3 minute read

Tinha a certeza de que ter filhos seria um desastre para meu trabalho

Quando me propus a escrever esta reportagem, o recorte dizia respeito às poetas contemporâneas, afinal, além das citadas, também Alice Sant’Anna, Ana Estaregui e Mariana Basílio haviam se tornado mães. Junto a isso, o debate sobre o apagamento da experiência da maternidade na tradição da poesia brasileira já estava semeado, assim como a especulação de uma possível relação com a vida sem filhos de muitas das nossas grandes poetas, como Hilda Hilst, Ana Cristina Cesar e Orides Fontela.

Advertisement

No início da apuração, porém, dei-me conta de que estava menos interessada em teorizar e mais em conversar sobre o processo criativo dessas escritoras com filhos, sobre os abalos e metamorfoses da maternidade na trajetória de uma artista. Nesse caso, como não conversar com Micheliny Verunschk e Laura Erber, mulheres cuja caminhada da produção criativa na companhia dos filhos já tem alguns anos? Como não buscar Julya Vasconcelos e Jhenifer Silva, mulheres cujo trabalho teórico e artístico com as letras precisou se ajustar a um compasso imprevisível? Ou, ainda, como não procurar Carolina Fenati, que desenvolve uma oficina intitulada Escrita e maternidade?

A experiência do maternar

O livro mais recente de Mônica de Aquino, o já citado continuar a nascer, dedicado à sua filha Manuela, tem como eixo a própria experiência da maternidade. Ao contrário de suas publicações anteriores, nas quais o corte e a elipse se fazem mais presentes no poema, neste trabalho a poeta se propôs a algo mais fluido: “quis mesclar dados médicos e orgânicos, elementos mais secos e diretos, com uma escrita que transmitisse algo do fluxo de sentimentos e sensações da gravidez, do parto, da chegada da minha filha”, explica. No seu caso, o modo como essa experiência reverberou e conduziu ao novo projeto foi quase imediato.

Por isso, desde o início da gravidez, já senti o reflexo desta nova vivência na escrita, com todas as mudanças intensas na sensação corporal, com a virada radical na percepção de nós mesmos a partir da gestação de outra vida que cresce lenta, que vira a prioridade também do nosso corpo, que compartilha o sangue.

O vislumbre desse trabalho veio na ocasião de um sangramento. Com medo pela possibilidade de perder o bebê, Mônica foi encaminhada ao seu primeiro ultrassom, situação em que ouviu o coração do embrião batendo em alta velocidade. “Ainda havia poucas semanas de gestação, Manuela era um ponto na tela, mas já dava para ouvir seu coração que batia rápido, com uma velocidade que era mais ou menos o dobro da de um coração adulto. Comecei a lidar com esses dados médicos, que me impressionaram muito, junto com toda a transformação do corpo, tantas vezes violenta. Escrevi os primeiros dois poemas ainda sob o impacto dessa emoção e percebi que uma série nascia ali”, relembra Mônica. Desde que fui mãe, tudo está noutro lugar, e para onde olho encontro questões que a maternidade trouxe para o meu trabalho. Continuar a nascer percorre ainda a descoberta de uma pré-eclâmpsia grave e o nascimento prematuro. No entanto, na opinião da escritora, a consequência artística dessas experiências não recai apenas sobre o livro lançado. A poeta Ana Estaregui, autora do livro Coração de boi, também nota a presença da maternidade naquilo que tem criado desde que Flora entrou em sua vida, mas é uma inclusão mais sutil, sem uma intenção programática. Gestar e parir um filho é ser literalmente atravessada por um outro corpo e por todos os impactos que esse novo corpo traz: uma transformação existencial profunda, uma mudança de perspectiva no modo de olhar as coisas, um amor louco que nos expõe às nossas imperfeições e aos nossos medos, uma doação sem fim. Essa força que se impõe também é percebida pela escritora e pesquisadora Carolina Fenati, que esperava um grande desafio da maternidade quando colocava em perspectiva a relação com sua própria mãe. “Quando era pequena, imaginava que teria filhos e me lembro de sentir vínculos com as minhas bonecas, com meus cães e peixes. Cuidava deles, e sabia que eles também cuidavam de mim, e isto era muito decisivo no meu cotidiano.

A relação com minha mãe na infância não foi simples, e hoje em dia somos amigas porque, a partir de um certo momento da adolescência, decidimos mutuamente nos empenhar. Talvez por isso eu sempre tenha imaginado que ser mãe seria das minhas aventuras pessoais mais radicais quero dizer que ser filha definitivamente me exigiu e exige muito.

O meu projeto artístico e intelectual vive junto com essas movimentações internas, e por isso sempre pensei que, sim, a maternidade afetaria tudo o que eu continuasse a fazer. A experiência é a única autoridade, dizia Bataille, e sinto que é isso”, reflete. Porém, o modo como essa experiência entra em diálogo com a obra, a partir desse reposicionamento da subjetividade que parece contagiar a tudo, tem um aspecto imprevisível, imponderável.

“O Agamben, escreveu que a revolução é um deslocamento mínimo de todas as coisas. Desde que fui mãe, tudo está noutro lugar, e para onde olho encontro questões que a maternidade trouxe para o meu trabalho. Por exemplo, o futuro: nestes tempos em que o presente está asfixiante, em que o tempo e o espaço são quase experiências claustrofóbicas, ter estado grávida e ser mãe me fazem ter um comprometimento com o futuro enquanto espectro de possíveis, me faz querer olhar no olho do impossível, e isto não como uma posição intelectualmente conquistada, mas, sim, cotidianamente vivida, espraiada nos meus gestos mais repetitivos de cuidado e atenção”, avalia Carolina Fenati, que também é uma das editoras da Chão da Feira.

This article is from: