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DJAMILA RIBEIRO

não tá aqui pra atender às expectativas de ninguém. Ela é filha de Oxóssi e mestre em filosofia. Professora universitária da PUC de São Paulo e influenciadora digital com mais de 1,2 milhão de seguidores no Instagram. Confessional em Cartas para Minha Avó e acadêmica em Lugar de Fala. Feminista negra e garota-propaganda da Prada. Reikiana nível 2 e best seller número 1 – seu Pequeno Manual Antirracista foi o livro mais vendido no site brasileiro da Amazon em 2020.

Mas esse negócio de não atender às expectativas pode ser puxado. “Tô cansada”, revelou em entrevista à Mina. “Quero provar o quê? Pra quem? E isso de ter que fazer um milhão de coisas? Agora quero olhar para mim. Não é egoísmo olhar para mim.” Ao contrário, ela continua, olhar pra si deveria ser um direito de todos e não um privilégio de poucos: “É muito importante ver o autocuidado como algo coletivo, que deve ser mais democratizado, que é fundamental para a nossa sobrevivência”.

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Pra mim, o lado bom da pandemia foi ter sido forçada a parar. Tava num ritmo muito insano de trabalho. Em 2019, participei de 174 eventos, uma loucura. Terminei o ano estafada. Os três primeiros meses da pandemia foram muito difíceis. Eu tinha muita incerteza: como vai ser, como vou pagar as pessoas, como vou trabalhar? Por outro lado, fui forçada a olhar para mim. Olhar para si não é muito gostoso, você encontra coisas que não gosta, por isso tanta gente prefere não enfrentar isso. Melhor fingir que não tá acontecendo nada.

Djamila Ribeiro não tá mesmo aqui pra atender às expectativas de ninguém.Em Cartas para Minha Avó, você escreve: “Não perco mais as oportunidades de cuidar de mim, fazer isso é um modo de honrar você”. Como foi entender que merecia se cuidar?

Foi um processo longo e difícil. Cresci ouvindo que mulher negra é guerreira. Até que ponto isso é verdade? Não queria nem ser guerreira e nem me subalternizar, só queria ser humana, com toda a complexidade isso envolve: aceitar as fraquezas, as vulnerabilidades. Minha avó e minha mãe não cuidaram de si mesmas porque não puderam fazer isso, tinham que se preocupar com a sobrevivência delas e com a nossa. Isso não devia ser naturalizado.

Como encarar a própria vulnerabilidade?

O candomblé me ajudou muito. Sou iniciada desde criança, mas fiquei muito tempo longe. Quando retornei, olhei pros arquétipos que as orixás femininas trazem. Tem um itã [narrativa mítica] de Oxum que diz: “Antes de cuidar dos seus filhos, Oxum limpa suas jóias”. Isso ensina a olhar para si. Não é porque você é mãe, que precisa se abandonar. As matrizes africanas olham o feminino numa outra perspectiva.

Você escreveu que você tinha pavor de ser “mulherzinha”.

Fui criada pelo meu pai pra ser independente, o que é ótimo. Mas eu olhava como uma dicotomia: se sou isso, não posso ser aquilo. Via a minha mãe, dona de casa, e falava que jamais seria como ela. Queria trabalhar fora… Virei mãe, envelheci e entendi como o cuidado foi fundamental na minha vida: se o meu pai me incentivou a estudar, foi minha mãe quem arrumou meu cabelo, cozinhou pra mim e lavou o meu uniforme.

A maturidade ajudou a fazer as pazes com o feminino. Fazer 40 anos também mexeu nisso?

Escrevi o livro com 40 anos, tô com 41. A maturidade me ajudou a fazer as pazes com o feminino, a valorizar o papel da minha mãe e da minha avó na minha vida. Muito do que sou, devo a elas. Celebrar esse feminino foi importante pra entender que também sou a pessoa que chora, que gosta de cuidar das plantas, que gosta de ficar em casa com a filha. Comecei a olhar esse feminino como potência.

Ficou mais generosa com você mesma?

