Sextante 19/1 - Morte

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FACULDADE DE BIBLIOTECONOMIA E COMUNICAÇÃO – FABICO/UFRGS  |  JULHO DE 2019  |  EDIÇÃO 53

MORTE


CANTO PARA MINHA MORTE OH MORTE, TU QUE ÉS TÃO FORTE QUE MATAS O GATO, O RATO E O HOMEM VISTA-SE COM A TUA MAIS BELA ROUPA QUANDO VIERES ME BUSCAR QUE MEU CORPO SEJA CREMADO E QUE MINHAS CINZAS ALIMENTEM A ERVA E QUE A ERVA ALIMENTE OUTRO HOMEM COMO EU PORQUE EU CONTINUAREI NESTE HOMEM NOS MEUS FILHOS, NA PALAVRA RUDE QUE EU DISSE PARA ALGUÉM QUE NÃO GOSTAVA E ATÉ NO UÍSQUE QUE EU NÃO TERMINEI DE BEBER AQUELA NOITE

EMERSON SANTOS E FILIPE PIMENTEL

Raul Seixas


editoriais Viva o jornalismo

O espírito da coisa

A morte é um dos principais valores-notícia que existe e explica um pouco a negatividade das coberturas jornalísticas. Em um acontecimento, quanto mais mortos, maior a audiência. Por isso, como diz o pesquisador Nelson Traquina, onde há morte, há jornalistas. Mas, mesmo que muitos autores da comunicação falem sobre esse tema, a explicação desse interesse parece ultrapassar os conhecimentos da área. Por ser desconhecida e inevitável, a morte sempre mexe com as emoções. O interessante é que, por mais que os jornalistas tenham a morte como mira em suas pautas, tratar sobre ela fora das notícias factuais parece ser ainda um tabu. E é essa a proposta desta edição da Sextante: enfrentar o tema da morte em reportagens de maior profundidade. O conjunto de textos, fotos e ilustrações convida a uma reflexão sobre um assunto que, paradoxalmente, é evitado. Pelo menos da forma como é apresentado aqui. Para encarar a morte, no entanto, nos deparamos com muitos dilemas. Como tratar o suicídio, a perda de um filho, o feminicídio, ou ainda o fato de que algumas pessoas não têm dinheiro para enterrar seus mortos? Escolher pautas como essas, entre outras, nos provocou a pensar sobre situações muito difíceis e sofridas, pois a morte é sempre acompanhada de alguma dor. Além disso, nos obrigou a refletir sobre qual é o limite da imagem da morte. Algumas fotos, como a de abertura da reportagem sobre a doação de corpos para universidades, provocaram discussões acaloradas. Iríamos expor ou não um retrato que talvez choque pessoas mais sensíveis? A decisão por publicá-la foi polêmica, mas optamos por seguir a percepção da maioria. Da mesma forma, não publicamos algumas imagens da reportagem sobre tanatopraxia – a técnica de preparação de corpos para o velório – porque achamos que elas eram fortes demais. Decisões como essas foram difíceis, mas representaram um aprendizado muito grande. Afinal, para que serve uma revista jornalística dentro de uma universidade se não para experimentar, encarar temas esquecidos pelo mercado e provocar reflexão? Nossa proposta é esta: manter o jornalismo sempre vivo.

A edição 53 da Sextante não é apenas um compêndio sobre a morte. Muito pelo contrário. As reportagens que você poderá ler nas próximas páginas trazem histórias de vida, que são, em diferentes graus, engatilhadas ou permeadas pela morte. Falam de luto e espiritualidade. Narram as crônicas de quem está vivo, de quem já morreu e de quem luta para sobreviver. Passam por cemitérios, ambulâncias, quartos de hospital e até pelo céu. Quebram tabus, dissecam cadáveres e prendem fantasmas no papel. Os esforços de reportagem empreendidos ao longo deste semestre caminharam não com o propósito de compreender a morte, mas no sentido de entender a vida pelo ângulo dela e para além dela. Quando se trabalha com um tema que toca profundamente a alma e as emoções das pessoas, é preciso ter muita sensibilidade. Porque a morte não é boa nem fácil. Apesar de todas as tentativas do homem de atenuar a dor da partida – seja com a religião, com os ritos funerários ou com velhas máximas como “Descansou” ou “Está em um lugar melhor agora” –, todas elas só demonstram a capacidade que a finitude da nossa existência tem de nos intrigar e mexer com os nossos sentimentos. Nas 18 reportagens que compõem esta edição, a morte não faz distinção de cor, gênero ou classe social: é uma formalidade pela qual todos precisam passar, sem exceção. É uma condição inegociável do contrato de estar vivo, no qual a assinatura é o próprio nascimento. E, como em qualquer contrato, morremos de medo das letras miúdas. Não necessariamente concordamos, mas fazem parte do contrato. Morrer é flertar com o desconhecido, e o desconhecido assusta mesmo. Os mistérios da morte e da existência atravessaram milênios e inspiraram homens e mulheres nas artes, na literatura, na política, na construção dos mitos, dos deuses, das superstições e – por que não? – da vida. Afinal, o que mais poderiam significar o luto, os rituais, as lágrimas, as memórias e o próprio medo da morte senão um amor arrebatado pela vida? Por mais lúgubres que as próximas páginas desta Sextante possam lhe parecer, à primeira vista, lembre-se, ao ler, de que você poderá encontrar, entre a tinta e o papel, mais graça, conforto e espírito do que poderia imaginar. Boa leitura!

Thaís Furtado | Professora-editora thais.furtado@ufrgs.br

Comissão editorial

* As reportagens marcadas com têm uma versão digital no site www.ufrgs.br/humanista

Sextante é um instrumento que mede a distância angular entre um astro e a linha do horizonte. Com ele, os navegadores calculam sua posição e podem corrigir eventuais erros de navegação


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ÍNDICE O Preço da Morte Thayse Ribeiro

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Tanatopraxia

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Música e Luto

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Giulia Reis

Gabriela Garcia

Exumação

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Filipe Batista

Doação de Corpos

22

Doação de Órgãos

26

Samu

30

Cuidados Paliativos

34

Viuvez

38

Luto Parental

42

Descoberta da Morte

46

Espiritismo

50

Centro de Valorização da Vida

54

Suicídio

58

Violência Contra a Mulher

62

Masculinidades

66

O Desafio da Morte

70

Paranormal

74

Elias Santos

Diego Rodrigues Bárbara Lima Andielli Silveira

Ana Carolina Parise Elivelto Corrêa Yuri Correa

Caroline Silveira Sthefania Castillo

Vinicius Rodrigues Dutra Luciana Forgiarini Paola Pavezi

Deborah Mabilde Giulia Secco

Giulia Secco


o preço da morte

ENTERRO DE POBRE Para diversas famílias, realizar os rituais de despedida de alguém próximo não é uma opção viável financeiramente. Em Porto Alegre, o município é o responsável por realizar o sepultamento digno daqueles que não têm condições financeiras para arcar com o serviço particular Texto: Thayse Ribeiro thaysesfribeiro@gmail.com

Fotos: Émerson Santos e Filipe Pimentel emersonpds996@gmail.com filipe.pimentel@hotmail.com

Os túmulos utilizados para enterrar pessoas com baixo poder aquisitivo e gavetas que guardam seus restos mortais no Cemitério Municipal São João não têm nenhum adorno

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Diagramação: Filipe Batista filipe.batista@ufrgs.br


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No Brasil, o pobre começa a ser enterrado ainda em vida. Segundo dados do IBGE, mais de 50 milhões de brasileiros (o equivalente a 25,4% da população) vivem na linha de pobreza e têm renda familiar equivalente a R$ 387,07. Uma cova rasa, em um caixão doado, é o destino da maioria dessa parcela da população. A realidade do enterro de pobre é mais dolorosa do que a própria morte. Depois de uma vida batalhando pelo mínimo para se manter, não ter nem o espaço para morrer é desumano. O destino do pobre, enterrado em uma cova rasa, sem padre e sem flor, se repete há mais de 500 anos em nosso país e parece reforçar as distâncias sociais que nos assolam. A maior diferença entre o enterro do pobre e o do rico é que no primeiro a tristeza não é só pela partida, mas também pela vida que se viveu. Assim como viver, morrer também demanda dinheiro. Para enterrar alguém é necessário tomar decisões: qual o caixão? Onde enterrar? Como transportar? Esses são apenas alguns dos aspectos que envolvem

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um funeral. E todos eles envolvem a questão financeira. Quem não possui condições de arcar com esses custos, despede-se como?

Quanto custa morrer Em Porto Alegre, é preciso pagar, no mínimo, R$ 976,64 pelo funeral simples de um adulto, valor tabelado pela prefeitura. O custo prevê um caixão de madeira, a atividade de vestir o corpo com roupas fornecidas pela família e o traslado até o cemitério, além da organização do velório e assistência funeral. Vale ressaltar que, após três anos e um dia do enterro, a família ainda precisa arcar com novos custos de manutenção do corpo no cemitério. Para além do valor tabelado, os preços podem passar dos R$ 20 mil, dependendo do tipo de caixão escolhido, dos enfeites florais, da mesa de condolências, véu e velas. O serviço de sepultamento básico em uma funerária fica em torno de R$ 1.700. Nesse valor está incluso: a higienização do corpo, uma urna e o traslado até o cemitério. Quem optar pela cremação paga ainda

mais caro. O serviço crematório básico fica em torno de R$ 6.500 e pode chegar até R$ 20 mil. Quem deseja ser cremado é melhor que tome a decisão em vida. No Brasil, o processo de cremação é orientado pela Lei Federal 6.015/73. O recomendado é informar aos familiares o desejo em vida e deixar uma Declaração de Vontade escrita e assinada, com reconhecimento em cartório. Caso isso não ocorra, a decisão pela forma de sepultamento cabe aos familiares de primeiro grau. Há ainda a opção dos planos funerários e um seguro, para que a família não tenha despesas ou problemas no momento da morte do segurado. Com todas essas variedades de opções, ainda resta a dúvida: e quem sobrevive somente com R$ 387,07, diz adeus de que forma? No Brasil, todo brasileiro tem direito ao jus sepulchri, uma garantia à sepultura em cemitéAs urnas que são doadas para que pessoas de baixa renda possam enterrar seus familiares ficam em um depósito na Central de Atendimento Funerário


rios públicos e o direito de manter-se sepultado. As famílias que não têm dinheiro para enterrar seus parentes utilizam desse direito para tentar amenizar a dor da despedida. A garantia do serviço, porém, não diminui as diferenças impostas por uma sociedade desigual.

Sepultamento gratuito em Porto Alegre Em Porto Alegre, aqueles que não possuem condições de arcar com os custos do sepultamento contam com o serviço totalmente gratuito oferecido pela prefeitura. O atendimento é custeado pelas funerárias permissionárias da cidade, que em contrapartida são liberadas para explorar o mercado privado. Para utilizar o serviço gratuito, a pessoa que solicita deve comprovar renda de até dois salários mínimos e provar que o falecido era morador de Porto Alegre. A diarista Vanessa Rodrigues Coelho utilizou o serviço gratuito em 2017 para o enterro da irmã. Às 5h da manhã de um sábado ela já estava acordada para realizar a tarefa nada prazerosa de dar encaminhamento aos trâmites do enterro. Antes do amanhecer, Vanessa já se encontrava na sede da Central de Atendimento Funerário de Porto Alegre (CAF), já que os atendimentos do serviço de sepultamento gratuito acontecem por ordem de chegada e ela queria garantir um bom horário para que a mãe pudesse se despedir com calma da caçula da família. Antes, quando o governo municipal não oferecia essa opção, o enterro das famílias que não tinham condições de pagar pelo serviço funerário era realizado por uma ONG chamada “Enterro do Pobre”, no Campo Santo, espaço cedido pelo cemitério da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Desde então, o serviço carrega um estigma. Paulo Fernandez, presidente da Comissão Municipal de Serviços Funerários de Porto Alegre, diz que a prefeitura tem trabalhado para mudar essa visão. “Queremos quebrar essa imagem do Serviço de Sepultamento Gratuito. Não é porque é de pobre que precisa ser ruim”, afirma. Existem

“Queremos quebrar essa imagem do Serviço de Sepultamento Gratuito. Não é porque é de pobre que precisa ser ruim” Paulo Fernandez

Presidente da Comissão Municipal de Serviços Funerários de Porto Alegre

relatos de que antes o serviço era realizado em urnas de baixa qualidade, com os corpos desnudos e sem o mínimo de dignidade. “A família era responsável por praticamente todo o trabalho: eles tinham que pegar a urna, vestir o corpo e colocá-lo no caixão. E foi assim até 1995, um serviço realizado sem qualquer critério ou controle”, diz Paulo. Por essa razão, o município criou a primeira lei que tratava dos serviços funerários em Porto Alegre e criava o Sistema Funerário Municipal. A principal função da Lei 8.413/99 é garantir a qualidade e agilidade na prestação dos serviços e assegurar às pessoas carentes o Serviço de Sepultamento Gratuito Municipal, realizado inteiramente pela CAF, sem qualquer custo ao usuário. A Central oferece as mesmas atividades das funerárias particulares, como o traslado e o sepultamento, que é feito no Campo Santo do Cemitério da Santa Casa ou no Cemitério Municipal São João. Porém, o momento do adeus não recebe o caráter de cerimônia dos eventos realizados pelas empresas particulares. A irmã de Vanessa tinha 30 anos quando morreu. Antes disso, ela fez das ruas de Porto Alegre sua morada desde que saiu da casa da família após se envolver com drogas. Morreu de tuberculose, caso que se agravou já que era portadora do vírus HIV. Seu falecimento pegou a família de surpresa e, sem condições de arcar com os custos de um enterro particular, foram orientados, ainda no hospital, sobre como utilizar o serviço gratuito. Seguindo indicações que recebeu no envelope que continha o atestado

de óbito da irmã, ela reuniu a documentação solicitada e dirigiu-se à CAF, onde, após algum tempo de espera, foi recebida por uma assistente social que, além de apresentar à família os detalhes do serviço, realiza a avaliação da situação financeira do solicitante. Lenice Aurélio de Aguiar, assistente social da prefeitura que realiza esse tipo de atendimento, diz que o trato com as famílias do serviço gratuito é diferenciado: “Ele requer um olhar sensível para cada situação, e por isso até o nosso espaço aqui é diferente, ele é individual para se avaliar cada situação da melhor forma”. Para Vanessa, o serviço oferecido pela prefeitura, mesmo com toda a sua simplicidade, foi essencial para a tranquilidade da mãe dela, que pôde se despedir de sua filha de maneira digna. “Este serviço é muito importante. Não tenho condições de pagar um serviço particular ou organizar essas coisas com antecedência. Tem coisas que não dá para planejar, tipo a morte, daí, com essa opção, as pessoas pelo menos sabem que têm um auxílio. Como no nosso caso, que fomos pegos de surpresa e não tínhamos da onde tirar o dinheiro.” O cenário no Cemitério São João, local onde a irmã de Vanessa foi enterrada, explicita diferenças tão marcantes em nossa sociedade. Lá, as sepulturas do serviço gratuito dividem espaço com as do serviço particular. A sepultura no chão, sem nome, somente com um número para demarcar um espaço, quase desaparece no meio dos luxuosos túmulos e monumentos das famílias concessionárias. Falar de morte ainda é algo incomum e até desconfortável. No entanto, a morte visitará a todos em algum momento. Por isso, o debate sobre uma morte digna deveria fazer parte da formação da sociedade. Morrer envolve aspectos práticos e monetários, e ter de lidar com eles em um momento de extrema fragilidade não precisa ser uma experiência desumana.

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Tanatopraxia

Vivos que trabalham com mortos A tanatopraxia é a profissão que prepara os corpos para o velório Texto: Giulia Reis giulia.reis@ufrgs.br Fotos: Andressa Mendes e Gabriela Von iamandressamendes@gmail.com gabivonflebbe@hotmail.com Diagramação: Ana Carolina Parise anaaparise@gmail.com

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Jonas ĂŠ um dos alunos mais jovens do curso de Tanatopraxia da ABT

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Domingo. A cidade de Porto Alegre vê o sol pela primeira vez naquela semana chuvosa. Dia de clássico Grenal, de passear com o cachorro, de deitar na grama do parque. Para os cinco alunos da turma do primeiro semestre de 2019 do Curso de Tanatopraxia da Associação Brasileira de Tanatopraxia (ABT), domingo é dia de ficar das 8h às 21h dentro do Laboratório de Tanatopraxia da Funerária São Pedro. Durante o curso, que dura em torno de dois meses, os alunos aprendem a parte teórica da profissão, assim como participam de aulas práticas, fazem seu estágio e entregam um pequeno trabalho de conclusão.

