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O que é genêro não binário e como usar a linguagem neutra
GILDSON DI SOUZA
O GÊNERO NÃO BINÁRIO E A LINGUAGEM NEUTRA
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A IDENTIDADE NÃO BINÁRIA REFERE-SE ÀQUELES QUE SE IDENTIFICAM COM OS GÊNEROS FEMININO E MASCULINO — OU NENHUM DELES
por LIZ SANTANA
As possibilidades de identificação se multiplicam e cada vez mais as gerações se permitem ser mais livres e autênticas
Você provavelmente já se deparou com a expressão “gênero não binário” na internet. O termo, apesar de não ser novo, ganhou maior destaque recentemente em função das declarações de celebridades que não se identificam simplesmente como homens ou mulheres. As noções de gênero primárias, que contavam somente com a binariedade, foram essenciais para a exclusão e desigualdade não só apenas de indivíduos cisgênero, como de indivíduos com opções sexuais não normativas e transgêneros Esse é o caso da atriz brasileira Bárbara Paz que, em uma entrevista para o podcast Almasculina, se descreveu como uma pessoa inquieta. “Uma mulher, um homem, não binária. Descobri que sou não binária há pouco tempo”, disse no episódio que foi ao ar em 1º de maio. E, no dia 19 do mesmo mês, a atriz e cantora norte-americana Demi Lovato também compartilhou o seu processo de autoconhecimento nas redes sociais. “Eu passei por um trabalho de cura e reflexão e, com isso, tive a revelação de que me identifico como pessoa não binária”, falou em vídeo publicado no Twitter. “Acredito que isso representa melhor a fluidez que sinto na minha expressão de gênero”, complementou a cantora.
Bom, mas o que exatamente significa ser uma pessoa não binária? Para começo de conversa, é interessante resgatar dois conceitos: cisgênero e transgênero. O indivíduo cisgênero é aquele que se identifica com o gênero que lhe foi designado de acordo com o órgão genital. Os transgêneros são aqueles que não se identificam com o gênero imposto no nascimento com base no sexo biológico – e é aqui que se encontram os não binários, além de mulheres trans e homens trans.
“Pessoas não binárias sentem que sua identidade de gênero não pode ser definida dentro das margens da binariedade”, explica a organização lgbt Foundation. “Em vez disso, elas entendem o gênero de forma que ultrapassa a mera identificação como homem ou mulher.”
Assim, os não binários podem se reconhecer nos gêneros feminino e masculino ao mesmo tempo, mas também não se identificar com nenhum desses dois
AMANDA CHARCHIAN
Demi Lovato, a cantora que questionou sua identidade de gênero
rótulos, ou então se sentir às vezes como homens e outras vezes como mulheres, já que a binariedade é construída a partir do contexto social, histórico e cultural.
QUAL PRONOME USAR?
No dia a dia, a linguagem é um mecanismo importante de afirmação de identidade, autoconfiança e autenticidade. E, assim como os seres humanos, esse é um recurso bastante diverso, então vale se atentar para a maneira correta de se referir às pessoas. É dentro desse contexto que, visando a inclusão da comunidade lgbt, a linguagem neutra ganha força na sociedade. Enquanto
alguns indivíduos não binários optam por um pronome de tratamento específico (“ele” ou “ela”), outros preferem os pronomes neutros, como “ile” ou “elu”, substituindo as letras que indicam os gêneros com o uso da letra “u”.
No caso de outras palavras, “a” e “o” podem ser trocados por “e”, como em “senhore”, “filhe”, “amigue”, “namorade” e “todes”. E, ao utilizar o masculino para falar de forma genérica, como em “professores”, também é possível optar por termos mais amplos, como “corpo docente”. Diante de tanta diversidade, não há regras universais. O princípio, porém, é básico: respeito. Se você não souber como se referir a alguém, pergunte. Também é fundamental respeitar o nome com o qual a pessoa se apresenta e não questionar qual seria o nome antigo. “Esse é um dos principais pontos para ser respeitoso com uma pessoa não binária, porque o nome que você utiliza pode não refletir a identidade de gênero dela”, explica a fundação norte-americana National Center for Transgender Equality.