Tô muito mais tranquila em me aceitar, com meus desafios. Tive uma formação muito dura, minha mãe foi brutalizada pela vida. Cresci numa família em que era praticamente impossível errar: “Você é negra, não pode errar ou a sociedade vai te punir”. Entendo por que minha mãe fez assim, mas é duro. A gente cresce com medo, infelizmente.

Você faz ou já fez psicanálise?

Fiz e foi muito bom. Um ano e pouco de terapia, quando meus pais faleceram, um atrás do outro… [Djamila tinha 20 anos quando a mãe, dona Erani, morreu de câncer no rim; um ano depois, morreu o pai, seu Joaquim, câncer de medula.] Hoje, faço terapia holística. Apometria, que é tipo uma ressonância magnética do seu emocional, e reiki. Sou reikiana nível 2, me aplico todos os dias, aplico nas pessoas. Isso é fundamental pro meu bem-estar, pro meu autocuidado.

Você se sentia deslocada no mestrado?

Muito, me sentia sozinha. A academia foi muito hostil. Era a única aluna estudando Simone de Beauvoir, era a moça que estuda gênero. Fiquei num não-lugar. Um dia descobri no google a Simone de Beauvoir Society [fórum internacional de pesquisa sobre a pensadora francesa]. Tive que ir pra fora encontrar referências.

Ninguém estranha estudar filósofos judaico-cristãos, como Kierkegaard ou Espinosa, mas se entra candomblé…

A gente estuda escolástica, com São Tomás de Aquino e Santo Agostinho, e isso não é uma questão. A filosofia ensinada no Brasil ainda é muito eurocêntrica. Isso é coisa de quem não entendeu nossas matrizes: no candomblé não tem essa dicotomia entre razão e emoção. Não é só “penso, logo existo”, também é “sinto”. A gente vem de outra geografia da razão. Pra nós, não é problema o sentir estar aliado com o pensar, com a dança, com a música. É uma coisa só.

Tentam enquadrar o candomblé na lógica ocidental

Falta esses intelectuais entenderem o que dizemos quando propomos epistemologias do terreiro. A própria discussão sobre o feminino… Quando as pessoas falam que feminino é submisso. Bom, dentro da perspectiva ocidental, né? As deusas iorubás não têm nada de submissas, Iansã não tem nada de submissa. Oxum tá em casa, mas os saberes da casa são valorizados.

Você é uma das pensadoras mais conhecidas do país, mas uma parte da academia torce o nariz pra quem rompe o muro da universidade. Sim, sou professora e tenho que fazer certos enfrentamentos. Sempre quis ser popular, vim do povo. Chegar lá no Grajaú [periferia de São Paulo] e ver as meninas de 13 anos com o meu livro na mão é o que eu queria. Fazer eventos com empregadas domésticas é o eu queria. Me emociono muito quando chego nesses lugares e vejo pessoas como a minha mãe, como a minha avó.

Você se reconhece ali.

Exatamente, cresci com essas pessoas. Um podia ser meu tio, outro, meu primo. Falei pra 2 mil pessoas no Acre, pra 3 mil no Ceará. Quando fui a Mossoró [no interior do Rio Grande do Norte] tinham 2 mil pessoas, foi muito marcante pra mim. No dia seguinte, fui pra Apodi e os alunos do ensino médio tavam estudando o meu livro. Voltei chorando… Essas expressões não são mais só de especialistas. Era isso que a gente queria. Autores negros e negras que chegaram no povo e também estão na bibliografia de cursos na USP, de tudo que é universidade. Quando as pessoas falam que feminino é submisso. Bom, dentro da perspectiva ocidental. É importante frisar que queria pautar a academia, passei minha graduação e mestrado sem ter acesso a esses livros.

Audre Lorde escreve no epílogo de Uma Explosão de Luz: “Cuidar de mim não é autoindulgência, é autopreservação”. Como tudo numa sociedade capitalista, o autocuidado pode ser esvaziado. Mas não vamos partir do esvaziamento, vamos partir daquilo que é. Autocuidado é fundamental. A Audre Lorde dizia: “Como vou viver numa sociedade patriarcal e racista se não cuidar de mim?”. Até brinco que queria fazer uma campanha: “Massagem é cura, não é frescura”. É importante ver o autocuidado como algo coletivo, fundamental pra nossa sobrevivência e que deve ser mais democratizado.