O CURSO E A PROFISSÃO Diferentemente de outros cursos populares da área, o de Tanatopraxia da ABT tem 120 horas-aula em seu currículo. A divisão da carga horária funciona da seguinte forma: 30 horas na modalidade EAD, de conteúdo teórico; 60 horas práticas em laboratório e sala de aula na Funerária São Pedro, em Porto Alegre; 10 horas de trabalho de conclusão de curso e 12 horas de estágio em empresa funerária credenciada. “O mercado da tanatopraxia está em crescimento. Existem cinco mil empresas do ramo funerário funcionando no país

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“quando a família nos agradece pelo trabalho bem feito, é gratificante” Lucas Ziebell Agente funerário

e somente um terço delas possui um profissional com formação em tanatopraxia praticando o procedimento. Ainda assim, a maioria possui somente um profissional, quando o indicado seriam no mínimo três, para que houvesse alguém de plantão durante as 24 horas do dia nos sete dias da semana”, conta Paulo. Ele explica que o perfil dos alunos do curso é de jovens, principalmente mulheres sem formação universitária, e de profissionais que já atuam no ramo funerário de alguma forma. É exatamente este o perfil da turma do primeiro semestre de 2019 que estava presente no Laboratório da Funerária São Pedro na tarde ensolarada de domingo para a segunda parte das aulas práticas. Dos quatro alunos presentes, os dois homens já atuavam no ramo funerário. Um deles, Jonas Ferraz, de 27 anos, é assistente de preparador na própria Funerária São Pedro

e está fazendo o curso para subir em seu plano de carreira. “Nosso corpo é uma máquina, ele é capaz de fazer coisas inimagináveis e foi isso que despertou o meu interesse pela profissão”, conta Jonas, que tem uma conexão próxima com o ramo funerário, já que seus tios e familiares também trabalham no ramo em Porto Alegre e no interior do Estado. A aula prática começa com a chegada de um carro, trazendo o primeiro corpo da tarde. O corpo é levado em uma maca para dentro do laboratório, e os alunos se preparam. Jonas assume as principais funções, pois tem mais prática. Eles colocam todos os Equipamentos de Proteção (EPIs), que consistem em um macacão e sapatos especiais, óculos protetores, avental, luvas e máscaras. O terno que será colocado no homem morto já está separado e a postos. O primeiro procedimento é o banho geral. Depois disso, a barba do senhor é feita com cuidado. O corpo chegou sem autópsia ou cortes, o que significa que veio de um hospital. Todas as informações importantes para o procedimento estão em uma ficha, que fica junto da roupa. Todo o procedimento feito dentro da funerária é anotado na ficha para que a família e o profissional tenham clareza nos procedimentos. Depois disso, um corte é feito para drenar os fluidos internos e trocá-los por fluido arterial à base de formol, álcool, glicerina e outros componentes. Essa troca é feita através de máquinas que bombeiam os dois fluidos para dentro e fora do corpo, mantendo um ambiente limpo e higienizado e também preservando a exposição do corpo ao oxigênio. Outro banho é dado no corpo pelos alunos, e ele descansa por algumas horas até o carro funerário vir buscá-lo, quando é vestido e colocado no caixão pela equipe. Os agentes funerários Marcelo Silva e Lucas Ziebell trabalham há quase dois anos na Funerária São Pedro. Assim como Jonas, Lucas começou trabalhando no “andar de baixo”, como é chamada a área na qual acontece o preparo e o transporte dos corpos. “A funerária começa lá de baixo”, diz Marcelo. “Nosso trabalho de vendas


A roupa que será usada no velório fica à espera de seu dono

e de contato com a família não seria nada sem o apoio dos preparadores”, acrescenta. “O pior da profissão não é a preparação dos corpos e sim quando transportamos para a capela. Eu me emociono muito. É nessa hora que a família entende que o seu ente querido já se foi, é durante o fechamento do caixão”, conta Lucas. “Mas também tem a parte boa, quando a família nos agradece pelo trabalho bem feito, quando reconstruímos o rosto ou trazemos de volta uma versão do falecido que já era até prévio a situação em que ele estava quando chegou no laboratório. Isto é gratificante”, acrescenta. No final do dia, esses profissionais que trabalham com os mortos são responsáveis por trazer paz e finalização para um processo muito doloroso: o de velar alguém querido. E é uma profissão altamente gratificante quando vista dessa forma.

A HISTÓRIA NO BRASIL E NO MUNDO Foi em Cincinnati, nos Estados Unidos, que a primeira escola de embalsamento e tanatopraxia se formou, com início em 1882, vindo a se chamar Cincinnati College of Mortuary Science nos anos 1960. O formaldeído, conhecido popularmente em sua forma líquida como formol, era o principal componente químico utilizado nas práticas mortuárias naquela época. A técnica de preparar os corpos para o velório chegou ao Brasil em 1994 através de empresários paulistas e paranaenses que buscavam inovação no ramo funerário. Nesse mesmo ano, um dos primeiros cursos sobre o assunto foi ministrado no Brasil pelo guatemalteco Mario Lacape, cuja formação foi no Cincinnati College of Mortuary Science. “Naquela época, depois que faziam o curso, dificilmente os profissionais voltavam a se encontrar”, explica Paulo Coelho, presidente da Associação Brasileira de Tanatopraxia desde de sua fundação até o momento. A associação foi fundada em Porto Alegre, no ano de 2004, exatamente durante o II Congresso de Diretores Funerários do Mercosul, no qual ocorreu o I Encontro de Tanatopraxistas do Brasil. “Foi uma decisão momentânea feita em plenário”, lembra Paulo. Desde então, a associação se compromete com a função de difundir a prática da tanatopraxia por todo o território nacional e contribuir com os cursos que profissionalizem a atividade. “Percebemos que os cursos oferecidos ao redor do Brasil tinham uma carga horária muito baixa, às vezes de 16 horas somente, e prometiam um nível de aprofundamento científico da profissão e uma enorme gama de conhecimentos de campo que nunca poderia ser adquirida daquela forma, principalmente sem horas práticas”, comenta. Por isso a decisão, junto da associação, de oferecer um curso próprio em 2014.

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MÚSICA E LUTO

Dentro do tom Há seis anos, Reinaldo Ávila trabalha levando a melodia do violino a cerimônias de velório. Além de homenagear o falecido, a música pode oferecer conforto e bem-estar aos que ficam

Texto: Gabriela Garcia gabrielavgarcia@hotmail.com Fotos: Daniel Baptista e Thaynan Schroeder danielsbaptista98@gmail.com thaynan.schr@gmail.com Diagramação: Caroline Silveira c.silveira794@gmail.com

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“Eu não posso criar uma casca muito dura, tenho que ter um pouco de sensibilidade. Ou seja, não posso me envolver muito, mas também não posso perder a ternura” Reinaldo Ávila Músico

Achar um horário na agenda de Reinaldo Ávila para uma entrevista não foi fácil. A conversa com o músico de 44 anos foi reagendada algumas vezes antes de acontecer. “A gente trabalha com o imprevisível, ninguém prevê a morte”, diz ele, que há seis anos trabalha em cerimônias de velório. “Hoje, já fiz dois. À tarde, tenho outros quatro marcados”. É fazendo malabarismos no dia a dia que, ao fim do mês, ele soma cerca de 90 velórios. Com o violino e palavras preparadas para cada cerimônia, o músico tenta ajudar familiares e amigos de alguém que faleceu a deixar o momento da despedida mais suave e humano. “É um trabalho de muita responsabilidade. Tenho que fazer o melhor possível para tentar tornar esse momento mais leve, embora eu saiba que não vai mudar o acontecido”. O primeiro contato que Reinaldo teve com a música foi em um coral em Novo Hamburgo, na Região Metropolitana de Porto Alegre, por volta dos 16 anos. Com apenas 17, depois de ter aprendido a tocar violão e de ter feito cursos de regência, foi convidado para ser maestro de um coral em Sete Lagoas, Minas Gerais. Quando chegou na cidade, descobriu que teria que ser maestro não apenas de um coral, mas também de uma orquestra. “Eu tive que aprender sozinho a tocar contrabaixo, violoncelo, viola, violino”. Dois anos depois, ele voltou ao Rio Grande do Sul e começou a trabalhar

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em Centros de Tradições Gaúchas (CTGs). Chegou a tocar em seis diferentes ao mesmo tempo. Em 2002, contudo, Reinaldo sentiu que era hora de mudar novamente e começou a investir sua força de trabalho em cerimônias de casamento e formatura. Com o tempo, porém, percebeu que o negócio não estava mais se mostrando tão viável economicamente. “Esses eventos só aconteciam nos fins de semana, aí, para ganhar dinheiro é brabo, né?” E, um dia, lendo a página de obituários de um jornal, a ideia de tocar também em cerimônias fúnebres surgiu. “Tem trabalho o tempo todo, porque morre gente todo dia, toda hora”. Reinaldo contatou algumas funerárias e rapidamente ficou conhecido nesse mercado. Durante os primeiros dois anos, ele apenas prestava homenagem ao falecido tocando violino. Observando as cerimônias, notou que as palavras dos ministros – aqueles que conduzem a cerimônia – eram, em sua maioria, vazias e impessoais. Daí, resolveu oferecer, além de música, palavras reconfortantes. “Entrevisto o contratante para saber quais eram as principais características do ente querido, o que ele gostava de fazer, e monto um texto a partir disso. As pessoas se identificam, não vira uma cerimônia artificial”. O texto pode ser feito em diferentes formatos, mas, geralmente, Reinaldo costura as informações com alguma metáfora, como a do “livro da vida”,

em que o número de páginas é igual ao número de anos vividos pela pessoa que está sendo velada. “Tu tens que construir um diálogo com essa história e a vida da pessoa. Também gosto muito de ler durante a homenagem o texto ‘A morte não é nada’, de Santo Agostinho.” Ao longo da fala, ele intercala três canções com violino, escolhidas pelo contratante em um repertório de mais de cem músicas. As mais tocadas, segundo Reinaldo, são Ave Maria, de Franz Shubert; Como é grande o meu amor por você, de Roberto Carlos; e Eu sei que vou te amar, de Vinicius de Moraes e Tom Jobim.

Conforto aos que ficam Lidar com o peso da morte todos os dias já foi mais difícil para Reinaldo. Os primeiros contatos com os familiares eram momentos de tensão. “Eu me abalava mais. Mas, como iniciei trabalhando só com violino, eu já tinha esse contato, via a pessoa morta no ataúde, o sofrimento da família. Então, depois, para falar no velório, foi mais fácil, porque eu já tinha o costume de tudo aquilo, já tinha ideia do que ia acontecer”. O músico também aprendeu a não acumular as tristezas, embora não esqueça do primeiro velório que fez. “Lembro até hoje do rostinho da menina que chorava muito. O pai dela tinha morrido bem novo. Claro que cada velório me marca de uma forma diferente, mas não posso acumular tudo isso, porque não tenho força.” Segundo ele, a chave para realizar o trabalho todos os dias é saber dosar as emoções. “Eu não posso criar uma casca


muito dura, tenho que ter um pouco de sensibilidade. Ou seja, não posso me envolver muito, mas também não posso perder a ternura”. No processo de morrer, Reinaldo acredita que a música, além de gerar conforto aos que ficam, também ajuda a espiritualizar. “Tem um amigo meu que diz que a palavra instrui, o gesto aponta e a música espiritualiza. Ela faz uma ligação mais rápida com a espiritualidade”. Luciane Cuervo, professora do Departamento de Música do Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), explica que a musicalidade humana está em toda a história da humanidade. “Não há lugar, período ou grupo social do mundo que não tivesse manifestação de musicalidade e que, nos seus primórdios, não trouxesse a musicalidade como representação de emoções, inspirada pelos sons da natureza ou pela imaginação”. Segundo ela, a musicalidade do luto não é sempre igual. “Em determinados contextos sociais, ele tem uma sonoridade mais melancólica e triste. Em outros, tem mais alegria de ver a morte como uma passagem, chegada

no paraíso ou a algum lugar melhor do que este. Tem também a música que transcende a realidade de uma maneira a elevar espiritualmente os pensamentos ou a fomentar essa transcendência da dor, seja vinculada ou não a algum tipo de religiosidade, espiritualidade ou a hábitos culturais e sociais”. A professora, contudo, concorda que em todas essas situações, se o repertório, o instrumento, a voz e o momento em que ocorre a performance artística diante do luto estiverem conectados com os gostos daquele grupo social, a música pode ser um poderoso suporte emocional num momento de dor. “Assim como em aniversários, casamentos, formaturas e celebrações diversas, o luto também engaja emoções fortes, embora nesse caso tristes ou negativas, e a música precisa fazer sentido para as pessoas envolvidas naquele contexto, promovendo conforto e bem-estar”.

Vida que continua Há dois anos, Reinaldo sentiu necessidade de ser batizado na Igreja Católica. Faz questão, contudo, de ressaltar que a fé sempre esteve presente na sua vida. “Eu era pagão, mas só na deno-

minação, porque continuo do mesmo jeito. Meu coração não está mais mole ou mais duro agora”. O músico havia sentido que era um momento da vida interessante para se batizar. “Pode ser que a minha vontade de batismo tenha ligação com o meu trabalho, eu nunca havia parado para pensar, mas acho que sim”. Outras coisas também mudaram para Reinaldo desde que ele começou a lidar com a morte diariamente. A maior delas foi a própria percepção dele a respeito da vida. “É claro que a gente não está bem o tempo todo, mas notei que não dá para perder a chance de ser feliz. Às vezes, o cara que hoje está chorando no velório, pode ser o velado amanhã. A gente tem que buscar a felicidade acima de tudo”. E é dando mais valor à vida que Reinaldo aprende a lidar de uma forma mais branda com a morte, para levar conforto aos que mais precisam. Pois, como diria Santo Agostinho, lido pelo músico durante as homenagens, “você que aí ficou, siga em frente, a vida continua, linda e bela, como sempre foi”.

Há dois anos, Reinaldo foi batizado na Igreja Católica

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exumação

Para Rud, 48 anos, desenterrar ossos é coisa séria: é a profissão dele desde os 23

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OSSOS DO OFÍCIO

Há 25 anos, desenterrar corpos é a profissão de Rud, o exumador mais antigo do Cemitério Municipal São João, na zona norte de Porto Alegre Texto, fotos e diagramação: Filipe Batista filipe.batista@ufrgs.br

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No cemitério, não foram poucas as vezes que Rud testemunhou o interesse humano por ossos. Como coveiro, logo descobriu que esse interesse podia vir dos tipos mais distintos. Primeiro vieram os religiosos, que entraram sorrateiramente nas terras do cemitério e violaram sepulturas em busca de um crânio para seus rituais. Depois, os cientistas, que chegavam humildes, pediam para visitar os ossários e, uma vez lá, tentavam surrupiar um fêmur ou uma arcada dentária para “fins acadêmicos” – às vezes, até ofereciam dinheiro aos coveiros em troca de um osso ou outro, coisa que Rud nunca tolerou. “Eu trabalho há 25 anos no cemitério, não vou me vender por quinhentos reais”, assevera. Todos ali se referem a ele como “o Rud”. É o apelido de Rudnei Leão, atualmente, o mais antigo sepultador e exumador do Cemitério Municipal São João, na zona norte de Porto Alegre. “Mais conhecido como coveiro”, comenta. Rud sabia que não eram só os adoradores da religião e da ciência que visitavam o lugar em busca de tecido ósseo. Os adoradores do rock também eram muito comuns no cemitério. “Os darks”,

Cova aberta para a exumação do cadáver de um homem na sepultura 195 do Cemitério São João

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“Não posso me apegar. É chegar, tirar os ossos e deu. Se a gente se apega, fica muito sentimental, e aqui não pode ter sentimento” Rudnei Leão

Sepultador e exumador

assim se referiu a eles Adelar Bertelli, 60 anos, assistente administrativo, que irrompeu na salinha do almoxarifado durante a entrevista com Rud. Os rockeiros, explicou o homem, não desejavam ossos para cultos ou experimentos. A crença deles era na função decorativa das caveiras, que serviriam para ornamentar seus quartos e mostrar às visitas como eles eram punk. Para Rud, no entanto, desenterrar ossos é coisa séria. É a profissão dele desde que tinha 23 anos – hoje, ele tem 48. “O Rud tem muita história, muita coisa pra contar”, antecipa Bertelli. Rud trabalhava em um banco antes de ir para o cemitério. Quando foi

chamado pela prefeitura para o novo emprego, achou que prestaria serviço de jardinagem ou algo do tipo. Nunca imaginou que trabalharia enterrando gente e, muito menos, desenterrando. Na infância, já havia tido contato com cadáveres quando serviu como bombeiro mirim na Praia das Pombas, no distrito de Itapuã, em Viamão. Mas remover corpos da água era menos visceral do que a morte que ele viria a conhecer no cemitério com as exumações. “Como bombeiro, eu ajudava a tirar o corpo da água, via a pessoa morta. Agora é diferente. Tenho que tirar os ossos.” As exumações no Cemitério Municipal são quase diárias, tão frequentes quanto os enterros. A regularidade dos trabalhos e o longo tempo de casa ajudaram a tornar os desenterros “coisa tranquila, normal” para Rud: “Os primeiros seis meses”, conta, “foram difíceis, dá uma sensação horrível... tem que ter estômago”. Nos enterros, saber quem morreu é praticamente inescapável, porque na maioria das vezes há, ali, um rosto que Rud precisa encarar antes de fechar o caixão e conduzi-lo ao jazigo. Nas exu-


A regularidade das exumações fez com que trabalhar com a morte, para Rud, se tornasse “coisa tranquila, normal”

mações, por outro lado, ele procura não saber absolutamente nada a respeito dos corpos, seus nomes ou quem eram em vida. “Não posso me apegar. É chegar, tirar os ossos e deu. Se a gente se apega, fica muito sentimental, e aqui não pode ter sentimento”, explica o exumador. Apesar da decisão de não saber nada sobre a vida pregressa daqueles que desenterra, Rud é famoso no cemitério por uma habilidade. “Só de botar o olho na ossada, o Rud já sabe se é esqueleto de homem ou de mulher”, conta Bertelli, com certo orgulho, pouco antes de se juntar a três agentes do cemitério para a exumação do cadáver de um homem.

Por que desenterrar Mesmo com chuva, o desenterro não toma mais do que uns poucos minutos, apenas o tempo de os operários afastarem as pedras do jazigo e recolherem os ossos a um saco plástico. O caixão jaz esfacelado na cova, como que feito de papelão, e há água escura até os calcanhares dos exumadores – inundações no jazigos são frequentes por conta dos lençois freáticos que se formam o tempo todo no subsolo do cemitério. Acontece muito de precisarem desenterrar as ossadas por conta dos alagamentos, mas essa causa de exumação é uma peculiariadade do Cemitério Municipal devido a suas particularidades geológicas. Em qualquer cemitério, o ato de remover os restos mortais de uma urna funerária é realizado para dar aos ossos um novo destino. Os ossos são movidos para outra sepultura ou para os ossários; levados para a autópsia ou para

a cremação e, às vezes, levados pelos próprios familiares para outra cidade. “Algumas famílias não têm dinheiro para transportar o corpo do ente querido logo após a morte. Depois de alguns anos, com a exumação, essas famílias podem finalmente recolher os ossos e levá-los de volta para enterrá-los em um lugar mais próximo”, explica o chefe dos cemitérios municipais, Alexsandro da Costa. Exumações também acontecem por motivos judiciais. Rud se lembra bem de uma menina de 12 anos que enterrou muitos anos atrás. A garota morreu na cadeira do dentista após complicações com a anestesia. Rud exumou o corpo dela uma semana depois, com a chegada de uma ordem judicial. A autópsia revelou que a garota estava grávida, e a descoberta póstuma ajudou a absolver o dentista, que desconhecia a informação. Casos de paternidade são os mais frequentes no cemitério, mas também ocorrem exumações quando alguém quer colher um DNA ou outro para se certificar da identidade do falecido.