Apesar de não ser nova, a não binariedade ainda é desconhecida por muitos e frequentemente é alvo de discriminações e atitudes desrespeitosas. Por isso, é importante ter em mente que a forma como você deseja ser tratado não necessariamente é a maneira mais adequada de tratar outras pessoas e que a identidade de gênero é uma experiência interna e individual.
A identidade de gênero é uma questão de autopercepção, visto que a autoimagem é o fator que mais se sobressai
LIMITES ELÁSTICOS
É PRECISO SE ADAPTAR AO “NOVO NORMAL”, COMO INDIVÍDUO E SOCIEDADE. MAS COMO SÃO CONSTRUÍDOS OS NOSSOS LIMITES E ATÉ QUE PONTO ELES SÃO ELÁSTICOS?
por WILLIAN VIEIRA ilustrações PEDRO VELASCO
Um dia os habitantes de Oran se viram trancados entre os muros da cidade, sem poder sair, encontrar os seus, tatear o mundo lá fora – novos limites que, aos poucos, foram se tornando o “novo normal”. “Nossos concidadãos haviam-se posto a par, tinham-se adaptado, como costuma dizer-se, porque não havia maneira de proceder de outro modo. Eles tinham ainda, naturalmente, a atitude da desgraça e do sofrimento, mas já não os sentiam mais.”
Na física, o conceito traduz o comportamento de um material após um trauma (como uma mola que se contrai e expande até voltar ao “normal”). Em psicologia, na educação e, cada vez mais, até nos negócios (e de formas muitas vezes sorrateiras), o termo tem sido usado para definir a capacidade de lidar com adversidades. Como os oranianos de Camus, a gente sofre, esperneia, mas se adapta. Nossos limites são mais elásticos do que parecem.
Com o vírus à espreita, a vida virou de cabeça para baixo e novos limites – espaciais, de movimento, de toque, de perspectivas – foram impostos da noite para o dia. De forma mais ou menos consciente, somos sempre convocados a lidar com o avanço sobre nossos limites. E a pandemia acaba exacerbando a questão que já dominava o contemporâneo, sobretudo nas metrópoles, onde a vida é ditada pelo ritmo frenético do capitalismo: até onde vão os nossos limites na sociedade?
A GENEALOGIA DO LIMITE
Mais do que elásticos, eles são móveis. “A noção de limites vai se reeditando para o sujeito desde pequeno”, diz o psicanalista Christian Dunker, professor da Universidade de São Paulo. Haveria, diz, três fases na construção mental dos limites. “Primeiro habitamos a dialética do amor e da família, com sua moralidade pré-convencional.” Para uma criança, os limites são coercitivos: pode, não pode, sim, não. “Eles têm a ver com a pessoa envolvida, que é insubstituível em sua posição: pai é pai, mãe é mãe.”
Aos poucos interiorizamos a lei, criando hábitos e substituindo a regra imposta de fora pela autonomia: então nos vemos como participantes da construção de regras em uma lógica composta por relações de amizade e cooperação. “Quando comparo o meu limite com o do outro, entendo que eles têm história, geografia. E assim crio disciplina, entendo que há uma relação entre o caso e a regra.” Por fim adentramos o universo do ordenamento jurídico e do sujeito de responsabilidade, “passando a negociar as regras em relações éticas e políticas.” O que envolve transgressões e retomadas, diz Dunker. “Criamos uma linha imaginária que não devemos cruzar, mas cruzamos. A partir dos efeitos dessa violação, reconfiguramos a relação entre regra e exceção, recompondo os limites de forma permanente como uma construção.” Para a psicanalista Sandra Baron, “nossa noção de limites é como uma membrana subjetiva que nos separa do fora, do outro, do mundo”. É uma construção psicológica, cultural, invisível. E só percebemos a existência do limite quando ele é experimentado.
