo mundo foi preso. Os estudantes da FAU editavam duas revistas, uma intitulada “Desígnio” - e você imagina quem ela defendia – e, do outro lado, a chamada “Ou…” (risos). Foi o grêmio da FAU que publicou o primeiro esboço do meu livro “O Canteiro e o Desenho”. Aliás, até hoje, praticamente todos os convites para ir à FAU em São Paulo me foram feitos pelos alunos. Parece que nesse ano serei convidado oficialmente.
AG: Que legal! Espero que consiga passar em São Carlos também. Gostaria que
você retomasse um pouco os seminários de reformulação do curso de Arquitetura e Urbanismo da FAU que o senhor participou um pouco antes de se mudar para cá (França) e como esses seminários tiveram influência no curso de Grenoble, pensando em que medida a formação do arquiteto determina suas atuações futuras, em uma lógica que se aproxima muito da “Pedagogia do Oprimido”, de Paulo Freire. Em outras palavras, como a gente pode formar arquitetos para algum processo de transformação mais radical?
SF: As nossas propostas estão resumidas no fim de “O canteiro e o Desenho” e no
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capítulo intitulado “Sobre o desenho e o canteiro” no livro “Arquitetura e trabalho livre”. Na nossa opinião, não é possível ensinar ou aprender arquitetura sem praticá-la ao mesmo tempo. Desenhar somente nunca permitirá um conhecimento adequado das consequências do projeto, de suas reais funções e problemas, de suas graves implicações sociais, etc. As escolas de arquitetura deveriam abrigar laboratórios de
sérgio ferro
projetos reais, compostos por professores em regime de tempo integral (para que não se afastarem da prática mas poderem evitar os compromissos da prática comercial) e estudantes. Estes laboratórios deveriam acompanhar de perto a realização de seus projetos e, quando possível, seus estudantes deveriam participar do canteiro. Não há possibilidade, a meu ver, de apreender e depois realizar com responsabilidade arquitetura senão desta maneira. Esta também era a tese do Rodrigo e do Flávio. Para nós, a prática é inseparável da teoria. Mas tanto a teoria como a prática da arquitetura pressupõem um canteiro com autonomia para criticar e alterar coletivamente o projeto. Isto é, um canteiro experimental e autogerido. O que implica também numa posição diferente com relação ao desenho e ao canteiro. O desenho, por exemplo, tal como é ensinado nas escolas de arquitetura – como atividade praticamente autônoma – desconhece o canteiro. A gravidade dessa atitude cresce e se acentua cada vez mais. E o trabalhador coletivo deve poder criticar e alterar o projeto. Até os séculos XII e XIII, o sistema construtivo seguia um modelo próximo ao da cooperação simples, mas um pouco mais elaborado. Marx comenta a cooperação simples muito rapidamente. Acho que atualmente é necessário estudar mais este processo produtivo, sobretudo o que chamo cooperação simples desenvolvida – processo caracterizado por relativa autogestão de trabalhadores polivalentes no canteiro. Não havia projeto preciso, no máximo, um desenho feito à mão, sem medida e sem escala. Em geral o desenho era feito no chão, nas paredes, ou em placas de gesso em escala 1:1, mesmo em casos de grandes igrejas. Durante a execução, às vezes, era necessário desenhar algum detalhe, ou esquematizar o corte da pedra. Estes desenhos faziam parte do canteiro e eram inseparáveis de seu andamento. Não existia ainda a entidade separada, chamada “desenho” ou “projeto”. Os desenhos que nos chegaram são de vários tipos e dependem estreitamente da necessidade do momento: não compõem um todo homogêneo separável do canteiro. Mas, se até o século XII e XIII não havia desenho no sentido atual, esta inexistência era amplamente compensada pela dinâmica cooperativa entre os trabalhadores e sua parceria nos segredos do métier – as múltiplas regras para construir. Estas regras compartilhadas eram transmitidas oralmente e orientavam o progresso do trabalho concreto. O trabalho se desenvolve no tempo e requer sobretudo comunicação oral das operações fundamentais. Os mestres ensinavam o que deveria ser feito aos aprendizes diretamente no canteiro, tendo o cuidado de não deixar nem textos, nem desenhos que pudessem cair nas mãos de gente exterior ao métier. O segredo era e é ainda arma de defesa do trabalhador. Um exemplo conhecido, mas bem ilustrativo. Há regras para erguer pináculos de boa qualidade. Uma delas é a seguinte: parte-se de uma pedra de superfície quadrada e de área determinada por outra regra dependente da altura prevista para o pináculo. Empilha-se uma certa quantidade destas pedras. Depois, a mesma operação é repetida - mas com pedras quadradas com metade da área das primeiras, e assim
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por diante até atingir a altura prevista. Para reduzir a área pela metade, basta ligar os pontos medianos de cada lado do quadrado inicial aos pontos medianos dos lados adjacentes. Mas nada é dito sobre a aparência do pináculo. Em princípio, cada trabalhador pode decidir livremente seu perfil desde que respeite certos limites de segurança. Aliás, é bom variar, pois o curioso terá assim mais dificuldade para descobrir a regra de base. Na cooperação simples desenvolvida todos os momentos da produção seguiam procedimentos semelhantes. Estes costumes continuaram válidos nas lacunas do prescrito pelo projeto – mas com profundidade e qualidade descendentes. O modernismo fez o que pode para suprimi-los completamente. Ainda não teve êxito total – pois a construção continua manufatureira. Mais ou menos no meio do período gótico, surgiu o desenho separado, o antepassado do nosso projeto. O mestre-de-obras, ou equivalente, passa a desenhar num galpão situado ao lado do canteiro, a loggia: aumenta a “vista” dos desenho como se diz em pintura, a extensão do representado. Mais tarde ainda sai de vez do canteiro. Começa a desenhar fachadas inteiras e logo mais, planos e cortes setoriais, etc. O que chamamos arquitetura gótica, é uma primeira astúcia empregada por nosso antepassado destinada a servir como cunha para abrir mais a distância entre ele e o resto do canteiro. Questão de subir na vida – o que implica naquele tempo não mais trabalhar com as mãos (salvo para desenhar fora do canteiro), cultivar-se (um pouquinho, pelo menos) e, segundo a lenda, usar luvas brancas. Ora, para impor seu desenho ao canteiro ele não pode limitar-se a repetir o que os construtores que continuam no canteiro sabem melhor que ele: com o tempo, ele vai perdendo a experiência. O que fazer? Lembrem-se do livro do (Erwin) Panofsky sobre a arquitetura gótica. Não diz nada ou quase nada sobre a construção. Seu exame mimetiza o desenho emergente: limitase à aparência. Discorre sobre simetrias equilíbrios, sequências, hierarquias, tramas etc. Coisas que antes importavam pouco – ou eram campo para a liberdade dos construtores autogeridos. Onde é que os proto-arquitetos foram buscar inspiração, já que deviam repudiar o canteiro onde impera o trabalho braçal? Obviamente na direção oposta. Pegaram carona na moda mais “refinada” da época, a que se tornou o habitus do seu principal cliente, a Igreja; nas regras impositivas da filosofia escolástica. A plástica do proto-arquiteto passa a independer da matéria e da técnica construtiva real. E se torna a encarnação da contemplação à distância do aparente, o fundamento do novo desenho.
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Mas quem distendeu mais ainda a relação entre canteiro e desenho foi Brunelleschi. Quase todos os livros sobre a história da arquitetura clássica - do Argan, do Benévolo, do Chastel, etc - começam com sua apologia. Teria aperfeiçoado e içado a perspectiva à dignidade de mediação “liberal” e introduzido o classicismo na arquitetura. Argan parece falar com voz trêmula de emoção quando apresenta a cúpula de Santa Maria del Fiore. Todos esquecem a imensa safadeza de seu significado social e de seu canteiro… (risos). Meu primeiro livro já faz referência a isto.
sérgio ferro
No fim do século XIV houve uma revolta importante em Florença liderada em grande parte por tecelões e tintureiros conhecidos como os “unhas-azuis”, cor de alguns produtos de tingimento. Florença ficou conhecida, como fabricante de tecidos. O trabalho de tecelagem foi o primeiro a ser organizado como manufatura. Hoje poucos lembram, mas a implantação da manufatura pressupõe a extrema miséria social provocada pela violência da acumulação primitiva do capital. Mas, apesar das perseguições, das prisões, das leis e penas bárbaras contra a “vagabundagem”, foram raros os que aceitaram trabalhar nas condições de produção das manufaturas. Era preciso forçá-los por todos os meios – o que não impedia greves, motins e, como neste caso, revoltas. Os revoltados expulsaram os Médicis entre 1378/1382. Quando voltaram, a elite de Florença decidiu completar a igreja de Santa Maria del Fiore para agradecer a Deus a retomada do poder. Por volta de 1420, Brunelleschi foi contratado para dirigir a conclusão da cúpula. E o que fez para dar corpo a este agradecimento pela derrota dos trabalhadores da manufatura? Introduziu a organização manufatureira no canteiro da obra. Serviço completo: seus patrões, patrocinadores da obra, eram os proprietários das manufaturas de tecido, da Arte de la Lana. Esta introdução sorrateira e serviçal foi muito mais importante para a história verdadeira da arquitetura que a introdução do classicismo ou o aperfeiçoamento da perspectiva. O capital produtivo emergente passou a ser a mão invisível. Tomo esta cúpula como marco da instauração da manufatura no canteiro de obras. Alguns preferem data anterior, outros posterior. Pouco importa: trata-se de um símbolo somente. Após um período de lenta transição, quando chega a virada do século XV para o século XVI, a manufatura já está bem estruturada nos grandes canteiros de obra e em vários outros setores da produção. Em correlação, começam a amadurecer os grandes movimentos mais estáveis de reação à manufatura. As compagnonnages vão lutar durante séculos contra ela, até quase o século XX. Eram compostas principalmente por trabalhadores altamente qualificados mas, em geral, impedidos de atingir o status de mestre. Ao mesmo tempo também, o desenho cada vez mais autocrata, parece ter rompido de vez suas relações com o canteiro. Aparentemente. Não, na aparência ele aparece – mas de pernas para o ar. É difícil resumir este quiproquó, mas se quiser eu tento.
AG: Sim, por favor.
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Foto: Luiz F. K. Fogo
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SF: O psicanalista Jacques Lacan desenvolveu o conceito freudiano de negação.
O resultado, é o que denomina denegação. Trata-se do seguinte: diante de uma constatação insuportável e traumatizante é possível recusarmos até mesmo sua percepção, não recebê-la. Não se trata recalcá-la no inconsciente, mas de deixá-la fora de nós, rejeitá-la. Ora, o que foi deixado fora acaba voltando do real onde foi deixado – mas volta quase irreconhecível, como alma de outro mundo, ensina a sabedoria popular. Tomo emprestado este conceito para explicar o comportamento curioso do nosso proto-arquiteto e que perdura até hoje. Ele não poderia suportar conscientemente e assumir a responsabilidade do que provoca no canteiro de obras. Seu desenho, descolado da realidade construtiva e da tecnologia disponível, serve para esconder e tornar irrelevante o saber e o saber-fazer operários, seu único tesouro e arma. Desenvolvo esta tese no meu livro “O Canteiro e o Desenho”, não vou repetir aqui. O resultado deste desprezo e desrespeito é o aumento da exploração dos que já estão no fundo do poço. Objetivamente o arquiteto atua como um poderoso coadjuvante do capital no canteiro, independentemente de sua posição política e de seu valor como organizador do espaço. Ora, não creio que seja possível viver sabendo que todo dia colaboramos para aumentar a desgraça alheia e, ao mesmo tempo, acreditarmos como quase todos acreditamos que trabalhamos para o bem da humanidade. Creio, ou pelo menos quero crer, que é preciso perdoar os protoarquitetos e arquitetos porque não sabiam e não sabem o que fazem – como disse Cristo. Talvez seja por isto que tão poucos leem “O Capital”, sobretudo os capítulos mencionados.
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A subordinação do trabalho ao capital na manufatura é chamada por Marx de (somente) formal. Ou seja, somente na forma o trabalho está subordinado. Esta denominação adquire um duplo sentido no nosso caso. Primeiro, no sentido puramente marxista: a subordinação é dita formal porque, somente os operários, os mestres-de-obra, os compagnons, os serventes, etc, sabiam ou sabem construir. Não
Foto: Luiz F. K. Fogo
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podem ser autônomos porque foram afastados de todos os meios de produção, não lhes sobrando outra opção senão vender a própria força-de-trabalho. Até o fim do século XIX, sem eles, nada pode ser construído. O próprio desenho de arquitetura nos revela isto: nos cortes e plantas dos belos desenhos acadêmicos, o interior das paredes, pisos, etc, permanece em branco, sem nenhuma indicação construtiva Esta dependência continua até hoje – mas de modo mais selvagem. A partir da passagem do século XVIII ao XIX, o capital procura absorver o saber e o saber-fazer operários para se libertar dessa dependência. Desenvolve o cálculo, o conhecimento “científico” dos materiais, etc. Mas somente com a “invenção” do concreto e a utilização do ferro consegue passar artificialmente da subordinação formal a um simulacro de subordinação real. Simulacro porque a subordinação real pressupõe industrialização e mecanização. A construção continua manufatureira – mas finge progresso porque eliminou a pedra e a madeira, os materiais básicos do saber operário tradicional. Somente a exploração cresceu. Voltemos à denegação. Ela é frequente e eficaz. Graças a ela nós, os arquitetos, podemos dormir tranquilos. Quando temos consciência que estamos ajudando a mutilar, esfomear, roubar e destruir a técnica dos operários da construção sem substituí-la por coisa melhor, perdemos definitivamente nossa tranquilidade. Hoje já sabemos que o concreto é uma porcaria e que sua produção e a do ferro são desastrosas sob o ponto de vista ecológico. Ora, uma das funções do desenho é preparar o caminho para que deneguemos (sem nos darmos conta, portanto) esta sórdida realidade e nossa colaboração em sua instauração. Toda a construção real é escondida cautelosamente para que possamos desconhecer sua verdade. Já falamos disto a propósito do gótico. Mas o desenho clássico - coluna, arquitrave, etc. – vai mais longe. Ele abre o longo período (continua até o fim do século XIX sob esta forma) em que o denegado volta no real sob um disfarce
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surpreendente mas eficaz. Feito para esconder e desdenhar a técnica de construção dos operários na manufatura de construção, o desenho clássico é uma espécie de esquema, de metáfora ou de caricatura da manufatura serial. Este tipo de manufatura é a outra face do classicismo. O outro tipo, a manufatura heterogênea, caracteriza o modernismo. A manufatura serial consiste na acumulação das intervenções sucessivas das várias equipes especializadas no próprio canteiro de obras. Cada intervenção pressupõe, em tese, outra precedente que a sustenta e outra posterior a ser sustentada por ela. E assim por diante até a conclusão da obra. Esta estrutura sequencial é seu paradigma ideal (desrespeitado sempre por razões que não há como resumir aquí). Ora, este mesmo paradigma guia inteiramente o desenho clássico – mas o que na manufatura é sequência temporal, no desenho torna-se simultaneidade espacial. O pedestal sustenta a base, que sustenta a coluna, que sustenta o capitel, que sustenta a arquitrave que sustente o friso, que sustenta a cornija… Cada um destes componentes é por sua vez composto de modo semelhante. Todos eles, têm desenhos específicos como se fossem especializados em suas funções – como cada equipe na manufatura é especializada na sua, mas é óbvio: quase ninguém presente neste desenho o retorno transfigurado da produção denegada. A ficção do desenho clássico desvenda - também sem querer - o que esconde. Mas raramente atinamos seu sentido, pois, repito, o denegado volta mascarado. O outro gênero de volta no real do escondido não tem nenhuma relação com a denegação. Quando o operário fazia greve o patrão entrava em pânico. Tinha que procurar substituto, provavelmente menos competente – se possível, pois a solidariedade entre os compagnons era enorme. Ninguém sabia como construir a não ser eles. Por isso mantinham seu saber em segredo. Até o fim do século XIX as greves foram o pesadelo do capital produtivo. Depois do trauma da Comuna de Paris, a elite não teve mais coragem de impedir o movimento social. O operariado então saiu das cavernas. Nasceu o sindicalismo revolucionário e anarquista. Não queria saber de mais férias ou mais alguns centavos no salário. Queria a revolução autogestionária imediata, as inúmeras e longas greves, mais que alguma concessão localizada, visavam preparar a mudança de regime. Logo a primeira Grande Guerra acabou com a esperança. E o classicismo foi trocado pelo modernismo. E, repito, a madeira e a pedra foram trocados pelo concreto e o ferro – no mesmo momento histórico!
AG: Como podemos fazer para formar os arquitetos e romper com essa lógica? SF: Voltar ao canteiro. Lógico, há que cuidar das dimensões plásticas e funcionais
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da arquitetura, mas a arquitetura deve ser construída! Se esquecermos isto, ficamos falando no ar e montado maquete de isopor. O que vai ser feito depois com o que
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está sendo construído não interessa na hora do canteiro. É preciso voltar ao canteiro – mas de forma nova. Você conhece o modelo da Usina4?
AG: Sim, eu já trabalhei na Usina por um tempo. SF: Bom. A Usina não começa pelo projeto, começa constituindo um coletivo, a
antecipação do corpo produtivo autônomo e auto-gerido que quer, precisa e espera a participação do arquiteto. Não se trata de construção ainda, mas de preparação, de definição de objetivos comuns, de procura dos meios de produção, etc. O projeto, dependente dos meios obtidos, também é determinado coletivamente e quando chega a hora do canteiro, continua ainda a prevalecer a mesma solidariedade. As etapas corriqueiras no andamento da produção da obra desaparecem na continuidade da autogestão permanente. É assim que a arquitetura deveria ser feita sempre que possível. Nosso primeiro e único ano da constituição da faculdade de Santos por nosso grupo, procedemos de modo parecido. Adotamos uma favela instalada na vizinhança como objeto de estudo e intervenção solidária. Propusemos nossa ajuda, discutimos com os habitantes o que fazer e como fazer. Todas as disciplinas do programa organizaram suas atividades em função desta colaboração. As generalidades próprias de cada disciplina eram apresentadas somente quando convocadas por necessidades concretas do trabalho com a favela. Alguns estudantes daquele ano tornaram-se madrinhas ou padrinhos das crianças de lá... Depois não sei o que aconteceu, nem se houve continuidade: metade dos professores foi presa no fim do ano. É um pouco o projeto do “Pedrinho”5 para a Escola da Cidade.