Desenterre os ossos, mas deixe a alma em paz Nesses desenterros, Rud encontrou muito mais do que ossos. Ao abrir sepulturas, já deparou com garrafas de cerveja, cachaça, cigarros e até mesmo uma perna mecânica. “Tem tudo o que se pode imaginar”, conta ele, lembrando-se, logo depois, de um celular que tocou por três dias na cova de um morto que havia doado os órgãos

– o que, na sua concepção, diminuía muito as chances de ele atender. Rud deixou o telefone lá. Ele tem um protocolo muito específico acerca do que fazer com os pertences dos que já morreram: absolutamente nada. Isso porque rememora, ainda com algum espanto, a história de um colega que, certa vez, se encantou por um vaso chinês deixado no cemitério em um dos jazigos. Como achava um desperdício deixar um vaso tão belo ali, para os mortos, levou-o para a casa. E, segundo Rud, o trouxe de volta poucos dias depois, após o armário da sala onde havia colocado o artigo de cerâmica ter desmoronado. “Com as coisas dos mortos não se brinca, isso é uma maldição”, alerta Rud. Os mortos ganharam ainda mais o respeito do coveiro depois que um rapaz de vinte e poucos anos roubou ossos recém exumados do cemitério. “Ele voltou pra cá, eu que enterrei. Era um guri novo, a gente reconheceu porque ele tinha levado os ossos.” No entanto, o quarto de século durante o qual já trabalhou no cemitério não serviu apenas para Rud adquirir sua crença em maldições. Com o tempo, ele também adquiriu um medo. “Antes de trabalhar no cemitério, eu não tinha medo da morte. Saía de madrugada, não me preocupava. Agora eu me cuido muito mais, porque sei pra onde eu vou depois.”

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DOAÇÃO DE CORPOS

Cadáveres ficam disponíveis no Laboratório de Anatomia da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre

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Vidas que vão, corpos que ficam Universidades necessitam de cadáveres para atividades de ensino e pesquisa, porém dificilmente conseguem obter um número suficiente Texto e fotos: Elias Santos eliashpsantos@gmail.com

Diagramação: Filipe Batista filipe.batista@gmail.com

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Estudantes de medicina têm aula prática de anatomia em laboratório da UFCSPA

Luíza Eduarda dos Santos, 42 anos, nativa e moradora de Novo Hamburgo, e Olena Gradynar, 35 anos, nascida em Odessa, na Ucrânia, e moradora de Canela, não se conhecem. Ambas, porém, querem ter o mesmo destino depois de suas mortes: decidiram doar seus corpos para universidades como forma de contribuir para o desenvolvimento dos estudos de alunos da área da saúde. A doação de corpos em vida ainda não é a alternativa mais popular em todo o mundo. Os cadáveres são utilizados nas universidades para uma série de estudos em diversos cursos e pesquisas. Contudo, as universidades enfrentam muitas dificuldades para obter um número suficiente de cadáveres. O Ministério da Educação recomenda em média um cadáver para cada 10 alunos em sala de aula, número que se mostra bastante difícil de atingir. A maioria das instituições depende exclusivamente do recolhimento de cadáveres não reclamados – conhecidos popularmente como indigentes –, um processo bastante caro e burocrático. Um dos motivos pelos quais a doação de corpos não é popular é a importância

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do rito de despedida do corpo. “Os rituais são questões culturais que demarcam mudanças significativas na nossa vida, demarcam início ou término de etapas. Muitas vezes duram pouco tempo, mas ficam recordações com valores imensuráveis e inesquecíveis. Ao não realizar esses ritos, podemos estar perdendo os valores simbólicos de nossas vidas”, afirma a psicóloga Aline Hofmann, da cidade de Canela. Já Andrea Oxley da Rocha, coordenadora do Programa de Doação de Corpos da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), ressalta que a doação de corpos é uma decisão muitas vezes motivada pelo altruísmo de cada indivíduo e não necessariamente priva a família de todos os ritos mais difundidos de um funeral. “Nós orientamos as famílias que não existe problema na realização de um velório. Caso seja algo muito longo, nós entramos em contato com a funerária para que se façam alguns cuidados para evitar que o corpo entre em processo de putrefação”, relata. Luíza Eduarda é mulher, transexual e ativista do movimento LGBT. Ainda não é doadora cadastrada em algum programa, embora tenha a decisão já

definida. “Existem poucas oportunidades de estudarem corpos de pessoas transexuais depois da morte. Se eu defendo os estudos envolvendo pessoas trans em vida, inclusive participando de alguns no Hospital de Clínicas, me parece coerente que após o término do meu ciclo eu doe meu corpo para a ciência estudar”, afirma. A doação do corpo de Luíza também é um ato político. “As pessoas têm que entender, e isso eu falo a partir da minha vivência dentro do Hospital de Clínicas, que nós não somos cobaias, nós estamos contribuindo com a ciência. Muito se reclama que a ciência é feita por cisgêneros [quem não é transgênero], para cisgêneros, e que as pessoas não têm conhecimento nem tato para lidar com transexuais. Como nós vamos mudar isso sem colaborar?”, questiona. Já a ucraniana Olena conta que nunca quis ser enterrada. “Depois de algumas pesquisas, eu descobri que as universidades precisam muito de corpos para serem estudados, nossos futuros médicos precisam de matéria prima para estudar. Então, já que eu vou apodrecer, prefiro estar num lugar onde eu posso ajudar.” Ela doou seu corpo para a


Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e optou por não ter velório. “Prefiro ser lembrada por minha vida, não por minha morte”, afirma. A mãe de Olena, Tamara Sinitsyna, respeita a decisão da filha, apesar de não simpatizar muito com a ideia. “Não é normal”, diz.

Referência Nacional A UFCSPA se tornou referência nacional ao criar o seu Programa de Doação de Corpos. Desde 2008, a universidade vem desenvolvendo o programa que consiste na conscientização da população gaúcha sobre a possibilidade de doar o corpo, ainda em vida, para a instituição. O processo é bastante simples e tem trazido resultados muito positivos. Desde o início do programa, já foram recebidos 113 cadáveres e há mais de 500 doadores cadastrados, número que garante uma quantidade de cadáveres suficientes para atender os 16 cursos de graduação da universidade. Um artigo produzido por alunos da UFCSPA em 2017 e publicado na Anatomical Sciences Education, uma das mais importantes publicações do mundo na área da anatomia, aponta que o perfil do doador do programa é Por mais de 20 anos, Liselotte procurou uma maneira de doar o corpo para a ciência. Quando encontrou, inspirou também sua mãe

“Então, já que eu vou apodrecer, prefiro estar num lugar onde eu posso ajudar” Olena Gradynar Doadora cadastrada

majoritariamente composto por mulheres brancas, com mais de 60 anos, divorciadas ou solteiras, membras de alguma religião e pelo menos com o ensino médio completo. A UFCSPA promove todos os anos uma exposição com algumas peças e também uma cerimônia de agradecimento para a família de doadores, organizada pelos próprios alunos que os utilizaram em atividades de ensino e pesquisa. Muito embora o uso de softwares e modelos 3D esteja se popularizando, há questões que entram em discussão sobre a substituição do uso de cadáveres. “Os modelos 3D e softwares são excelentes para complementar, mas não substituem, justamente por não terem a compreensão das estruturas em três dimensões, até mesmo da textura”, diz Andrea Oxley da Rocha, coordenadora do programa. Há também uma função ética na utilização dos corpos nas atividades de ensino. Com eles, o aluno aprende a lidar com a pessoa quando ela está na condição mais vulnerável,

como um paciente em coma ou morto, por exemplo. “Tu trabalhas com esse aspecto que não é apenas técnico. Várias pesquisas têm mostrado que o aprendizado e a memorização é maior com o uso de cadáveres, principalmente com a dissecação”, aponta Andrea.

Famílias doadoras Voni Beskow Fredrich faleceu em 2018, aos 85 anos. Seu corpo foi doado para a UFCSPA e hoje faz parte do acervo da universidade. A filha de Voni, Liselotte Fredrich, sempre quis doar seu corpo. Como psicóloga, ela mesma teve aulas de anatomia durante a sua graduação. “Quando eu consegui fazer os papéis, a minha a minha mãe disse ‘eu também quero doar se isso vai ajudar eles’”, conta Liselotte. “Então eu chamei meu irmão, porque eu queria saber se ela se empolgou por mim, ou se realmente queria doar. Nosso pai faleceu com 49 anos, então tem no cemitério o lugar que seria dela, e toda a família esperava que ela fosse pra lá, mas, quando eu falei com meu irmão, ele disse que ela estava empolgadíssima por poder doar e ajudar os estudantes”. Embora o tema gere alguns estranhamentos, a doação de corpos começa a ganhar espaço nos debates sobre as possibilidades para os corpos que ficam quando as vidas se vão, afinal, assim como na doação de órgãos, essa decisão se trata de um grande altruísmo para benefício de toda a humanidade.

Quer ser doador? Entre em contato com o Programa de Doação de Corpos da UFCSPA através do e-mail doacaodecorpo@ufcspa. edu.br ou pelos telefones (51) 3303-9000 e (51) 3303-8727.

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Doação de órgãos

RESPIRANDO uma nova vida Famílias e profissionais de saúde enfrentam obstáculos para viabilizar doações de órgãos Texto e diagramação: Diego Rodrigues diego.antonio@ufrgs.br Fotos: Lilian Dias e Maria Luíza Rodrigues lica_cia@hotmail.com maria16petzinger@gmail.com

O Hospital Dom Vicente Scherer, da Santa Casa de Misericórdia, em Porto Alegre, é um lugar de ansiedade e esperança de vida. As oportunidades atravessam com urgência a entrada do hospital, pois as doações de órgãos não têm tempo a perder. Simone Lysakowski, enfermeira e integrante da Organização de Procura de Órgãos (OPO) da Santa Casa, explica que, em alguns dias, as equipes envolvidas não param, já que são muitas as operações de transplante – o hospital já chegou a receber até sete doadores em 24 horas. “Sempre corremos contra o tempo, pois quanto mais demoramos para chegar ao receptor, menores são as chances de sucesso.” Para um profissional da saúde, essa é uma informação óbvia. Mas ao que se refere Simone, afinal? Ao processo conhecido como isquemia fria, determinado pelo tempo entre a retirada de um órgão e o transplante deste em outro indivíduo

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sem a perda das funções e temperatura adequadas. De acordo com a literatura médica, corações têm prazo limite de quatro horas e pulmões, até seis horas. Já os rins aguentam cerca de um dia e meio, enquanto o fígado e o pâncreas suportam 12 horas. O que nem sempre se revela é que, antes desse procedimento, três etapas fundamentais agitam os profissionais médicos e familiares envolvidos. Para que alguém seja de fato um doador, é necessária primeiro a confirmação de sua morte encefálica. A Lei nº 9.434/97, regulamentada em 2017, estabelece a morte como perda completa e irreversível das funções, definida pela cessação de atividades corticais e de tronco cerebral. Para realizar esse diagnóstico, são feitos diversos testes clínicos, exames de imagem e de fluxo sanguíneo com profissionais capacitados após seis horas de internação. De acordo com a Associação Brasileira de Transplante

de Órgãos (ABTO), é somente depois desses exames que a pessoa é declarada como potencial doadora. Em seguida, médicos e enfermeiros abordam as famílias das vítimas. Com a decisão sob responsabilidade dos familiares, surge uma série de dilemas para definir o destino do ente querido recém-perdido. O Brasil implementou a doação mediante consentimento da família da vítima com o mesmo decreto de 2017. Dagoberto Rocha, enfermeiro do Hospital São Lucas na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), é especialista em abordagem a familiares de potenciais doadores. Seu objetivo é garantir uma definição que conforte todas as partes. O profissional ressalta que a delicadeza do momento requer uma condução baseada em bons princípios. “A morte é o pior momento para a família. Quando recebem o comunicado, gera uma série de sentimentos e comportamentos que


Pacientes realizam traslado entre prĂŠdios do complexo hospitalar da Santa Casa conectados pela passarela SEXTANTE Julho de 2019

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No terceiro andar do Hospital Dom Vicente Scherer, pacientes aguardam a chamada para a cirurgia

não sabemos como manejar. Por isso, acaba sendo mais fácil comunicar a má notícia e sair correndo, ao invés de fornecer um apoio emocional e escutar ativamente a família.” De acordo com ele, isso influencia na doação, já que ela é uma consequência de todo o atendimento. “O nosso objetivo não é de convencer a família, mas de oferecer a oportunidade de doação e fazer com que isso possa ser algo positivo nesse momento de tragédia”, afirma Rocha. Os parentes recusam a doação em mais de 50% dos casos. Os dados divulgados pela ABTO mostram que, entre janeiro e dezembro de 2018, mais de 10 mil pacientes foram diagnosticados com morte cerebral no Brasil. Seus órgãos poderiam salvar a vida de

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quase 34 mil pessoas que aguardam nas filas de espera por todo o país, mas somente pouco mais de 3.500 deles se tornaram doadores. No Rio Grande do Sul, durante o mesmo período, foram registrados quase 700 candidatos, com apenas 238 tendo seus órgãos retirados para transplante.

A passos curtos, doações evoluem O terceiro passo antes do transplante é o mais rigoroso de todos: encontrar um receptor que seja compatível com o órgão doado. Liége Gautério, de 45 anos, é educadora física e natural de Santa Maria, no Rio Grande do Sul. Sempre muito ativa, recebeu o diagnóstico de fibrose pulmonar em 2003,

mas não agiu até que os sintomas – como a dificuldade para subir escadas – fossem demasiado acentuados até mesmo para quem estava habituada ao cansaço físico. Há quase oito anos, ela passou cinco meses na espera por uma compatibilidade que lhe oferecesse um novo pulmão. “Aguardava o toque do meu celular e dos meus pais com notícias da Santa Casa.” A Comissão Intra-Hospitalar de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplante (CIHDOTT) colabora com o Sistema Nacional de Transplantes para garantir o sucesso das operações: são levadas em conta as chances de rejeição em um novo corpo, tipos sanguíneos, condições físicas do possível transplantado, além da distância que o órgão e o receptor terão de percorrer. A base de dados reúne informações levantadas em uma jornada que envolve aproximadamente 100 funcionários, entre atendentes, técnicos de laboratório, enfermeiros e médicos. Caso não seja identificado um receptor viável, o órgão é oferecido aos centros de transplante dos estados mais próximos. A doença de Liége só encontrou solução em um pulmão cedido em 28 de setembro de 2011, com uma doação que nunca conseguiu confirmar de quem era. Apesar dos registros não serem disponibilizados, Liége investigou jornais e notícias até descobrir que uma menina da cidade de Bagé, no Rio Grande do Sul, faleceu no dia de sua operação e era doadora. Ela e a mãe da menina já conversaram sobre as coincidências entre a data do transplante e a fatalidade, agradecidas pelo destino mesmo sem haver certeza de que foi ela a doadora de Liége. O que é certo é que Liége conseguiu retomar suas paixões: garantiu, em 2015, a primeira medalha de uma mulher brasileira nos Jogos Mundiais para Transplantados, em atletismo. Ao longo dos últimos anos, os números brasileiros têm melhorado. O Sistema Único de Saúde (SUS) financia mais de 95% dos procedimentos no país. Em 2018, foram concretizados aproximadamente 25 mil transplantes, de acordo com dados divulgados pela ABTO e Ministério da Saúde. Segundo


“Viver um mês além do que se esperava já faz tudo valer a pena. Mudei minha relação com a morte, não preciso ter medo algum”

Liége representou o Brasil em três Mundiais para transplantados após o atendimento na Santa Casa

Liége Gautério

Educadora física transplantada

país em números absolutos de doação, o Brasil se encontra atrás apenas dos Estados Unidos. Entretanto, considerados os dados por milhão da população (pmp), o Brasil figura somente no 21º lugar para doadores efetivos entre 50 países, de acordo com o Registro Internacional de Doação e Transplante de Órgãos (IRODAT). A Espanha, país de excelência na área e que proporcionou a especialização de Dagoberto em abordagem familiar, tem somente 15% de recusa familiar e lidera a lista com 47 pmp. A enfermeira Kelen Machado, coordenadora da OPO da Santa Casa, acredita que a falta de informações sobre a doação é uma questão cultural que o Brasil demorará a assimilar. “O que geralmente parece ser a morte para as famílias? A pessoa parada, gelada, com uma coloração feia e sem reação. Você passa a visualizar até a cena do velório, para muitos é assim. Então, contar a uma mãe que ela perdeu o filho, depois de vê-lo do mesmo jeito há poucas horas na UTI, é difícil. Ela vê como o corpo está quente, com o coração batendo e até a urina saindo, além do monitor do equipamento com um traçado normal. A compreensão do que é morte nesse momento é complexa”, afirma. Para superar as dificuldades, Liége sempre enxergou seu caso com otimismo. “De vez em quando, me vinham as questões: ‘e se não der?’, ‘e se o órgão não vier?’. Me angustiava a tristeza dos que ficariam. Mas viver um mês além do que se esperava já faz tudo valer a pena. Mudei minha relação com a morte, não preciso ter medo algum”.

Cuidados com os órgãos

Caixas térmicas são utilizadas para preservar órgãos até o momento do transplante

A partir da confirmação de morte encefálica do paciente, ocorre um processo natural de desgaste dos órgãos. Todo o corpo humano deixa de receber o aporte de fluxo sanguíneo necessário, pois o cérebro comanda as funções corporais. Iniciado o protocolo, com a certeza de injúria cerebral – forma como os médicos denominam a perda de atividade do cérebro –, é preciso proteger os órgãos. Eles, então, são removidos e permanecem envoltos em um líquido de preservação. As caixas térmicas são preenchidas com gelo e incluem um recipiente estéril para a manutenção da temperatura. Os órgãos devem ser transportados até o centro de transplante mais próximo. É necessário respeitar o tempo de isquemia fria, ou seja, o período de durabilidade de cada órgão até chegar ao receptor.

