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Quando a embalagem esconde a realidade
Quando a embalagem esconde a realidade
Choques, maus-tratos e fraudes na vida das galinhas “livres de gaiola”
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por Marcos Hermanson Pomar
Atrás de imagens de galinhas passeando no campo, uma história de condições duvidosas de bem-estar animal e violações trabalhistas Joana Ayres, de 30 anos, é uma psicóloga preocupada com a questão do bem-estar animal. Moradora de Santo André, no ABC paulista, sempre que vai às compras faz a opção pelos ovos de galinhas “livres de gaiola”. Essa modalidade apareceu nas gôndolas do mercado há alguns anos, e acaba servindo como meio-termo entre os ovos convencionais, muito baratos, e os orgânicos, geralmente mais caros.
No Pão de Açúcar, por exemplo, uma cartela com doze ovos orgânicos Fazenda da Toca custa R$ 15. No mesmo supermercado, dez ovos “livres de gaiola” da Qualitá saem por R$ 9,90. Apesar de ter de pagar um pouco a mais do que nos ovos comuns, Joana acredita que o bem-estar animal deve entrar na conta. Como não vê muita diferença entre as nomenclaturas dos ovos alternativos – livre de gaiolas, caipira e orgânico – acaba optando pela versão mais barata e não pela mais fiel.
Outro fator que pesa na escolha é a embalagem. A cartela dos ovos “livres de gaiola” exibe uma galinha ciscando solta sobre a areia e um selo de certificação de bem-estar animal. Então, o produto que ela acaba de escolher parece tão bom quanto os demais.Na outra ponta dessa cadeia está a Fernanda*. É ela quem cuida das galinhas “livres de gaiola”, as mesmas que produziram os ovos que Joana acaba de comprar no supermercado.
O que Fernanda tem para contar a Joana talvez a faça repensar suas escolhas como consumidora. E esse é só o começo da história. Sozinha, Fernanda é responsável por um galpão com 11 a 12 mil aves. Suas tarefas? Coletar os ovos, que são cerca de 10 mil por dia, administrar água e ração, enterrar as galinhas mortas e limpar os banheiros. Tudo isso em apenas oito horas. A funcionária da granja sabe que ali as galinhas não são exatamente felizes. São submetidas a choques elétricos, só têm acesso à área externa do galpão muito esporadicamente, e passam por debicagem, ou seja, pela amputação de uma parte dos bicos. O dono da granja onde ela trabalha mantém milhões de galinhas presas em gaiolas, mas destina uma fração de sua produção à criação “consciente”, já que esse é um nicho de mercado que vem crescendo nos últimos anos. Além disso, uma série de importantes compradores desse empresário – como as redes Carrefour e Pão de Açúcar – fizeram compromissos públicos relacionados ao fim da venda de ovos produzidos no sistema convencional.
No Brasil, a legislação não reconhece diferenças entre os tipos de criação convencional, livre de gaiola e caipira. Por isso, basta atender aos critérios sanitários do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) para rotular o produto com o nome que mais lhe convenha do ponto de vista publicitário. Por fim, no meio dessa confusão toda estão as certificadoras de bem-estar animal, criadas com o intuito de dar algum grau de confiabilidade ao produto que chega nas prateleiras. Para isso, instituem parâmetros de criação aos quais os donos da granja teriam de se sujeitar. Mas veremos que burlar as regras dessas novas entidades não são exatamente tão difícil assim.
Promessas
Começamos a olhar para os fornecedores de ovos dos grandes supermercados depois de uma visita a uma unidade da rede Pão de Açúcar na cidade de São Paulo. Havia uma profusão de embalagens que chegava a tornar confuso, se não impossível, escolher o ovo certo.
Entre mais de uma dezena de fornecedores e várias modalidades de criação, decidimos que era preciso investigar se tudo o que se promete na embalagem é de fato cumprido. O que revelamos vai além de galinhas e trabalhadores infelizes. É um episódio emblemático dos limites de se tentar construir um sistema alimentar saudável e justo se valendo de grandes empresas multinacionais.
A própria Qualitá, marca do Grupo Pão de Açúcar, sugere que se escolha de acordo com três graus diferentes de bem-estar na criação das galinhas. No nível mais alto – e mais caro – estão aves alimentadas com ração orgânica, direito a passeio no campo e livres de gaiolas. Depois, a escala vai descendo até as galinhas que não vivem enjauladas, mas também não são alimentadas com ração orgânica e tampouco têm direito a um rolê do lado de fora do galpão. Abaixo disso, fora da tabela, vêm os ovos comuns, produzidos por galinhas que vivem dentro de gaiolas.
Entre mais de uma dezena de fornecedores e várias modalidades de criação, decidimos que era preciso investigar se tudo o que se promete na embalagem é de fato cumprido. O que revelamos vai além de galinhas e trabalhadores infelizes. É um episódio emblemático dos limites de se tentar construir um sistema alimentar saudável se valendo de grandes empresas.