AG: E isso teve impacto na Faculdade de Grenoble que tem o Grands Ateliers... SF: Eu tive muita sorte quando cheguei em Grenoble. O movimento de 1968,
havia desmantelado o ensino de arquitetura. Até então vigorava ainda um modelo de ensino bastante próximo do aplicado pela academia no século XIX. O mesmo mote, desenho, desenho, desenho. Houve avanço, não se desenhava mais somente o
4 Usina Centro de Trabalhos para o Ambiente Habitado (Usina CTAH). 5 Aqui o professor se refere ao projeto pedagógico de Pedro Fiori Arantes como membro do conselho técnico da Escola da Cidade. Mais informações em: http://www.ct-escoladacidade.org/ct-editor-tag/pedro-fiori-arantes/.
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clássico ou os neos. Era permitido um desenho mais moderno. Mas o desenho quase autotélico imperava ainda. Depois, ele era julgado em Paris por um júri independente. Na França, a arquitetura é administrada pelo Ministério da Cultura, associada às Belas Artes e não pela Universidade. Um desastre. Em 1968, alunos e professores destruíram tudo, mas continuam sob a tutela deste Ministério até hoje. Talvez por isto, por falta de experiência universitária, ninguém tinha nada para pôr no lugar do destruido. Quando cheguei, não havia curso na escola, os professores ficavam andando nos corredores pra lá e pra cá. Alguns inventam alguma atividade pontual sem nenhuma coerência de conjunto. O diretor escreveu uma tese dizendo que era preciso fechar as escolas de arquitetura. Em terra de cego quem tem um olho é rei: eu trazia na minha mochila o Fórum de 68 na FAUUSP, a intervenção em Santos, a experiência de Brasília e a teoria da Arquitetura Nova. Estava cheio de coisas para propor e ajudei a escrever um programa. Com o tempo, ele foi desmantelado pelas reformas que cada novo ministro acreditava ter o dever de impor.
AG: Retomando um pouco às noções de utopia que o Rodrigo Lefèvre traz no
“Projeto de um acampamento de obras”, principalmente proposta de abordagem pelo Manheim da utopia como uma narrativa passível de realização no curso histórico, e entendendo que o senhor é um dos únicos da sua geração que ainda reivindica alguma dimensão utópica para a arquitetura, como o senhor acredita que um panorama utópico nos coloca um novo horizonte de atuação?
SF: A utopia quase sempre foi vista como algo irrealizável. Para o Rodrigo, o Manheim, e mais outros hoje em dia, a noção de utopia mudou. Para eles, a utopia ambiciona ser realizada. O que a Usina está fazendo senão abrindo espaço e implantando o que até pouco tempo seria ainda considerado como improvável utopia? Autogestão, trabalho com os mais que pobres, solidariedade, etc, tudo isso já é coisa concreta.
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Última observação. Enquanto os trabalhos do Marx estavam sob o controle da União Soviética, e dos partidos comunistas, boa parte de seus arquivos permaneceu oculta e não valorizada. Com a queda da União Soviética isto mudou. A obra de Marx está sendo revista mais uma vez. E Marx está ficando diferente de novo. Sabe-se que, nos seus últimos anos, ele parou de escrever O Capital. Ele só publicou em vida o livro 1. O livro 2, o 3 e as teorias da mais-valia ficaram em estado de anotações. Marx ocupouse então em verificar o campo de validade de seu esquema do processo histórico que conduziria ao advento da revolução. Foi procurado por uma moça russa (Vera Ivanovna Zasulich), que perguntou mais ou menos o seguinte: aqui na Rússia, com seu território gigantesco, há muitas comunidades agrícolas que ficaram praticamente isoladas. Em muitas delas, não existe propriedade privada. Como isso entraria no
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esquema? Teríamos que privatizar a terra, dividir em lotes, vender, transformar o povo numa massa atomizada de trabalhadores assalariados para depois, somente depois, tentar a revolução? Marx demorou a responder. Ele chegou a aprender russo, já velho, para poder ler sobre essas comunidades. Viajou para a Argélia para estudar certas comunidades cabílias. Finalmente escreveu uma curta carta para ela admitindo ser possível chegar à revolução por outros caminhos mas sempre observando o ponto de vista do proletariado, a classe realmente revolucionária, etc. Há outros percursos para revolucionar a atual sociedade – pelo menos até certo ponto. Não se trata de transição pacífica. Mas sim de aproveitar de cada fraqueza do sistema e ir ocupando o que ele abandona por arrogância, incapacidade ou de propósito. Em Buenos Aires, alguns moradores de rua reuniram-se com estudantes, arquitetos e trabalhadores. Iniciaram um processo semelhante ao da Usina. Ediane e eu visitamos a fábrica ocupada por eles e transformada em residências. Uma festa. Vindos da miséria e do abandono social, após anos de luta associados a estes jovens militantes, lembram agora Louise Michel ou Rosa Luxemburgo (as mulheres são maioria), cheios de dignidade, de força, de combatividade. Só falta receberem o título de propriedade. Mas o poder que os abandonou não quer de modo nenhum reconhecer a propriedade como coletiva; tem medo da coesão e da pugnacidade política da coletividade que formaram. A Usina conhece esse problema. Depois que o chantier collectif (canteiro de obras coletivo) termina, o jeito mais seguro para quebrar a extraordinária comunhão criada entre os participantes da luta comum é privatizar a propriedade. A grande tarefa atual é tentar manter viva após o término do canteiro esta comovente, revolucionária e rara comunhão Casos como este mostram a força revolucionária que pode ter o canteiro de obra reformado, solidário e auto-gerido. Uma sociedade nova está nascendo dentro da velha. Esta luta já é revolucionária, já é o amanhã hoje, a utopia brotando no real.
AG: Ainda com relação à pergunta anterior, a nossa busca por novos paradigmas
e o nosso recurso (ou resgate) a pessoas e referências de uma outra geração pode ser entendido como uma atitude contraditória, nessa perspectiva eu gostaria de questionar como o senhor acha que a poderíamos escapar dessa contradição?
SF: Não há contradição. Nossa vontade de mudar, de nos revoltarmos contra o
sistema opressor, tem evidentemente precedentes. Na Roma dos escravos, nas guerras dos camponeses do século XVI, na Comuna, em 68, etc. Cada luta dessas é, para nós, reserva de experiência, de saber e semente revolucionária - nosso patrimônio comum. É indispensável conhecer a história da resistência à exploração, do movimento operário, das batalhas do sindicalismo revolucionário, etc. Como é
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necessário examinar seus erros. Para constatar duas coisas: a reivindicação de vocês faz parte da longa tradição do ímpeto transformador abafado ininterruptamente pela sociedade da desigualdade e exploração. Por exemplo, a autogestão já era reclamada por Thomas Müntzer no século XVI durante as revoltas camponesas, continua ainda bandeira em 1848, em 1871, no fim do século XIX, em 68… e assim por diante. Todos estes precedentes nos impulsionam e nos alimentam. Não para copiá-los mas para examiná-los criticamente. Há parentesco com a atitude que devemos adotar a respeito da técnica construtiva. A que está em uso é uma salada de técnica construtiva razoável e de técnica de dominação. Mas não podemos desprezá-la e ficar à espera de duvidosas industrializações. Se acontecesse agora alguma mudança social importante, a técnica disponível seria a mesma, não haveria outra. Temos, portanto que analisála cuidadosamente desde já para isolar e excluir desta salada tudo o que provém da técnica de dominação e recompor a técnica realmente construtiva. Isto exigirá ainda muito empenho coletivo teórico e prático. A memória operária será fundamental neste momento, memória sem dúvida corroída por séculos de exploração mas ainda embrenhada em sua prática de algum modo obscuro. Não adianta sonhar. O erro embutido no velho conceito de utopia é confundi-la com fantasia sobre uma futura sociedade absolutamente nova e perfeita. Mas a utopia é sobretudo negação determinada da sociedade que a vê nascer. Ou seja, o que é posto na sociedade utópica, é o inverso do que queremos rejeitar na sociedade em que vivemos. Mas isto não basta. O que desejamos no futuro utópico, em certos casos já pode começar a ser efetivado nos bolsões da extrema pobreza, nas brechas da exclusão social que a atual sociedade não quer ou não pode preencher – do lado de fora. Ou, aqui, nos Gilets Jaunes des ronds-points (Coletes Amarelos). O antigo sindicalismo revolucionário deveria inspirar ainda os sindicatos contemporâneos para que voltem a lutar de verdade pela superação da condição operária, em vez de se acomodarem com a generalização do assalariamento.
AG: Para finalizar a entrevista, eu gostaria que o senhor comentasse um pouco sobre a contraposição entre o cenário global colocado em 1968 e o atual e como isso reflete em uma crescente apatia da juventude, em especial se isso também pode ser sentido na Europa - na França em especial - ou se é um fenômeno que tem mais força no Brasil. E mais ainda, o que se espera da gente? SF: Eu acho que o momento, como sempre, é momento de luta. O movimento
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dos Gilets Jaunes (Coletes Amarelos) foi muito bonito. Foi, ou melhor, é ainda um movimento da terceira idade, dos aposentados ou dos que estão em fim da carreira, dos esquecidos pela sociedade. Dos desesperançados que estão a caminho de uma situação ainda mais desesperante. A técnica do governo Macron é semelhante à de Thatcher, deixar as greves e os movimentos sociais apodrecerem. O movimento dos Gilets Jaunes já durou mais que qualquer outro na história recente da França, apesar
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da repressão feroz, responsável por mortes e graves ferimentos. Atualmente o movimento sindical está voltando aos pouquinhos. A reforma da aposentadoria, muito mal preparada e uma cilada para depois, tem mobilizado categorias que nunca antes participaram de greves ou manifestações: médicos, advogados, etc. Mas há que tomar cuidado porque a extrema direita, diante da falência dos partidos não revolucionários da esquerda, está ocupando terreno. Eu acho possível que Marine Le Pen ganhe a próxima eleição presidencial na França. Ela está fortíssima. Corre o boato que Macron não se reapresentará pois teria por missão implantar de qualquer modo estas reformas encomendadas pelo grande capital financeiro que o criou e apoia. Seria depois regiamente compensado pelo “sacrifício”. Vários presidentes ou primeiros ministros da Europa são de extrema direita. E você sabe como andam as coisas no Brasil e na América Latina.
AG: É semelhante com o que aconteceu em julho de 2013 no Brasil, que foi o berço dos movimentos de direita principalmente de juventude SF: Esquecemos que o Mussolini começou socialista. Virar a casaca é muito comum
no mundo da política burguesa. Tomem cuidado com a direita, mas não deixem de lutar não. A Usina, por exemplo, já está “construindo” (no duplo sentido do termo) a transformação social, na trilha dos lutadores que os precederam.
AG: Muita coisa para pensar! Muito obrigado, professor. Foi muito bom!
Entrevista realizada dia 16 de janeiro de 2020, via Skype. 27
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Ceilândia, DF. Foto: Luiz F. K. Fogo.
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São Carlos, SP. Foto: Luiz F. K. Fogo.
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Fotomontagem: Sofia Fortunato R. da Costa
ana luiza gonรงalves
“No trabalho do arquiteto, o básico de sua atividade é criar um novo conjunto de condições (físicas) que provocarão modificações nos fenômenos específicos abordados e que transformarão a ocorrência futura desses fenômenos específicos, isto é, o fundamental do trabalho desse outro é fazer invenções.” Rodrigo Brotero Lefèvre, Projeto de um canteiro de obras: uma utopia, 1981.
A Utopia As noções de utopia encontram-se em disputa e a definição a se adotar quando se pauta uma utopia não pode ser ignorada. Como fez Lefèvre em sua dissertação de mestrado - a partir da noção apresentada por Mannheim em “Ideologia e Utopia” (1929) - pautamos aqui uma utopia, mas uma utopia passível de ser construída no curso histórico. Uma utopia real, tangível e palpável. Uma utopia que é, acima de tudo, um horizonte claro pelo qual lutar. “A utopia é isto: seres e imagens sem objetos, ou melhor, aquilo que não existe, mas sem o qual não conseguiríamos viver como humanos nem lutar contra as trevas da realidade social e política.” (Adauto Novaes, 2015). A utopia, que pode ser lida como lugar de felicidade ou como não-lugar, é sempre uma forte crítica a realidade presente. A utopia é um constante recriar, uma constante reavaliação e atualização das demandas sociais e políticas para o agora e para o futuro. No Brasil, as manifestações de junho de 2013 tiveram um efeito desestruturante para a esquerda. Além de terem sido o berço de movimentos de direita conservadora e extrema direita - como o Movimento Brasil Livre, por exemplo - e de terem criado heróis, ídolos (ou mitos) políticos direta ou indiretamente -, 2013 fez com que a direita ocupasse um espaço que historicamente teve um protagonismo de esquerda: as ruas. Depois de 2013, a direita passou a ocupar os espaços públicos de disputa política, passou a se organizar socialmente de forma mais clara, a defender e propagandear seus programas políticos, usando em massa as redes sociais como ferramenta. Em entrevista à POSTO681, Guilherme Wisnik diz que: “até hoje, quem se apropriou desses novos meios de comunicação de forma massiva é a direita, por várias razões, até porque as redes sociais favorecem opiniões fundamentalistas e também porque digamos que a direita tem menos pudor em produzir mentiras escancaradamente. Em jogar, em operar num universo inteiramente da mentira, chamado de pósverdade.”
1 Entrevista disponível na íntegra na revista POSTO68, n.0, março 2020.
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O Agora Depois de 2013, a direita conservadora e a extrema direita brasileira passaram a ter as bases e as ferramentas, mais do que nunca, para colocar em prática um projeto político para o Brasil que começou mais abertamente com o impeachment da presidente Dilma Rousseff. O fim da era PT e a consolidação acelerada de um projeto liberal conservador, somado à perda do espaço das ruas, fez com que a esquerda brasileira se paralisasse. E assim estamos, sem ação, discutindo as eleições de 2022, como se algo fosse milagrosamente mudar sem que alguma atitude seja tomada no momento presente2. Novos quadros devem ser criados até 2022 e não podemos ficar parados vendo toda nossa estrutura pública ser desmontada ao longo desses quatros anos de governo Bolsonaro. Como asseverou a jornalista e escritora Eliane Brum: “Enquanto ele é ao mesmo tempo situação e oposição, não sabemos qual é a reforma que a oposição real propõe para o lugar desta que foi levada ao Congresso. Não há crítica real nem projeto alternativo com ressonância no debate público. E, se não há, é preciso perceber que, então, não há oposição de fato.”3 Um horizonte de disputa precisa ser construído, nem que seja a partir dos destroços do que um dia foi o Brasil. Um horizonte de memória do que foi e do que de mais ambicioso já aspiramos. A resposta a momentos de estruturação progressista sempre é extremamente conservadora. Então é a hora de responder com transformações sociopolíticas ou sociais, acesso aos direitos, redução da desigualdade social reformas sociais e de base, reestruturação das formas de produção, avanços significativos na questão ambiental - a esse combo maligno de liberalismo econômico e conservadorismo de costumes. Temos certeza de que o velho mito, vinculado ao ideário liberal, de que a democracia e o liberalismo econômico andam de mãos dadas, há muito foi destruído. Não se pode perder de vista que, como afirma Naomi Klein, em “A doutrina do Choque”4, o neoliberalismo nasce e se consolida das formas políticas mais brutais, tem em seu berço ditaduras, golpes de Estado e choques econômicos.
2 Aqui vale a dica do podcast “Fogo no Parquim” #002 - Exterminadores do presente. 3 BRUM, Eliane. Cem dias sob o domínio dos perversos, El País, São Paulo: 2019.
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4 KLEIN, Naomi. A Doutrina do Choque: A ascensão do capitalismo do desastre, Editora Nova Fronteira,Rio de Janeiro: 2008.
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É preciso criar uma utopia onde a liberdade possa se conjugar com a igualdade, onde a liberdade não seja um privilégio. É por esse horizonte que devemos lutar: por uma utopia que busque a emancipação de homens e mulheres, uma emancipação que vá além das reivindicações particulares, pautadas em cada indivíduo. O horizonte de emancipação se contrapõe assim necessariamente a todas as formas de exploração. “É preciso estar atento e forte”5 para não se deixar contaminar pelo discurso individualista do capitalismo. O empoderamento do indivíduo, que se satisfaz a si, sem uma visão de conjunto da sociedade, acaba por se revestir de um caráter mercantil que alimenta o capitalismo, assim como outras pautas – a redução do consumo de carne, a questão do lixo, o ódio ao canudinho plástico que mascaram o problema real da dominação e da exploração. Liberdade e emancipação só são possíveis no âmbito coletivo. Um homem ou uma mulher só se emancipam se todos os homens e mulheres compartilharem da mesma condição.