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SAMU

CORRIDA PELA VIDA

A rotina de quem salva pode ser parecida com a sua: assistir ao Grenal, tomar chimarrão ou fazer churrasco. Só tem um detalhe: se o celular bipar, cada segundo se torna precioso para os socorristas do SAMU

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Texto: Bárbara Lima barbaragdlima@gmail.com

Fotos: Anderson Cardozo e Leonardo Melgarejo cardozo.anderson@hotmail.com melgacorrea@gmail.com

Diagramação: Vinicius Rodrigues Dutra vini.rrosa@hotmail.com

O cheiro de café passado, a carne na churrasqueira e a TV sintonizada no jogo da final do Gauchão em nada lembravam a tensão e a adrenalina que vivem diariamente os socorristas do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu). Na realidade, a primeira impressão de quem entra na base do Samu de Sapucaia do Sul, na Região Metropolitana de Porto Alegre, é de estar em casa. Nas paredes, cartazes avisavam: “Não deixe seus pertences em cima do armário!”. Os quartos, onde descansam os socorristas entre um chamado e outro, estavam com as camas desarrumadas, o que fez Letícia Santomé, enfermeira-chefe e coordenadora da unidade, alertar em tom de brincadeira: “Estamos com visitas, pessoal!”. Tínhamos conversado pouco quando a calmaria foi interrompida pelo primeiro chamado da noite no celular especial do Samu. Passava das 19h10min e a Central Metropolitana

comunicou o total de 10 vítimas em uma colisão na Rua Aracaju, no centro da cidade. Foi solicitada a ambulância USA (Unidade Móvel de Suporte Avançado), além da USB (Suporte Básico). Os motoristas Silvio dos Santos e Anderson de Lima ligaram as sirenes e não pararam nas sinaleiras. “Respeitamos o limite de velocidade das vias, a diferença é que podemos ultrapassar o sinal vermelho e, eventualmente, ir na contramão”, contou Anderson. No local, cinco das vítimas não quiseram ser atendidas, o que é direito do paciente. Dentre as outras cinco, apenas uma foi encaminhada à Unidade de Pronto Atendimento (UPA), com ferimentos leves. De volta à base, Jeferson Donadel, técnico em enfermagem, assumiu o posto diante da churrasqueira, enquanto os demais conversavam sobre os acidentes que já atenderam. Lidar de perto com a morte não faz com que os

socorristas se acostumem com ela, mas faz com que a vejam sob outras perspectivas. “Aprendi que sempre devo me despedir dos meus filhos antes de sair e que não devo brigar por coisas pequenas”, refletiu Anderson. Para Letícia, o mais doloroso é ver o sofrimento das famílias. “A gente entra na intimidade da casa das pessoas, vemos de tudo. O pesar da família diante da perda abala muito. A vida é um sopro”. Kátia de Mello, também técnica em enfermagem, acredita que a morte precoce é a mais difícil de aceitar. “No último domingo, uma jovem de 20 anos morreu em decorrência de um acidente de carro, uma menina saudável”. No último quadrimestre de 2018, o Samu de Sapucaia registrou 947 atendimentos, sendo 36% traumáticos e 64% clínicos. Nos casos traumáticos, foram 382 atendimentos por colisão, enquanto nos casos clínicos o maior número foi registrado por problemas

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cardiovasculares, com 304 atendimentos. O apoio emocional que os servidores precisam vem dos próprios colegas, uma vez que o serviço não prevê auxílio de psicólogos. “No Natal, a ceia estava pronta quando atendemos um suicídio por enforcamento. Alguns de nós não quiseram conversar sobre isso, o clima ficou pesado. Fomos jantar lá pelas 3h da manhã só’’, lembrou Letícia. Ela disse que algumas vezes o pessoal se reúne em roda e conversa sobre o que está sentindo, mas que a presença de psicólogos seria muito bem-vinda. O churrasco já estava pronto, e a equipe se acomodava para começar a assistir ao Grenal quando entrou o segundo chamado. Queda de moto. A moto não estava no local. Os socorristas encontraram um corte de profundidade média na perna direita de um dos homens (o outro recusou atendimento). Um curativo simples deu conta do recado, e o jovem de 19 anos foi encaminhado à UPA. Alguns mistérios, como o sumiço da moto, nunca

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são desvendados. Segundo a explicação de Jeferson, a segurança dos socorristas está em primeiro lugar. “Não é nosso trabalho saber o que aconteceu com riqueza de detalhes. Atendemos todo o tipo de gente. Já atendi um homem que estava armado, não tenho nada a ver com isso”. Em silêncio, quem trabalha no Samu tem a oportunidade de conhecer a realidade brasileira como poucos. “Entendemos que o nosso serviço não seria sobrecarregado se outras políticas públicas funcionassem”, analisou Letícia. Finalmente, às 22h40min, conseguimos jantar. As horas seguintes foram de relativa tranquilidade. As conversas giraram em torno de quem deveria lavar a louça, ou qual seria o resultado do jogo. Enquanto comíamos, o médico plantonista do dia, Adriano Oliveira, com sotaque baiano, perguntou: “Que carne é essa?”. Ao que Jeferson respondeu: “Não te digo! Quero ver fazerem esse churrasco quando tu voltar para Floripa”. Assim que o Grêmio ergueu a

“A gente entra na intimidade da casa das pessoas, vemos de tudo. O pesar da família diante da perda abala muito. A vida é um sopro” Letícia Santomé Enfermeira-chefe

taça do Gauchão, a maioria dos socorristas foi dormir. Jeferson terminou o plantão e foi para casa. Ficamos acordados eu, o repórter fotográfico, Anderson e Kátia.

Madrugada e pioneirismo feminino Às 0h44min, uma paciente de 86 anos estava em sono profundo quando o alerta do Samu bipou no celular de


Kátia. Os dois socorristas estavam à caminho da Fundação Hospitalar Getúlio Vargas (FHGV) para pegar medicamentos que estavam em falta e tiveram que desviar da rota. A família da senhora estava em desespero, mas logo Kátia, que trabalha há 16 anos no Samu, constatou hipoglicemia. Após a medicação, a paciente acordou sem complicações. “Esse é um dos medicamentos mais mágicos que têm. Você injeta glicose e a pessoa já vai voltando”, disse a técnica em enfermagem. Kátia, 41 anos, foi a primeira mulher a conduzir uma ambulância no Brasil. Ela contou que no Samu sempre foi respeitada. Os anos de experiência lhe renderam muitas histórias. Apesar de estar constantemente em contato com a morte, ela também ressalta como está em contato com a vida. “Já fiz quatro partos. Foram momentos gratificantes da profissão, junto com os casos graves que conseguimos reverter. Já fui convidada para aniversário e casamento dos meus pacientes”. Anderson, 36 anos, é mais jovem na área da saúde. Iniciou como condutor do Samu há três anos. Antes disso, era caminhoneiro. “Um dia me perguntei: como posso ser útil? Como caminhoneiro, não importava se eu fazia bem meu trabalho, sempre ganharia o mesmo. Decidi então entrar para área da saúde como condutor. Usar esse uniforme é motivo de orgulho”. Hoje, Anderson está fazendo o curso técnico em enfermagem e pretende ingressar na graduação de Enfermagem assim que possível. Ao retornarem à base, um morador de rua pediu comida. Kátia serviu alguns cachorros quentes que sobraram. A compaixão e a doação parecem ser um estilo de vida para esses profissionais. “No acidente que matou a menina de 20 anos , eu fiz questão de mandar louvores ao marido que ficou viúvo. Sou cristã e acredito na minha missão”, disse Kátia. Kátia tinha acabado de se deitar e o alarme soou mais uma vez, perto das 2h50min. Atropelamento. A rua era próxima à base. Ela deu um longo suspiro e correu para a ambulância. Quando chegaram no local, ela e Ander-

son viram um homem caído no canto da calçada. Ninguém prestou socorro. Quem chamou a ambulância não quis acompanhar até o hospital. O homem tinha muita dor no braço esquerdo e na região do abdômen. Usuário de crack, ele pedia por morfina e dizia: “Hoje é meu aniversário, sabia? Olha o que ganhei de presente”. Anderson e Kátia tiveram alguma dificuldade para colocá-lo na maca, já que estava bastante alterado. A Central recomendou que o paciente fosse levado ao FHGV. As luzes da base só se apagaram por completo às 4h29min, quando todos puderam dormir. O sono foi mais um cochilo. Cerca de duas horas depois, um chamado de urgência: parada cardiorespiratória. Os socorristas pularam das camas. Esse é um dos casos mais tensos e mais difíceis de ser revertido. É preciso agir rápido e com precisão. Contudo, para a surpresa e impaciência geral, as duas ambulâncias estragaram. Eles foram, então, em um pequeno veículo de transporte enquanto pediam auxílio

Atendimento feito pelo técnico em enfermagem e condutor Anderson. Abaixo, a equipe reunida para o jantar. Churrasco é a especialidade do assador e técnico em enfermagem Jeferson (de pé)

da central, que enviou uma ambulância de Esteio, cidade vizinha. A paciente, infelizmente, não sobreviveu. Os primeiros raios de sol surgiram, e os rostos, já familiares, foram embora. Os plantonistas da noite davam espaço para os colegas do trabalho diurno, que apareciam com o semblante descansado. Só Kátia permaneceria até o meio dia. O trabalho seria intenso, pois os problemas técnicos das ambulâncias não foram resolvidos. Começava mais um dia no Samu Sapucaia do Sul. Para o café da manhã, ovo frito. “Vamos precisar de energia”, disse Luciamari Lima, enfermeira, na boca do fogão.

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CUIDADOS PALIATIVOS

Fazendo as pazes

Como os cuidados paliativos podem ajudar quem acabou de começar a viver Texto e fotos: Andielli Silveira andielli98@hotmail.com Diagramação: Ana Carolina Parise anaaparise@gmail.com

Apesar de seus quatro anos, Gustavo tem um quarto que não é colorido e nem tem brinquedos. Não tem barulho ou correria, nem mesmo bagunça. Isso porque o quarto do Gustavo é o 6550 do Hospital da Criança Santo Antônio, da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Lá, ele e a mãe, Ingrid Lima, passam os dias entre o vai e vem das enfermeiras, a hora da fisioterapia e a visita do pai e da irmã mais velha, que tem seis anos. Essa rotina começou em novembro de 2018, quando ele foi internado através do SUS por um vazamento na sonda que o alimentava, mas não tem data para terminar. Gustavo tem hidrocefalia e paralisia cerebral, e, quando a equipe esgotou as possibilidades de alimentá-lo, os cuidados paliativos foram acionados. “Eu não queria, porque ao meu ver paliatividade era terminalidade, e eu não conseguia entender o que era o trabalho deles”, revela Ingrid. Precisou de muita conversa com o chefe do Programa de Cuidados Paliativos da Santa Casa, o médico Rodrigo Castilho, para que Ingrid aceitasse a assistência. “Ele me perguntou o que eu via como vida pro meu filho, e isso foi um baque. Me ajudou a colocar as

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com a morte Gustavo está internado há seis meses no Hospital da Criança Santo Antônio

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necessidades do Gustavo na frente das minhas.” Rodrigo conta que sua equipe geralmente é chamada de forma tardia, porque há muita resistência em ver esses cuidados como uma abordagem que prioriza a qualidade de vida. “Acham que é pra quando não tem mais o que fazer, mas nós trabalhamos as questões físicas, emocionais, espirituais e sociofamiliares dos pacientes e acompanhantes”, afirma Rodrigo.

Do início ao fim Ingrid recebeu o diagnóstico de Gustavo com seis meses de gestação, sentiu-se desnorteada e sem saber o que fazer. Hoje, pensa que tudo teria sido diferente se tivesse um acompanhamento dos paliativos desde o ínicio. “Eu teria uma orientação sobre como lidar com a doença, estaria mais segura,

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porque ela devasta muito. Ninguém tá preparado pra passar por tudo isso e ver que as coisas só pioram”, desabafa. O Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) tem essa parceria entre a Medicina Fetal e o seu Programa de Cuidados Paliativos. Quando uma malformação é identificada, os pais já começam a ser acompanhados pelo Programa. “Assim eles já estão mais preparados para o nascimento, já sabem do que o filho vai precisar e como cuidar dele”, explica Lucia Monteiro, coordenadora dos cuidados paliativos do HCPA. A bisavó de Gustavo faleceu em 2017 e Ingrid relata que foi uma morte muito dolorosa. “Se ela tivesse um cuidado paliativo não teria sofrido até o último minuto da vida dela.” É isso que Lucia entende como humanização do cuidado, saber reconhecer que cer-

tas terapias invasivas e dolorosas não vão melhorar o quadro e evitá-las. “O paciente pode falecer junto com a família, sem dor, sem falta de ar. Diferente de estar entubado, morrer numa CTI, sem receber visita. Menos tecnologia e mais atenção”, defende.

“Acho que esse é o maior gesto de amor que alguém pode fazer por um filho. Se o Gustavo não quiser mais estar aqui, O que eu tinha que fazer eu fiz” Ingrid Lima Mãe do Gustavo


A Medicina do cuidado Os cuidados paliativos podem ser utilizados em qualquer caso de doença ameaçadora da vida. A equipe monta um plano de atendimento junto ao paciente e sua família, englobando o controle de sintomas, atendimento psicológico e conversas sobre a evolução do quadro. O objetivo é a manutenção da autonomia e da qualidade de vida até o fim. No caso dos adultos, o câncer é a doença mais acompanhada pelos paliativos. Com as crianças, também há casos de alterações genéticas, malformações e sequelas cerebrais. Em novembro de 2018, o Ministério da Saúde normatizou a oferta dos cuidados paliativos pelo SUS. No entanto, para a Sociedade Brasileira de Pediatria, o assunto ainda é delicado. “Não é fácil para o pediatra, não está previsto ele perder pacientes. Mas a Medicina brasileira está tentando entender mais os cuidados paliativos”, afirma Lucia. Nos cuidados paliativos pediátricos, a equipe busca as demandas da criança, que muitas vezes é isolada do próprio processo de adoecimento como forma de proteção. Lucia acredita ser essencial ouvir as crianças que estão aptas a opinar: “Elas são muito espertas, te dão dicas do que querem. É mais fácil que com os adultos”. No entanto, as decisões são sempre feitas com os responsáveis. Outra especificidade é o treinamento que precisa ser fornecido aos pais em caso de doenças graves em bebês ou crianças muito pequenas, para que eles se sintam seguros de cuidá-las em casa. Para as internadas, são propostas atividades lúdicas, terapia ocupacional e festas em datas comemorativas.

A conciliação Foi justamente quando os cuidados paliativos entraram em cena que Gustavo começou a melhorar. Ingrid se viu em um espaço aberto ao diálogo, às suas dúvidas e sugestões. Disse que queria tentar a recolocação da sonda uma última vez, e a equipe concordou. O procedimento deu certo, e Gustavo voltou a se alimentar. Mas Ingrid é firme ao se posicionar contra medidas invasivas que não vão acarretar em

melhora. “Acho que o cuidado paliativo é como ser mãe. A mãe quer proteger o filho, não quer que ele sofra e viva com dor”, comenta. Ninguém sabe quanto tempo de vida Gustavo tem. Além de graves lesões cerebrais, o menino tem epilepsia, problemas respiratórios e uma traqueostomia – um orifício na traqueia para passagem de ar. O único tratamento que ainda pode causar resultado é a fisioterapia, que auxilia no desenvolvimento motor e muscular. “Mas a gente

não fica tão preocupada porque tem acompanhamento e sabe com o que tá lidando”, afirma Ingrid. No quarto 6550 não tem brinquedos ou bagunça, mas tem paz, afeto e serenidade. Gustavo ri para as fotos. “Acho que esse é o maior gesto de amor que alguém pode fazer por um filho. Se o Gustavo não quiser mais estar aqui, o que eu tinha que fazer eu fiz”, diz Ingrid. Disponível em versão digital

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VIUVEZ

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A perda, o luto e a constante busca pela felicidade das viúvas que perderam seus companheiros de vida na velhice Texto e diagramação: Ana Carolina Parise anaaparise@gmail.com Fotos: Caroline Oliveira e Luísa Tessuto carolineoliveirasva@gmail.com luisatessuto@hotmail.com

Depois de 43 anos de casamento, Elusa perdeu o marido Joel para o câncer

A morte é a única certeza que se tem na vida. As pessoas nascem, crescem e morrem. Faz parte do ciclo vital. Pesquisas do IBGE apontam que a expectativa de vida das mulheres é maior que a dos homens no Brasil. Consequentemente, são as mulheres brasileiras que vivenciam mais a viuvez. Dados levantados pelo mesmo instituto mostraram que, em 2014, mais de 50% das mulheres com 70 anos ou mais já eram viúvas no país. Não há formas de se preparar para perder aquele com quem se compartilhou uma vida, afetos, experiências, e com quem se construiu um amor. Se tornar viúva não é um processo fácil. Porém, a perda e a viuvez podem ser um convite para a criação de uma nova realidade, agora sem o companheiro.

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despedida do primeiro e único amor Mulher independente. Essa é Madalena Jessi Teles Santos, chamada carinhosamente de Madá. Aos 83 anos, ela vive o processo da viuvez depois de 60 anos de casamento. Perdeu Darço Pacheco Santos, seu companheiro de vida, há menos de um ano. Madá nasceu em Porto Alegre e cresceu num quilombo ao lado dos pais e irmãos. Conheceu seu primeiro e único amor na porta da igreja, numa tradicional missa de domingo. Depois de nove anos de namoro e sete meses de noivado, ela e Darço oficializaram o casamento no dia 8 de janeiro de 1958. Contrariando os costumes da época, Madá nunca baixou a cabeça para ninguém. Nunca se curvou nem às vontades de Darço. Se queria fazer algo, fazia. Mesmo com as brigas, a relação era baseada em muito companheirismo e amor. Madá, que trabalhou durante toda a vida, primeiro como costureira, depois como manicure, largou tudo para cuidar de Darço quando este adoeceu. Foram 15 anos de cuidado, frequentando hospitais, comprando remédios, até que, em 2018, ele se foi. Mesmo assim, Madá não tem medo da morte. “A morte para mim é uma coisa maravilhosa”, afirma a aposentada. Há uma razão para pensar dessa forma: como grande admiradora de sua mãe, Madá passou a vida toda ouvindo dela que morrer é uma coisa boa. De acordo com ela, a morte é uma tranquilidade para quem cuida e para quem vai. Isso não significa que ela não sinta falta de Darço. Apesar de achar que superou bem a perda, Madá afirma que fica um vazio. O momento em que mais sente falta de seu companheiro é quando chega em casa. “Falta a troca, a companhia, com quem conversar”, conta. Contudo, ela não se lamenta. Hoje, busca qualidade de vida. Muito querida em seu bairro, ela sai de casa para se distrair. Atualmente, frequenta o Sesc em Canoas, na Região Metropolitana de Porto Alegre, onde faz teatro, yoga, tai chi chuan, participa de encontros e palestras e, consequentemente, mantém

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inúmeras amizades. Ainda morando na mesma casa, Madá cuida das tarefas domésticas, escuta rádio, lê livros, preservando a sua independência. Ela sente que, mesmo com a perda, seu passado foi bom. Não teve filhos com Darço e não se arrepende. Não tem vergonha de onde cresceu, da sua cultura, nem da criação que teve dos seus pais. Sem o seu parceiro de vida, hoje Madá só quer aproveitar essa fase agridoce, mas inevitável, da velhice.