TRÊS ATITUDES DIANTE DOS NOVOS LIMITES
De forma mais ou menos consciente, somos sempre convocados a lidar com o avanço sobre nossos limites. “A tarefa do eu é encontrar formas de enfrentar
essa invasão”, diz Baron. Podemos aceitar a imposição passivamente, só resistindo; lutar teimosamente contra o novo limite; ou – mais indicado – ampliar nossas limitações para comportar a mudança. “Ou seja, agir de forma ativa, adaptando-se sem perder nossa subjetividade e nossa abstração”. Na contramão dessa sujeição existe a negação total dos limites. “Para manter o que se considera “normal”, muitos ignoram a mudança, defendendo com unhas e dentes sua identidade”, diz Baron. “Para manter os limites subjetivos, a pessoa nega parte da realidade”. E daí, não existe mais empatia.
Pois não existe só o “trauma espetacular”, a violência contra os limites fácil de identificar, como um assalto por exemplo. “Há traumatismos insidiosos, compostos por microtraumas do cotidiano”, diz a psicóloga.
OS LIMITES ÉTICOS: A MINHA VALE MAIS DO QUE A SUA
Quando os limites são abstratos, a negociação sobre onde começa o seu limite e termina o do outro se complica. Vide o conceito universal de valor da vida. “É preciso defender a vida, mas de quem? A minha ou a sua? A dos meus familiares e amigos ou a de desconhecidos? A vida branca ou a negra?”, pontua Dunker.
Ao se contrapor o real e o ideal, chega-se à negação dos limites – no caso, o dos outros. “Nomear os limites é uma estratégia que ou lhes dá visibilidade ou os torna invisíveis”, diz Dunker. “É “dupla moral”: quando exerce restrição sobre mim, a lei é uma: quando exerce sobre o outro, é outra.” E assim o brasileiro dá um passo civilizacional atrás com o atual governo baseando os limites na lógica da família, não na ética universal. Na contramão dessa sujeição existe a negação total dos limites. O que explica a polarização atual. “Há grupos que saem às ruas pelo fim do isolamento. É uma afronta ao limite do outro. Mas eles sentem que os novos limites são uma afronta ao direito deles.”
OS LIMITES DO INDIVIDUALISMO
Ter um presidente negacionista não é exclusividade brasileira. Os novos limites são uma afronta ao direito deles. “O presidente sai sem máscara na rua, diz que se você é forte como ele não chora, se adapta; não reclama, trabalha.” Quem afirma é a psicóloga Froma Walsh, professora da Universidade de Chicago e especialista em resiliência. Ela fala de Donald Trump. “Esse indivíduo que ignora a realidade e o limite dos outros impede um processo de cura e adaptação.” Donald Trump é a encarnação do rugged individual, o sujeito autossuficiente que não respeita limites, noção arraigada na cultura americana – e posta em xeque na pandemia. “O Ocidental se construiu sob a ideia de independência do sujeito, mas isso reflete cada vez menos a realidade”, afirma a professora e psicóloga. É o que alimenta o embate em torno da vacinação por lá: a imunização precisa contar com toda a sociedade, o que parece uma agressão ao individualismo.
Ocorre o mesmo com a pandemia – para reduzir a transmissão é preciso impor limites pensando no sucesso geral da empreitada.
“É o que se faz em tempos de guerra. E estamos passando por uma, contra o vírus. O aprendizado fundamental dessa crise é que precisaremos depender uns dos outros, mesmo à distância, para dar e receber o suporte vital para lidar com essas novas questões que estão surgindo. De forma mais ou
As noções de limites são instauradas na infância e refletem nos comportamentos
menos consciente, somos sempre convocados a lidar com o avanço sobre nossos limites. É por meio dessas conexões que poderemos ser resilientes.”