O Caminho Não temos respostas. As respostas são de difícil elaboração. Sabemos que a arquitetura e o urbanismo não conseguem resolver o problema por si só. São necessárias reformas estruturais na profissão para que exista de fato um novo panorama de atuação que consiga fugir da lógica da produção da arquitetura autoral para as classes mais altas. Mas a formação do arquiteto e urbanista tem um papel central na consolidação desses novos paradigmas de atuação. A arquitetura deve ter como função central o desejo de criar, de inventar um novo espaço, novas relações de sociabilidade, incluídas aquelas presentes na produção das edificações, e novas formas de se relacionar com a cidade e o ambiente. A arquitetura precisa abraçar seu papel de criação, buscando democratizar sua produção, fazendo com que toda a população possa ter acesso a uma cidade que hoje se configura como utopia possível. Arquitetura e Urbanismo deverão se propor a derrubar os muros visíveis e invisíveis dos espaços de exclusão e dos condomínios fechados onde habita e caminhar com as próprias pernas para cima dos morros. Deve combater a exploração do canteiro de obras e democratizar o acesso aos saberes construtivos. Deve parar de se curvar à lógica imposta pelo sistema e desenhar nos papéis manteiga um novo sistema para compor - e não se submeter. Nós, arquitetos e urbanistas, não podemos mais nos refugiar no 5 “Divino Maravilhoso” , Caetano Veloso e Gilberto Gil (1968).
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confinamento dos nossos escritórios, onde construímos mais muros - os dos condomínios e cidades que insistem em excluir populações. Ao longo da história, em diferentes momentos e de diferentes formas, a arquitetura e urbanismo encabeçaram movimentos de resistência ou de construção de paradigmas. No período anterior a ditadura militar iniciada em 1964, havia um forte movimento que pautava a reforma urbana no Brasil, colocando as reivindicações relativas ao acesso e ao direito à cidade e reformas de base que melhorassem a qualidade de vida da população. Com a ditadura, todo esse movimento - que à época tinha o apoio do então presidente João Goulart - foi quase que deixado de lado pelas gerações seguintes, que parece ter ficado condenada a reagir aos ataques, a “correr atrás do prejuízo” causado pela Ditadura Militar, deixando de lado a luta por uma ampliação mais efetiva de direitos. Apenas, a partir dos anos 1980, sobretudo, no processo da elaboração da Constituição de 1988, os temas da função social da propriedade e da reforma urbana foram retomados, entretanto, mesmo nos governos do PT em âmbito nacional, não conheceram práticas mais efetivas na direção de sua concretização. Nossa revista traz como marco histórico os movimentos de 1968 - tratados em diversos momentos ao longo desta edição - como momento em que se acreditava em projeto político onde o povo detinha o poder. Um projeto de estudantes, de proletários. Um projeto progressista, de esquerda e global. É essa memória que queremos acesa. A memória do poder do povo em transformar a sociedade. Do poder do povo em construir a sociedade. De acordo com a filósofa Olgária Matos: “Trazendo consigo uma nova declaração dos direitos do homem, o Maio de 68 ampliou o espaço público – a cidade e as ruas voltam a pertencer a seus habitantes, com uma ocupação lúdica da cidade – espaço lúdico e público. O direito afirmase a céu aberto à distância das luzes mortiças dos corredores dos parlamentos. Nas ruas, as barricadas: “la barricade ferme la rue et ouvre la voie”6. “A rua vem a ser um agente social coletivo, lugar do exercício de uma democracia direta que faz vacilar a legitimidade do sufrágio universal, expressão da política oficial”7. É preciso sair às ruas. É preciso tomar as ruas. Ocupar as ruas de povo, de gente. É preciso que o arquiteto e urbanista entenda seu papel como promotor desse espaço e assuma a responsabilidade de lutar por fazê-lo. É 6 “As barricadas fecham as ruas, mas abrem a visão”, em tradução livre.
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7 MATOS, Olgária. Tardes de maio. Tempo Social, 10(2), 13-24. São Paulo: 1998.
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preciso militantes, ativistas, indignados. É preciso que as coisas mudem e logo, para que o mundo não se torne um filme de ficção científica apocalíptico onde os pobres sucumbem ao caos, às mudanças climáticas, ao fim dos recursos naturais enquanto a burguesia assiste de longe sem ser afetada.8 É preciso que encontremos novas formas de nos organizar como arquitetos, novos horizontes de atuação profissional - como, por exemplo, os coletivos de arquitetura e o arquiteto que presta serviços à sociedade, através do funcionalismo público, citados por Guilherme Wisnik em entrevista à POSTO68: “Começou a nascer a partir daí, portanto, já tem dez anos ou um pouco mais, uma série de movimentos que são coletivos de arquitetura, ou de arquitetos com artistas, que fazem por exemplo urbanismo tático e outras coisas, e que buscam diluir a ideia de autoria e trabalhar com a mão na massa no mundo real (...) eu vejo que muitas gerações mais novas não tem o desejo de abrir um escritório, como profissional liberal, de ter o seu próprio escritório e ficar esperando uma encomenda, que um dia vai chegar. Isso é, os horizontes podem ser outros, e justamente ligados ao engajamento na vida real, onde os problemas estão - nas periferias, na transformação urbana -, portanto, ao invés de uma posição passiva de profissional liberal esperando uma encomenda, uma posição muito mais ativa de identificação dos problemas e uma tentativa de engajamento, com menos ambição autoral, no sentido de uma atuação mais eficaz. Acho que esse é um horizonte bonito de se imaginar como perspectiva.” A utopia brasileira deve ser democrática e o caminho precisa ser traçado a partir das condições concretas nas quais estamos inseridos, sim, mas sem ter medo de imaginar o que podemos construir, imaginar o que pode ser o mundo, o que podemos fazer dele.
8 FERNANDES, Sabrina; VON HUNTY, Rita. “ANTI-CAP feat. Sabrina Fernandes (Tese Onze)”.
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O Despertar A eleição de Bolsonaro parece ter paralisado a todos. Parece que estamos em um estado de hipnose, onde tudo que pode ser feito é revidar nas redes sociais as barbaridades que são ditas tão displicentemente pelo presidente, seus filhos, seus ministros, sem que se tenha clareza de que essas são apenas balões de ensaio para um desmonte muito maior da democracia que é feito em paralelo. Os direitos sociais vão sendo destruídos sem que muita coisa seja feita a respeito. Vemos de forma inerte a cultura ser censurada, a previdência ser enxugada, as universidades sendo sucateadas. Começamos 2019 com a máxima de “ninguém solta a mão de ninguém”, mas se hoje as mãos estão dadas são para tremer de pavor em um canto escondido de nossas redes sociais. Poucas são as mãos dadas nas ruas. Poucas são as mãos dadas nos sindicatos. Poucas são as mãos dadas aos movimentos sociais. Poucas são as mãos dadas entre e no interior dos partidos de esquerda. Mas é preciso despertar da hipnose. E já. É preciso dar as mãos e montar as nossas barricadas, fazer a revolução pelas brechas do sistema, pelas bordas. Fazer a revolução pelo trabalho de base. Pelas discussões em sala de aula, pelos espaços de debate, pelas manifestações públicas e protestos. Precisamos encontrar formas de fazer arquitetura pelas brechas do sistema. Como fazem as assessorias técnicas. Como fazem os escritórios modelo dentro das universidades. Como fazem os coletivos de arquitetura. Como fazem os grupos de extensão, os pesquisadores, os militantes. Resistir é condição para que a democracia brasileira permaneça viva. É um pedido para que a pesquisa brasileira exista, para que as universidades públicas busquem se tornar mais populares e não reservadas e à elite — e acima de tudo que continuem funcionando e não sejam privatizadas —, é para que - independentemente de cor, orientação sexual, gênero, classe social ou religião – todas as pessoas possam viver, é para que a justiça seja cega e não se deixe levar por disputa de poder. É por direitos sociais. É para que o suposto crescimento econômico de hoje não custe os recursos naturais de amanhã, com a destruição da floresta mais importante do mundo. Mas resistir não basta. É preciso avançar.
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Se a história - como disse Sérgio Ferro em entrevista à POSTO68 - tende a apagar ou esconder de seu passado momentos em que a sociedade chega muito perto de grandes transformações políticas, que esse seja um desses momentos. Que agora seja o germe de uma grande mudança social, que
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derrube as lógicas de exploração, que tire das mãos da extrema direita o controle sobre o mundo. Que seja um momento de busca por um novo horizonte pelo qual lutar. Que seja um momento de construir uma utopia passível de se tornar realidade no curso histórico. E que esse não possa ser apagado pela história, pois irá reescrevê-la e mudar quem a escreve. Que esse seja um desses momentos… E se estudar é um ato revolucionário, então estudemos. Vamos nos lembrar do que as gerações passadas lutaram para que tivéssemos os direitos que temos hoje. Se a arte é revolucionária, criemos arte, sejamos arte. Lembremos daquilo que nos faz humanos. Vamos retomar nosso passado, aprender com erros e acerto, tomar controle sobre a nossa realidade. Lembrando Rosa Luxemburgo “Quem não se movimenta, não sente as correntes que te prendem”, então está na hora de levantar, sair às ruas, enfrentar quem tão brutalmente nos esmaga e silencia. O período da apatia, da inércia, do medo precisa acabar. Chegou o momento de definir nosso futuro. Vamos praticar a desobediência.9
9 BRUM, Eliane, Cem dias sob o domínio dos perversos, El País, São Paulo: 2019.
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História Pra Ninar Gente Grande Mangueira Samba-Enredo 2019 Mangueira, tira a poeira dos porões / Ô, abre alas pros teus heróis de barracões / Dos Brasis que se faz um país de Lecis, jamelões / São verde e rosa, as multidões /
Mangueira, tira a poeira dos porões / Ô, abre alas pros teus heróis de barracões / Dos Brasis que se faz um país de Lecis, jamelões / São verde e rosa, as multidões /
Mangueira, tira a poeira dos porões / Ô, abre alas pros teus heróis de barracões / Dos Brasis que se faz um país de Lecis, jamelões / São verde e rosa, as multidões /
Mangueira, tira a poeira dos porões / Ô, abre alas pros teus heróis de barracões / Dos Brasis que se faz um país de Lecis, jamelões / São verde e rosa, as multidões /
Brasil, meu nego / Deixa eu te contar / A história que a história não conta / O avesso do mesmo lugar / Na luta é que a gente se encontra /
Brasil, meu nego / Deixa eu te contar / A história que a história não conta / O avesso do mesmo lugar / Na luta é que a gente se encontra /
Brasil, meu dengo / A Mangueira chegou / Com versos que o livro apagou / Desde 1500 tem mais invasão do que descobrimento / Tem sangue retinto pisado / Atrás do herói emoldurado / Mulheres, tamoios, mulatos / Eu quero um país que não está no retrato /
Brasil, meu dengo / A Mangueira chegou / Com versos que o livro apagou / Desde 1500 tem mais invasão do que descobrimento / Tem sangue retinto pisado / Atrás do herói emoldurado / Mulheres, tamoios, mulatos / Eu quero um país que não está no retrato /
Brasil, o teu nome é Dandara / E a tua cara é de cariri / Não veio do céu / Nem das mãos de Isabel / A liberdade é um dragão no mar de Aracati /
Brasil, o teu nome é Dandara / E a tua cara é de cariri / Não veio do céu / Nem das mãos de Isabel / A liberdade é um dragão no mar de Aracati /
Salve os caboclos de julho / Quem foi de aço nos anos de chumbo / Brasil, chegou a vez / De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês /
Salve os caboclos de julho / Quem foi de aço nos anos de chumbo / Brasil, chegou a vez / De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês /
Composição: Danilo Firmino / Deivid Domênico / Mamá / Márcio Bola / Ronie Oliveira / Tomaz Miranda
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a queda do muro
Bandeira da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira em homenagem à vereadora Marielle Franco. Foto: Carl de Souza. Edição: Luiz F. K. Fogo.
Em 14 de março de 2020 completa-se 2 anos do assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes. 731 dias sem resposta. 731 dias sem que ninguém fosse responsabilizado. Marielle era mulher negra, lésbica, periférica, socióloga, vereadora (PSOL) e militante por direitos sociais. Marielle presente. 39
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Foto: Ana Ottoni
. entrevista com guilherme wisnik
Guilherme Wisnik é professor na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, do Departamento de História da Arquitetura e Estética do Projeto. É membro da APCA - Associação Paulista de Críticos de Arte. Foi o Curador Geral da 10a. Bienal de Arquitetura de São Paulo (Instituto de Arquitetos do Brasil, 2013).
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Felipe Leme: Nossa revista teve como “partido” (ou ponto de partida) um profundo sentimento de revolta contra a atual conjuntura política e uma série de questionamentos a cerca das produções artística e arquitetônica contemporâneas. Em nossas discussões, os cinquenta anos de Maio de 1968 ressurgiu como marco importante para a retomada de um horizonte utópico. “POSTO68” contempla, portanto, esta ideia de um marco (“posto”) histórico a ser retomado e também rediscutido para construirmos novos propostas e possibilidades. Fazemos referência também ao nosso “Postão”, cujo equivalente paulistano seria o “Salão Caramelo”. Se não estiver enganado, você fez sua graduação em arquitetura e urbanismo na FAU-USP nos anos 1990, ou seja, no período imediato a redemocratização no país, assim imagino que os debates presentes na esquerda que se fortalecia em sindicatos e partidos na época também faziam parte do movimento estudantil. Nesse sentido, gostaria que você comentasse sobre o impacto ou o significado de Maio de 68 - em termos políticos e culturais - sobre a sua geração. Guilherme Wisnik: Vou tentar pensar o Maio de 68 ao longo da conversa,
primeiro vou explicar um pouco aquele momento. Entrei na FAU-USP em 1991, portanto estava no colegial em 1988, 1989 e 1990. Cursei o colegial no Colégio Equipe, que foi fundado em 1968, agora recentemente fez cinquenta anos e fui chamado para uma série de debates. O Equipe tinha sido um lugar de muita mobilização política durante a ditadura e a gente, quando estudava lá nos anos 90, sentia que era como se tivesse no momento histórico errado, porque o legal tinha sido naquela época onde tinha muita mobilização, shows estudantis e proximidade forte entre movimentos estudantis e movimentos políticos, e na nossa época nada acontecia, era uma nostalgia de um tempo que a gente não viveu. E depois agora, olhando para trás, eu vejo que nós estávamos estudando lá exatamente quando caiu o Muro de Berlim e enquanto tinha a primeira eleição para presidente do Brasil depois de mais de 20 anos. Então, na verdade, era um momento muito importante da história do mundo, da história do Brasil, mas a gente não percebia exatamente. E acho que isso muitas vezes acontece. A gente fica idealizando outros momentos da história e não percebe o quanto o que a gente tá vivendo mesmo é muito importante. Então, por exemplo, o que nós estamos vivendo agora, enquanto vocês são estudantes, certamente vai ser lembrado no futuro como um momento fundamental. Talvez não para bem. Mas de qualquer forma, pensei muito nisso agora quando começou esse momento tão ruim na nossa história. Lembrando a canção do Caetano e do Gil, “É preciso estar atento e forte. Não temos tempo de temer a morte”, que é a canção “Divino Maravilhoso”, de 68, é de alguma maneira agora retomada, as coisas fizeram com que a gente tenha que viver um período que de alguma forma parece com a repressão da ditadura, que a gente idealiza tanto como sendo um momento fértil. Talvez a gente possa tentar imaginar que alguma coisa positiva vá nascer disso no sentido de uma coesão maior, de um enfrentamento, onde a criação e a arte ganham um papel importante.
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Quando eu entrei na faculdade, no começo dos anos 90, era esse mundo em transformação, eu não tinha tanta consciência na época, mas era já o mundo onde Eric Hobsbawm termina o século 20, em “O breve século 20”1, ele termina em 1991, com a dissolução da União Soviética, logo depois da queda do Muro de Berlim. Então estava começando um novo mundo que é esse que tento discutir no livro “Dentro do Nevoeiro”. Eu encontrei uma FAU em que existia todo um debate sobre o moderno e o pós-moderno, era o fim de uma época onde o pós-modernismo tentou de certa maneira criar uma crítica ao moderno. No Brasil isso foi incipiente, mas o ambiente que existia na FAU era de ódio à isso, era de tentativa de manutenção ou de resgate da nossa herança moderna, sobretudo paulista, e contra essa razão capitalista e de mau gosto que era o pós modernismo. O grupo que fundou a Revista Caramelo - eu sou a segunda geração da Caramelo - fundou depois o escritório UNA, mas não só eles participaram da revista, tinha também a Marina Grinover, a Catherine Otondo - do Base Urbana (e que estão fazendo o projeto de São Carlos) -, a Ana Paula Pontes, e nem todos eles como grupo, estavam ligados ao Álvaro Puntoni, que era mais velho e já tinha se formado. Todos pensavam dessa maneira: que o exemplo era o Vilanova Artigas e o Paulo Mendes da Rocha, e que é essa a linha que deveríamos seguir. Em 1993, teve uma grande exposição do Peter Eisenman, no MASP2, e ele fez uma palestra na FAU, e eu me lembro que alguns professores faziam piquete na porta do auditório pras pessoas não entrarem na palestra (risos). Então ainda tinha, naquele momento, o fim de uma disputa entre moderno e pós-moderno que deve ter sido intensa nos anos 80, mas que ali estava terminando. O curioso é que, do ponto de vista dos movimentos estudantis na USP, eu não me lembro de haver uma grande politização. Talvez isso tivesse mais presente na FFLCH, nas faculdades de humanas, mas não era uma coisa que aparecia pra mim. A minha graduação foi mais alienada, nesse sentido, eu fui mais ligado a fazer o próprio curso, a fazer a Caramelo, a trabalhar no escritório do Paulo Mendes da Rocha e a fazer cenografias no Teatro Oficina. O Teatro Oficina reabriu depois de 20 anos, em 1993, com a peça Hamlet. Como meu pai tocava nas peças e eu era estudante da FAU, o Zé Celso me chamou e eu e alguns amigos fizemos a iluminação de Hamlet e depois o cenário de Bacantes. No escritório do Paulo, a gente era estagiário, estávamos fazendo o projeto da Bienal de Arte, em 1996. Então foi a oportunidade de fazer muitas coisas legais enquanto a gente estudava e se formava. Acho que pra mim, Maio de 68 não era tão claro ainda naquele momento. Era uma coisa que eu conhecia, mas foi um assunto que foi aparecendo depois. Acho que isso devia estar mais presente na formação de pessoas que estavam seguindo política urbana ou que na FAU seguiam pelo caminho do planejamento urbano. Na época que estudei, nem o Nabil Bonduki e nem a Raquel Rolnik eram professores, a Ermínia Maricato era. 1 Livro “Era dos Extremos. O breve século XX: 1914-1991”.