O assustador peso da morte Vinda de Caçapava do Sul, a 260 quilômetros de Porto Alegre, com sua mãe e seus 13 irmãos para Canoas, na Grande Porto Alegre, Elusa Tolfo de Carvalho conheceu Joel Maidana de Carvalho em um baile na cidade. O que ela não sabia é que de uma simples dança numa noite qualquer nasceria um casamento de 43 anos que renderia três filhos. Elusa e Joel casaram jovens; 20 e 21 anos, respectivamente. Naquela época, era comum que nas relações as mulheres fossem submissas aos homens, e assim Elusa foi, diferente de Madá. “Aonde ele queria eu tinha que ir, mas se eu quisesse ir em algum lugar e ele não, então tá, tudo bem”, relembra. Hoje com 66 anos, aposentada, Elusa não se arrepende de como foi a relação. Segundo ela, Joel era um homem muito família, que se dedicava muito à ela e aos filhos. O começo do fim foi repentino. Há quatro anos, ela e o marido estavam voltando da praia quando Joel teve um mal súbito. No hospital, foi descoberta a razão: câncer. Trabalhando em um bar de uma faculdade, Elusa também largou tudo para cuidar do parceiro durante o tratamento. “Ficou seis meses doente, e eu fiquei no hospital com ele sempre ajudando, e aí ele faleceu”, conta. Entretanto, Elusa não teve tanto tempo para sentir a dor da viuvez. Dois anos depois, seu genro descobriu-se com câncer também, e está atualmente em tratamento. Logo em seguida, seu filho do meio foi diagnosticado com a doença e, para a dor da aposentada, não resistiu. O luto de Elusa durou três anos, juntando duas grandes perdas. “Não

“Ficar sozinho não é solidão” Guite Zimerman Assistente social

esqueci nunca, a dor de perder o marido é horrível, e a de um filho é pior”. Apesar de saber que é algo natural, o choque da morte do parceiro, junto com a de um filho, acabou colocando Elusa em um quadro depressivo. Hoje, morando em Canoas há 50 anos, a caçapavana vive a vida que sempre quis. Frequentando o Sesc há quase um ano, levada por iniciativa da filha, Elusa se encontrou novamente. “Eu sou feliz do jeito que eu sou, ocupo meu tempo com coisas para eu ser feliz”, diz. Deixando para trás a casa antiga com tudo dentro, atualmente Elusa mora sozinha em um apartamento no térreo, perto dos filhos, com quem combina regularmente de tomar chimarrão. Já bisavó e com muitas novas amigas, a aposentada, mesmo com a dor, vive a vida pensando em sua felicidade. “É uma dor que tu vai te acostumando, superando”, diz ela, que todo dia frequenta o SESC, faz ginástica no parque e se sente livre para fazer o que mais desejar.

Reestruturando a vida Segundo Guite Zimerman, quatro coisas a ajudaram a superar a fase do luto depois de perder seu companheiro: família, otimismo, vontade de se reerguer, e, por fim, um animal de estimação. Ter uma família unida, que dá a ela o suporte necessário, foi essencial, assim como a vontade de voltar a ser feliz. Mas o que realmente mudou a vida de Guite após a perda foi a pequena Sheine, companheira da assistente social há quatro anos. A shih-tzu ilumina a casa de Guite de tal forma que acaba com qualquer indício de solidão. Guite foi casada por 56 anos com o conhecido psicanalista de Porto Alegre David Zimerman. Uma relação de pura cumplicidade, na qual um completava o outro. Há cinco anos, perdeu o parceiro que estava em tratamento contra um câncer de mandíbula. Durante


três anos, ela elaborou seu luto, buscando reestruturar toda sua vida para que conseguisse ser feliz mesmo sem a presença do marido. A viuvez assusta. “Se perde uma pessoa querida, que te deu uma vida boa, e que tu gostaria de continuar”. Apesar disso, Guite buscou aquilo que a faria viver bem. Hoje, é feliz ao lado da Sheine, morando sozinha em um apartamento no bairro Bela Vista. Muito apegada aos filhos e netos, destaca a importância de ter uma família unida, além de também manter os laços de amizade. Com 80 anos, a viúva de David está sempre se estimulando, seja ajudando outras pessoas, fazendo viagens ou descobrindo-se em novas atividades. Olhando para trás e vendo tudo que construíram juntos, Guite tem a sensação de dever cumprido e, justamente por isso, não teme a morte. “Quem teve uma infância feliz, uma adolescência feliz, uma adultez feliz, um casamento feliz, não tem medo da morte”, aponta ela.

Cada pessoa tem seu tempo, e esse momento deve ser respeitado. O luto após a perda é essencial para que as viúvas consigam, a partir daí, se reerguer e ressignificar a presença daquele companheiro em suas vidas. Não é mais uma vida a dois, tem de se aprender a viver a um. O que Madá, Elusa e Guite

têm em comum? Nenhuma esqueceu, mas nenhuma desistiu de viver. A morte nada mais é do que um aprendizado. “Não adianta chorar pelo leite derramado”, já diria a expressão popular – e Guite também. Portanto, o primeiro passo é ir à luta e buscar aquilo que te faz feliz.

Viuvez: um fim ou um recomeço? Guite Zimerman trabalhou mais de 30 anos com assuntos relacionados à velhice. Assistente social com especialização em gerontologia, sempre teve como foco ajudar os velhos a envelhecer bem, e são sobre isso os dois livros dela, Velhice: Aspectos Biopsicossociais e O Velho do Século XXI. Além disso, Guite também foi uma das colaboradoras do livro Como Trabalhamos com Grupos, escrito pelo seu falecido marido, David Zimerman, e pelo psiquiatra Luiz Carlos Osorio. “Ficar sozinho não é solidão”, pontua Guite, “as pessoas em geral se acomodam, o velho não se dá o luxo de ser feliz”. Perder o companheiro de vida não é fácil, mas também não significa que a vida acabou. “Se tu quer ser feliz, tu tem que procurar ser feliz, ninguém te dá a felicidade”, afirma ela. A morte não é sofrimento, e nem deve significar o fim de tudo. Para Guite, o importante é buscar aquilo que faz bem, é preciso adaptar-se às situações, e são as atitudes que fazem toda a diferença.

Madá, Elusa e Guite reestruturaram suas vidas após a perda de seus companheiros

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LUTO PARENTAL

COM ELE ONDE ELE

ESTIVER Quem perde um filho enfrenta mais que a dor da perda. Enfrenta a falta de apoio do poder público e os estigmas da indesejável condição de ser um pai ou uma mãe que vive mais do que seus filhos Texto: Elivelto Corrêa eolo_4@hotmail.com

Émerson Santos e Filipe Pimentel

Diagramação: Caroline Silveira c.silveira794@gmail.com

Foto: Maiara Dallagnol e Rafaela Frison maiara_dallagnol@hotmail.com rg_frison@gmail.com

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Neiva ainda guarda a camiseta do Grêmio, uma das paixões de seu filho Paulo

O desaparecimento e morte de Paulo Júnior da Costa já vinham sendo noticiados e acompanhados em seus desdobramentos desde o primeiro dia de 2019. Mas a postagem em uma rede social feita no dia 17 de abril por sua mãe, Neiva Amador, chamou a atenção. Foi logo após o Grenal que deu o título de campeão gaúcho ao Grêmio. A postagem dizia: “Meu lindão – dois emojis de coração azul – este título é teu… Te amo!”. Junto havia uma imagem dividida: de um lado, uma selfie de Paulo Júnior, tirada em uma bicicleta em movimento, e de outro, os dizeres em preto sobre o fundo celeste: “Com o Grêmio onde o Grêmio estiver”. Paulo tinha 22 anos, era morador de Guaíba, cidade da Região Metropolitana de Porto Alegre. Trabalhava como motorista de aplicativo e cursava engenharia. Foi assassinado em Laguna, Santa Catarina, no dia 31 de dezembro de 2018. Dois criminosos solicitaram o carro pelo aplicativo em Porto Alegre, obrigaram Paulo a levá-los até a cidade de Laguna e lá o executaram a tiros. O caso ainda corre na Justiça, mas os indícios são de latrocínio. O crime teve visibilidade nacional e repete o tipo de ocorrência letal mais comum entre os jovens no país. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), a principal causa da

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morte juvenil no Brasil é a violência interpessoal. Uma pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), feita em 2016, apontou, naquele ano, um número de vítimas de homicídio, com idades entre 15 e 29 anos, superior a 33 mil. Na faixa de zero a 14 anos, a maior taxa de mortalidade ocorre em acidentes de trânsito. O Ministério da Saúde contabilizou ao longo de 2015, 1389 óbitos dessa natureza. Como outras principais causas apontadas, ainda estão afogamentos, infecções respiratórias, leucemia e suicídio. São dados que trazem a dimensão de outro elemento que não consta em pesquisas oficiais, mas que é um efeito direto dessas incidências: o luto parental.

Os números no Estado Existe uma dificuldade em determinar a quantidade exata de pessoas como Neiva, que enfrentam o processo de assimilação da perda de um ou mais filhos, a que chamamos luto parental. Não é apenas um trauma particularmente difícil de ser superado, mas também um tabu social, que não encontra estudos ou políticas públicas específicas a ele direcionado. Estima-se que no Rio Grande sul existam cerca de 17 mil famílias em processo de enlutamento. Oito mil só na Capital.

Esses números, divulgados através da plataforma de dados do Ministério da Saúde (Datasus), foram apresentados na Câmara Municipal de Porto Alegre no dia 9 de maio pela ONG Amada Helena, dirigida por Tatiana Maffini. A ONG foi criada em 2013, após a morte da filha de Tatiana aos 17 dias de vida. A organização busca oferecer alternativas no acolhimento emocional e psicológico para pais, bem como desenvolve um trabalho de humanização do luto parental, promovendo encontros multiprofissionais, palestras e reuniões. “Assim como as pessoas não estão preparadas para um evento dessa gravidade, os profissionais também não estão. Muitas vezes não é por falta de empatia, mas de treinamento adequado”, afirma Tatiana.

A perda segundo a psicanálise A psicóloga Liane Tonelotto, do Centro Profissional Casa Verde, em Guaíba, explica que o luto é caracterizado, na visão freudiana, como consequência da perda de um objeto: “Todo ser humano inicia sua vida psíquica construindo ferramentas e estruturas para se relacionar com seus ‘objetos de amor’. Os primeiros objetos são os pais; ao longo da vida, vão surgindo outros com os quais nos relacionamos e nos quais investimos a nossa libido. O luto é


o sentimento de perda de elo com esses objetos de amor”. A psicóloga salienta que a morte de um filho vem com outros estigmas, por romper com a ordem natural da vida, e muitas vezes exige um acompanhamento mais prolongado. “A pessoa precisa elaborar a perda. A singularidade de cada um define quais os elementos serão importantes nesse processo e quanto tempo a recuperação demandará. A incapacidade de restabelecer elos com outros objetos de amor e com a própria rotina após o trauma constitui o luto patológico. É preciso estar atento aos sinais que o acusam”. No caso de Neiva, ainda não houve tempo para assimilar a perda. Três dias depois da quarta audiência que julga o crime, admitiu estar vivendo uma das piores semana desde o ocorrido: “Hoje faz quatro meses desde a morte do Júnior e eu tô meio assim”, disse ela, balançando o corpo de uma lado a outro, demonstrando instabilidade. Neiva diz que o marido ainda está “bloqueado” e prefere evitar o assunto. Tatiana acha que é mas difícil para os pais externalizar o luto do que para as mães. Contudo, uma vez que o trabalho da ONG começou a ser desenvolvido, eles perceberam que os pais também tinham necessidade de expressar suas dores. Por esse motivo, substituíram o

“A incapacidade de restabelecer elos com outros objetos de amor constitui o luto patológico” Liane Tonelotto Psicóloga

foco original da campanha que tratava de luto materno e passaram a focar em luto parental. Segundo ela, existe a ideia de que o homem não pode demonstrar fragilidade, mas na realidade ele precisa de apoio tanto quanto as mães. “Ele costumava sentar bem aí onde tu tá!”, diz Neiva apontando para o sofá. Ela mostra também o quarto de Paulo, impecavelmente arrumado, com as roupas preferidas dele cuidadosamente dobradas sobre a cama, junto às medalhas de torneios de basquete. O caderno e os xerox dos capítulos que lia foram mantidos sobre a escrivaninha na frente do computador desligado. “Tem dias que é mais difícil”. Em alguns momentos, Neiva se cala para ritmar a respiração e evitar o choro. Nem sempre consegue: “Eu tenho certeza que a dor ela nunca vai ir embora. Eu sei que vai ter dias que

nem hoje, mas a gente tem que buscar força para seguir em frente”. Parte dessa força Neiva encontra nas coisas que planejavam realizar, como a pequena loja no centro da cidade inaugurada depois do incidente. Também nos cuidados com o caçula, Arthur, de 10 anos, em seu marido e em seus cães. E ainda no envolvimento que passou a ter na busca por condições de trabalho mais seguras para os motoristas de aplicativo. Segundo a psicóloga Liane, um objeto de amor não é necessariamente uma pessoa. Pode ser uma atividade, um projeto ou uma realização. Embora fique difícil pensar em substituição, essas ações podem ser uma compensação para preencher os espaços deixados pelo que foi perdido e garantir uma relação mais saudável com a ausência. A ONG criada por Tatiana e o seu próprio exemplo de vida reafirmam isso. Ela conseguiu desenvolver um sentimento de gratidão: “É triste e eu não romantizo o sofrimento, mas tenho certeza que a Helena veio para melhorar minha vida, e isso me dá muita força para continuar todo o trabalho”.

Disponível em versão digital

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descoberta da morte

SER OU NÃO SER?

A clássica questão do jovem Hamlet ecoa naquilo que dizem os psicólogos e pedagogos sobre o amadurecimento de crianças e adolescentes e a relação desse processo com a descoberta do que é a morte

Texto: Yuri Correa yuri.celico@gmail.com

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Fotos: Cainan Silva e Bruna Jacobovski bruna-pjacobovski@hotmail.com itscainan@live.com

Diagramação: Filipe Batista filipe.batista@ufrgs.br


“E, naquele momento, eu podia jurar que nós éramos infinitos”, pensa Charlie, o jovem protagonista do livro As Vantagens de Ser Invisível, de Stephen Chbosky. Ainda um adolescente, o personagem, recém curado de um longo processo de luto pela perda do melhor amigo, se deixa apreciar um instante poético de sua vida com essa frase. Uma constatação prazerosa frente à realidade que acabou de entender e que lhe diz justamente o oposto disso: eles, Charlie e seus amigos, são finitos, assim como todas as outras pessoas. Pode soar macabro, mas a morte e a juventude andam de mãos dadas em muitas das histórias que reverberam na cultura popular, seja nas páginas ou nas telas dos mais diversos tamanhos. Harry Potter, por exemplo, conta sobre um menino que, para derrotar seu arquiinimigo, precisa aprender aquilo que esse algoz jamais entendeu: que todos temos que terminar, cumprir ciclos e acolher a ideia de que vamos morrer. Por rejeitar esse destino, Voldemort torna-se um vilão odioso e deformado de maneira moral, ética e fisicamente. Já Stephen King foi bem menos sutil, a morte seguiu os passos de vários dos seus jovens protagonistas, assombrando aqueles que a temiam, seja na forma do palhaço Pennywise, do gato ressuscitado em Cemitério Maldito ou na forma do monstruoso trem que surge nos momentos mais inconvenientes para os meninos de Conta Comigo. Pensem em Bruce Wayne e como a perda traumática dos seus pais na infância o transformam num justiceiro mascarado. Aliás, já repararam em quantos dentre os mais cultuados heróis e protagonistas do cinema e da literatura foram enobrecidos pelo entendimento precoce do que é morrer? Do Hamlet que intitula este texto, passando por Oliver Twist e até Luke Skywalker, quantas gerações de órfãos e jovens enlutados não fizeram e ainda fazem parte do imaginário popular? O arquétipo, logo, não deve ser um acaso. Se surge em tantas obras e em tantas mídias através dos tempos, é porque há algo de muito natural em associar o amadurecimento com o entendimento de que a morte é parte essencial da vida. Mas quando aprendemos isso? SEXTANTE Julho de 2019

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Perspectiva infantil A doutora em psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Paola Vargas Barbosa explica que os primeiros contatos com a morte se dão na primeira infância de maneira inconsequente. Ela destaca que, na modernidade, a mídia tem um papel central na formação dessas ideias e cita como exemplo as animações infantis, em que um piano ou uma bigorna podem cair na cabeça de um personagem e ele continuar vivo e atuante na trama. Isso não é uma representação errada, pois crianças entre cinco e sete anos ainda não entendem a irreversibilidade de um evento como a morte, sua concepção de mundo tende a se basear na estabilidade, ou seja, elas ainda acreditam que o que foi vai voltar. Antes disso, até uns três ou quatro anos, as crianças apenas conseguem compreender que há algo errado fora do seu entendimento, observando que as pessoas a sua volta estão tristes ou consternadas. Porém, nessa fase, o indivíduo ainda é jovem demais para entender a lógica de perda definitiva. Ainda segundo Paola, o ideal não é excluir as crianças dos processos relacionados à morte. De acordo com o artigo de pesquisadoras da UFRGS “Intervenção para Promoção de Práticas Parentais Positivas”, a negligência, na qual se encaixa-

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ria o descuido com a introdução de certos conceitos à criança, tende a resultar no subdesenvolvimento das habilidades emocionais e sociais do adulto que ela se torna depois. A pesquisa destaca alguns estudos para explicar que certas práticas negativas em relação às meninas e meninos nos primeiros anos de vida (e a desinformação seria uma delas), costumam afetar o comportamento dessas pessoas na adolescência e até na fase adulta. O artigo, assinado pelas pesquisadoras Beatriz Schmidt, Ana Cristina Pontello Staudt e Adriana Wagner, diz que a infância é um estágio muito curto da vida em comparação aos outros, mas é o mais importante nas definições de todo o resto por se tratar de um período em que comportamentos, associações e aprendizados ainda estão sendo construídos. Paola segue nessa linha de pensamento ao dizer que considera uma boa estratégia falar com a criança a respeito e deixar que ela participe de certos rituais “mais leves” em relação à morte, para que faça suas primeiras construções sobre esse tipo de evento. É sabido que muitas vezes os tutores precisam levar a criança a um velório ou enterro porque não têm com quem deixá-la em casa, mas Paola diz que esse não seria o cenário ideal para o primeiro contato. Ela sugere que se comece falando da morte de um bichinho de estimação.

Diz que é importante mostrar o corpo, perguntar à criança como ela se sente sobre aquilo e convidá-la a participar de algum tipo de processo de encerramento, como um pequeno enterro ou qualquer forma de descarte do cadáver. A doutora em psicologia ressalta que a sociedade ocidental possui muitos estigmas sobre a morte, provavelmente ligados à formação dos países baseados em religiões cristãs, que trazem consigo uma carga pesada de conceitos opressores sobre o pósmorte, como céu e inferno. A psicóloga e mestra em ciências sociais e humanidade Jaciane Guimarães também comenta sobre os casos em que esses processos são atravessados por diferentes dogmas, como os do espiritismo, ressaltando que neles tanto a aceitação quanto o evento da morte costumam ser menos traumáticos. Já segundo Paola, é uma quebra de paradigma atribuir aos pais certa responsabilidade na formação desses aprendizados, pois nossa configuração social ainda relega demais a abordagem desses temas a especialistas e instituições, como os médicos, os hospitais ou as funerárias, por exemplo. Raramente é trazida para dentro de casa ou para o cerne familiar a iniciativa de iniciar essa conversa com as crianças, e por isso a mídia acaba tendo um papel tão central, pois é ali que acabam se dando os primeiros contatos com o assunto.