O plano geral
Segundo dados da Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA), em 2019 o consumo de ovos per capita no Brasil atingiu a marca recorde de 230 unidades, 65% a mais do que no ano de 2010, quando consumíamos “apenas” 148 ovos. Se uma década atrás o Brasil produziu 28 bilhões de ovos, agora esse número chega ao alto patamar de 49 bilhões de ovos.
Para dar conta de todo esse consumo, o país ostenta um verdadeiro exército de galinhas poedeiras: são 118 milhões de aves espalhadas pelo território nacional, 95% delas criadas em modalidade de confinamento intensivo, isto é, dentro de gaiolas. Desde 2012 o manejo em gaiolas é proibido em toda a União Europeia, mas por aqui segue sendo um negócio legal e extremamenter lucrativo.
Em galpões que chegam a abrigar cem mil galinhas, essas aves se amontoam em números de oito, dez, às vezes doze animais por gaiola. “Pr a você ter uma ideia, a ave tem o espaço de meia folha A4 pra viver. É fácil entender o prejuízo em termos de bem-estar”, explica a zootecnista Paola Rueda, especialista em bem-estar animal da ONG World Animal Protection (WAP).
Ali dentro das gaiolas essas galinhas são impedidas de desenvolver os comportamentos naturais mais básicos, como abrir as asas, ciscar, caminhar, brincar na terra e se empoleirar. Com o tempo, o grau de estresse é tanto que as aves passam a desenvolver comportamento canibal: bicam e muitas vezes ferem de morte as “companheiras de cela” – daí a debicagem, que serve para impedir que se machuquem.
O problema é que esse manejo causa dor crônica e dificuldade para as aves na hora de se alimentarem. Também é comum ver essas galinhas desenvolverem deformações de perna e de pata, já que passam a vida toda se equilibrando em cima do metal vazado das gaiolas.
Magras, estressadas, constantemente com calor – por conta da “superpopulação” nas granjas – essas aves passam por um processo gradual de depressão imunológica, o que as torna muito suscetíveis a organismos invasores.
Como forma de evitar o adoecimento do plantel, os produtores fazem a administração preventiva de antibióticos na ração todos os dias. Se, por um lado, esses antibióticos evitam que doenças se alastrem como pólvora entre as galinhas amontoadas, de outro acabam por promover uma seleção nada natural de patógenos super resistentes, o que aumenta o risco de aparecimento de doenças altamente nocivas ao humano.
A gripe aviária é um exemplo desse processo. Como risco adicional, parte dessas substâncias ingeridas pelas aves acaba no ovo do consumidor, o que pode aumentar a resistência de vírus e bactérias também no organismo humano. A origem do novo coronavírus ainda não é clara, mas a doença levantou novamente a discussão sobre os métodos de criação de animais e o risco de surgimento de epidemias e pandemias com o passar dos anos.
Os tais métodos alternativos
Tanto produtores quanto ONGs de proteção animal são unânimes em dizer que nos últimos anos houve crescimento da demanda dos consumidores por ovos produzidos em sistemas alternativos, o que incentivou a indústria a apresentar produtos que correspondessem a essa vontade do consumidor.
A Granja Faria, de propriedade do megaempresário catarinense Ricardo Faria, se encaixa nessa categoria. Das seis milhões de galinhas poedeiras pertencentes ao grupo, apenas 192 mil aves são criadas de maneira não convencional, em uma unidade de Palhoça, em Santa Catarina.
uma espécie de “modelo de transição entre a criação intensiva e os manejos caipira e orgânico. Enquanto os dois últimos se parecem mais com o modo tradicional de criação de galinhas poedeiras, típico de pequenas propriedades, o “livre de gaiolas” é um filho legítimo da avicultura industrial de uma gigantesca escala.
A embalagem, não confie nela
Já mencionada na reportagem, a unidade de Palhoça do conglomerado Granja Faria é um exemplo do que o furo na legislação pode permitir. Ali a empresa produz ovos “livres de gaiola” para a marca Qualitá, do Pão de Açúcar, e uma linha própria de ovos “caipiras”, a Ares do Campo, vendidos em diversas redes de supermercado pelo Brasil, entre elas o Carrefour.
Ambas as modalidades produzidas na Granja Faria ostentam o selo Certified Humane, da Humane Farm Animal Care (HFAC), entidade internacional de certificação de bem-estar animal que exige alguns parâmetros na criação de galinhas cage-free e caipiras.
Segundo o relato de funcionários ouvidos pela reportagem, no entanto, o manejo das aves na granja viola os parâmetros da hfac para ambas as modalidades. Entre as quebras narradas pelos empregados está a aplicação de eletrochoque como forma de desencorajar as galinhas poedeiras a colocar ovos no chão do galpão