Como democratizar o bem-estar num país tão desigual?

É muito difícil, apesar da gente ter no SUS dezenove terapias complementares, como reiki e acupuntura. É uma política pública. Autocuidado não é algo meramente individual. São técnicas ancestrais de cura, como massagens que vêm de povos asiáticos e africanos. Reflexologia é uma técnica milenar. Chega aqui e vira um negócio de rico, massagem em geral custa uma fortuna. Tem que quebrar essa lógica. Tem várias terapeutas que atendem a preços populares.

A pandemia fez muita gente pensar mais em autocuidado. Pra mim, o lado bom da pandemia foi ter sido forçada a parar. Tava num ritmo muito insano de trabalho. Eu tinha muita incerteza: como vai ser, como vou pagar as pessoas, como vou trabalhar? Por outro lado, fui forçada a olhar para mim. Olhar para si não é muito gostoso, você encontra coisas que não gosta, por isso tanta gente prefere não enfrentar isso. Melhor fingir que não tá acontecendo nada.

A escritora Grada Kilomba fala da “liberdade de ser eu”.

É uma amiga muito querida, psicanalista também, e me ajuda muito nesses meus processos. Vá desfrutar da vida. Um monte de mulheres me escrevem, brancas e negras, falando “acho tão legal você mostrar que é possível se divertir”. Sou reikiana nível 2, me aplico todos os dias, aplico nas pessoas. Isso é fundamental pro meu bem-estar, pro meu autocuidado. Aí me marca em foto na praia, me marca tomando uma com as amigas. A gente também tem direito de desfrutar do mundo.

Discordo de quem acha que cabelo alisado é alienação. A mulher pode estar num processo de se entender. Você cresceu numa vizinhança branca. Sua filha enfrenta o mesmo?

Na escola, são poucas adolescentes negras como ela. Mas acho que a Thulane lida muito mais tranquilamente com essas coisas, porque é de uma geração muito mais antenada que a minha. As amigas dela tão discutindo feminismo aos 15, 16 anos.

Você implorava pra alisar o cabelo.

E meu pai, militante, não deixava. Tive que passar por alguns enfrentamentos pra minha filha não passar, assim como minha mãe enfrentou coisas pra que eu não enfrentasse. A Thulane tá com o cabelo crespo agora, de vez em quando põe trança, cuida, hidrata. Tem muito mais afeto com ela mesma do que eu tinha.

Quando fez as pazes com o seu cabelo?

Não parei de alisar por conscientização, não. Foi porque engravidei da Tulane e não pode usar química durante a gravidez. Fui forçada a parar de alisar. Nesse processo, redescobri meu cabelo, sua textura… Comecei a gostar e nunca mais alisei. Por isso digo: “Não se culpem, é um processo”. A maternidade me fez mudar essa chavinha, não queria que minha filha passasse pelo que passei. Meu pai segurou o máximo que pode, mas na adolescência fui pro salão alisar.

E a reação dele quando viu seu cabelo liso?

Não me lembro exatamente… Mas ele vivia criticando, dizendo que eu passava veneno no cabelo. Aquelas químicas da época ardiam, faziam ferida, tinham cheiro muito forte. Sempre expressou que não gostava que eu fizesse isso, mas gerakmente não me abalava. Ele olhava com reprovação e eu falava: “Ah, não é o senhor que é zoado na escola”.

Usando um verso da Audre Lorde: o seu cabelo ainda é político?

Com certeza. Numa sociedade como a nossa, em que o racismo tem um papel preponderante na construção do belo, assumir nosso cabelo, nossos traços, é um ato político. Agora, como ativistas não podemos apontar o dedo pra quem alisa o cabelo. E assumir o cabelo tem consequências: ela pode perder o emprego, ser apontada na rua, discriminada. Nos Estados Unidos, várias mulheres que usam lace e alisam porque gostam, não por imposição estética. Se a mulher branca pode alisar, cachear e fazer tudo, por que nós não podemos?.

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