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nova consciência

LINHA DE CRESCIMENTO E NOSSAS NOVAS VERSÕES

texto MARIA RIBEIRO ilustração BHECCA

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Não sei se o recenseador, ou recenseadora, irá perceber meu esforço. Aquele que tenho feito pra limpar gavetas e abrir mão de outras versões. Três receitas do pediatra da minha meninice, Pedro Solberg, com minha linha de crescimento aos sete, oito e onze anos de idade. Duas coleções de revistas, um fichário com partituras pra violão, quatro pastas de cartas em papel almaço, dezenas de recortes de artigos de jornal: tenho corrido pra receber o censo com a casa um pouco mais leve e quem sabe descobrir, a tempo da visita, quem sou eu afinal neste 2022.

O que, de fato, sobrou daqueles oito endereços que um dia comprovaram minha residência? Caixas de cadernos universitários, fotos de casamentos desfeitos, desenhos de dinossauros, indícios de uma vida que de nada servirá ao IBGE: é assim que eu tenho feito, com o auxílio luxuoso da bat-organizadora Joana Bocayuva, a despedida de 40 anos de papeis caoticamente divididos em cinco gavetas de madeira.

Tenho corrido pra receber o censo com a casa mais leve e quem sabe descobrir, a tempo da visita, quem sou eu afinal neste 2022. O censo tem dois questionários. Um mais básico e outro com perguntas que se inicialmente podem soar invasivas, logo funcionarão como um verdadeiro intensivão de psicanálise.

O país, com razão, quer saber onde, como e com quem moramos. Quer saber também até onde estudamos, se temos ou não religião, e quanto tempo levamos no deslocamento pro trabalho. Ninguém vai te confrontar sobre o porquê de você ter abandonado a música, casado aos 21 e ido pra Morro de São Paulo ao invés de Boipeba.

Filhos: tenho dois. Isso também é certo. Aliás, não só certo, como também divino maravilhoso, a não ser nos dias de Fla-Flu, quando minha imparcialidade materna é confrontada com a filha do meu pai tricolor (que às vezes ainda sou).

Que mais? O domicílio é particular, possui três quartos e dois banheiros e na porta – não sei se você, viu? –, tem vários adesivos do Lula. Ah, as gavetas, não sei se você notou, estão completamente de acordo com a pessoa que eu sou hoje, uma mulher de 46 anos que mora com seus dois rebentos e gosta de Ana Martins Marques, coca-cola e séries de tevê.

Não sei se o recenseador, ou recenseadora, irá perceber meu esforço. Aquele que tenho feito pra limpar gavetas e abrir mão de outras versões, e de investigar de que material minhas paredes são feitas. De toda forma, guardei as receitas com as linhas de crescimento. A altura não vai mais mudar, mas o ponto de vista, esse segue vivo como uma bandeira vermelha. Bora tentar de novo?

Maria Ribeiro

Atriz, escritora e diretora de cinema brasileira. Iniciou sua carreira na tv em 1994 e ganhou diversos prêmios durante sua carreira, incluindo um Grande Otelo.

O VALOR DAS HISTÓRIAS POR TRÁS DAS RUGAS NO ROSTO

texto PATRICK SANTOS ilustração BHECCA

Semana de aniversário é sempre um período especial. Curto a data, mas também aproveito para refletir um pouco sobre a vida. Se bem que…” Refletir sobre a vida” para um geminiano com ascendente em libra é praticamente redundante.

O fato é que cheguei aos 49 anos no último dia 11 de junho. Pela antroposofia, uma linha de pensamento que estabelece uma “pedagogia do viver”, estou entrando no chamado oitavo setênio (como são chamados os períodos de sete anos), que se estende até os 56 anos. É aquele momento em que se nota um declínio da vitalidade física ao mesmo tempo em que se acentua um desenvolvimento espiritual. Para ser mais direto, é a fase da vida que nos convida a olhar mais para dentro. Confesso que essa tem sido a minha “viagem” atualmente. Remexendo meus livros nesses últimos dias para uma resenha que estou escrevendo, deparei-me com uma frase grifada no delicioso Viagens com Epicuro, de Daniel Klein, que traz logo em seu primeiro capítulo: “infelizmente, passada uma certa idade, todo homem é culpado do rosto que tem”.