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2 A exposição “Malhas, Escalas, Rastros e Dobras na Obra de Peter Eisenman” realizada no MASP em 1993.
guilherme wisnik
Mas hoje, essa coisa que existe, que tem também a Paula Freire Santoro, o João Sette Whitaker Ferreira, que trabalham em torno, que fundaram o LabHab3, que tem o tema da habitação social e do direito à cidade, não era tão presente na formação que eu tive naquele momento. Maio de 68, o Situacionismo, essa conexão entre Henri Lefebvre e Guy Debord, uma visão de cidade, como em “O jogo da amarelinha”, de Julio Cortázar, um livro em que um casal de namorados em Paris tem como acordo a impossibilidade de marcar encontros, só podendo se encontrar por acaso, assim ficam se procurando pela cidade. Tudo isso eu fui descobrir muito depois, então não posso dizer que tenha sido uma presença nos anos 90, na minha graduação, foi mais uma descoberta posterior.
FL: Você poderia comentar sobre a Revista Caramelo (FAU-USP), que foi produzida
nos anos 1990, abordando um pouco da sua experiência pessoal na revista, além das propostas, posicionamentos, abordagens e principais discussões presentes nela? Qual foi a repercussão que a revista causou na FAU naquele momento?
GW: Quando entrei em 1991, já existia a revista e eles fizeram um chamamento
de artigos para o número 3. Fiquei instigado por aquilo, era um aluno do primeiro ano, tive uma ideia de um texto meio maluco que comentava coisas que aconteciam na FAU, mas de uma forma supostamente verdadeira, mas era tudo inventado, eu citava um monte de autores inventados, naquela época não existia o Google (risos), e publicaram. Meu primeiro texto publicado e está na revista número 3 da Caramelo, tudo com autores falsos. Depois me procuraram e acabamos ficando amigos. Acabei me incorporando ao grupo da revista no número seguinte, pro número 4. Fizemos ainda o 4 e o 5 e, a partir do 7, nossa geração assumiu e fizemos a 7 e a 8, e outras pessoas foram entrando também. Primeiro eu acho que tinha nos primeiros números uma preocupação de atualização da discussão da arquitetura dentro da FAU. Trazia uma entrevista com o Marcos Acayaba, que foi importante, pois tinha acabada de ser inaugurada a casa do Hélio Olga, tanto as estruturas de madeira da ITA, quanto a arquitetura do Acayaba, eram interessantes, porque de alguma forma os jovens arquitetos estudantes estavam buscando novas referências para uma arquitetura que fosse ainda moderna, mas que não dependesse apenas do concreto armado. Essas obras foram as primeiras que mostraram um possível novo caminho. Então a Caramelo tinha uma vontade de atualização do debate arquitetônico. Fizeram uma entrevista com o Paulo Mendes da Rocha, que naquela altura estava começando a aparecer com a importância que ele tem hoje - o Paulo, durante os anos 1970 e 1980, talvez tenha perdido um pouco a importância, era visto como “aquele
3 Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos (LabHAb), FAUUSP.
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professor, já é um cara ultrapassado” -, éramos um grupo que buscava resgatar esse tipo de experiência, de modelo. A essa altura, o Paulo havia ganho o concurso do MuBE, mas não estava construído, então ainda não tinha as obras que fizeram ele se destacar. Acho que quando a nossa geração entrou junto, a Caramelo já tinha uma vontade de ser uma revista experimental graficamente, fazia concurso para capa, o que mobilizava muito a faculdade, tinha muita adesão. Como a FAU possuía uma gráfica, fazíamos a revista lá dentro, naquela época era tudo fotolito, composição à mão, foi um aprendizado muito legal. Acho que a minha geração ampliou essa vontade experimental, de usar papéis diferentes. Vendo hoje é interessante porque, do grupo de gente que fazia aquilo tinha várias das pessoas que são hoje arquitetos, como o pessoal do UNA, Base Urbana, depois do meu grupo tinha eu e o Martin Corullon, o Rodrigo Cerviño que fundamos o Metro Arquitetos. Além do André Stolarski que foi um dos designers gráficos mais importantes da nossa geração, também a Mariana Fix e o Renato Cymbalista. É engraçado porque num certo momento é todo mundo um monte de estudante junto e passa um tempo e você vê o que as pessoas fizeram. E não é por acaso, no fundo era um grupo interessado em atuar em arquitetura e que encontrou na Caramelo um modo de experimentar. Certamente a revista ajudou a gente a desenvolver cada um, um caminho.
FL: Partindo da sua experiência hoje como professor e em um contexto de desmontes e ataques à universidade pública, como você enxerga os desafios impostos pela atual conjuntura política brasileira sobre o ensino de arquitetura e urbanismo? Como os cursos poderiam - e deveriam - trazer esses de debates para a sala de aula? GW: A situação é tão grave que ela impõe desafios muito maiores do que arquitetura
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e urbanismo. Impõe desafios sobre o sequestro da cidadania, da noção de público, do ensino público como um todo. E não só o Brasil, é um momento no mundo em que a democracia está sendo sequestrada e hackeada - já viram o documentário “Privacidade Hackeada”? sobre o escândalo de vazamentos de dados pelo Facebook e das manipulações nas eleições do Brexit e do Donald Trump. A democracia em todo mundo está em risco, em xeque, a própria noção de público, e isso vai ter que ser enfrentado. Não vejo ainda de que modo será possível enfrentar isso. O problema é que o nosso mundo se estruturou desde sempre acreditando na esfera pública como o lugar do teste da verdade e da mentira. Isto é, por mais que houvesse manipulação e corrupção, de alguma maneira a exposição pública dos fatos era capaz de derrubar corruptos ou fazer com que as forças democráticas se rearranjassem no sentido de uma resiliência. E hoje, as informações chegam às pessoas de uma maneira avassaladora por caminhos não públicos, como o Whatsapp. Então quando você é bombardeado por informações que não são filtradas por nenhuma instituição pública, dizendo aqui público num sentido mais amplo, como uma revista, que é
guilherme wisnik
exposta à opinião pública. Se um órgão de televisão ou de imprensa mentir muito - pelo menos é assim que a gente pensava até alguns anos atrás -, ela vai cair em descrédito, então o jornalismo tem que ter algum compromisso com a verdade. E hoje, as opiniões são geradas muito por informações que chegam sem nenhum filtro do jornalismo ou da imprensa e o Whatsapp é só uma ferramenta, não é um órgão de informação, portanto não tem como cair em descrédito. Não dá pra dizer que o Whatsapp mentiu. Com isso, os mecanismos de aferição das coisas, que eram a esfera pública, se desarticularam. E as pessoas são todas convencidas por esses meios que não passam mais pelo filtro da esfera pública, e esse é o problema que vai ter que ser reinventado. E hoje, quem se apropriou desses novos meios de comunicação de forma massiva é a direita, por várias razões, até porque as redes sociais favorecem opiniões fundamentalistas e também porque digamos que a direita tem menos pudor em produzir mentiras escancaradamente, em jogar, em operar num universo inteiramente da mentira, chamado de pós-verdade. Essa é uma observação mais ampla. Agora sobre arquitetura e urbanismo, acho que isso é extremamente grave para nós no sentido que o urbanismo é a esfera pública, mais do que a arquitetura. No caso da arquitetura, não sei se faz tanta diferença, mas na reflexão sobre a cidade é que isso é grave. Porque nós somos os profissionais que temos que lidar com o acesso democrático ao espaço. Por outro lado, não sendo tão catastrofista, justamente no momento em que eu estudei nos anos 1990, estava começando a internet e os sistemas de entrega Delivery. Muita gente dizia que a cidade ia morrer, que ia acabar o espaço público, que ia deixar de ter sentido como lugar de encontro, que tudo ia acontecer de forma virtual, que as pessoas iam viver dentro de suas cápsulas e a cidade seria quase como um espaço residual em que você se desloca eventualmente. Isso, imagina, me causava grande depressão em pensar que uma coisa que eu estava estudando não ia servir mais, o urbanismo por exemplo. E não foi nada disso que aconteceu. Era uma previsão equivocada porque ao contrário, a internet acabou de alguma forma intensificando o uso da cidade, no sentido que as pessoas foram mais paras as ruas, marcam encontros, e se aglomeram. Então isso que eu disse, não sendo tão catastrofista, tem aspectos que foram extremamente positivos na constituição desse nosso mundo recente e, portanto, a praça não deixou de ser um lugar importante como esfera pública. Pelo menos até agora isso não aconteceu, pode ser que agora estejamos nós nesse momento, com o Uber e com o Rappi, esses novos mecanismos de precarização e terceirização. De qualquer maneira, com essa guinada à direita, os grandes inimigos dessas forças são os artistas e os intelectuais, os jornalistas também e nós, sobretudo os arquitetos e os urbanistas, somos quem zela por uma ideia de bem coletivo. Então, para além da afronta ao ensino público e todas as perdas que temos e teremos, o risco no próprio conteúdo do ensino, se essas forças forem ganhando espaço, é o declínio da ideia de espaço público como centro da ideia de cidade. Isso em nome de um discurso que certamente pode ser o da Smart City, da “cidade eficience”, da “cidade negócio”. A lógica do lucro e da
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eficácia que avalia a universidade, os rankings de eficiência que medem a quantidade de publicação, tudo isso, se a gente traduzir pra cidade, dá na Smart City, e não na cidade dos Situacionistas, dos Dadaístas, da deriva, de você se perder, de ter uma “não eficácia”. Uma cidade que já está toda construída, codificada, é uma cidade aprisionada. Discuto isso um pouco no capítulo 4 de “Dentro do Nevoeiro”4, sobre a Potsdamer Platz em Berlim. Então essa guinada à direita que a gente vive tem rebatimentos desse tipo.
FL: Retomando uma ideia importante de Walter Benjamin, presente em “A obra de
arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, enquanto o fascismo opera estetizando a política, em resposta, deveríamos politizar a arte. Nessa mesma perspectiva, no livro “1968: O ano que não terminou”, Zuenir Ventura nos coloca que “Uma simples arqueologia dos fatos pode dar a impressão de que esta é uma geração falida (de 68), pois ambicionou uma revolução total e não conseguiu mais do que uma revolução cultural. Arriscando a vida pela política, ela não sabia, porém, que estava sendo salva historicamente pela ética. O conteúdo moral é a melhor herança que a geração de 68 poderia deixar para um país cada vez mais governado pela falta de memória e pela ausência de ética”. E muitos foram os movimentos culturais da época, como o Cinema Novo, o Tropicalismo, o Teatro Oficina, entre outros. O Zé Celso, por exemplo, entendia que uma “platéia morta e adormecida” só reagiria se o teatro fosse “agressivo”. A partir disso, como você enxerga as repercussões dessa “revolução cultural” nas manifestações artísticas de hoje?
GW: Está bem colocado o problema. Pois vejam que justo os tropicalistas, que eram
atacados pelos estudantes e pela uma ala de esquerda dentro das artes, supostamente eles eram “alienados”, estavam à favor da guitarra elétrica, e portanto do imperialismo. Eles que foram presos e exilados, e não os outros. A Elis Regina ficou aqui, o Chico Buarque se exilou porque quis, o Geraldo Vandré não foi exilado. Isso quer dizer que talvez a revolução comportamental foi mais profunda do que a revolução “só política”, das ideias. Você mexe de maneira mais profunda, incomoda mais. O que eu falava no início, que muita gente da minha geração sentia uma nostalgia de não ter vivido nos anos 60, tinha a ver com isso, de perceber que há uma certa contradição em que você participa de um momento histórico que é positivo, que é a reabertura democrática, e contraditoriamente, do ponto de vista cultural, isso se rebate numa produção mais fraca ou mais morna. Que justamente muitas vezes a arte depende de uma reação à alguma coisa, à uma violência. Quanto mais violência nos é imposta, mais chance talvez a arte tenha de reagir de forma contundente, como aconteceu em
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4 “Dentro do nevoeiro: arte, arquitetura e tecnologia contemporâneas” (Ubu, 2018), do prof. Guilherme Wisnik.
guilherme wisnik
68. O Oficina soube ler isso de uma maneira muito inteligente. Gosto de lembrar do cenário da Lina Bo Bardi em “Na Selva das Cidades”, que aconteceu em 1968-1969. A primeira participação da Lina no Oficina foi com esse cenário. Em 68 o Oficina tinha feito “Roda Viva”5, os atores foram espancados e alguns foram presos. Tinha uma contraposição muito forte do discurso da peça em relação ao momento político. Depois disso eles resolveram ensaiar uma peça “não política”, escolheram “Na Selva das Cidade”, do Bertold Brecht, uma história trivial que se passava em Chicago, entre dois industriais. A peça era uma luta simbólica entre os dois personagens, mas a Lina e o Zé Celso interpretaram essa luta de forma literal e o cenário era um ringue de boxe, em que os dois personagens lutavam e iam destruindo esse cenário ao longo da peça, iam destruindo o próprio teatro. Nessa época, em 1969, estava sendo construindo o “Minhocão”, a grande obra do Paulo Maluf, e para construí-lo imagina quantos quarteirões foram demolidos, e casas, e toda essa demolição estava acumulada na forma de escombros nas ruas. A Lina pegou todo esse material de demolição e usou para construir o cenário. Os atores destruíam aquilo tudo durante a peça e não era um problema, porque tinha muito mais na rua pra pegar de novo (risos). Então era fantástico, porque era uma “destruição sacrificial”, a cidade destruída que é levada para dentro do teatro e aquilo é destruído pelos atores. Então é como se fosse uma encenação violenta do mesmo processo que estava acontecendo ali em volta. Quando depois eu li o “Tudo que é sólido se desmancha no ar”, do Marshall Berman, no último capítulo que é sobre Nova York, ele fala de Robert Moses e como ele destruiu o bairro do Bronx. É a mesma ideia, o rodoviarismo como uma tragédia do desenvolvimento. A Lina entendeu isso de uma maneira muito forte, trouxe essa violência da cidade para dentro do teatro, ela e o Zé Celso transformaram isso em questão cênica. Interessante é que foi tão radical a destruição que faziam que, depois disso, o Zé Celso começou a achar que o teatro tinha mesmo que ser demolido, por várias razões. Estava mudando a concepção cênica do Zé Celso, ele não queria mais o teatro do protagonista, o “teatro do palco italiano”, ele queria o teatro do coro, sem protagonista, portanto um teatro que o palco fosse uma espécie de sambódromo, uma pista, uma caixa cênica. E aí que nasceu a ideia do Teatro Oficina tal como ele é hoje, portanto, nasceu da destruição que acontecia e que tinha a ver com a cidade destruída. Estou lembrando disso por causa da pergunta de vocês, que tem a ver com essa ideia da teatralização da violência. Eu não vejo nada parecido hoje em dia, mas talvez vá nascer agora, diante do tamanho da violência que a gente está vivendo no mundo e no Brasil. Acho que o contexto está começando a pedir de todos nós coisas assim. Então, talvez a gente tenha sorte de que não ficaremos mais nostálgico dos tempos que passaram, a gente vai ser chamado a fazer coisas no mundo real.
5 Peça de teatro escrita por Chico Buarque, em 1967.
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FL: Você colocaria o filme “Bacurau” em consonância à essas ideias, pela necessidade de uma arte mais “agressiva”? GW: Bem lembrado, faz sentido. E acho que “O Parasita”, que é o Bacurau coreano, também. São manifestações nessa direção, claro que tem muita gente pensando assim e tentando formular respostas.