Adolescência e luto Agora, tanto Paola quando Jaciane ressaltam que não existe um cenário ideal. O adolescente, por exemplo, segundo elas, vai se relacionar com a morte de maneira bem diferente da criança, e essas da do adulto. Em todas, a morte deixa uma marca. Ela sempre é uma quebra, explicam, mas é preciso levar em conta se o contexto familiar, religioso, social e psicológico do indivíduo o preparou para tal quebra e como essa preparação foi feita. A partir daí, definem-se processos de luto e aprendizagem. Jaciane diz que os especialistas consideram uma média de dois anos para um período de luto muito intenso, acionado pela perda de alguém próximo – seja morte, separação ou algum afastamento repentino de outro tipo. Porém, dependendo da estrutura psicológica de cada um, esse processo pode levar menos ou bem mais tempo. Paola fala que na adolescência o entendimento do jovem sobre a morte será provavelmente mais racional. Ele vai compreender a ideia de perda, seja em que sentido for, mas talvez ainda não vá possuir as ferramentas emocionais para lidar com ela, o que o torna mais instável nesses processos.

O certo é que todos morremos, e entender isso é, antes de tudo, uma peça-chave para compreender o mundo Além disso, na adolescência é quando estamos construindo um olhar mais voltado para dentro e menos para o mundo lá fora. O conf lito é mais sobre a imagem que passamos para o exterior, por isso a ideia de morte nessa fase é potencializada, pois está associada ao medo de se perder alguém ou algo que está fazendo parte da sua construção. A perda tende a parecer menos consolável e mais pessoal. Não é incomum que o adolescente abrace algum extremo: ou a negação intensa da morte, ou a sua aceitação fervorosa – algo que pode ser notado através de movimentos jovens geração após geração que adotaram a temática ou seus arquétipos: os beatniks, os punks e, mais recentemente, os emos. De uma forma ou de outra, as especialistas deixam claro que, quando se solidifica a ideia de finitude, normalmente se tem um adulto com seu processo básico de amadureci-

mento completo. Jaciane, entretanto, alerta: muitas vezes nem mesmo o adulto lida muito bem quando perde alguém próximo, porque entender a própria finitude e aceitar que a morte se aplica a todos são processos diferentes. Às vezes são mais fáceis e às vezes mais complexos, depende das variáveis que moldaram o caminho do indivíduo até ali. O certo é que todos morremos, e entender isso é, antes de tudo, uma peça-chave para compreender o mundo para além de nós mesmos. Sem ela, deformase, o mundo parece distorcido e os elos que nos ligam a ele ficam debilitados. Desenvolvem-se dificuldades de interação, de empatia e de estreitamento de laços. As nossas obras e feitos podem perpetuar pela eternidade ou ao menos por um bom tempo, mas e os nossos corpos humanos? Contra todos os instintos e costumes milenares que nos prometem imortalidade e invencibilidade, especialmente na juventude, quando a perspectiva do que vem pela frente ainda é vasta e cheia de possibilidades, parece essencial aceitar que somos finitos. Disponível em versão digital

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espiritismo

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o fim

de um capítulo

A doutrina espírita não encara a morte como o fim da vida Texto e diagramação: Caroline Silveira c.silveira794@gmail.com

Fotos: Bibiano dos Santos e Leonardo Caberlon bibiano_santos@live.com leocaxias2009@gmail.com

Segundo o espiritismo, a morte não é o fim da vida, mas sim o desprendimento do corpo físico. O que morre é a matéria, não o espírito, que vai a outro plano e retorna à Terra após um tempo. A desencarnação não é a mesma para todos. A causa da morte e a carga emocional vivida enquanto habitava a

matéria definem como o espírito irá se despedir desta vida. Para quem segue a doutrina, acredita-se que, quando o espírito parte para o plano espiritual, ele colhe os frutos da vida que desencarnou, e assim, aplica-se a Lei do Progresso. Se fez o bem, poderá progredir, se fez o mal, terá que SEXTANTE Julho de 2019

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arcar com as consequências. Segundo o espiritismo, há um plano traçado para a vida de cada um antes da reencarnação, mas a forma de agir perante os acontecimentos é o que importa para o bem espiritual. O número de encarnações de um espírito é incerto, depende do quanto ele consegue progredir a cada nova encarnação. No momento em que se adquire um alto grau de amor e sabedoria, vive-se exclusivamente no mundo espiritual.

Fé e medicina Há quem acredite que medicina e fé são duas práticas que não podem se relacionar. No entanto, a própria ciência vem contradizendo essa afirmação. Segundo Carlos Durgante, médico geriatra, a fé pode auxiliar a trazer bem estar às pessoas. “Um equilíbrio emocional melhor, com menos ansiedade, estimula o autocuidado. As religiões, os credos, a fé íntima podem ajudar muito na promoção da saúde”, afirma o médico, que também é autor do livro Fé na Ciência. Os resultados das práticas religiosas podem ser vistos em exames e tratamentos médicos. “Hoje tem estudos que pesquisam, através de exames de sangue, a quantidade de leucinas ou cortisol, que são marcadores de estresse e ansiedade. Na própria resposta do paciente é possível perceber isso. Quem tem um envolvimento religioso tem também um pouco mais de paz, e isso faz com que a pessoa tenha uma reação de aceitação diante de uma adversidade, lide melhor com o estresse”, complementa Durgante. Em 2015, uma pesquisa realizada pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), intitulada “Avaliação da Prática de Terapia Complementar Espiritual/Religiosa em Saúde Mental”, revelou que os benefícios de práticas religiosas (de qualquer crença) e de bem-estar auxiliam inclusive pessoas saudáveis. O artigo, produzido por Juliane Gonçalves, Giancarlo Lucchetti, Frederico Leão, Paulo Menezes e Homero Vallada, analisou estudos que já haviam sido publicados

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em busca de semelhanças nos resultados que foram apresentados.

A morte pelo espiritismo O espiritismo busca o cuidado do espírito e do corpo para uma melhor experiência no plano terrestre. “A quantidade de pessoas que vai em um consultório psiquiátrico com sintomas de depressão, sai apenas com a receita de um antidepressivo e apresenta melhora sem buscar um tratamento psicológico é menos de 50%”, diz Durgante. “Por mais que a medicina tenha avançado, ela não necessariamente trouxe mais bem-estar, felicidade e plenitude. A grande epidemia hoje é a doença mental”, completa Durgante. Após a morte, segundo o espiritismo, os espíritos mantêm a consciência de tudo que viveram. Logo antes da reencarnação, no entanto, são submetidos à Lei do Esquecimento, que está presente no Livro dos Espíritos, obra escrita por Allan Kardec que traz os princípios da doutrina espírita. Lembrar o que aconteceu em vidas passadas é prejudicial para o progresso e pode causar sofrimentos desnecessários. “A cada nova existência o homem tem mais inteligência e pode melhor distinguir o bem e o mal. Onde estaria o seu mérito se ele se recordasse de todo o passado?”, diz o livro. Apesar de a doutrina espírita achar desnecessário o conhecimento sobre o que foi vivido em outras encarnações, algumas pessoas buscam a regressão como forma de terapia, pois fobias e comportamentos sem explicação nesta encarnação podem encontrar sua origem em vidas passadas, como acreditam os psicoterapeutas reencarnacionistas. “A regressão é um método que nos auxilia a identificar os papéis que exercemos

“A morte, para os espíritas, é a volta do espírito à sua condição original” Maria Lúcia Badejo Jornalista

nesta encarnação”, explica a psicoterapeuta reencarnacionista Sabrina Müller. A doutrina espírita prega que a vida espiritual é a verdadeira. Os momentos vividos pelo espírito no plano terrestre são experiências que auxiliam no progresso espiritual. “A morte, para os espíritas, é a volta do espírito à sua condição original”, diz Maria Lúcia Badejo, jornalista e pesquisadora sobre o assunto. A aceitação da morte é mais simples para quem segue e acredita nos preceitos da doutrina.

O que é levado deste plano O desprendimento do corpo físico para os espíritas, no entanto, também pode ser doloroso. Durante a encarnação, as pessoas criam laços afetivos com outros, e precisar dizer adeus não é uma tarefa fácil. Todos os momentos vividos e pessoas com as quais o espírito se relacionou serão apagados de sua lembrança antes da próxima encarnação. As reencarnações trazem oportunidades de aprendizado para que o espírito possa evoluir. É possível, em uma nova encarnação, consertar um erro que foi feito em alguma vida passada, sem lembrar dele. O progresso espiritual acontecerá a partir da decisão tomada diante dos acontecimentos. “Se eu matei várias pessoas em vidas passadas com uma facada no coração, é possível que eu reencarne com alguma doença cardíaca, mas talvez eu volte e me torne um médico cardiologista, que auxilia quem tem problemas cardíacos, e é assim que será aplicada a Lei do Progresso no meu espírito”, explica Maria Lúcia, que costuma palestrar sobre a questão da morte a partir do ponto de vista do espiritismo. A lei da ação e reação é utilizada também no espiritismo. Todas as escolhas e ações que são realizadas em algum momento da vida (seja no plano terrestre, seja no plano espiritual) trazem junto consequências que podem ser boas ou ruins para a evolução espiritual. Cada encarnação é um pedaço da história da vida de um espírito. A morte do corpo físico é apenas o encerramento de um capítulo.


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Centro de Valorização da Vida

A voz do O CVV oferece, há mais de 50 anos, apoio emocional a pessoas depressivas através de ligações gratuitas em todo o país

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Texto e fotos: Sthefania Castillo sthefaniacastillo@gmail.com

Diagramação: Diego Rodrigues diego.antonio@ufrgs.br

O telefone toca, Carlos corre para atendê-lo. Do outro lado uma pessoa que está precisando desabafar. Ele levanta o telefone e fala: “Boa tarde, sou o Carlos. Como vai você?”. Com essa simples frase inicia-se uma longa conversa. Carlos Alberto Pasko Cafruni tem 62 anos e é um dos 60 voluntários que atua no Centro de Valorização da Vida (CVV) localizado na capital gaúcha. Faz três anos que ele trabalha numa das maiores ONGs do país. Atualmente mora sozinho numa casa em Alvorada na Região Metropolitana de Porto Alegre. Casou três vezes e nunca teve filhos. Já presenciou de perto uma tentativa de suicídio. Sua esposa, numa discussão, tentou se matar com uma arma que ele tinha em casa. Foi uma das razões pela qual ele decidiu entrar no CVV. Conta que um dia estava sentado no sofá assistindo à televisão e passou uma propaganda que dizia que o centro estava precisando de voluntários. Ele, assim como muitos que trabalham ali, já passou por uma depressão. Ter vivido a mesma situação das pessoas com as quais ele conversa foi um dos motivos principais de ele querer entrar no CVV. “Eu gosto de conversar com as pessoas. Já passei por isso. Eu sei o que elas sentem”, explica Carlos.

Os voluntários do CVV fazem um plantão de quatro horas por semana. Carlos prefere fazer o da madrugada, pois é o horário ideal, já que trabalha durante o dia. Segundo ele, é uma das coisas que mais gosta de fazer, pois sente que está prestando ajuda a uma pessoa que necessita. “É um sentimento de satisfação, porque quem liga só quer alguém que o escute”, conta Carlos.

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A depressão em números Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2015, a depressão afetou 322 milhões de pessoas no mundo. Em 10 anos, este número cresceu 18,4%. Já no Brasil, 5,8% da população sofreu com esse problema, que afetou um total de 11,5 milhões de brasileiros no mesmo ano. O Brasil é o país com maior prevalência da doença na América Latina e o segundo com maior prevalência do continente, ficando atrás somente dos Estados Unidos, que teve, em 2015, 5,9% de depressivos. E o maior aumento de suicídios é registrado entre jovens de 15 a 25 anos. Homens são mais propensos a se matar, mas as mulheres tentam mais vezes, segundo a cartilha do CVV. Outro dado relevante é que homossexuais, bissexuais e transexuais têm índices maiores de suicídio. Essas tendências


acolhimento

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estão ligadas, segundo o relatório, a causas culturais e preconceitos sociais.

O CVV O Centro de Valorização da Vida é uma iniciativa que presta serviço de apoio emocional e prevenção do suicídio através de uma linha de telefone nacional gratuita, sob total sigilo e anonimato. Foi criado em São Paulo em 1962. Naquela época, os voluntários realizavam os atendimentos diretamente nas casas das pessoas, somente em São Paulo. Em 2015, o Ministério da Saúde estabeleceu uma parceria com o centro, com o objetivo de criar ações que ajudassem a diminuir o suicídio no Brasil. Em 2017, essa parceria foi ampliada por meio da assinatura de um novo Acordo de Cooperação Técnica, que prevê a gratuidade das ligações ao CVV em todo o território nacional. Foi assim que o 188 nasceu. Hoje, o CVV não atende só por telefone, mas também por Skype, e-mail e pessoalmente. Durante a década de 1960, o CVV implementou técnicas que causavam

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maior interferência nos problemas das pessoas que eram atendidas. Hoje é diferente. Desde 1983, o centro adotou a filosofia da Abordagem Centrada na Pessoa, do psicólogo Carl Rogers, estadunidense e autor do livro Tornar-se Pessoa. Essa metodologia defende que a melhor forma de uma pessoa superar seus problemas emocionais é através da externalização dos mesmos. O voluntário só pode escutar quem está querendo conversar, portanto, não é permitido que ele ofereça um conselho nem sua opinião pessoal. A própria pessoa é quem precisa achar a solução dos seus problemas ao falar sobre eles.

Os voluntários Ao terminar o processo de capacitação, os voluntários ficam três meses como estagiários, termo usado pelo CVV para referir-se às pessoas que estão iniciando. Nesse período, o voluntário atende ligações com a assistência de colegas mais antigos. Depois ele passa a ser voluntário permanente. A única exigência é ter mais de 18 anos.

Os voluntários passam por um processo de capacitação que dura três meses. Após esse período, eles podem atender ligações com a assistência dos colegas mais antigos

Os voluntários também se comprometem a doar um valor mensal e realizam uma espécie de vaquinha coletiva para pagar os gastos do lugar onde fica localizado o posto. Esse posto funciona como uma franquia social e é sustentado por uma mantenedora que o representa localmente dentro da sua área de abrangência, inclusive juridicamente. No Rio Grande do Sul, são no total 11 postos. Na sede de Porto Alegre são feitos 3 mil atendimentos por mês e 3 milhões por ano em todo o território nacional.

Doar seu tempo para escutar Há seis anos que Liziane Eberle dedica seu tempo a escutar o outro. Atualmente coordena o posto de Porto Alegre. Ela se inscreveu como voluntária


“É para aqueles que estejam dispostos a deixar seus preconceitos de lado e oferecer ajuda a quem está com dor na alma” Liziane Eberle

Coordenadora do CVV, sede Porto Alegre

porque sentiu a necessidade de estender a mão para aqueles que estão angustiados. Ela considera que esse não é um trabalho para qualquer um. “É para aqueles que estejam dispostos a deixar seus preconceitos de lado e oferecer ajuda a quem está com dor na alma”, diz Liziane. Uma das coisas mais difíceis, segundo Liziane, é não levar os problemas dos outros para casa. “No começo ia para casa toda angustiada, pensando como eu poderia solucionar os problemas das pessoas que ligavam. Mas com o tempo a gente aprende a aceitar que aquela ligação e aquela conversa é o que nós temos para oferecer para aquela pessoa no momento, isso já faz uma grande diferença na vida dela”, acredita. Embora o CVV tenha crescido bastante, para Liziane, ainda falta muito por melhorar. O fato de não existir uma rede integrada entre o centro e a polícia ou os hospitais faz com que os casos de suicídio não diminuam significativamente. Segundo ela, o atendimento seria integralizado se existisse uma espécie de rede de trabalho entre essas instituições, o que atualmente não acontece. Outra ação que traria bons resultados, segundo a coordenadora, seria a criação de uma parceria entre o centro e as escolas. Para ela, dessa forma a prevenção do suicídio seria muito mais efetiva.

Apoio emocional aos sobreviventes Uma vez por mês, o CVV realiza um encontro com sobreviventes do suicídio e com os parentes dos que faleceram. Essa atividade é feita a fim de

Carlos trabalha no CVV há três anos e atende as ligações durante a madrugada

Antes de começar a capacitação, os voluntários fazem uma meditação e depois uma roda de conversa

os participantes compartilharem com o grupo seus sentimentos. Quando alguém passa por uma tentativa de suicídio ou quando efetivamente o executa, a forma mais adequada para evitar que ele volte a acontecer dentro do núcleo familiar é falando abertamente sobre ele. “As famílias não gostam de falar desse tema, pois lembrá-lo causa uma grande dor. Mas não falar sobre suicídio é um gatilho para ele acontecer de novo”, diz Liziane.

ATendimento Se você está precisando conversar com alguém, ligue 188. A ligação é gratuita e fica disponível 24h.