O rosto conta a nossa verdade como ser humano. A cara que ganhamos é o resultado das decisões que tomamos e das experiências resultantes dessas escolhas ao longo da jornada. E cada um tem a sua. Prestes a completar meio século, tenho sentido isso muito forte em minha vida. Trocar uma ideia com o espelho tem sido uma experiência um tanto quanto desafiadora.

Lembrei-me daquele aplicativo que fez muito sucesso uns tempos atrás nas redes sociais que nos permitia enxergar como estaríamos fisicamente quando velhos. A ferramenta é bem engraçada e muitas personalidades embarcaram na brincadeira que utiliza a inteligência artificial para projetar a nossa passagem no tempo. Dei boas gargalhadas à época ao me deparar com um Patrick bastante enrugado no futuro.

Mas fiquei pensando em algo que a tecnologia ainda não é capaz de captar: a real vida que levamos dentro de nós, aquilo que não conseguimos esconder de jeito nenhum. Ela mudaria muitos semblantes que correm pelas timelines do Instagram envelopados numa falsa verdade.

O rosto que seremos no futuro, carregará muito do nosso estado de espírito ao longo dos anos. Essa é a verdade que talvez só o tête-à-tête com a vida seja capaz de nos mostrar.

Rugas e marcas de expressão, todos teremos. Isso é imperativo da passagem do tempo, mas um olhar mais vivo, um semblante mais leve e um sorriso mais genuíno daqui algumas décadas dependem de outros fatores. A cara que ganhamos é o resultado das decisões que tomamos e das suas experiências resultantes, cada um tem a sua.

Patrick Santos

Jornalista, escritor e palestrante. Formado em mentoring humanizado, realiza trabalhos de desenvolvimento, visão de vida e propósito de pessoas em transição de carreira.

A CURA DA CRIANÇA INTERIOR: UMA VISITA DIFÍCIL À INFÂNCIA

texto THAIS BASILE ilustração BHECCA

É um tabu muito grande falar de pequenas e grandes violências que sofremos enquanto crianças, dentro de nossas famílias de origem. Não só porque a sociedade endeusa pais, mas porque também quer preservar o ideal de família feliz a todo custo, já que a família é o sustentáculo do sistema patriarcal capitalista em que estamos inseridos.

Dentro desse contexto, as justificativas são que os pais “fizeram o melhor possível com as ferramentas que tinham”, “era outra época”, “eles só queriam nos educar como podiam”. Eu sempre digo que a violência contra mulheres e crianças (as duas que ocorrem dentro do lar) são as únicas nas quais ninguém quer meter a colher. E parte dessas justificativas sociais são apenas silenciamento de vítimas.

Sim, boa parte dos pais apenas reproduziu de maneira inconsciente o que a própria sociedade esperava deles sem conseguir ser contraponto, também reproduziram o que viveram em suas infâncias. Mas, não é de responsabilidade de cada um olhar para as suas ações e para o dano que elas causam e estancar o sangramento dessas feridas?

Numa comparação social, as mulheres são as pessoas que mais sofrem abuso sexual, mas são as que menos praticam. É muito possível não repassar nossas dores e fazer algo produtivo com elas.

Pelo olhar das vítimas, poder falar e assumir que o que viveu foi violência é CURATIVO. Pessoas que são obrigadas a se calar não podem ser ajudadas e, em geral, voltam a culpa pra si mesmas e deslocam sua raiva para quem não as machucou.

Nesse contexto, somos empurradas a “entender” e a “perdoar” nos moldes tradicionais, muitas vezes sem que sequer os pais assumam as violências e negligências que praticaram e nem tentem repará-las. Ninguém precisa entrar em conflito ou romper com os pais se não quiser, mas precisa sim tomar seu próprio lado, se ouvir, acreditar em si e permitir que sentimentos contraditórios surjam, a fim de elaborá-los para que a violência não seja repassada.