E as pessoas estão se conectando, não só em bate-papos no
Zoom e nos panelaços nas janelas, mas costurando máscaras para doar, organizando entrega de alimentos, fazendo lives. “Numa situação como essa, se você amplia os limites, é possível viver um alargamento do eu e sair de padrões neuróticos”, diz Baron. New Orleans foi devastada, não se sabia o que o futuro traria. “Mas havia uma ideia sobre o que importava às pessoas. E a música era uma delas.” Então eventos musicais voltaram a pipocar, diz, permitindo que as pessoas se reconectassem, inclusive com a cidade. “O mesmo vale hoje, para comunidades e indivíduos.”
Em comunidades como a de Paraisópolis, em São Paulo, a concentração de pessoas e a falta de ação do Estado deixa a população vulnerável diante da pandemia – os moradores, então, instituíram lideranças e criaram redes de apoio para difundir informação, contratar médicos, distribuir comida e remédios. “Mesmo desamparadas, as comunidades criam mecanismos de conexão”. É uma “resiliência criativa”, diz Dunker. A rotina, afinal, é um acumulado de pré-decisões, de coisas em que não se pensa mais. “Mas nos dá a oportunidade de repensar a vida, perceber que a rotina antiga era sem pé nem cabeça, incongruente com o que queremos da vida.” Ao se opor o real e o ideal, chega-se à negação dos limites.
Criamos uma linha imaginária que sabemos que não devemos cruzar, mas cruzamos. A partir dos efeitos dessa violação, reconfiguramos a relação entre regra e exceção, recompondo os limites de forma permanente como uma construção social. Em três décadas de pesquisa sobre resiliência, Walsh identificou como processo chave a “transcendência”, ou o que chama de “arte do possível”: se tornar criativo com os limites, tentar o inédito. “Afinal, o vírus está aí e nos empurra para novas formas de existir, conviver, trabalhar.” Quando se vive uma situação assim paradoxal – com muitos novos limites, de um lado, mas sem perspectivas, de limites, diz. “É como um barco sem âncora no mar: vivemos a incerteza total sobre o futuro.” Como ser resiliente nesse contexto tão adverso? “Enfrentando o luto pela perda da forma como vivíamos e ressignificando os limites”, afirma. “Porque nosso normal nunca mais será o mesmo.”
COMO AS REDES SOCIAIS ALTERAM A NOSSA PERCEPÇÃO DE TEMPO
DA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL À DIGITAL, O TEMPO SEMPRE FOI MODULADO PELA TECNOLOGIA. ENTENDA COMO A INTERNET AFETA NOSSA RELAÇÃO COM O RELÓGIO
por DANIEL VILA NOVA fotos LUISA MOLINA
Do Facebook ao Instagram, do Twitter ao Tiktok, a presença dos aplicativos em nossas vidas é tamanha que vem alterando a maneira como nós entendemos e nos relacionamos com o tempo. Se antes as pessoas lidavam com o que estava ao alcance físico delas, hoje, com a possibilidade de uma rede que nos conecta instantaneamente a qualquer lugar ou informação do mundo, temos que lidar com diversos “agoras” – a conversa entre amigos no chat de celular, o e-mail do trabalho, o feed da rede social, e o que acontece no espaço físico em que a pessoa está. À medida que a nossa noção de tempo é fragmentada, a maneira com que percebemos e reagimos ao que ocorre ao nosso redor é alterada. Para a socióloga britânica Rebecca Coleman, as redes sociais e o mundo digital passaram a produzir “agoras” diferentes e não um único “agora” uniforme e coeso. Em suas pesquisas, ela se dedica a entender como esses diferentes presentes são moldados por meio de diversas plataformas-. Ela indica que, com o advento do digital, passamos a lidar com ao menos três “agoras” diferentes – o agora em tempo real, o agora alongado e o agora eliminado. O agora em tempo real, exemplificado por notificações de mensagens e menções em redes sociais, é uma atividade digital que acontece de imediato e que costuma exigir uma resposta, independentemente do horário. Já o agora alongado, exempli-
ficado por quando mexemos nas redes sociais e a atualizamos em busca de conteúdo, é uma ação constante, que nunca é finalizada. Por fim, o agora eliminado, exemplificado por quando buscamos o digital para matar tempo, é um movimento que busca eliminar o tempo o mais rápido possível, geralmente quando estamos esperando algo acontecer no mundo físico. De acordo com a própria Rebecca, as definições por vezes se entrelaçam, mas a socióloga entende que o mundo digital transformou o “agora” em um elemento com limites elásticos que se alongam e contraem, se expandem e condensam. Em um período em que tudo parece acontecer ao mesmo tempo, é natural que a forma com que a humanidade encara o tempo se altere. “A possibilidade de ter uma comunicação instantânea e constante aliada à disponibilidade de informações de maneira veloz afetam a nossa organização e percepção de tempo”, afirma Andre Cravo, professor e pesquisador da ufabc.