Disponível em versão digital

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suicídio

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O EFEITO SILÊNCIO Historicamente o suicídio é um tabu para o jornalismo, mas movimentos favoráveis a uma maior discussão do assunto se mostram fundamentais para a valorização da vida Texto e diagramação: Vinicius Rodrigues Dutra vini.rrosa@hotmail.com Ilustrações: Breno Dias brenobdias@gmail.com

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Se a morte em si é um assunto complicado, quando é autoinfligida se torna um dos maiores tabus. Ao longo de décadas, o jornalismo tem evitado o tema do suicídio por receio de causar o aumento do número de casos. Tal receio remonta ao século XVIII, quando o romance de Goethe Os Sofrimentos do Jovem Werther foi acusado de influenciar casos de imitação do suicídio realizado pelo protagonista do livro. Até hoje a discussão permanece, com a série de TV 13 Reasons Why, por exemplo. O efeito Werther, ou efeito contágio, é uma preocupação presente na área da saúde e que afeta a prática jornalística. Ainda assim, o assunto merece atenção. O suicídio é a segunda maior causa de morte de jovens entre 15 e 29 anos no mundo, segundo publicação de 2014 da Organização Mundial da Saúde (OMS), perdendo apenas para acidentes de trânsito. Por ano, mais de 800 mil pessoas tiram a própria vida no mundo, sendo cerca de 11 mil no Brasil. Um tema complexo como esse exige a atenção de diferentes áreas. É consenso que o esforço apenas de agentes de saúde e psiquiatras não é o suficiente para diminuir as taxas crescentes desses eventos e que a ação conjunta entre agentes governamentais e não-governamentais de diversas áreas, incluindo a mídia e a imprensa, possam diminuir esses níveis de mortalidade. Carlos Etchichury, atual editor-chefe de Zero Hora, escreveu uma das primeiras reportagens mais aprofundadas sobre o tema no jornal. O caso do jovem Yoñlu, de 16 anos, que cometeu suicídio com ajuda de integrantes de um fórum online, em 2006, marcou um movimento de abertura do veículo para o assunto. “Acho que a matéria foi um divisor de águas na redação. Antes já se descartava o assunto de antemão. Hoje, existe o cuidado de não ficar tratando o tempo todo, mas está longe de ser um tabu”, explica. Nessa cobertura, Etchichury descobriu um dado que o deixou perplexo: por ano, no Rio Grande do Sul, cerca de mil pessoas se matam. Essa informação o motivou a produzir uma série de reportagens chamada “Tragédia Silenciosa”, publicada em 2008 em

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ZH. O nome faz alusão ao fato de que, por não se noticiar, não se sabe sobre essas mortes. No ano seguinte, a série foi recomendada como um exemplo de cobertura do assunto pelo Manual da Associação Brasileira de Psicologia. Para Mônica Manir, o jornalismo utiliza a justificativa do efeito contágio para deixar de fazer matérias sobre o assunto: “Às vezes, acho que por não saber fazer, as pessoas não fazem, e são coisas diferentes”. A jornalista possui mestrado e doutorado em Bioética, foi editora e repórter especial no Estado de S. Paulo e hoje colabora com a BBC e com a revista piauí. Na edição de fevereiro de 2019 da revista, foi publicada a reportagem “Em Nome do Nada”, para a qual Mônica passou cerca de três meses apurando dados, pesquisando e conversando com pais sobreviventes. É chamada de “sobrevivente enlutado” toda pessoa próxima a alguém que cometeu suicídio.

“o jornalista tem que mostrar o acontecimento, sem deixá-lo de lado por pudor ou por não saber escrever a respeito” Mônica Manir Jornalista

A jornalista aponta, por exemplo, a preocupação com o método. “Na matéria da piauí, me preocupei muito em não ficar em detalhes de como foi o suicídio da pessoa. Dei mais detalhes do que talvez se costuma dar, mas optei por isso achando que a gente não pode ficar quieto sobre suicídio de jovens. Tem de mostrar como eles estão se matando”. Mônica acredita que o método é importante, porque revela o que está acontecendo na sociedade. O dado de que uma das maiores causas de mortes por suicídio são as armas de fogo, por exemplo, influencia em uma discussão sobre facilitar ou dificultar o acesso da população às armas. “A função do jornalista é mostrar o acontecimento, sem deixá-lo de lado por pudor ou por não saber escrever a respeito”, reforça a paulistana.

As orientações Os manuais de redação dos jornais brasileiros limitam-se a poucas orientações sobre como noticiar suicídios. O manual de redação da Folha de S. Paulo, por exemplo, orienta a não se omitir a causa da morte de personagens, ainda que não se deva descrever o método utilizado. O Manual de Redação e Estilo do jornal O Globo recomenda que não se noticie o suicídio de desconhecidos, exceto em casos fora do comum. Para Mônica, as orientações precisam ser atualizadas e devem focar no que de fato é


inapropriado na cobertura desses casos. “Acho que não falar, neste momento, não se justifica. O suicídio precisa ser falado”, argumenta. As três principais publicações no sentido de orientar jornalistas no assunto são Prevenção do suicídio: um manual para profissionais da mídia, publicado pela OMS em 2000; um manual da Associação Brasileira de Psiquiatria; e uma cartilha do Ministério da Saúde de 2017, parte da agenda de ação estratégica para 2017-2020. Informar onde buscar ajuda é uma das principais dicas dos manuais para a imprensa. Essas publicações apontam os cuidados na hora de noticiar esses casos: evitar a palavra suicídio em chamadas e manchetes, evitar a colocação da matéria em primeira página, não fornecer detalhes do método letal nem fotos, além de aproveitar a oportunidade para conscientizar a população sobre prevenção são algumas das recomendações. Com base nessas orientações, o professor de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Rogério Christofoletti aponta uma cobertura errante pela mídia no caso do ex-presidente do Peru Alan García. O ex-mandatário se suicidou momentos antes de ser preso preventivamente, devido a investigações de propina da construtora Odebrecht. “A cobertura veio contaminada pelo fato de o suicídio ter acontecido sobre o tecido da Lava-Jato, sobre os muitos julgamentos moralistas de condenação da corrupção”, afirma o professor. Essa sobreposição de diferentes editorias, ou diferentes áreas do jornalismo, tratando esse assunto sem a devida reflexão, geraria trabalhos inferiores. “Decisões complexas sobre como cobrir e como noticiar não podem ser tomadas por uma única pessoa. O jornalismo é uma atividade coletiva, que se exerce em equipes, com

papéis sociais distintos, mas interligados, o que leva a tomadas de decisões coletivas”, complementa o professor.

Por quê? Interessada sobre o assunto, a jornalista Mauren Xavier concluiu na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), em 2019, a dissertação de mestrado “Por quê? Uma análise dos discursos sobre suicídio no jornalismo diário”. A chefe de reportagem do jornal Correio do Povo mapeou as notícias que continham a palavra suicídio na Folha de S. Paulo em 2017. Ela reuniu 93 conteúdos jornalísticos informativos sobre o assunto, entre eles manchetes, reportagens e notas, e buscou identificar quais discursos estavam presentes. Apesar de haver conteúdos sobre prevenção, a maioria das publicações era de cunho criminal, ou seja, notícias sobre pessoas que se suicidaram. O problema presente em parte dessas matérias, segundo Mauren, é o discurso que tenta “justificar” o suicídio.

“Quando uma pessoa se mata, não há um motivo, são vários. É uma complexidade muito grande, e dentro disso tem o gatilho, que é o empurrão que falta, mas não a causa total. E daí, quando tu traz um discurso reducionista, tu justifica o caso. Quando tu reduz, tu aumenta o preconceito”, explica. “A imprensa, dentro do papel de responsabilidade social, tem a obrigação de cobrar medidas do poder público, por exemplo. Se tiver em surto, como lido com esse assunto? Se for em um posto de saúde, alguém vai me ajudar? No momento em que tu passa a falar sobre suicídio, tu abre brechas para poder cobrar, para dizer que parte dessas mortes poderiam ser evitadas”. O tema deve ser tratado como uma pauta de saúde pública, que necessita ações de políticas públicas para reduzir seus altos números. É necessário falar sobre, desde que feito da forma correta. Para isso, os jornalistas recorrem ao trabalho coletivo, a profissionais da saúde e aos manuais. Apenas assim será possível superar esse tabu.

ajuda O Centro de Valorização da Vida oferece uma rede de apoio pelo site www.cvv.org.br e pelo telefone 188, gratuitamente. Disponível em versão digital

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ISSO É FEMINICÍDIO

violência contra a mulher

EM UM PAÍS QUE ESTÁ ENTRE OS CINCO QUE MAIS MATAM MULHERES NO MUNDO, NOMEAR O CRIME DE GÊNERO AJUDA A ENXERGAR A SUA EXISTÊNCIA E ENTENDER O SEU SIGNIFICADO Texto: Luciana Forgiarini lu.forgi@gmail.com Fotos: Gabrielle de Luna gabrielle.luna@ufrgs.br Diagramação: Ana Carolina Parise anaaparise@gmail.com

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O Brasil convive com elevada estatística de violências cotidianas praticadas contra mulheres. É o quinto país que mais mata mulheres no mundo, segundo pesquisa realizada pela Organização Mundial de Saúde (OMS). No Rio Grande do Sul, somente em 2018, 117 mulheres foram mortas em casos reconhecidos como feminicídio. De acordo com levantamento realizado pela Secretaria de Segurança Pública do Estado, o número é 40,9% maior do que a estatística obtida no ano de 2017. Apesar dos dados alarmantes, a nomeação do crime como feminicídio ainda é socialmente questionada. Se já temos o crime de homicídio, por que nomear os assassinatos de mulheres de forma diversa? Segundo Domenique Goulart, advogada e assistente jurídica da Themis, organização referência no Estado em questões de gênero e direitos humanos, a existência da nomenclatura é importante não somente pela visibilização, mas pela conscientização da sociedade sobre o tema: “Normalmente, quando não nomeamos as coisas, é como se elas não existissem no mundo dos fatos. É uma pauta um pouco antiga no movimento de mulheres, justamente para trazermos políticas públicas e ferramentas que levem em conta a especificidade dessa questão”. A advogada também destaca que há uma diferença de motivação entre o homicídio e o feminicídio. Os homens morrem por diferentes motivos, mas a morte não acontece por pertencerem a determinado gênero, que é o que ocorre com as mulheres: “Pode ser um episódio em que já há um histórico de violência doméstica, com boletins de ocorrência prévios. Ou quando há um fato específico em que duas pessoas não se conheciam e há uma explicitação de uma inferiorização da condição de gênero feminino”.

A LEI AJUDA, MAS NÃO MUDA A SOCIEDADE Nesse contexto recente de maior atenção às especificidades do crime está a Lei do Feminicídio, sancionada em 2015. Além de qualificar o crime de homicídio, a lei incluiu o feminicídio no

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“Há toda uma questão de mudar uma lógica de misoginia e violência contra as mulheres que é muito arraigada no imaginário social brasileiro” Domenique Goulart Advogada da Themis

rol de crimes hediondos, aumentando a pena prevista. A existência de um enquadramento, com o uso da nomenclatura, é importante, mas não é suficiente diante de uma estrutura social e cultural que inferioriza as mulheres. “É uma discussão bastante complexa se a lei vem para melhorar a sociedade ou se muda primeiro a sociedade para que a lei positive essa mudança social. Se formos pensar na Lei Maria da Penha, ela é de 2006. São 13 anos e a lei nunca foi implementada em sua integralidade. Há toda uma questão de mudar uma lógica de misoginia e violência contra as mulheres que é muito arraigada no imaginário social brasileiro”, destaca Domenique. O uso da tipificação “feminicídio” nos boletins de ocorrência também tem auxiliado na existência de uma atuação mais especializada do sistema de justiça. Em 2016, um decreto estadual determinou a atribuição da Delegacia da Mulher como responsável pelos casos no Rio Grande do Sul. Ainda assim, a mudança de estrutura e de capacitação de agentes públicos para a atuação nesse tipo de ocorrência acontece de forma mais gradual. A delegada Karine Heineck, da Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (DEAM), em Porto Alegre, lembra que há muito a ser aprimorado: “Nós ainda não temos um protocolo para determinar, de imediato, o que é feminicídio ou não. Nós não temos uma estrutura de plantão para feminicídios. Se não é horário de expediente, quem atende no local do crime é a Delegacia de Homicídios”.

HISTÓRIAS QUE SE REPETEM EM UM CICLO DE VIOLÊNCIA O feminicídio não é algo que, simplesmente, acontece. Há todo um caminho que a mulher percorre até que ela seja vítima do crime. Forma-se uma cadeia de condutas que amparam os episódios fatais. Essa situação pode ser entendida através da constituição de um “ciclo da violência”. O termo está presente nos estudos de Lenore Walker, psicóloga estadunidense que, em 1979, identificou padrões abusivos que se repetiam em uma relação afetiva. Para Walker, o ciclo se divide em três fases. A primeira consiste no aumento da tensão, na qual a mulher sofre violências sutis, como chantagens emocionais e humilhações, ações de controle e ofensas verbais, normalmente, ferindo a autoestima da vítima. A advogada Domenique relata que, nessa fase, são comuns os casos de isolamento, nos quais a mulher deixa de ver família e amigos e não pode sair de casa. “As mulheres acreditam que é uma forma de amor, de carinho: ‘Ah, é um ciúme porque ele gosta de mim’”, exemplifica. A segunda fase consiste no pico de violência, agora com agressões físicas como empurrões, tapas e socos. A terceira fase, por sua vez, é a de calmaria, a chamada “lua de mel”, na qual o agressor pede desculpas e diz que não irá repetir a ação. Assim, o ciclo se fecha e recomeça com a possibilidade de mudança de comportamento que, em geral, não se confirma. Nesse sentido, é importante ouvir a vítima e legitimar a sua vivência e a sua narrativa. “Costumo falar que as mulheres são as melhores experts na violência que elas sofrem. Quando faço atendimento, sempre procuro respeitar e valorizar a perspectiva das mulheres, que elas consigam ter noção de si próprias e da violência que estão sofrendo”, enfatiza a advogada. A fim de conseguir interromper esse ciclo, antes que ele culmine em um caso de feminicídio, é também necessária a atuação adequada do sistema de justiça. A existência de uma escuta qualificada de profissionais, que possam perceber as especificidades de gênero presentes no


discurso da mulher, só tem a contribuir para que ela seja acolhida no momento do atendimento e que não sofra novas violências, através de estereótipos socialmente estabelecidos. “A gente que trabalha nisso tem de ter consciência de todo esse contexto. Não existe a mulher que gosta de apanhar. A violência adoece a família, adoece a mulher e é um ciclo muito difícil de romper”, afirma a delegada Karine.

UM CAMINHO ALTERNATIVO PARA O ACESSO À JUSTIÇA Pensando em formas de articular a formação teórica de estudantes de direito com a prática jurídica, existe o Serviço de Assessoria Jurídica Universitária da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o Saju, serviço dividido em grupos temáticos que auxiliam diferentes setores da sociedade no acesso à justiça. Os grupos atuam no próprio prédio da Faculdade de Direito da universidade. Entre eles está o Gritam, Grupo Interdisciplinar de Trabalho e Assessoria para Mulheres. Nele, as estudantes fazem o atendimento de mulheres que sofreram violência e que não sabem como devem agir, desde o momento

de realizar uma denúncia na delegacia até a estar presente em uma audiência diante de um juiz. O atendimento é realizado por estudantes de direito, com o auxílio de advogadas e psicólogas, que acompanham as mulheres atendidas nas diferentes instâncias do judiciário. Ao refletir sobre a dificuldade de uma mulher em situação de violência efetuar uma denúncia, as meninas do Gritam observam a necessidade social de a mulher sempre se justificar como um empecilho que gera ainda mais culpa na vítima: “Onde ela estava, por que ela estava lá, o que ela estava fazendo, por que ela saiu com ele? São perguntas que não se deveria fazer [para uma mulher agredida]. Ninguém tem o direito de te agredir. Mas, para as mulheres, essas perguntas são feitas”, enfatiza Jheinifer Machado, estudante de direito da UFRGS. Betina Aymone, estudante de psicologia da PUC-RS e membra do Gritam, percebe como as instituições jurídicas também reproduzem o mesmo tratamento: “É muito um sentimento de culpa e de vergonha. A mulher passa por cima desses sentimentos para chegar a uma instituição que deveria acolhê-la, e acaba revitimizada. Ela então passa

a se questionar se tem esse direito [de denunciar]”. As meninas percebem o Gritam como uma alternativa, uma porta de entrada das mulheres no sistema de justiça que, muitas vezes, parece inalcançável. “A gente fala muito desse processo de pedir ajuda, de reconhecer a violência, de se separar ou não do agressor, de procurar o Estado e receber ajuda. É importante falar desse processo, que acontece antes do feminicídio, para poder articular movimentos e traçar estratégias de amparo”, reforça Betina. Quanto mais o acesso das mulheres à justiça for facilitado, maior será a chance de romper um ciclo de violência que pode culminar em um episódio fatal. Nesse sentido, é necessária a atuação de diferentes esferas da sociedade civil para um melhor entendimento dos motivos pelos quais a violência contra a mulher faz parte do cotidiano social. Que possamos, cada vez mais, ouvir o que as mulheres têm a dizer. Cada palavra pronunciada por elas importa e deve ser reverberada. Falamos de algo que parece inalcançável hoje, na esperança de que, um dia, nenhuma mulher morra pelo simples fato de ser quem ela é. Disponível em versão digital

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Masculinidades

Homens matam e morrem

O modo idealizado de ser homem pela sociedade é um caminho sem volta para muitos Texto: Paola Pavezi Nascimento pavezipaolan@gmail.com Ilustrações: Breno Dias brenobdias@gmail.com

Em 2019, ainda existe um contexto social binário, dividido em duas categorias de pessoas, às quais são ensinadas formas diferentes de ser e estar no mundo. A psicóloga Tayara Maronesi dá atenção às questões de gênero em seus atendimentos, assim como outras integrantes do grupo de terapeutas Empodera, de Porto Alegre. “O que temos como considerado masculino e feminino de forma estereotipada são as performances que a sociedade nos impõe como se fosse uma receita a ser seguida”. O resultado dessa diferença social é provavelmente responsável pelo fato de os homens matarem e morrerem mais. Um estudo feito pelo Escritó-

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Diagramação: Caroline Silveira e Diego Rodrigues c.silveira794@gmail.com diego.antonio@ufrgs.br

rio das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC), em 2014, aponta que 95% dos assassinos no mundo são homens. “A humanidade é masculina, e o homem define a mulher não em si, mas relativamente a ele; ela não é considerada um ser autônomo”. Tal afirmação faz parte da obra O Segundo Sexo, de 1949, de Simone de Beauvoir, teórica francesa referência no movimento feminista. “Não se nasce mulher, torna-se mulher”, um dos seus postulados mais famosos, nega a existência de uma natureza feminina. Se o feminino é um conceito construído ao longo dos tempos, o masculino também. Mas quais atri-

butos necessários a um sujeito para ser reconhecido socialmente como homem? Michael Kimmel, teórico norte-americano e um dos maiores nomes no campo das masculinidades, criou um conceito chamado “a caixa do homem”. Dentro estão os comportamentos e modos de ser típicos da masculinidade hegemônica ou tradicional, a mais bem aceita socialmente. Ser “macho de verdade” requer uma performance constante de muitas características: ser estritamente racional, heterossexual, agressivo, forte, atlético, intimidador, sexualmente ativo, predador, durão, não demonstrar vulnerabilidade e impor respeito a qualquer custo, sendo vio-


lento se preciso for. “Bicha”, “viado”, “filhinho da mamãe”, “fraco”, “mulherzinha”, são os termos usados de forma pejorativa para punir quem desvia do esperado. Apesar de toda a pesquisa em masculinidade tradicional e seus efeitos nocivos para homens e mulheres, o próprio Michael Kimmel foi acusado de assédio sexual por estudantes. Evandro Machado leciona história e filosofia para crianças e adolescentes em Porto Alegre. A convivência com alunas e alunos foi um dos motivos para criar, em parceria com a psicóloga Tayara Maronesi, um projeto para trabalhar masculinidades em escolas, ainda em fase de planejamento. Ele explica que

tornar-se homem faz parte também de abrir o horizonte dos elementos de violência que constituem determinada sociedade. As estatísticas de mortes existem como um reflexo disso. O Instituto Avante Brasil, com base em dados do Ministério da Saúde, constatou que, em 2010, 91,4% dos homicídios no Brasil eram de homens.