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No entanto, na arquitetura, o que eu vejo é que depois da crise de 2008, a crise financeira que já tem dez anos, é como se tivesse se esgotado um certo momento do capitalismo muito de uma especulação sem fim e que fazia se esgotar junto com ele uma certa arquitetura, uma arquitetura do Star System, de gastos muito excessivos, muito formalista, de obras de joalheria, de marca; trazendo para a arquitetura uma nova politização que pede uma outra posição das pessoas em relação à prática da arquitetura. Começou a nascer a partir daí, portanto já tem dez anos ou um pouco mais, uma série de movimentos que são coletivos de arquitetura, ou de arquitetos com artistas, que fazem por exemplo urbanismo tático e outras coisas, e que buscam diluir a ideia de autoria e trabalhar com a mão na massa “no mundo real”. Isso é, da mesma maneira como muita gente de gerações um pouco mais novas não têm o desejo de ter um carro, ou seja, os valores burgueses que eram tidos como se fossem naturais, vejo que muitas gerações mais novas não têm o desejo de abrir um escritório, como profissional liberal, de ter o seu próprio escritório e ficar esperando uma encomenda, que vai chegar. Isso é, os horizontes podem ser outros, e justamente ligados ao engajamento na vida real, onde os problemas estão - nas periferias, na transformação urbana -, portanto ao invés de uma posição passiva de profissional liberal esperando uma encomenda, uma posição muito mais ativa de identificação dos problemas e uma tentativa de engajamento, com menos ambição autoral, no sentido de uma atuação mais eficaz. Acho que esse é um horizonte bonito de se imaginar como perspectiva. Agora, é estranho que a gente não tenha, por exemplo para quem é médico existe o médico sanitarista que pode ser contratado pelo governo e sair atendendo pelo interior do Brasil, porque você presta um serviço social, as pessoas precisam de médico. As pessoas também precisam de arquitetos urbanistas, mas essa ideia não existe, que você possa prestar um serviço social sendo urbanista ou arquiteto e que isso fosse remunerado e entendido socialmente como um desejo. O Alexandre Delijaicov é uma pessoa que defende o lugar público do arquiteto, o arquiteto funcionário público, que é diferente do que eu estava falando agora em relação aos coletivos, ele é o modelo antigo, como o Hélio Duarte fazia construindo as escolas do convênio escolar, que faz também uma crítica dessa arquitetura muito formalista e autoral, em nome da arquitetura como serviço. Como a ideia do arquiteto funcionário público nunca foi devidamente valorizada, acho que o desafio é esse, que a nossa sociedade possa entender que uma profissão de arquiteto e urbanista é necessária socialmente no sentido de que ela não é frescura.
guilherme wisnik
Infelizmente, arquitetura é vista quase sempre como uma frescura que você vai contratar para tornar o projeto mais caro, e, pelo contrário, o arquiteto é uma das poucas figuras entre as várias profissões que existem que tem um conhecimento que articula várias áreas, tem um raciocínio sistêmico. Infelizmente esse é um valor que a gente não conseguiu comunicar bem ainda, para que as pessoas entendam a função disso. Então um desafio que nós temos é esse, como mostrar que esse raciocínio é fundamental. Por exemplo, quando o Fernando de Mello Franco com o MMBB ganhou a Bienal de Roterdã de arquitetura com um projeto chamado “Vazios de Água”, isso foi antes dele ser secretário do Fernando Haddad (PT). Era um concurso de soluções para problemas emergentes de grandes cidades, e a proposta que ele fez e acabou ganhando o primeiro prêmio foi essa de projetos para os “piscinões” de São Paulo. Ele sabia que para os próximos anos estava previsto que a prefeitura iria gastar muito dinheiro com novos piscinões - que é feito para conter enchentes. Só que o problema é que você constrói um piscinão, com um objetivo técnico que tem uma função na macrometrópole, mas geram um estorvo na escala local. Então, uma coisa que é resolvida pontualmente, numa escala, é um problema noutra escala. O projeto que ele fez foi articular o piscinão, que era da Secretaria de Águas, com a Secretaria do Verde, de parques, com a de Habitação, e fazer disso um sistema integrado de várias secretarias, para transformar os piscinões em parques lineares, em lugares abertos, etc, etc. Ele fez sentar na mesma mesa secretários que nunca sentam juntos. Enfim, isso acabou ganhando prêmios e sendo muito valorizado, e por causa disso ele foi chamado para ser Secretário de Desenvolvimento Urbano da cidade de São Paulo, e teve uma atuação muito interessante. Então para mim esse é um exemplo interessante desse papel articulador da ideia do arquiteto que é mais urbanista. Depois, na secretaria, fez várias coisas legais também, uma delas, foi um plano chamado “Ligue os Pontos”, que nasceu como um projeto para conter o espraiamento da mancha urbana de São Paulo, na borda da cidade, que foi tentar conter a invasão das áreas de florestas e mananciais através da agricultura urbana, fazendo um incentivo para a produção familiar de orgânicos. Criaram um programa para incentivar, incluíram maquinário e capacitação. Uma vez feito isso, se tornava sustentável porque, como a prefeitura tem muitas escolas da rede pública, ela comprava toda essa produção e faziam a merenda das escolas. Por isso que chama “Ligue os Pontos”, porque é um projeto que articula várias das escalas e secretarias, consegue barrar o crescimento da mancha urbana, manter preservada essas áreas, e desenvolve, dá um caminho produtivo para uma série de famílias que não tinham trabalho, alimenta bem as crianças - que está ligado ao armazenamento de alimentos e transporte. Então é um projeto bastante complexo que foi implementado. São ações exemplares que são importantes de lembrar no sentido de fortalecer isso que eu estou defendendo como a ideia do arquiteto-urbanista, como articulador de várias escalas. Quer dizer, não é só o Bacurau (risos). 49
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FL: Em meio ao “nevoeiro”6, é possível enxergar a presença de utopias ou de um
horizonte utópico na produção de arquitetura e urbanismo na contemporaneidade?
GW: Vou só falar primeiro para não me esquecer, mas o que eu quero defender aqui é a ideia de heterotopia e não de utopia. Mas, sobre o nevoeiro, não sei se vocês chegaram a ouvir um podcast da “Ilustríssima Conversa”, acho que ali foi interessante sobretudo uma pergunta que me fez pensar uma coisa. Muita gente acha ou imagina a partir do título do livro que o nevoeiro é apenas negativo, e não é. É dialético. Outro dia um amigo antropólogo me falou algo que achei uma boa definição, que “A fumaça é de direita, o nevoeiro é de esquerda” (risos). Que as queimadas da Amazônia, isso sim seria de direita. Mas o nevoeiro como fenômeno atmosférico, tal como Claude LéviStrauss relata dos mitos indígenas, é de esquerda, no sentido de que, nesses relatos muito poéticos da América, o nevoeiro é cosmogônico. O mundo nasce no nevoeiro e depois, quando o mundo já existe, e tá funcionando, de repente vem o nevoeiro e ninguém enxerga mais nada, e depois que ele se dissipa, tudo mudou de lugar - o chefe não é mais o chefe, o marido e a mulher não são mais os mesmos, os filhos trocaram. Então o nevoeiro tem esse papel conjuntivo e disjuntivo. Tudo isso pra dizer que tem um aspecto dialético que pra mim é importante. Mas é claro que ele está mais ligado a produção de confusão, a pós-verdade, a esse borramento da nitidez, e, portanto, a uma manipulação que no livro eu associo bem a esses eventos traumáticos como a Queda do Muro de Berlim e ao 11 de Setembro. Mas na entrevista desse podcast, apareceu essa questão que é a seguinte, o mundo até a Guerra Fria, até a Queda do Muro de Berlim, até o século XX, era um mundo bipolar, esse mundo de dois blocos, um contra o outro. Algo que também Byung-Chul Han analisa como patologias, que do ponto de vista médico era um mundo do medo pela contaminação pelo outro, a bactéria e o vírus, que você tinha que se isolar do outro, esse mundo dualizado, e o nosso mundo atual não é mais assim, portanto é o mundo onde você não sabe bem onde está o inimigo, ele pode ser de qualquer lugar, pode ser o terrorista que é o seu vizinho. Portanto, não tem mais muro que proteja, esse mundo é o do nevoeiro, isso é a constatação que apesar de todo mal que significa a construção desse mundo, aquele mundo da Guerra Fria era um mundo muito ignorante, muito fácil, em que você declara quem é o inimigo. De alguma forma, o mundo do nevoeiro é uma superação daquele estado. Então a questão é que nós temos a chance de fazer um mundo mais complexo. E o que eu acho é que fenômenos como o Donald Trump e Jair Bolsonaro são reações ao que há de complexidade positiva nesse mundo, eles tentam restaurar o mundo dual, eles não aguentam o mundo do nevoeiro, eles precisam do inimigo claro, precisam restaurar de maneira regressiva o mundo que passou, e isso volta de maneira muito pior. Então, ficou claro para mim naquela conversa, achei muito boa 50
6 Fazemos referência ao livro “Dentro do nevoeiro: arte, arquitetura e tecnologia contemporâneas” (Ubu, 2018).
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essa ideia de que a gente tente reforçar o lado positivo que há no nevoeiro e devemos construir a complexidade que ele nos permite, e não ceder a essa tentação regressiva. Então essa é uma parte da pergunta, a outra é a da utopia. A palavra utopia vem de “U-topos”, que é o não lugar, no sentido da negação do existente para criação de uma outra coisa que seria virtuosa. A ideia da utopia tem um lado muito perverso na verdade, que é o que os pós modernos criticaram com razão, que o moderno é muito utópico desse ponto de vista, ele faz tábula rasa do existente, o mundo que existe está todo errado, então a gente passa o trator e faz tudo de novo, da maneira como deve ser. E essa é a crítica mais importante do pós modernismo, isso é o que tem de fundamental na visão deles, que é não a utopia nesse sentido. Temos que aprender com o existente, daí o título “Aprendendo com Las Vegas”7. Então, o que existe é capaz de nos ensinar, por alguma razão, por alguma via. O problema é quando isso acaba virando tautológico, como no caso do “Aprendendo com Las Vegas”, em que se instaura esse olhar antropológico que dá valor ao que existe, porque o outro não tem voz. Esse olhar pós-moderno dá valor ao existente, o problema é “Por que que aquilo é bom? Porque aquilo existe”, isso se retroalimenta e vira conformismo. Já a utopia tem todo um lado que é buscar um mundo mais libertário, mais igualitário, criticando tudo que há de mal no existente. A heterotopia, tal como Michel Foucault define, é essa síntese. Porque heterotopia são os “lugares outros”, portanto é uma espécie de dobra do existente, é um outro que se manifesta a partir do que existe, aquilo que é possível dentro do real, não a negação. E acho que na verdade a maioria dos movimentos, mesmo dos anos 1960, eles são heterotópicos, e não utópicos. E não é à toa, porque o Foucault tava naquele momento em Paris, é essa a ideia. A ideia de um possível que nasce do que existe. Agora, que não pode ter constrangimento de desejar o impossível, porque o impossível pode ser baliza para o que possa ser. Tem um verso do Caetano Veloso que gosto que diz assim “Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso. (E, sem dúvida, sobretudo o verso). É o que pode lançar mundos no mundo”8, isso é, o verso pode lançar mundos no mundo, o mundo é feito de muitos mundos, esse mundo que a gente tá aqui agora não é um só, tem muitas camadas em cima dele e essas camadas são potências, são imaginações que podem ser fertilizadas. Então juntando as duas partes da pergunta, essa complexidade do nevoeiro tem que nos fazer ver coisas que estão aí mas que a gente não está vendo.
FL: Você acha que a sua última fala se aproxima das ideias presentes no texto “O que
é o contemporâneo?”, de Giorgio Agamben, em que ser contemporâneo é olhar para o nosso tempo “para nele não perceber as luzes, mas o escuro”?
7 Livro “Aprendendo com Las Vegas”, de Robert Venturi, Denise Scott Brown e Steven Izenour. 8 Música “Livros”, de Caetano Veloso.
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GW: Isso mesmo. É um pouco abstrato, não é? É muito bonita essa ideia do
Agamben. Acho que a principal inspiração que ele nos dá é essa, de deslocar o lugar do contemporâneo. Ele diz que o contemporâneo não é aquele que está inteiramente aderido ao seu momento. A pessoa que pensa que está vivendo seu tempo presente da maneira mais plena possível, não é exatamente contemporânea tal como ele define. O contemporâneo seria aquele capaz de ter uma atuação mais eficaz, de revolucionar. Quer dizer, você só vai conseguir transformar se você não estiver totalmente aderido, se você conseguir olhar com uma certa distância. Você tem que estar engajado, mas ao mesmo tempo ser capaz de estranhar. E aí essa escuridão, essa sombra, é metaforicamente o modo como isso se mostra.
E isso tem a ver com muita coisa. O próprio teatro brechtiano (Bertold Brecht), opera sempre a partir desse estranhamento. Ele cria uma cena, os atores desempenham certos papéis, são personagens, depois num certo momento tem um corte e os atores trocam de personagem. Isso faz o público perceber que o ator é o ator, evita que público mergulhe de maneira ilusória na narrativa, como a pessoa que assiste à uma novela acreditando que é ela ali representada Todo o objetivo do teatro brechtiano é quebrar isso. Mostrar sempre que tudo é uma cena, uma construção, um teatro social em que você é o espectador, mas que também pode participar. Então por que eu lembrei disso, apesar de não ter muito a ver com o Agamben? É a questão da distância, quando você não está inteiramente aderido, você faz algo mas de repente recua e mostra o artifício.
FL: Em Agosto de 2019, em nossa V SEMANAU (Semana Acadêmica de Arquitetura
e Urbanismo), foi realizada uma “roda de conversa” com o professor Pedro Fiori Arantes (UNIFESP). Frente aos acontecimentos políticos no Brasil e no Mundo, ele optou por “subverter” o que inicialmente seria uma palestra - sobre formas de resistência no campo da arte -, abrindo ao diálogo com os alunos presentes e propondo um “exercício de imaginação”. Assim, ao invés de nos mostrar “exemplos”, nos instigou à própria ação de buscar e criar novas formas e possibilidades. Você poderia comentar sobre a necessidade e a urgência de fazermos coletivamente esse “exercício de imaginação”, tanto no campo da arte e arquitetura como no da política, por exemplo?
GW: Primeiro eu gostaria de saber que coisas que nasceram desse exercício, por exemplo. FL: Penso que essa conversa trouxe uma compreensão maior do que estava
acontecendo, da nossa atual conjuntura. Foi um momento importante para “ligar alguns pontos”, para refletir sobre o cenário que vinha sendo construído desde o período eleitoral, em 2018, até as mais recentes medidas tomadas pelo governo Bolsonaro. A partir disso, conseguimos entender que estamos num outro momento, e que precisamos de novas respostas e novas formas de agir e manifestar. 52
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Manifestação do 15M em São Carlos. Foto: Estefane Trindade
GW: É uma pergunta bem difícil de responder. Ela é bem legal, mas difícil. Coloca coisas complicadas.
Antes de tentar responder, já que vocês falaram do Pedro Arantes, eu achei ótimo, porque se conecta com as primeiras perguntas que você me fez lá da época da FAU. O Pedro é meu contemporâneo, uns dois anos mais novo que eu. Ele não chegou a participar da Caramelo, mas estava muito presente lá. Nós nos tornamos amigos e acho que fomos muito importantes um para o outro no nosso período de formação, na graduação e até depois. Sobretudo porque a gente tem uma base parecida, somos filhos de professores da FFLCH, da própria USP. Mas ele totalmente Sérgio Ferro, e eu, Paulo Mendes da Rocha. Então a gente se provocava muito (risos). Éramos discípulos de lados opostos. Mas foi muito legal, pelo menos posso dizer por mim. Sempre admirei muito ele. Como disse ali, sobre os Situacionista e Maio de 68, que fui pensar neles depois, foi muito através do Pedro. Vou tentar fazer um juízo sobre a sua pergunta e ao mesmo tempo contar um pouco o meu percurso nessa história. Em 2013 eu fiz a curadoria-geral da Bienal de Arquitetura9. Naquela época foi a décima edição e as últimas Bienais tinham sido muito ruins, a Bienal de Arquitetura estava em crise, até poderia acabar. A nona e oitava edição tiveram uma repercussão baixa e pouco público. De fato, as mostras eram muito fracas, muito voltadas para arquitetos, muito específicas. O nosso desafio era como pensar em algo que fizesse sentido no mundo de hoje. Eu poderia falar horas sobre isso, mas vou tentar resumir. As ideias principais foram fazer uma exposição não sobre arquitetura e sim sobre cidade; a cidade como modos de fazer e modos de usar, assim não só a cidade do desenho, mas a cidade do uso e para isso, incluía 9 10ª Bienal de Arquitetura de São Paulo: “Cidade: Modos de Fazer, Modos de Usar”. Curadoria em parceria com Ligia Nobre e Ana Luiza Nobre.
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Manifestação do 15M em São Carlos. Foto: Estefane Trindade
projetos e também ações que aconteciam em espaços públicos; e as exposições, em stricto sensu, não estariam no Pavilhão da Bienal ou na Oca, como isso sempre aconteceu, e sim em lugares acessíveis por transporte público, principalmente metrô, e vários, em rede. Foi muito interessante, acho que foi bem-sucedida e até mudou o paradigma da Bienal. Isso se deu em 2013, exatamente em paralelo a tudo que estava acontecendo nas ruas do Brasil, e isso foi incrível, a cidade estava pautando a questão da mobilidade, a questão do espaço público e do ativismo. Teve uma convergência muito grande com a realização da Bienal.
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Quando tudo isso aconteceu até então, o que eu tinha feito? Eu tinha escrito um livro sobre o Lucio Costa, eu escrevia críticas na Folha de São Paulo, eu tinha feito os textos do livro do Paulo Mendes da Rocha, eu era um crítico de arquitetura. E a partir desse momento entrou todo um universo da cidade e do ativismo que antes não estava presente, isso mudou completamente a minha forma de atuação e depois de pesquisa. E ampliou muito, ficou muito mais interessante. A partir de então eu também passei a ser chamado para falar sobre cidade e todos esses temas ligados ao ativismo, que é um entusiasmo com a conquista do espaço público no Brasil, que tem ficado muito estranho no tempo recente diante de toda regressão que a gente está vivendo. O conteúdo que tinha naquela Bienal expressava humor e otimismo, mas que otimismo era esse? O fato que de repente a população brasileira acordou para a ideia que nós queremos espaço público. Porque a ideia de espaço público não é uma ideia que possa se dizer que faz parte da história das cidades no Brasil. Tudo bem, se você for para o Rio de Janeiro tem o calçadão de Copacabana na praia, que talvez seja o maior paradigma do espaço público bem-sucedido, do encontro de classes. Mas nas nossas cidades a maioria dos espaços públicos que elas têm ou tiveram um dia foram sendo gradeados e suprimidos para a passagem de viadutos e avenidas. Um pouco antes de 2013, ou da onda das primaveras pelo mundo e dos movimentos de Occupy, começaram a aparecer muitos movimentos em nosso país querendo espaço público.