O conceito de perdão pode ser bem subjetivo, mas, do ponto de vista clínico, ele não é necessário para começar um processo de cura. É mais importante que a pessoa possa sentir e ser apoiada em tudo que vier, isso sim impacta positivamente num processo pessoal.

E que qualquer tipo de perdão (SE a pessoa decidir que ele é importante) venha como uma consequência dessa varredura das emoções e desse apoio, e não como uma imposição social.

Não dá para fazer um futuro sem revisitar o passado, porque ele está atuando em nós até hoje. Essa visita pode ser dolorida, difícil e chata, contudo é o que chamamos de dor do crescimento.

Thais Basile

Mãe, psicanalista e escritora. É especialista em psicopedagogia institucional, consultora em análise comportamental e marketing e também educadora parental.

ORA, BOLHAS! O QUE LIMITA A NOSSA VISÃO DE MUNDO?

texto KAKÁ WERÁ ilustraçação BHECCA

Outro dia, tomando um café em uma cafeteria, li no celular uma notícia sobre uma certa personalidade muito famosa, apontando uma característica negativa de sua natureza. Ao meu lado, eu podia ver sozinho, no smartphone de outra pessoa, a mesma foto e nome da celebridade que acabara de ler, estampado com uma manchete encorajadora em outra rede de notícias. Vivemos em uma espécie de “bolha”. Um dentro do outro. Existe a bolha cultural, a bolha nacional, a bolha familiar, a bolha das afinidades, a bolha dos interesses, a bolha pessoal. Alguns se entrelaçam, outros se desfazem com o tempo e outros ainda se multiplicam. Outra maneira de dizer “bolhas” seria “tribos”. Somos tribais, e isso faz parte da natureza do ser humano, dos animais e das plantas.

A princípio, as bolhas existem por pelo menos duas razões: afinidade e segurança. Coloca-nos numa teia de pertença a algo que nos faz sentido. Em alguns estudos, fala-se de redes de interdependências quando se trata de biologia e natureza. Quando se trata de ser humano, viver assim também gera naturalmente conflitos. As bolhas geram informações sobre situações, coisas e fatos com diferentes percepções. Às vezes, isso até acaba em guerra. Além disso, é por meio das bolhas que permeiam as falsas notícias que cristalizam opiniões e até visões de mundo. Sair da nossa “bolha” pode ser uma aventura no desconhecido, movendo medos e inseguranças. Para algumas pessoas, até parece impossível porque mexe com “certezas” e convicções. Sair da bolha também pode ser um exercício de empatia e compaixão e, como consequência, podemos ter uma expansão do nosso ser no mundo e da nossa consciência, que ganha percepções de nuances antes obscuras de certas experiências, coisas e fatos.

A maneira como vemos, percebemos e consideramos as coisas da vida é única. Em essência, aqui está um presente. Por ser único, é também uma parte fragmentada do “Todo” e, portanto, também é um desafio. Ter apenas opiniões baseadas em nossas próprias experiências pode nos levar a uma zona de conforto arriscada. Afinal, acreditamos que o que pensamos é uma verdade absoluta e só ela existe. Mas, as coisas são bem diferentes e viver apenas apoiada em nossas conclusões, pode nos cegar e nos tornar pessoas menos empáticas. Para evoluirmos é importante furar as bolhas e abrir o olhar para além do que está ao nosso redor. À medida que cristalizamos nossas visões de mundo, corremos o risco de rigidez, obscurantismo, dogmatismo. À medida que permitimos mais flexibilidade e fluidez em nossas considerações e observações, permitimos uma maior amplitude de visão. Isso é expansão da consciência.

Kaká Werá

Escritor, ambientalista, tradutor e descendente do povo tapuia. É cultivador da arte do equilíbrio da natureza humana há mais de 25 anos.

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