3 minute read
MÃES ARTISTAS E SUAS EXPERIÊNCIAS NO MATERNAR
Em pleno século XXI, conjugar a produção artística à opção de ser mãe, transformando essa experiência também em matéria criativa, é um desafio para as mulheres.
POR GIANNI PAULA DE MELO
Advertisement
Quando
estava perto de completar 70 anos, em 2016, Marina Abramovich deu uma entrevista ao jornal alemão Tagesspiegel que causou mal-estar entre algumas mulheres do meio artístico. Na ocasião, a performer afirmou ter realizado três abortos no decorrer da sua vida, explicando sem arrodeio que os fez em nome da carreira: “Tinha a certeza de que (ter filhos) seria um desastre para o meu trabalho. A conversa talvez não gerasse tanto frisson se tivesse ido até aí, mas Abramovich avançou nas suas considerações:
“Na minha opinião, essa é a razão por que as mulheres não têm tanto sucesso como os homens no mundo da arte. Há muitas mulheres talentosas. Por que é que os homens é que ocupam os lugares importantes? É simples. Amor, família e crianças – uma mulher não quer sacrificar tudo isso”. Não é difícil perceber a fragilidade desse posicionamento, inclusive da ideia de sucesso que ele evoca. Marina Abramovich fala em sacrifícios que não são cobrados no mesmo peso aos homens. No caso deles, os “lugares importantes” são conciliáveis com “amor, família e crianças” porque aculturalmente, mais flexível e generoso. Muitos, aliás, abdicam da prole que colocam no mundo sem que haja grande ônus à sua imagem. Talvez por falta de espaço para desenvolver seu argumento, a artista aborda “a razão por que as mulheres não têm tanto sucesso como os homens no mundo da arte” com uma dose de simplismo, ao mesmo tempo que alça a mulher sem marido nem filhos a uma posição heroica.
Abramovich recebeu muitas respostas às suas declarações. Um dos contrapontos de maior repercussão foi a reportagem You can be a mother and still be a successful artist, publicada no Artsy, que reuniu depoimentos de artistas como a fotógrafa Laurie Simmons, a pintora Nikki Maloof e a escultora Diana Al-Hadid. A reação coletiva evidenciava que uma ferida havia sido cutucada. Várias respostas de mães artistas, naquele momento, também sublinhavam certa dose de heroísmo em suas próprias trajetórias. Sabemos, afinal, que a mulher, com ou sem filhos, ainda é cobrada – descarada ou sutilmente – a dar explicações de porque se arvora a ter vida pública. Sinto meus dedos correrem na superfície de um assunto que requer delicadeza. Eu sonhava em ter filhos aos montes e hoje, aos 28, penso como nunca nas implicações sobre meu árduo trabalho. O dilema que envolve maternidade, vida profissional e vida criativa não é obrigatório, mas tampouco é leviano quando ele existe. No ensaio Contra os filhos, a escritora Lina Meruane, em meio ao seu ataque à cultura da maternidade compulsória, descreve com pragmatismo a dificuldade de conciliar a rotina materna à rotina artística. Para ela, que escolheu não ser mãe, enquanto as “criadoras-sem-filhos” exercem, de forma simultânea ou alternada, o trabalho assalariado e o trabalho criativo (usualmente mal remunerado), as “criadoras-com-filhos” assumem uma terceira atividade ainda mais demandante. “Se para a criadora-sem-filhos ter dois trabalhos é pesado e interfere na sua obra, para a outra, com filhos, as horas do dia se mostram insuficientes porque, ao horário assalariado, é preciso acrescentar a implacável rotina materna e então: de onde tirar o espaço temporal e mental para o ofício criativo?” Dito isso, antecipo a questão central desta reportagem: o impacto da maternidade nos processos criativos. Dediquei estes parágrafos iniciais a uma aproximação arredia do meu assunto, por meio de referências a não mães, que precisam estar sempre justificando para o mundo os seus não filhos. A partir daqui, é com as escritoras mães que começo a conversar.
Literatura e maternidade
O tema da maternidade ganhou nova evidência no meio literário recentemente. Enquanto observamos um debate mais amplo, sobretudo nas redes sociais, sobre maternagem, gestação, parto, violência obstétrica, puerpério, amamentação, rede de apoio, paternidade e criação dos filhos – uma articulação, política inclusive, que vejo com bem mais entusiasmo que a ensaísta Lina Meruane –, algumas escritoras contemporâneas de destaque se tornaram mães e escreveram textos que constelavam essa experiência. Marília Garcia publicou o poema Nave mãe na revista Piauí (set/19, edição 156), uma mixagem de vozes que reagem ou dão palpites diante da gravidez alheia. Maria Carolina Fenati, em A infância prometida desde a anunciação até a chegada ao mundo da filha, que pode ser conferido na terceira edição da revista Gratuita. Mônica de Aquino lançou “Continuar a nascer “, livro desenvolvido enquanto gastava seu bebê, a partir das impressões do corpo.