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O Parque Augusta foi um dos sintomas disso, mas tinham muitos outros: a defesa ou demolição do Minhocão, o movimento Baixa Augusta que estava logo antes disso, eles organizaram vários festivais, contratavam shows, banheiros químicos, toda uma ativação...essas festas, a Mamba Negra por exemplo, que começaram a acontecer em lugares em ruínas, ou até a festa no Buraco da Minhoca, no túnel embaixo da Roosevelt. Tudo isso são fenômenos ou coisas que não existiam até 2009. São coisas de 2010 para frente, e o Movimento Ocupe Estelita é o mais importante de todos, que aconteceu no Recife, contra especulação imobiliária, defendendo a ideia de espaço público. De uma hora para outra a gente viu que no Brasil se multiplicaram movimentos a favor do espaço público. Até muito recentemente o que que a gente via é que as pessoas não estavam incomodadas pela ausência de espaço público, as pessoas moravam em condomínios fechados e iam para o shopping de carro, acabou. Por exemplo, em junho de 2013 quando aconteceu aquela megamanifestação de gente a pé na Ponte Estaiada, na Marginal Pinheiros, era uma coisa linda, tanta gente a pé na Ponte Estaiada, não era possível. Isso veio junto com o Carnaval de Rua, a Virada Cultural e a Parada Gay... são todos fenômenos de ocupação da rua muito recentes que foram solidificando essa ideia de que agora a gente quer espaço público. Quando aconteceu a Bienal de 2013, ela era a expressão desse espírito do tempo, dessa reivindicação, dessa defesa. Fazendo uma crítica que acho necessária, quando acabou a Ditadura Militar, os movimentos sociais que existiam no Brasil eram em grande maioria ligados à habitação social, logo depois surgiram os movimentos como MST, MTST, uma politização muito forte em nome da questão da habitação, mas não do transporte. Junho de 2013 foi um “susto” por que a pauta do transporte não era colocada de maneira importante. Os movimentos sociais que surgiam no fim da ditadura, que se fortaleceram junto com o Partido dos Trabalhadores (PT) e que construíram a nossa democracia de alguma maneira, davam a ideia de que quando o PT chegasse ao poder, no governo federal, tudo aquilo iria construir o mundo que era desejado, sobretudo iria acontecer a reforma urbana. O governo Lula criou o Ministério das Cidades, portanto houve uma esperança muito grande de que tinha chegado a hora de toda aquela agenda urbanística e habitacional ligada aos movimentos. Não sei se o Pedro (Arantes) falou disso, mas ele participou muito disso como discípulo da Ermínia (Maricato), ela viveu isso. A verdade é que o Ministério das Cidades nunca fez nada do que era esperado, logo depois ele foi para a mão dos partidos de direita que faziam a coligação com o governo Lula. Acabou virando um ministério fantoche, e a grande política urbana do governo do PT foi o “Minha Casa, Minha Vida”, que é um desastre do ponto de vista urbano. Então o que aconteceu, é como se toda aquela a articulação de movimentos sociais ligadas a um pensamento de cidade que nasceu e amadureceu, quando ela chegou ao seu apogeu, foi uma frustração gigantesca. Então os intelectuais do urbanismo do PT sofreram muito com isso, os movimentos sociais foram cortados, muitos acabaram cooptados pelas lógicas das grandes empreiteiras que fazem o “Minha casa, minha vida”, e se desmobilizaram politicamente. Do lado dos intelectuais do urbanismo ligados ao PT há uma frustração gigante com isso, como uma espécie de “tiro no pé” dos horizontes que tinham sido formulados. De alguma forma é como se essa frustração tivesse no ar, de alguma maneira se percebe. Quando a gente precisa explicar por que de repente tiveram tantos movimentos querendo espaço público, ninguém sabe dizer bem, tem as primaveras, tem os Occupy, mas o acho no fundo tem essa frustração. Como os meios políticos de fazer isso não aconteceram. Na ressaca disso, é como
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se a população mesma dissesse: “Se não vai ser por meio da política, vai ser por meio individual, da auto-organização”, como se a sociedade civil resolvesse fazer a cidade com as próprias mãos. Um pouco essa ideia que eu acho que veio na ressaca de tudo que não aconteceu nos governos Lula e Dilma do ponto de vista urbano. E aí surgiram movimentos que começaram a batalhar por espaço público, transporte, tudo isso. O que é bonito de 2013 da pauta do transporte é que o transporte não é só transporte, ele é também direito à cidade. Transporte não é só para ir e voltar do trabalho todos os dias, caso você more na periferia e queira ir num parque no final de semana, você precisa de um transporte barato se não você não vem. Então essa ideia do transporte é uma ideia de direito a cidade. Então, de alguma forma o que acho que explica a explosão desses movimentos que batalham pelo espaço público são os movimentos de “Primavera” e Occupy pelo mundo, o surgimento dos carnavais de rua, da Virada Cultural e da Parada LGBT, e essa frustração com a reforma urbana que não veio por meio da política. Se você juntar tudo isso, criou uma transformação muito positiva na sociedade, e aquele cara que antes tava confortável de morar no condomínio, andar de carro e ir pro shopping, começou a dizer que queria parque. Eu estava contando que com a Bienal de 2013 era um pouco isso que a gente discutiu e é isso o que eu passei a estudar e a falar em muitas ocasiões, só que nos anos recentes começou a ficar muito estranho para mim falar sobre isso transmitindo uma visão otimista sobre essas coisas em um cenário que claramente é o contrário que está acontecendo. O desafio é pensar. Durante algum tempo eu fiquei pensando “Será que é um azar histórico que a gente tenha tido um avanço na sociedade e uma regressão política? É uma coincidência que é um azar histórico? Ou tem alguma relação?”. É óbvio que não é um azar histórico, mas o desafio ainda é pensar essa relação. Uma das questões evidentes é que todo esse movimento de exacerbação da direita, que é muito moralista, está ligado a uma reação a essas (nossas) conquistas. Essas conquistas das diferenças, das minorias nas ruas, incomodaram e incomodam muito. Então no fundo, temos um momento de disputa muito forte. Essas conquistas que a gente viveu recentemente geraram uma reação gigantesca que está ganhando politicamente, e a gente está no meio dessa batalha. O nosso desafio é continuar a batalha.
Entrevista realizada dia 16 de janeiro de 2020, em São Paulo. 56
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Divino Maravilhoso Caetano Veloso e Gilberto Gil, 1968 Atenção ao dobrar uma esquina/ Uma alegria, atenção menina/ Você vem, quantos anos você tem?/ Atenção, precisa ter olhos firmes/ Pra este sol, para esta escuridão/ Atenção/ Tudo é perigoso/ Tudo é divino maravilhoso/ Atenção para o refrão/ É preciso estar atento e forte/ Não temos tempo de temer a morte (2x)/ Atenção para a estrofe e pro refrão/ Pro palavrão, para a palavra de ordem/ Atenção para o samba exaltação/ Atenção/ Tudo é perigoso/ Tudo é divino maravilhoso/ Atenção para o refrão/ É preciso estar atento e forte/ Não temos tempo de temer a morte (2x)/ Atenção para as janelas no alto/ Atenção ao pisar o asfalto, o mangue/ Atenção para o sangue sobre o chão/ Atenção/ Tudo é perigoso/ Tudo é divino maravilhoso/ Atenção para o refrão/ É preciso estar atento e forte/
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. o brasil em tempos interessantes adriano caro florio felipe leme
Uma semana após a abertura da 58ª Bienal de Arte de Veneza, a mostra do Pavilhão da Venezuela não estava concluída. Passando em frente ao edifício moderno era impossível não reparar em uma atmosfera bastante conturbada. Pessoas conversando com um sotaque muito familiar, ferramentas funcionando, metais se chocando. Quando fui percebido ali parado e olhando tudo aquilo, fui convidado a entrar pelo curador da exposição, Oscar Meneses. Ele estava em meio à conversas com os artistas que finalizavam as obras, ao telefone e respondia a qualquer um que parasse e perguntasse a ele alguma informação sobre o por quê da exposição estar daquela forma. Quase como uma alegoria do nosso momento atual, o Pavilhão Venezuelano estava em construção. Em construção pelos artistas, pelo curador, por quem quer que passasse por lá e fosse convidado a entrar e a construir aquele espaço. O edifício projetado em 1956 por Carlo Scarpa, um dos arquitetos italianos mais emblemáticos do século XX, fica localizado entre os pavilhões Russo, Sueco e Dinamarquês. Uma proximidade aos países europeus que reafirma grandes contradições, principalmente sob a perspectiva de uma realidade política bastante conturbada tanto na Venezuela, como na maioria dos países latino-americanos. Levando-me a conhecer os espaços do pavilhão, explicou como os bloqueios econômicos dos Estados Unidos e a reação da ala conservadora do país atrasaram a abertura da mostra na Bienal. A direita venezuelana, opositora ao governo de Nicolás Maduro, divulgou que o país não participaria daquela edição. Em meio a um insano jogo geopolítico que envolve os grandes bancos europeus*, o país se viu impossibilitado de adquirir recursos que seriam destinados à cultura, como no caso da Bienal de Veneza. Mas a resposta foi justamente participar e denunciar, por meio das obras, reafirmando a postura anti-imperialista. 58
As obras levadas para a mostra retratam o país por meio de uma “Metáfora das três janelas” - título da exposição. Descritas como “três criadores, identidade diversificada e casa aberta, a fronteira que liga os espaços, troca luz, ar e olhar”. Os artistas buscaram discutir temas como a herança cultural, a migração e a extração de petróleo. O ambiente estava imerso por uma luz vermelha através de uma película colocada em todos os vidros do pavilhão. Ali, ainda em montagem, pelo próprio artista, os estandartes com retratos de pessoas e animais que “habitam” a região petrolífera, obra de Ricardo García. Ao lado, a imagem de um rosto de uma criança aos prantos que se transforma no de Donald Trump, quando visto através de um filtro azul, do artista Nelson Rangelosky. E na parte externa do pavilhão, na entrada, uma grade servia de suporte para a obra de Natalie Rocha, compondo objetos de pano que se assemelham à raízes e corações, feitos por mulheres venezuelanas e vendidos como souvenirs turísticos. A obra de outro artista participante, Gabriel López, não estava nem com indícios de que seria montada. Havia apenas um projetor de vídeo no chão a dois metros de distância de uma parede, exibindo um vídeo embaçado. Enquanto os artistas montavam a exposição, também conversavam com as pessoas que se interessavam pelo o que estava ocorrendo ali, explicavam a situação, discutiam sobre. Muitas pessoas, é claro, olhavam com certo estranhamento e distanciamento, muito provavelmente por conta das posições políticas ou do (des)entendimento dos fatos que não coincidiam com o que era debatido ali. No dia 19 de maio de 2019, dois dias depois dessa visita, todas as obras estavam montadas. ***
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Montagem do Pavilhão da Venezuela na 58ª Bienal de Veneza. Foto: Adriano Caro Florio.
A intenção desse relato não é de modo algum transformá-lo em uma metáfora para mostrar um país que não está pronto ou em processo de montagem. Não. Mas trazer à luz alguns questionamentos. “May You Live In Interesting Times” foi a escolha do curador Paul Rugoff para ser o tema da 58ª Bienal de Arte de Veneza de 20191. Trata-se de uma expressão que remete à uma antiga maldição chinesa aprendida por um diplomata britânico na Ásia e que foi proferida pelo deputado britânico Austen Chamberlain, nos anos 1930, para observar que realmente estávamos em tempos interessantes, passando de uma crise à outra, sofrendo distúrbios e choques um após o outro2. Por fim, verificou-se que nunca existiu tal maldição chinesa antiga, mas ainda sim ela permaneceu por anos e anos nos discursos de todos para retratar um momento difícil, ou para ilustrar e justificar mais uma crise. São tempos interessantes, de avanços tecnológicos, crises humanitárias, disputas de poder. Mas também vivemos tempos diferentes dos demais.
* RODRIGUES, Fania. Ministro relata luta da Venezuela para levar sua arte à Bienal de Veneza, na Itália. Brasil de Fato, 2019. Por meio de entrevista o Ministro da Cultura da Venezuela, Ernesto Villegas explicou a situação com os bancos europeus: “A questão é que a Venezuela dispõe do dinheiro em bancos europeus, porém esses bancos não permitem que o utilizemos. Porque o bloqueio não diferencia o dinheiro destinado a compra de remédios e alimentos ou recursos destinados a participação do país em um evento de arte.” 1 A Bienal de Veneza, inaugurada em 1895 é considerada a primeira mostra artística de caráter internacional e um marco na história da arte por ter iniciado uma tradição das artes ao longo do século XX. Atravessando dois séculos esse foi e continua sendo um dos principais locais para a revisão da arte, suas novas linguagens, seus movimentos e suas necessidades de mudança.
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2 RUGOFF, Ralph. Press-release para a 58ª Bienal de Arte de Veneza. 2019.
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De acordo com o projeto curatorial, o tema “reflete os aspectos precários da existência hoje, incluindo diferentes ameaças às principais tradições, instituições e relacionamentos da “ordem do pós guerra’”3. Diversos foram os pavilhões que buscaram levar para esse local tais assuntos, mas fica bastante claro as especificidades de cada pavilhão e país. Dando certa atenção aos pavilhões latino americanos, as principais discussões buscavam abordar a violência contra à mulher, a degradação do meioambiente, as “fronteiras comuns”, a cultura popular contemporânea em relação à tradição, o antimperialismo e a descolonização. No Pavilhão Brasileiro, o filme Swinguerra (2019), de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca, levanta discussões intrinsecamente ligadas com o momento político vivido no Brasil. As personagens principais são mulheres negras e trans, desse modo a população marginalizada por sua raça, gênero e classe social é colocada no centro do debate. O vídeo traz referências do mundo LGBTQIA+, pop e um resgate - ou reinvenção - de uma cultura popular brasileira. Tal ideia está presente na própria palavra Swinguerra, sendo uma composição entre “Swingueira” (competição de dança típica de Recife) e guerra. Trata-se de um lugar de disputa - disputa de narrativas, disputa de ideias. Afinal, também “vivemos tempos interessantes” no Brasil. A exploração de petróleo venezuelano, retratada pelo artista Ricardo García, traz como correspondente os desastres ocorridos na costa brasileira em 2019. O debate em torno da descolonização revela a necessidade de ouvirmos os povos indígenas, de aprender com eles no combate às 3 Idem.
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perversas queimadas na Amazônia4 e ao genocídio de seu próprio povo. As cidades se mostram como palco de enormes chacinas contra mulheres, negros e LGBTQIA+. A história e a política, o passado colonial e o tempo presente, trazem aproximações que são visíveis nas produções artísticas latino-americanas. No Brasil, a cultura vem sendo frontalmente atacada desde o golpe político contra a presidenta Dilma Rousseff. Em 2016, o governo de Michel Temer extinguiu o Ministério da Cultura por um curto período, numa tentativa de reformas ministeriais. O tema foi levado aos palanques eleitorais de 2018, fazendo parte de um intenso - e despreparado - debate político. Já no primeiro mês do mandato de Jair Bolsonaro, o Ministério da Cultura foi novamente extinto e suas atribuições foram incorporadas ao Ministério da Cidadania. Em novembro de 2019, tornou-se uma Secretaria Especial da Cultura, pertencente ao Ministério do Turismo. De forma menos “institucionalizada”, o conservadorismo do atual governo se esforça para deslegitimar e desmoralizar as produções artísticas nacionais, seja por meio das mais absurdas “fake news”, seja produzindo e reproduzindo discursos de ódio nas redes sociais. A Lei Rouanet5, sancionada em dezembro de 1991, tem como objetivo fomentar a cultura no Brasil por meio de programas e fundos destinados a produções e projetos artísticos. Na tentativa de deslegitimar a lei, questionam-se os critérios de seleção e a relevância dos projetos a serem aprovados. Ademais, critica-se a necessidade de investir em cultura, tendo como “argumento” a possibilidade das verbas serem destinadas para outros setores, como a saúde e a educação. Atualmente, tramita no Senado Federal o Projeto de Lei nº 23/2014 que institui o Programa Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura proposto pelo governo Lula com o objetivo de atualizar e modernizar a Lei Rouanet. Contudo, a Lei continua em vigor. Contraditoriamente, em dezembro de 2019, a Secretaria Especial de Cultura, do governo Bolsonaro, anunciou o aumento do teto para “teatros musicais” de R$ 1 milhão para R$ 10 milhões. Enquanto o Teatro Oficina vende seus próprios tijolos6, os grandes musicais de estilo “Broadway” continuam recebendo investimentos e gerando lucros “espetaculares”, 4 BRUM, Eliane. Amazônia Centro do Mundo. El País Brasil, 2019. 5 Nome dado à Lei Federal de Incentivo à Cultura (nº 8.313 de 23 de dezembro de 1991) em homenagem ao ex-secretário de cultura Sérgio Paulo Rouanet.
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6 O Teatro Oficina, na ausência de patrocinadores e após a queda de uma árvore, pôs à venda 150 tijolos originais de um dos muros do edifício para arrecadar fundos.