Assim como em outras revoluções tecnológicas ao longo da história, a revolução digital alterou a maneira com que nossa sociedade lida com o conceito de tempo. Enquanto todos tentam se readaptar e entender qual é a nova estrutura temporal a ser seguida, as redes sociais parecem já ter sentido que atenção e tempo não só andam juntos, como também são extremamente lucrativos.
Especialistas do comportamento humano e do mundo digital para explicam qual o papel do tempo no século atual, como as redes sociais sabotam nossa percepção temporal e o que podemos fazer para nos tornarmos os senhores do nosso próprio tempo.
TUDO, O TEMPO TODO
Atenção e tempo estão intimamente relacionados, é o que afirma Andre Cravo. “Quanto mais atenção você presta no tempo, mais devagar o tempo passa. Quando alternamos de forma constante o foco de nossa
atenção, o tempo acaba passando mais rápido e nós sequer percebemos.” Para o psicólogo, prestar atenção em mais de uma atividade ao mesmo tempo sempre será custoso do ponto de vista cognitivo. Enquanto usamos o celular, é comum que nossa atenção esteja fragmentada entre diversas atividades online que estamos realizando ao mesmo tempo. Também temos o costume de realizar atividades no mundo físico enquanto mexemos na internet, o que só divide ainda mais a nossa atenção. “Humanos acreditam que são bons em multitarefa, mas a verdade é que somos péssimos. Alternar entre tarefas é desgastante, esse malabarismo causa fadiga, redução do desempenho e o aumento do estresse”, diz Ofir Turel, professor de Sistemas de Informação e Ciência da Decisão e pesquisador na área de tecnologia e vício. Se a maneira com que lidamos com a multitarefa no mundo digital impacta a maneira com que percebemos o tempo, outro fator que altera a nossa percepção são as diferentes relações que estabelecemos com o fim de atividades físicas e digitais. Enquanto os acontecimentos físicos têm um tempo próprio – o dia tem começo, meio e fim –, o mundo digital foge disso. Reuniões, e-mails e mensagens chegam o tempo inteiro e as notificações no celular aparecem seja de manhã, de tarde ou de noite. “A sensação de completar uma tarefa é algo muito importante. Quando temos uma tarefa constante, que não acaba, a sensação é de que você nunca terminou o que precisava fazer”, diz Cravo. Ao terminar de cozinhar, você tem às mãos uma refeição. Ao terminar de limpar a casa, você tem um ambiente limpo. “O fim de uma tarefa te permite ter uma organização melhor do tempo, mas o digital não obedece a essas estruturas”, afirma o psicólogo. Ao ignorar o tempo natural em que certas atividades são realizadas, o ambiente digital é capaz de alterar a maneira com que encaramos e lidamos com o tempo
disponível. Quem nunca, enquanto assistia a um filme, se distraiu mexendo no celular e acabou perdendo um diálogo importante ou uma revelação bombástica na trama. Ao tentarmos equilibrar “agoras” diferentes, nos confundimos e perdemos informações vitais para as atividades que estamos fazendo. Se a cognição humana já apresenta dificuldades para executar a multitarefa e sofre com ações que nunca são finalizadas, as redes sociais apostam em conteúdos sem fim e que demandam nossa constante atenção para nos seduzir.