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perpetuando espaços culturais cada vez mais elitizados7. Um campo tão fértil e privilegiado como o da arte é também onde são feitos os principais ataques por parte dos governos conservadores. Em tempos de censura8, as produções artísticas podem ser consideradas superficiais ou perigosas, podem ser puro entretenimento ou uma ferramenta de emancipação. É pelo campo da arte que se transforma nossa imaginação política coletiva, é através da arte que a cultura se movimenta e é levada a lugares antes não alcançados9. “Imoral é a fome, pornográfica é a distribuição de renda no Brasil, inaceitáveis são os privilégios de alguns poucos que querem impor pontos de vistas que se opõem ao livre-arbítrio. É proibido proibir, clamavam os muros de Paris em 1968.” (Kfouri, p. 39)10. No governo Bolsonaro, tornaram-se “corriqueiros” e “previsíveis” tanto as censuras direcionadas à Agência Nacional do Cinema (ANCINE), quanto ataques pessoais - como no episódio em que o então diretor do Centro de Artes Cênicas da Funarte, Roberto Alvim, atacou diretamente Fernanda Montenegro por conta de um editorial feito à revista Quatro Cinco Um11 no qual a atriz posou caracterizada como uma bruxa pronta para ser queimada em uma fogueira de livros. Alvim gerou simpatia do governo Bolsonaro, resultando em sua nomeação como Secretário Especial de Cultura. Como a segunda vez se repete como farsa12, na posição de secretário, Roberto Alvim publicou um infeliz vídeo divulgado no início deste 7 RONCOLATO, Murilo. Lei Rouanet: os acertos e os erros do incentivo à cultura no Brasil. Jornal Nexo, 2016. Segundo reportagem os principais incentivadores de recursos da Lei Rouanet são grandes instituições financeiras e como captadores grandes produtoras e instituições culturais. 8 GORTÁZAR, Naiara. São Paulo estreia festival com obras censuradas no Brasil de Bolsonaro. El País Brasil, 2020. 9 SEROUSSI, Benjamin. O que faz a arte?. In: NATALE, Edson; OLIVIERI, Cris (Org.). Direito, Arte e Liberdade. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2018, p. 22-31. 10 KFOURI, Juca. Censura e Liberdade. In: NATALE, Edson; OLIVIERI, Cris (Org.). Direito, Arte e Liberdade. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2018, p. 38-40. 11 Fernanda Montenegro interpreta três bruxas em ensaio para a Quatro Cinco Um. Quatro Cinco Um, 2019. 12 MARX, Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte (1852). São Paulo: Boitempo, 2011. “Em alguma passagem de suas obras, Hegel comenta que todos os grandes fatos e todos os grandes personagens da história mundial são encenados, por assim dizer, duas vezes. Ele se esqueceu de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”.
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ano13, ressuscitando versos do ministro da propaganda nazista Joseph Goebbels, em defesa de uma arte brasileira “heróica e nacional”. Por mais “teatral” que aparente ser o vídeo - por meio da música de Richard Wagner que se mistura junto às falas, o retrato de Bolsonaro ao fundo, e Alvim “devidamente” posicionado entre a bandeira nacional e a cruz -, não seria esse caso a exacerbação de todo o cenário político14, revelando o lado mais obsceno de um governo completamente estúpido e fascista? De qualquer forma, mesmo sendo demitido do cargo, nos perguntamos quais manifestações artísticas seriam consideradas pelo ex-secretário como virtuosas, nacionalistas e “profundamente vinculada às aspirações urgentes do nosso povo”? Que tipo de “Arte” agradaria a base conservadora e cristã de Bolsonaro? O professor Guilherme Wisnik, em entrevista à POSTO68, analisou as mais recentes manifestações artísticas junto da atual conjuntura política: “[...] justamente muitas vezes a arte depende de uma reação à alguma coisa, à uma violência. Quanto mais violência nos é imposta, mais chance talvez a arte tenha de reagir de forma contundente [...]”. Fazendo referência aqui à ideia de Walter Benjamin15 que enquanto o fascismo opera estetizando a política, em resposta, deveríamos politizar a arte. Nesse sentido, resgatamos a força crítica de dois filmes nacionais, ambos pernambucanos. Enquanto Bacurau16 se passa “Em um futuro próximo”, Divino Amor17 nos dá uma data mais precisa - “Era 2027” - de um horizonte nada promissor para o país. O primeiro filme traz esperança através dos habitantes de uma pequena vila que se rebelam contra um jogo de poder entre um prefeito inescrupuloso e um grupo de extermínio norte-americano. O segundo traça um futuro evangélico, dominado por luzes fluorescentes, em que todos esperam (e festejam) pela volta do Messias. Aqui, é simbólico dizer que a “esperança” de Bacurau teve uma repercussão bem maior que o cenário trazido por Divino Amor. Ambas 13 Secretário nacional da Cultura, Roberto Alvim faz discurso sobre artes semelhante ao de ministro da Propaganda de Hitler. G1, 2019. 14 Seria a exacerbação de um cenário político ou podemos considerar que o cenário ruiu e que as cortinas vieram abaixo? 15 BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (1935-36), Org. Márcio Seligmann-Silva, Trad. Gabriel Valladão Silva. Porto Alegre: L&PM Editores, 2ª ed. 2017. 16 BACURAU. Direção de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. Brasil; França: SBS Productions; CinemaScópio; Globo Filmes, 2019. (131 min.).
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17 DIVINO AMOR. Direção de Gabriel Mascaro. Brasil: Rachel Ellis, 2019. (101 min.).
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as produções marcaram 2019, nos alertando sobre futuros terrivelmente possíveis. Esses futuros terríveis já estão colocados. Cabe a nós, aqui e agora, aceitarmos ou não. E a arte deve ser uma das principais ferramentas de crítica e tensionamento. É possível entender a produção artística nacional e latino americana contemporâneas como permeadas por uma condição periférica, que se situa não somente no sentido econômico - periferia do capitalismo -, mas também territorial e socialmente às margens. Produções que centram-se na denúncia e na resistência, que buscam visibilidade. Nessa perspectiva, Bacurau, mesmo expressando essas questões, é a exceção, pois trata-se de uma grande produção pros padrões nacionais, com grande divulgação e espaço nas mídias, premiado nacional e internacionalmente. Assim, também é preciso deslocar o nosso olhar para a arte feita às margens, aquela que talvez consiga explicitar com maior contundência a violência e a condição que nos é imposta. Bia Ferreira, cantora, compositora e ativista, traz através de suas letras-discursos manifestações acerca da violência sobre o corpo feminino, negro e lésbico. Com sua música, carrega consigo a voz daquelas que foram brutalmente caladas, “Marielles” e “Ágathas”18, como em Não precisa ser Amélia:
“Sou mulher, sou preta, essa é minha treta / Me deram um palco e eu vou cantar / Canto pela tia que é silenciada / Dizem que só a pia é seu lugar / Pela mina que é de quebrada / Que é violentada e não pode estudar / Canto pela preta objetificada / Gostosa, sarada, que tem que sambar”
18 Nos referimos aqui à socióloga e vereadora Marielle Franco e a menina Ágatha Félix, ambas brutalmente assassinadas.
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Como em Swinguerra, uma das obras que representaram o Brasil na Bienal, simbolizando o corpo que é ao mesmo tempo atacado - verbalmente e fisicamente - e que se expressa por meio dele. Em consonância, a peça Black Brecht: E se Brecht fosse negro?19, do coletivo Legítima Defesa20, traz ao palco uma pesquisa sobre negritude, descolonização, interseccionalidade e teatro; sendo inspirada em O julgamento de Luculus, de Bertold Brecht, além de referêcias à autores negros como Angela Davis e Frantz Fanon. Nela, o “general-civilizador” Luculus Brasilis - que se apresenta em trajes da corte, com um enorme crucifixo e levando em uma das mãos “Os Lusíadas”, de Camões - representa a figura do conquistador, do missionário, do bandeirante, bem como do latifundiário, do banqueiro e do homem de negócios. Acompanhamos o julgamento de seus atos na Terra pelo Supremo Tribunal do Reino das Sombras. A peça põe em xeque a “História” e as grandes figuras ou quase “mitos” do país - Dom Pedro I, Princesa Isabel, Rui Barbosa, Eusébio de Queiróz, nenhum deles são aptos a advogar pela defesa de Luculus, pois não se encontram no Reino dos Bem-Aventurados. Trata-se de julgar e reescrever a história do Brasil, através da resistência negra, dos homens e mulheres escravizados - e não “escravos”! -, e dos desdobramentos históricos e sociais no presente. De certo modo, todas essas temáticas ressoam nos pavilhões latinoamericanos na 58ª Bienal de Arte de Veneza, e convergem em uma discussão comum. Nesse sentido, o Pavilhão Venezuelano pode nos servir como metáfora da maior parte das produções artísticas nacionais. Tal qual as mostras “em construção” - em meio às adversidades, ao imperialismo, dificuldades econômicas e políticas -, a arte e a cultura brasileira constroem aos poucos a resistência ao fascismo, a violência e a ignorância. Resistiremos e existiremos21. Construiremos novas formas de lutar e de se expressar, já que estamos em um outro momento, em que o Brasil vive “tempos interessantes”.
19 Em cartaz no Centro Cultural São Paulo (CCSP), de 31/01 a 01/03 de 2020. 20 O Legítima Defesa é um coletivo de artistas/atores/atrizes negrxs de ação poética-política e teatro.
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21 Inspirado pelas falas de Fernanda Montenegro, em entrevista à Simone Zuccolotto para o Canal Brasil.
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Obra de Nelson Rangelosky para o Pavilhão da Venezuela. Foto: Adriano Caro Florio. Edição: Luiz F. K. Fogo.
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Montagem da obra de Natalie Rocha para o PavilhĂŁo da Venezuela. Foto: Adriano Caro Florio. 68
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Montagem da obra de Ricardo GarcĂa para o PavilhĂŁo da Venezuela. Foto: Adriano Caro Florio. 69
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. entre a sĂĄtira e a tirania giulia ravanini silva
Residencial Eduardo Abdelnur, SĂŁo Carlos, SP . Foto: Estefane Trindade.
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No dia 15 de Janeiro de 2020 foram revelados os indicados ao Oscar. Dentre os indicados a melhor documentário está “Democracia em Vertigem” da diretora Petra Costa, produzido pela plataforma de streaming “Netflix”. Uma indicação para um dos prêmios mais reconhecidos do cinema deveria ser considerada um grande avanço para o cinema brasileiro, visto que o prêmio dificilmente foge da indicação de produções fora da esfera anglofônica. Porém, a notícia foi recebida com hostilidade pelo governo atual e por seus adeptos, que julgam a narrativa do documentário como uma ficção falaciosa, não digna de ser assistida. O presidente Jair Bolsonaro se referiu a ele como “Ficção. Para quem gosta do que o urubu come, é um bom filme”1. Em seguida, porém confessou que ainda não assistiu o filme. O documentário retrata, sob a visão da diretora e declaradamente alinhado a um posicionamento de esquerda, o período de crescimento econômico do governo Luiz Inácio Lula da Silva, a ascensão e queda da presidenta Dilma Rousseff, e a prisão do ex-presidente Lula em abril de 2018. O período retratado abrange desde as manifestações de junho de 2013, que se alastraram por todo país e todas as suas consequências, em especial os movimentos que culminaram com o impeachment da Presidenta, no final de Agosto de 2016. Ainda que hajam críticas ao documentário2, o longa expõe em larga escala uma narrativa alternativa à que foi massivamente difundida pela grande mídia em todo mundo, buscando delinear, através de episódios, relatos e imagens, quais interesses moveram o processo de impeachment em um Brasil crescentemente polarizado3.
1 URIBE, Gustavo. “Bolsonaro critica Democracia em Vertigem mas admite nunca ter visto.“ Folha de S. Paulo, 14 de jan de 2020 2 A principal crítica proferida ao documentário se refere ao fato de o mesmo contar uma “versão” da história, o da diretora, mas é importante destacar que um documentário é uma obra de arte e como tal parte sempre de um ponto de vista, o que, diga-se de passagem, Petra Costa deixa muito claro ao narrar o longa em primeira pessoa e inserir nele diversos fato pessoais e familiares 3 Ver episódio #84 do podcast “Foro de Teresina”, da revista Piauí, que discute, entre outras coisas, a indicação do documentário “Democracia em Vertigem” e suas repercussões.
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Em 2014, o resultado das eleições revelou uma diferença de apenas 3% entre a principal candidata da esquerda, Dilma Rousseff, que somou pouco mais da metade dos votos, e de seu opositor de direita, Aécio Neves. Foi o prelúdio dos tempos que estavam por vir, em que se acentuam as diferenças entre Norte e Sul, ricos e pobres, esquerda e direita, e em que clima de animosidade instaurado é utilizado para desestabilizar o já frágil sistema da democracia brasileira. Desde a proclamação da República, cento e trinta anos atrás, apenas em dois períodos a democracia foi exercida “plenamente”4: entre 1945 e 1964, ano em que se instaura o regime/ditadura militar, e entre 1985 e os dias atuais, período conhecido como de redemocratização. Esses períodos somam um total de cinquenta e quatro anos, ou seja, menos da metade do tempo da existência da República. Ainda que os direitos à voto continuem garantidos em lei, os recentes e turbulentos acontecimentos políticos vivenciados, sobretudo, a partir da metade dos anos 2010 foram estopim para que uma onda de autoritarismo reemergisse não apenas no Brasil, mas sim por todo o mundo. Na última década diversos países elegeram por meios democráticos governos alinhados a uma agenda de direita com viés autoritário. O fenômeno foi visto por exemplo na Polônia, Turquia, Indonésia e, principalmente, Estados Unidos - superpotência mundial econômica, bélica e cultural, que desde sua fundação é governada de maneira democrática. Em um artigo chamado “O Fim do Século Democrático”5 os cientistas políticos Yascha Mounk e Roberto Stefan Foa observam dois cenários para o futuro da democracia: ou os países autocráticos que rapidamente vem ganhando poder econômico, como China e Arábia Saudita, farão uma transição para a democracia liberal, ou o período promissor das democracias na verdade foi “um interlúdio antes de uma nova era de luta entre sistemas políticos mutuamente hostis”. A nova onda de governos autoritários também alcança o Brasil, através da eleição do candidato de extrema direita, Jair Bolsonaro, à presidência, junto a diversos outros políticos que divulgam a mesma agenda. Um exemplo é o então partido do presidente, o PSL (Partido Social Liberal), que havia
4 Momentos em o direito de voto foi garantido para homens e mulheres. Vale lembrar que somente a partir da Constituição de 1988 o voto foi garantido também para a população analfabeta.
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5 FOA, Roberto Stefan, MOUNK, Yasha. “O Fim do século democrático”. Instituto Mercado Popular, 23 de ago de 2018.
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eleito apenas dois deputados federais nas eleições de 2010 e 2014 e, com a afiliação de Bolsonaro e consequente propaganda envolvendo seu nome, foram criadas as condições para alavancar a popularidade do partido. Em 2018, o PSL conquistou a segunda maior bancada da câmara, com 52 deputados, e atualmente conta com 271 mil filiados. Um crescimento vertiginoso para um partido cuja agenda política não vai além de genéricas frases de efeito, como o combate à corrupção, aos males gerados pelo socialismo e à ideologia de gênero6. O governo, em pouco mais de um ano de atuação frequentemente se coloca em polêmicas envolvendo falas do presidente, de seus filhos, de ministros ou de simpatizantes. Nas manchetes relacionadas ao governo, a linha entre o satírico e o tirânico é tênue: podem-se encontrar ataques à liberdade de imprensa, às universidades públicas e também à liberdade sexual, em especial das mulheres. Não faltam alusões ao período da ditadura militar e até mesmo aos ideais nazistas. Não só o presidente, mas todos os membros do governo, não se acanham em flertar, cada vez mais escancaradamente, com o autoritarismo e o ufanismo em relação à época da ditadura militar. “Ao mesmo tempo em que as democracias liberais estão mostrando fortes sinais de decadência institucional, os populistas autoritários estão começando a desenvolver uma alternativa ideológica na forma de democracia liberal”7. Enquanto parte da população se aterroriza com nevoeiro autoritário que paira entre nós, outra escolhe se calar frente aos discursos de ódio proferidos, em um cenário de crescente apoio ao autoritarismo. Criou-se a narrativa de que, sem o projeto econômico liberal do atual governo, o Brasil não teria salvação, sendo que o projeto atende apenas aos interesse das elites, tanto empresariais quanto agrárias. Entra em jogo a segunda narrativa na qual o governo se baseia, a de aqueles que levantam a voz contra ele provavelmente querem sabotá-lo. Paulo Arantes caracteriza essa estratégia como “uma mobilização permanente de combate a um adversário, e esse adversário tem todas as configurações que imaginamos – do meio ambiente aos direitos humanos para ‘vagabundos’ e ‘comunistas’.” 8 É a volta do “Brasil, ame-o ou deixe-o”9. 6 Pontos apresentados na seção “O que acreditamos” do site do PSL. 7 Idem. 8 ARANTES, Paulo. “Pode chegar a hora em que Bolsonaro não aceite largar o poder, diz filósofo”. Uol, 10 set. 2019. Entrevista concedida a Leonardo Sakamoto. 9 Slogan criado durante a ditadura militar com caráter de propaganda e ameaça. Em 2018, após a eleição de Bolsonaro, Silvio Santos reviveu o slogan em uma vinheta. Em: “SBT ressuscita e mata ‘Brasil, ame-o ou deixe-o’ em vinheta relâmpago” Folha de S.Paulo. 6 nov 2018.
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A principal estratégia destes movimentos é aplicada no Brasil há mais de oitenta anos: a criação de um “clima” de paranoia, medo e ódio frente à divulgada ameaça da instalação de um regime comunista. Na Era Vargas esta resultou, por exemplo, na criação do Plano Cohen (1937) e na deportação de Olga Benário Prestes para um campo de concentração na Alemanha. O crescimento desses movimentos hoje não seria possível sem as redes sociais, que se tornaram a principal arma de manipulação da direita, com a extensa divulgação de fake news, notícias falsas criadas e amplamente compartilhadas para influenciar no âmbito ideológico, além da criação de bots, robôs utilizados principalmente em redes como o Twitter para apoiar pautas levantadas por estes movimentos. Mesmo se hoje a paranoia é alimentada pelas fakes news que são rapidamente divulgadas e disseminadas pelas redes sociais, em sua essência é a mesmo medo que durante a ditadura militar motivou ao impedimento das colunas do MASP serem pintadas de vermelho, medo que levou à impressão de receitas de bolo em jornais como forma de resistência à censura, e que escalou ao exílio, à perseguição e à tortura de milhares, principalmente durante os “anos de chumbo” (1968-1974). E embora ambos os lados da discussão, que enchem as redes sociais, estejam cheias de mobilizações, discursos e questionamentos, as ruas estão vazias. Se nos anos 1960 as grandes manifestações parecessem a única solução para a visibilidade na reivindicação de direitos, sendo a principal estratégia dos estudantes e operários da França de Maio de 1968. Como explica Rolnik “Podemos associar este momento, no campo do urbanismo e estudos urbanos na França, como o momento de formulação e lançamento do conceito do “direito à cidade”, termo cunhado por Henry Lefebvre”10. Se naquele momento a tomada das ruas era a forma de apropriação da população, hoje a lógica urbana afasta as pessoas dos espaços públicos e de exercício da democracia, fazendo com que o virtual seja o “espaço” de se manifestar. Cada vez mais se consolida uma cidade que desconsidera os interesses de seus habitantes em prol de gerar lucro para as grandes elites. As praças mais movimentadas atualmente são as de alimentação dos shoppings; novas ruas são construídas visando uma maior velocidade dos carros. As ideais modernistas de praticidade, racionalismo e igualdade, tão presentes na Bauhaus ou nas habitações coletivas de Le Corbusier, quando aplicados sob regimes que visam o lucro, perdem seu sentido de comunidade. Como argumenta Rizek “[...] a cidade se transforma no seu avesso: lugar da dissolução, da destituição do mundo público, onde a desigualdade 74
10 ROLNIK, Raquel. “Maio de 1968 e as lutas pelo direito à cidade”. 2018.
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se escancara sem provocar escândalo, lugar da privatização da vida e da desnecessidade, mas também lugar de reinvenções, que trazem a possibilidade frágil de novos combates pela distribuição da riqueza, pela restituição do território à elaboração cidadã sempre ameaçada. ” Esse hostil urbanismo moderno não se limite ao Brasil, sendo uma questão global. No caso brasileiro, a partir do período do pós-guerra, o modernismo encontrou um terreno bastante fértil para se difundir, fazendo com que a propagação da arquitetura modernista coincidisse com a urbanização do Brasil. De 1940 a 1980, em apenas 40 anos, a população passou de majoritariamente rural para predominantemente urbana. Essa rápida urbanização resultou no agravamento de problemas como a falta de saneamento básico e de infraestrutura de subsistência, a incapacidade do governo de prover habitação, saúde e educação adequadas para toda população. Ações que também se tornaram condicionantes e estruturantes deste processo cíclico de crescimento e declínio dos direitos sociais, vinculados a investimento públicos. Tendo em vista os problemas sociais advindos do crescimento das cidades, David Harvey, em visita ao Brasil, argumentou “Urbanização incompleta é estratégia do capital”11. Argumento defendido também pelo sociólogo Francisco de Oliveira “[...] A pesquisa do urbano e das relações entre Estado e urbano requer uma pesquisa essencial sobre essas relações entre Estado e sociedade civil e sobre as contradições de interesses que formam agora dois blocos que, além dos antagonismos do ponto de vista da produção social da riqueza, apresentam um antagonismo do pondo de vista de como direcionar e utilizar o aparelho de Estado.”12 Com a instabilidade social e o crescimento da violência, a sensação de medo aumenta, e junto dele um ciclo vicioso em que as fobias aumentam as segregações e as segregações aumentam as fobias. ”O problema da violência é complexo e não se resolve com mais exclusão e segregação. No entanto, esta parece ser a principal resposta para a questão: a solução é sempre uma reação ao sintoma” (Maragno, 2013). Este modo de viver, que se populariza pelo Brasil, tem como símbolos os muros, guaritas e aparatos de segurança, como câmeras, alarmes e cercas elétricas. O primeiro a ser afetado por este medo latente é o espaço público. O espaço de sociabilidade das classes média e alta migra para ambientes fechados e vigiados, como shoppings e clubes, enquanto para a habitação se isolam em prédios de alto padrão e condomínios fechados longe dos centros das cidades, com 11 HARVEY, David. Urbanização Completa é Estratégia de Capital”. Carta Capital, 2013. 12 OLIVEIRA, F. O Estado e o urbano no Brasil. Espaço e Debates, v. 2, n. 6, p. 36-54, 1982.
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seus programas de lazer e esporte que se iguala ao dos clubes. A situação descrita, porém, é válida para apenas uma pequena parte da população brasileira. Num país preocupantemente desigual, em que 1% da população concentra quase 30% da renda total do país13, a parte rica da população tem o privilégio de se enclausurar em suas ilhas da fantasia. ”Para as maiorias, sobraram os mercados informais e irregulares, em terras que a legislação urbanística e ambiental vetou para a construção ou não disponibilizou para o mercado formal ou nos espaços precários das periferias com as viagens cotidianas “à cidade”14 (Rolnik, 2009). A maioria das habitações de baixa renda estão localizadas em favelas, conjuntos residenciais ou loteamentos irregulares, muitos deles construídos em áreas precárias ou de riscos, como encostas íngremes ou áreas inundáveis, em grande parte periféricas aos centros das cidades e sem acesso a infraestrutura básica urbana. Em estudo realizado em 2010, nos 5.564 municípios estudados um total de 14,1% da população vivia em habitações precárias ou subnormais15. Os centros das cidades consecutivamente também passam por uma intensificação do processo da decadência, onde o problema da habitação é resolvido com o uso de prédios e construções em condições de decadência ou de abandono para cortiços ou ocupações. Como explica Flávio Villaça “A ideia dominante é: o centro da cidade está se “deteriorando”. A deterioração, ou apodrecimento, é um processo natural que só ocorre com os seres vivos. Essa ideia pretende esconder o processo real rotulado de “decadência!” e que é de responsabilidade da classe dominante, mas que não quer assumi-lo.”16 Em meio a esta situação, o papel social do arquiteto e urbanista é questionado. Embora o Brasil tenha sido levado pela euforia modernista, muitos de seus ideais perderam força e passaram a ser mal interpretados (ou foram interpretados bem demais?). O legado urbano resultante é uma colagem de diversas linhas de pensamento da arquitetura que no final acabam 13 BORGES, Rodolfo. “Brasil tem maior concentração de renda do mundo entre o 1% mais rico”. El Pais, 14 dec 2017. 14 ROLNIK, Raquel. No Fio da Navalha. Revista Anpur. V. 11, n. 2, p. 31-50, nov. 2009. 15 IBGE. Pesquisa de Informações Básicas Municipais – MUNIC, 2010. Disponível em www. ibge.gov.br.
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16 VILLAÇA, Flávio. São Paulo: segregação urbana e desigualdade. Estud. av. vol.25 no.71 São Paulo Jan./Apr. 2011
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sendo nenhuma delas. Gogliardo Vieira Maragno comenta que “A respeito da diminuição da qualidade da arquitetura brasileira, é preciso esclarecer a que tipo de arquitetura se refere, se a arquitetura exemplar registrada nas importantes publicações da área, ou a arquitetura comum que se vê cotidianamente nas cidades.”17 Embora no país existem quase 400 faculdades que lecionam arquitetura, apenas 15% do total de obras são feitas com a assessoria de um arquiteto ou engenheiro18. Através dos dados providos pelo CAU sobre as percepções da sociedade sobre Arquitetura e Urbanismo também é possível traçar um perfil de qual brasileiro utiliza os serviços de um arquiteto. Para a população que não completou o Ensino Fundamental, apenas 9,50% das pessoas que realizaram obras ou reformas tiveram um auxílio de arquiteto ou engenheiro, enquanto para a população que tem diploma de nível superior este número sobre para 26,2%. A atuação do arquiteto também tem lugar no Brasil: 77% dos arquitetos e urbanistas formados estão no Sul e Sudeste. Este valor reflete-se nos dados de utilização de profissional habilitados em obras, já que no Sul, em 25,9% das obras este serviço foi utilizado, e no Sudeste, em 16,40% das obras. Em comparação, no Nordeste este valor é de apenas 7,12%. A atuação do arquiteto do Brasil tem classe social e lugar. Mesmo nos estratos de população com maior escolaridade ou nas regiões com maior concentração de profissionais, dificilmente sua atuação está ocorrendo em um quarto das obras realizadas. A arquitetura é um artigo de luxo, e o papel do arquiteto acaba por ser quase que indiscernível do exercido por um designer de interiores (e em muitos casos são o mesmo profissional), fazendo com que sua atuação em grande parte se restrinja às classes mais altas. Enquanto o Brasil vive uma crise de habitação e de infraestrutura urbana, com carência alarmante de espaços dignos para educação, saúde e lazer, o ensino e a atuação dos arquitetos fecha os olhos e se insere sem pestanejar no ciclo de fobias e segregações. Há quem diga que a história se repete em ciclos. E parece que nos tempos atuais esses ciclos seguem a lógica dos nossos tempo, cada mais rápidos. As crises são assistidas de forma passiva pela grande massa que parece ter saído de uma cena de Fahrenheit 451. As palavras de Belchior ecoam: “A dor é perceber que apesar de tudo 17 MARAGNO, Goglialmo Vieira. “Quase 300 cursos de Arquitetura e Urbanismo no país: como tratar a qualidade com tanta quantidade?” Vitruvius. Out. 2013. 18 CAU-BR. Percepções da sociedade sobre Arquitetura e Urbanismo. 12 out 2015.
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que fizemos, ainda vivemos como nossos pais.”19 Apesar de tudo vivido pelo Brasil desde a redemocratização – os avanços em pautas sociais e das melhores nos índices de desenvolvimento humano – , o fantasma do autoritarismo nunca deixou de pairar, principalmente na nossa frágil democracia burguesa. Vivemos em um “período de recessão democrática”20, observado em diversas instituições democráticas do mundo e que atinge a frágil democracia brasileira de forma avassaladora. O governo atual foi eleito de forma democrática. No segundo turno, quase um terço dos brasileiros considerou que seu voto valeria para um candidato sem pautas além de curtas frases de efeito contra possíveis inimigos. Sem nenhuma repressão concreta, não está longe o dia em que essas falas resultarão em ações. É preciso estar atento e forte.
Residencial Eduardo Abdelnur, São Carlos, SP . Foto: Estefane Trindade.
19 BELCHIOR, “Como nossos Pais”. Polygram: Rio de Janeiro. 1976.
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20 DIAMOND, Larry. “Facing Up to the Democratic Recession”, Journal of Democracy. V.1, n.1, Jul. 2015.
crônica
. loucura, loucura, loucura ana luiza gonçalves Imagine um Brasil utópico/distópico no qual Luciano Huck foi eleito presidente.
mais”. O abismo que foi criado entre os “dois lados” do Brasil não para de crescer.
O novo ministro das Cidades, Marcelo Rosenbaum lançaria a política de habitação do governo, denominada Lar Doce Lar, patrocinada pela Leroy Merlin. A redistribuição econômica seria feita por jogos como o Quem quer ser um milionário, no qual todos os cidadãos têm a mesma chance de ficarem ricos! A avaliação dos estudantes do ensino básico, seria feita por meio do Soletrando. O mercado automobilístico sofreria transformações para se adequar à nova política do Lata Velha, valorizando seu usado. O processo participativo das tomadas de decisão seria em pesquisas de opinião no Vou de Táxi, com o presidente em pessoa!
A promessa de melhora da economia não se concretizou, mas os ataques a direitos humanos, a políticas de igualdade social, aos índios, aos homossexuais, às mulheres, à liberdade ideológica, à segurança das populações de baixa renda, às instituições públicas… todas essas assustadoras promessas de campanha vem, pouco a pouco, sendo colocadas em prática.
Sobre a posse, nem se fala! Show da Anitta, da Madonna, ia ser um espetáculo! A hora do Brasil ia ser imediatamente substituída pelo Vídeo Show, apresentado pela Angélica, claro, que diga-se de passagem, sempre fez um trabalho muito melhor. E, logicamente, tudo sendo televisionado na TV aberta e apresentado por nosso querido para o Brasil todo, num grande portal da transparência interativo, controlado — como já é, bem da verdade — pelas 7 famílias que possuem toda a mídia no Brasil. *** A terceirização e privatização de todas as políticas públicas parece até um cenário agradável perto da perspectiva de fim delas que se coloca. Nesse contexto de desmonte assustador, não dá nem vergonha de ser de esquerda e falar “Eu votaria no Luciano Huck”. Mentira. Dá medo ler o jornal, ouvir notícias, falar nossa opinião em público sem ser com pessoas que já sabemos de que lado estão. Dá medo ir a jantares de família e ter vontade de chorar ao ouvir um tio cujo filho gay estudou em escolas públicas e entrou em uma universidade federal por meio de cotas falando que votou no Bolsonaro “Porque o PT não dava
Àqueles que acreditavam que o discurso não passada disso; àqueles que nem ouviam os discursos, escondido atrás de um medo de participar de debates; àqueles que acreditaram que a melhora na economia valia as mãos sujas; àqueles que acreditaram nas “boas intenções” de Sérgio Moro, apesar de todos os indícios que foram dados; à todas as boas pessoas que se deixaram levar pela histeria coletiva da eleição de Jair Bolsonaro o pedido é de reflexão. O Brasil não pode continuar nessa disputa entre o nosso lado e lado deles. Não tem mais como ficar em uma disputa de lados. Cada uma das partes precisa assumir suas parcelas de responsabilidade, levantar a cabeça e dar as mãos em nome de uma causa maior. Não existe lado certo e errado da história se a história não puder mais ser contada. A resistência é uma súplica da democracia para continuar viva. É um pedido para que a pesquisa brasileira exista, para que as universidades públicas busquem se tornar mais populares e não reservadas à elite - e acima de tudo que continuem funcionando e não sejam privatizadas - , é para que as pessoas possam viver independe de cor, orientação sexual, gênero, classe social e religião, é para que a justiça seja cega e não se deixe levar por disputa de poder. É por direitos sociais. É para que o crescimento econômico de hoje não custe os recursos naturais de amanhã, com a destruição da floresta mais importante do mundo. Eu não sei se o Brasil aguenta ter um presidente afastado novamente, mas o mínimo tem que ser feito para que a democracia consiga chegar viva até o fim de 2022.
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Nas últimas décadas os debates referentes aos princípios, projetos e ações orientadas ao desenvolvimento tecnológico sustentável vêm questionando o atual paradigma da cadeia da construção civil no Brasil, ainda pautada por processos de produção de grande impacto no meio ambiente , com elevado consumo energético, excessiva emissão de gases do efeito estufa (GEE), uso intensivo de materiais não renováveis, elevada geração e baixa reutilização de resíduos - além do desrespeito às culturas, floras, faunas e climas locais, entre outras características. Assim, novas possibilidades de produção tecnológica vêm sendo exploradas a partir da adoção de formas de crescimento econômico obtidas através de processos produtivos comprometidos com a manutenção do equilíbrio ecológico. É nesse contexto que surge a perspectiva de desenvolvimento das Tecnologias Construtivas de Baixo Carbono – TCBCs, a partir da aplicação de materiais que, de acordo com os indicadores de sustentabilidade que avaliam o potencial nocivo de um Ciclo de Vida, têm baixa emissividade de GEEs, baixo consumo energético ou até potencial de reuso como fonte energética (no caso da madeira, por exemplo) e também geram poucos resíduos. Nesse sentido, os materiais que compartilham dessas características são a terra, a madeira, o bambu e as fibras vegetais. Uma vez verificada a importância de se planejar e praticar novos arranjos produtivos na cadeia da construção civil, estabelecidos por uma base sustentável, humanista e não concentradora, entende-se melhor como estes processos produtivos vão se aproximando dos processos formadores na medida em que fomentam, dentro do trabalho, práticas dialógicas, de participação, de autogestão e de conscientização. Nesse contexto que se insere como alternativa o canteiro-escola. Se por um lado temos à frente a própria formação do profissional arquiteto ou engenheiro – fazendo-o adentrar em um campo de conhecimento construtivo pouco usual (uma vez que se prioriza o ensino do concreto armado, das alvenarias e do aço) –, por outro lado, esbarramos na dificuldade de encontrar trabalhadores aptos ou, pelo menos, flexíveis à novidade dos ‘velhos’ sistemas construtivos. Como consequência, aprofundam-se tanto o distanciamento dos alunos de Arquitetura e Urbanismo e de Engenharia Civil das dimensões práticas do ofício, onde impera a ausência do diálogo entre teoria e prática, quanto o engessamento de uma cultura de trabalho técnico no canteiro de obras determinada pela utilização dos sistemas construtivos mais usuais. Neste sentido, torna-se pertinente afirmar que esses dois aspectos devem ser enfrentados e resolvidos na busca por uma maior flexibilização do trânsito de conhecimentos e da formação qualificada de trabalhadores da Construção Civil. Uma alternativa é através da construção coletiva desses espaços pedagógicos. 82
Venha participar do Canteiro Escola TCBC!
FeNEA .
Federação Nacional dos Estudantes de Arquitetura
Mapa das Regionais da FeNEA A FeNEA é uma entidade pública sem fins lucrativos, sem filiação partidária, livre e independente de órgãos públicos e privados, que que hoje congrega mais de 80.000 estudantes de graduação em Arquitetura e Urbanismo, de mais de 305 instituições de ensino superior, e os representa perante órgãos governamentais e entidades de área. Tem como objetivo representar os interesses dos estudantes de arquitetura e urbanismo e lutar por um ensino de qualidade, através de uma discussão participativa e democrática. Busca congregar e ampliar a participação dos estudantes enquanto cidadãos e futuros profissionais, na busca de uma formação criativa, inovadora, solidária, coletiva, humana e comprometida com questões político-sociais. O trabalho da FeNEA é desenvolvido em gestões de um ano, as diretorias eleitas em Plenária Final de ENEA formam o corpo executivo da Federação e devem seguir as diretrizes lançadas pelos estudantes e entidades estudantis na Plenária e no CoNEA de transição. Essas diretrizes servem de base para o desenvolvimento de todo o trabalho da gestão. A FeNEA é a união de todos os estudantes de Arquitetura e Urbanismo do país, a coordenação local da FeNEA é o seu Centro ou Diretório Acadêmico e você é tão responsável por ela quanto qualquer um. 83
Foto: Estefane Trindade