“No mundo digital, vemos uma série de iniciativas que buscam evitar que as coisas sejam terminadas. Um dos objetivos dos aplicativos das redes sociais é fazer com que as pessoas percam a noção do tempo”, fala Cravo. O propósito é fazer com que o usuário gaste o maior tempo possível dentro do aplicativo, utilizando uma série de estratégias que alteram a percepção de tempo do usuário. “Você nunca sabe há quanto tempo está lá, mas as informações e as tarefas estão sempre chegando”, diz o psicólogo e psicanalista.
De acordo com o professor de Sistemas de Informação Ofir Turel, o uso dos aplicativos é reforçado por meio da repetição de uso e recompensas, as curtidas, que são recebidas em um parâmetro desconhecido pelo usuário (você nunca sabe quando ou quantas curtidas receberá). “Isso faz com que nosso cérebro aprenda a associar o uso dos aplicativos ao prazer
É muito fácil perder a noção de tempo navegando dentro do mundo digital
O cérebro tem um papel importante na sensação do passar do tempo por meio da internet
da curtida por meio da liberação de dopamina no cérebro, o que nos faz querer passar mais e mais tempo lá.” Ao criar um loop infinito e contínuo de reforço, os aplicativos fazem com que o nosso cérebro se mantenha em uma constante busca por mais dopamina. “Sempre que terminamos de ver um vídeo ou ler uma página, elementos novos e desconhecidos são carregados e apresentados na plataforma”, complementa.
“Quem nunca foi usar uma rede social por um tempinho e, quando se deu conta, estava usando por mais de uma hora?” questiona Cravo. Conforme nos afastamos da organização mais natural do tempo, a percepção e a organização dele torna-se cada vez mais difícil. “Quando estamos fazendo algo que gostamos, perdemos a noção do tempo. Acabamos subestimando a quantidade de tempo que passamos no aplicativo, que parece ser mais curto do que realmente é, e superestimamos o tempo entre o uso dos aplicativos, que parece ser mais longo do que é”, afirma.
ESTRATÉGIAS PARA SEQUESTRAR SUA ATENÇÃO
As ferramentas utilizadas pelas redes sociais para manter o usuário no aplicativo são das mais variadas – feed infinito, tempo limitado em que postagens ficam disponíveis, timelines não cronológicas. Nada disso é por acaso, alerta Cravo. Na timeline cronológica, você consegue saber até onde consumiu o conteúdo e em que ponto pode encerrar sua visita no aplicativo. Ao quebrar essa ordem cronológica, perde-se a noção de quanto falta para ele ser finalizado. Quando estamos vendo um streaming, é só acabar um episódio que outro começa imediatamente. A ideia, segundo o psicólogo, é criar a sensação de que aquela tarefa nunca se completa. Já em conteúdos que têm uma data de expiração, como os Stories do Instagram ou o Snapchat, há uma cobrança para que o usuário consuma aquele conte-
A mudança no tempo de duração de conteúdos na internet contribui para a percepção do tempo
údo o quanto antes. Aqui, o artifício é o de obrigar o usuário a prestar atenção no tempo, fazendo com que se visite o aplicativo ao menos uma vez por dia. “Raramente é uma informação completamente imperdível, mas as redes já criam essa sensação de que estamos perdendo algo. Quando isso é potencializado com algo que pode ser perdido, é natural que isso nos afete.” De acordo com Cravo, qualquer tipo de manipulação que afete a relação temporal de alguém vai afetar também a percepção e a organização temporal.
TÃO ANTIGO QUANTO O TEMPO
Há alguns séculos atrás, cada cidade europeia obedecia a um horário próprio. Com o surgimento do trem, entretanto, as cidades do continente tiveram que rearranjar os seus horários para acomodar a passagem das locomotivas. Com a revolução industrial, algo similar ocorreu. Os relógios das fábricas começaram a ditar o horário em que as pessoas começavam a trabalhar e, consequentemente, os horários em que elas acordavam, saiam de casa, chegavam em casa e dormiam. “A organização do tempo sempre foi modulada pela tecnologia, o digital não é exceção”, afirma Andre Cravo. Estar 24 horas disponível no trabalho, sem nunca se desligar, pode ser verdade para diversas profissões, mas a realidade é que tudo isso é muito recente. “Nem sempre nos damos conta disso, mas há algumas décadas atrás, pouquíssimas profissões exigiam o pager, tecnologia que permitia o acesso remoto a alguém o tempo todo. Ter internet em casa então, era algo muito raro. Nesse contexto, a divisão entre trabalho, descanso e lazer era bem mais fácil.”
Nos dias de hoje, quase todo profissional leva pelo menos um pouco de trabalho para casa, o que é custoso do ponto de vista cognitivo. De acordo com uma pesquisa da Deloitte, nove em cada dez brasileiros usam o celular para trabalhar fora do expediente de trabalho.
“Você tem que chegar em casa, cuidar do filho, cuidar da casa e estar sempre ligado no trabalho. É uma obrigação que nunca acaba, a todo o tempo dividindo sua atenção. Isso é custoso para a saúde mental.” Uma pesquisa realizada pelo cmi (Chartered Management Institute) em 2016 aponta que um cidadão britânico trabalha 29 dias a mais no ano por conta do seu smartphone. Com a pandemia e o home office, a situação que já era complicada se tornou extrema. Se no começo trabalhar de casa foi um paraíso para muitos, rapidamente a dificuldade de separar o que é casa e trabalho fez com que a organização do tempo fosse confundida ainda mais.
Assim como no trabalho nas fábricas e em outras inovações tecnológicas, Andre Cravo enxerga que o futuro do digital será um futuro de regulamentações. Em alguns anos, o pesquisador acredita que veremos restrições mais rígidas em relação ao uso de celulares e redes sociais. “O termo regulamentação pode parecer muito negativo, como se regulamentar fosse igual a tirar liberdade. Mas, a regulamentação pode ensinar o uso responsável.” O pesquisador, entretanto, alerta: essa não será a realidade de todos. Se o detox digital é cada vez mais comum, diferentes relações trabalhistas terão diferentes possibilidades de descanso digital. Para muitos, o trabalho exigirá que eles estejam disponíveis vinte e quatro horas por dia e grupos marginalizados tendem a sofrer mais com essa realidade. Se o futuro promete o desenvolvimento de ferramentas para que nosso tempo seja usado de maneira mais saudável no âmbito digital, Cravo alerta que as redes sociais continuarão a batalhar para que os usuários fiquem o maior tempo possível em seus aplicativos. Como lidamos com a multitarefa impacta em como que percebemos o tempo. “É importante entender que não somos espectadores passivos da percepção do tempo. Nós temos uma agência nisso e é importante tomar controle de onde e quando você gasta o seu tempo”. Como nos afastamos da organização do tempo, a percepção dele torna-se cada vez mais difícil Se você deseja recuperar parte do controle que o mundo digital tomou, indicamos cinco passos para reduzir o uso das telas e tornar a navegação em redes sociais uma tarefa mais saudável. De um jejum intermitente digital ao uso da própria tecnologia para combater as telas, as dicas te mostram o caminho para não ter uma overdose digital.