Massacres e masculinidades Os Estados Unidos já são conhecidos pelos frequentes atentados à mão armada, sendo o país que os registra em maior número. No início de outubro de 2017, acontecia o 273º ataque, o que significou quase um massacre por

dia naquele ano, segundo pesquisas da ONG Gun Violence Archive. Já o Brasil não é comumente associado a esses crimes – embora exista um histórico recente de dez massacres armados em escolas nos últimos nove anos. Em cinco deles, a narrativa é parecida: o autor dos atentados sofreu bullying e resolveu se vingar. Em outros, de acordo com portais de notícia, existem relatos de discussões banais como provável motivação. Um exemplo foi a morte de duas meninas no Colégio Sigma, no ano de 2002, em Salvador. Amigos das estudantes comentaram que o atirador havia prometido vingar-se após as meninas darem nota baixa a SEXTANTE Julho de 2019

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ele na prova de uma gincana na escola. Com a arma do pai, perito policial, ele cumpriu a promessa. Outro aluno, em 2011, na Região da Grande São Paulo, utilizou a arma do pai, que era guarda civil, para matar sua professora, e, em seguida, cometer suicídio. Nos dez casos brasileiros desde 2002, assim como em 94% das ocorrências nos Estados Unidos, os crimes são de autoria masculina. O professor Evandro comenta que as construções e referências de violência endereçadas aos homens se intensificam na fase da pré-adolescência e começo da vida adulta. “Um período crucial na formação identitária desses sujeitos”. Essas mensa-

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“As características consideradas masculinas é que são exaltadas na nossa sociedade” Tayara Maronesi Psicóloga

gens, emitidas a partir de diversos meios (como filmes, livros, videogames), trazem valores muito diferentes daquelas enviadas às meninas na mesma idade. Helen Barbosa, doutora de psicologia social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e estu-

diosa em masculinidades há oito anos, aprofunda: “Na socialização masculina, que é mais ou menos violenta, a depender do contexto social, eles têm que se diferenciar de tudo que é socialmente atribuído como feminino e infantilizado. Isso acontece através de uma relação hierárquica, de meninos mais velhos para meninos mais jovens, de homens adultos para meninos e jovens”. Empatia e cuidado mútuo. Vulnerabilidade e profundidade nas relações. Capacidade de demonstrar afeto e de compartilhar fragilidades. São capacidades socialmente associadas às mulheres e ao feminino – e, no contexto do homem tradicional, devem ser evitadas.


A psicóloga Tayara acrescenta que o que é considerado feminino não é valorizado nem por homens nem por mulheres. “As características consideradas masculinas é que são exaltadas na nossa sociedade. No consultório me deparo muito com homens e mulheres felizes em poder ser mais racionais, práticos, objetivos em determinados momentos, considerando isso como o oposto do emocional, sentimental, sensível”. As masculinidades também entram em debate na discussão dos tiroteios em colégios, pois, na visão de Helen, que também é ex-consultora da Saúde do Homem na Unesco, a explicação desses crimes somente em torno do

transtorno mental ou do bullying não é mais suficiente. Ela utiliza o termo “masculinidades”, no plural. “Pois não estamos falando de uma entidade, nem do sujeito em si, mas de práticas discursivas e sociais que perpassam os corpos masculinos”.

res da masculinidade tradicional, que também possui um recorte de raça. Em especial para os homens brancos, é reforçada a ideia de que o mundo lhes pertence. “Mas eles vão buscar isso em uma sociedade muito diferente”, explica o professor.

Suzano e a raiva do homem branco

Estudantes sob ameaça

Na manhã do dia 13 de março de 2019, dois jovens de 17 e 25 anos entraram na Escola Estadual Raul Brasil, em Suzano, São Paulo, portando revólveres, arco-e-flecha, machado e explosivos. Os dois vestiam roupas pretas, utilizavam luvas e cinto tático. Eles fizeram sete vítimas fatais e depois o mais moço atirou no mais velho, se suicidando em seguida. O mais novo tinha o rosto coberto por uma balaclava de caveira, assim como “Tate”, o assassino fictício do seriado estadunidense American Horror Story. A caveira é um símbolo que vem sendo usado por grupos de neonazistas e supremacistas brancos nos EUA. O teórico Michael Kimmel, a partir dos anos 90, observou que o perfil dos atiradores em massa mudou. Meninos e jovens adultos brancos de classe média passaram a protagonizar os atentados. No Brasil, pode ser observada a mesma prevalência desde 2002. No livro Angry White Man (Meninos brancos raivosos), Kimmel fala sobre os man’s shooting – atentados à mão armada feitos por homens – e questiona: por que é o menino branco de classe média que comete esses crimes, e não meninos negros, asiáticos ou imigrantes? Para Kimmel, o motivo está na sensação de “direito lesado” pairante sob a categoria dos homens brancos. O professor Evandro explica que, em decorrência das últimas crises do sistema capitalista e do avanço das pautas das mulheres e dos negros, hoje não basta só ser um homem branco, numa metrópole, para ter garantida uma vida boa, de sucesso material, status e articulação de diversos privilégios sociais, como era há 50 anos. Entretanto, os filhos e netos dos homens daquele momento são expostos ao mesmo sistema de valo-

No dia 20 de março, seis dias após Suzano, a UFRGS acionou a Polícia Federal devido a uma postagem encontrada em um fórum anônimo da internet. Tratava-se de uma conversa, na qual os usuários falavam em realizar um massacre na universidade e elogiavam os atiradores da cidade paulista. Como principal alvo, as mulheres estudantes. O conteúdo foi retirado do Dogolachan, fórum online de extrema-direita, conhecido por ser palco de discursos de ódio às minorias. Esse portal não pode ser acessado pela internet comum, ele pertence a deep web – camada oculta da internet. No mesmo mês, a Polícia Civil do Rio Grande do Sul registrou pelo menos 20 denúncias de ameaças a escolas no Estado. Nenhuma chegou a se concretizar, mas, no dia 15 de abril, uma escola em Porto Alegre amanheceu pichada com o dizer: “Suzano voltará aqui”, em referência ao atentado em São Paulo. No muro do lado de fora do banheiro feminino foi pichado: “canto das putas”. É comum a participação dos autores desse tipo de crime em fóruns online semelhantes ao Dogolachan. A misoginia, por exemplo, é um componente que já apareceu em outros massacres. Para a pesquisadora Helen, o que existe de diferente hoje é que esses discursos foram amplificados. “Temos um modelo de homens que fazem arminha, que se colocam no mundo político agenciados por uma ideologia absurdamente machista, sexista, transfóbica, homofóbica e racista”. Para ela, isso promove toxicidade ainda maior nas relações.

Disponível em versão digital

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O DESAFIO DA MORTE

Medo e coragem Histórias daqueles que parecem não temer a morte Texto: Deborah Mabilde mabildedeborah@gmail.com Fotos: Luana Schwade e Henrique Letti luanarschwade@hotmail.com hdletti@outlook.com Diagramação: Ana Carolina Parise anaaparise@gmail.com

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O que um paraquedista e um bombeiro podem ter em comum? Alguns diriam a coragem, outros, a vontade de desafiar a morte. O instrutor de paraquedismo Wanderley Chimendes, 75 anos, já acumula mais da metade de sua vida na prática da atividade: 45 anos. Militar de formação, Wanderley precisou aprender o ofício por necessidade. “Era mecânico de avião e tive duas panes em voo, com paraquedas a bordo. Mas quem disse que eu conseguia saltar? Não tinha confiança.” Para continuar na função, precisou procurar um curso que o ensinasse. Daí, foi um salto para o trabalho virar paixão. Daquelas para a vida toda. Wanderley não titubeia em afirmar a importância do medo. “É fundamental, o que nos mantém vivos.” Para ele, o medo é o instinto de sobrevivência em todas as atividades de risco. Não ter medo deveria ser causa de medo. “Eu sei que, o dia em que eu perder o medo, eu morro”, diz ele. De acordo com a ciência, Wanderley está correto. Emoções como o medo foram vantagens na história da evolução humana, pois asseguravam que o indivíduo reagisse com cautela frente a situações de perigo e, consequentemente, aumentasse suas chances de sobreviver à ameaça. O medo é um sinônimo de sobrevivência, permitindo ao homem, ao longo dos séculos, a possibilidade de continuar sua linhagem. O homem das cavernas tinha medo de seus predadores, porém sua fome era maior, e isso o obrigava a se preparar melhor, ser mais cuidadoso para sair e enfrentar sua caça. Ou seja, a melhor maneira de encarar o medo é o conhecimento e a cautela. Felipe Altomari, 28 anos, concorda com o pensamento. Também militar, salta há quase dez anos e admite que a atividade de paraquedismo arrisca a vida e está sujeita a imprevistos, mas também reforça que a constância de prática e o conhecimento estão diretamente relacionados com a segurança e a sobrevivência de quem salta. Mas e o medo de morrer? “Acho que todo mundo tem, poucos aqui diriam que não. Mas a gente controla o ambiente, para que a morte fique longe”, diz Felipe.

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A diferença entre os paraquedistas e o homem das cavernas é que a maioria das pessoas que salta o faz por escolha própria, não se arrisca por obrigação ou para sobreviver. Felipe acredita que a atividade pode ser uma forma de superação para alguns. “Acho que uma característica que todo paraquedista compartilha é gostar de adrenalina, ou buscá-la em sua vida. Alguns para superar o medo, outros para provar algo para si mesmos. E essa foi a maneira mais radical que todos aqui encontraram para fazer isso.”

O desafio como vivência diária Para algumas pessoas, arriscar a vida faz parte de suas profissões. É o caso de Rafael Martins, 42 anos, recém promovido a tenente do 1º Batalhão de Bombeiro Militar de Porto Alegre. O batalhão recebe uma média de 27 ocorrências de incêndio por dia, sem contar outros chamados, como acidentes domésticos, resgates de animais, choques elétricos, animais peçonhentos, entre outros. Ofício de família, a carreira virou uma paixão na vida de Rafael, que já exerce a função há 20 anos. Em 2008, enquanto servia à Força Nacional, Rafael foi designado para ajudar no resgate durante enchentes que aconteciam em Santa Catarina. Ao retirar crianças de uma área de risco, o bombeiro e um colega foram vítimas de um deslizamento de terra e ficaram soterrados por cerca de 45 minutos. Ambos sobreviveram, mas com extensas fraturas, sem contar as memórias sombrias dessa experiência. Por causa disso, Rafael perdeu 15% da visão do olho esquerdo. “Naquele momento, tive a sensação de que não ia voltar para casa. Não sei dizer quanto tempo fiquei ali, mas pareceu uma eternidade.” Frente a esse tipo de acidente, é essencial saber manter a calma e lembrar do treinamento. Como é possível controlar o pânico e o medo de morrer nessas horas? Rafael acredita que a técnica é primordial no sucesso das operações, mas é também necessário ter muita coragem.“É difícil de crer,

“Eu sei que, o dia em que eu perder o medo, eu morro” Wanderley Chimendes Instrutor de paraquedismo

mas quando a sirene toca, tu esquece tudo. Que tem que voltar para casa, que tem gente te esperando. É como se eu colocasse uma roupa de proteção e fosse atender quem precisa. Tudo pela vítima, por quem necessita. É instinto. Depois é que cai a ficha, e tu pensa no que passou, família, amigos.” Para o tenente, o medo e a coragem andam lado a lado. “Faz parte de nós. É o que te faz checar teu equipamento, olhar o nó mais uma vez. Quem não tem medo é louco, e louco não pode ser bombeiro”, afirma. Rafael lembra de uma frase que seu comandante de treinamento sempre dizia: se um dia a sirene tocasse, eles subissem no caminhão e não arrepiassem, era para descer na próxima esquina. “Vocês não nasceram para isso”, dizia ele. Não é possível explicar completamente a razão pela qual algumas pessoas escolhem atividades ou profissões que as deixem mais próximas da morte. Seja por lazer, para desafiar a si mesmos, por obrigação ou para salvar a vida de outras pessoas, é seguro dizer que nem Wanderley, nem Felipe, nem Rafael acreditam que estejam desafiando a morte. Encaram suas atividades como arriscadas, são cuidadosos e realizaram treinamento extensivo, mas nada disso impede que sintam medo ou que algum acidente aconteça. Apesar disso, não deixam de realizá-las, pois são apaixonados pelo que fazem. Talvez o sentido esteja resumido nesta frase de Nelson Mandela: “Aprendi que coragem não é a ausência do medo, mas o triunfo sobre ele. O corajoso não é o destemido, mas aquele que supera seu medo”.


Rafael Vieira, tenente do 1° Batalhão de Bombeiro Militar de Porto Alegre, já desafiou a morte. Um soterramento provocou lesões no seu olho esquerdo, mas não tirou dele a vontade de salvar mais vidas

Os praticantes do paraquedismo buscam manter a constância dos saltos para não perder a prática e continuar se aprimorando

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paranormal

A Última Fronteira Da ficção para a realidade: as vidas e aventuras dos caça-fantasmas brasileiros Texto e Fotos: Giulia Secco giuliasecco@hotmail.com Diagramação: Vinicius Rodrigues Dutra vini.rrosa@hotmail.com

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Quem você vai chamar? Rosa Maria Jaques, de 70 anos, afirma receber pedidos de ajuda de espíritos desde criança. De forma independente, a portoalegrense, que se define como vidente, sensitiva e telepata, frequenta lugares com ocorrências paranormais buscando auxiliar aqueles que já não sabem a quem recorrer. Rosa e o marido, o jornalista João Tocchetto, de 57 anos, encontraram no Youtube o espaço para mostrar o trabalho como caça-fantasmas. O casal fez fama com o canal Visão Paranormal, criado há sete anos, mas hoje atualiza os fãs principalmente pelo canal Caça Fantasmas Brasil. Segundo João, houve bastante preconceito. “Vidente e charlatanismo eram quase sinônimos.” O casal buscou inspiração em programas norte-americanos de ghosthunters e em filmes de ficção sobre o tema para a construção do conceito do canal. A ideia era fugir do esoterismo e do misticismo para criar um novo espaço no Brasil, onde se pudesse ver os fenômenos paranormais sem vínculo religioso. Rosa e João recebem chamados por e-mail e por todas as redes sociais. Somente durante a entrevista para a Sextante, transmitida ao vivo no canal dos caça-fantasmas, três pessoas pediram ajuda nos comentários do Youtube e outras contaram suas histórias ou sugeriram locais habitados por fantasmas. Segundo o casal, a busca por seus serviços, mesmo que simplesmente para perguntar se seu problema se trata de um fenômeno paranormal, é diária.

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Rosa e João tentam ajudar em situações que parecem impossíveis

Eles tentam equilibrar as visitas a casas de pessoas que os chamam com investigações próprias em locais conhecidos como mal-assombrados. “A gente está sempre em movimento”, afirma Rosa. Eles não julgam as religiões, mas afirmam que cada religião faz uma leitura do paranormal que, por vezes, pode ser pesada para o indivíduo. “A pessoa quer entender o que está acontecendo”, explica João. “Muitas vezes, as religiões respondem perguntas e ajudam as pessoas, mas há questões que as religiões não conseguem responder.” Segundo o jornalista, isso ocorre porque algumas crenças não aceitam os fenômenos e porque eles acontecem, a maioria das vezes, quando a vida do indivíduo está desorganizada. Para Rosa, é importante que não se confunda a sensibilidade para o paranormal com doenças psiquiátricas. Segundo a vidente, algumas pessoas têm uma maior sensibilidade para perceber fenômenos, mas é importante vivenciá-los para entendê-los e encará-

“Muitas vezes, as religiões respondem perguntas e ajudam as pessoas, mas HÁ questões que as religiões não conseguem responder” João Tocchetto

Jornalista e caça-fantasmas

-los com calma. Quando eles recebem pedidos de ajuda, Rosa tenta avaliar se é realmente um caso de paranormalidade ou uma questão psicológica. Entre os casos marcantes, o casal destaca a visita à boate Kiss, em Santa Maria; a um cemitério em Santana do Livramento em que uma energia teria se identificado como o Diabo e, mais recentemente, a gravação de uma voz durante auxílio prestado a uma família, presente no vídeo Sussurros do Inferno no canal do casal. Eles afirmam terem mais de mil vídeos com fantasmas, seja em sons ou imagens. Segundo João, se há a presença de um espírito, Rosa sabe. “Nós não temos dúvida”, diz o caça-fantasma.

Sem respostas prontas e perguntas proibidas Para entrar em um cemitério, o autointitulado mago portoalegrense Antonio Augusto Fagundes Filho, de 57 anos, aguarda um sinal. Ele chega na forma da placa de um carro que dobra na esquina, “6646”. Pode passar. Ao lado das criptas, Fagundes realiza um ritual de proteção antes de contar sua história. Autor de O Livro dos Demônios – Manual de Identificação de cada demônio e as defesas necessárias, Guia da Cultura Proibida e Das Profundezas da Noite, ele afirma que fantasmas existem porque não receberam amor o suficiente. Segundo Fagundes, a condição de virar um fantasma é completamente antinatural e rara. Isso ocorre em situações de mortes trágicas de humanos desafortunados que acabam por “fazer a passagem” antes da hora. Ele afirma ainda que há fantasmas “especializados”

ARQuivo pessoal

É difícil não se sentir atraído por histórias de fantasmas, desde numa roda de contos na fogueira do acampamento até nos clássicos da literatura de terror, como Stephen King e Shirley Jackson. Algumas pessoas ao redor do mundo, no entanto, escolhem ir além. Os caça-fantasmas não existem só na ficção e não têm só nomes estrangeiros, como os famosos Ed e Lorraine Warren, que inspiraram os filmes Invocação do Mal, Annabelle e Terror em Amityville. Os caça-fantasmas brasileiros estão aí para ajudar quem precisa.


em uma atividade ou outra, mas que basta ser tirado da vida abruptamente ou de forma cruel para que a pessoa se revolte e não consiga se desligar do plano terrestre. Por razões diversas, afirma, os lugares ficam carregados negativamente e, à medida que as pessoas vão ficando com mais medo, projetam mais energia ainda. Por isso, Fagundes diz que há fantasmas que assustam e fantasmas que não assustam. “Os que assustam são mais safados e querem se alimentar dessa energia do medo que eles provocam.” Para o mago, o ser humano emite energia constantemente, pois é um ser espiritual tendo uma experiência material e não um ser material tendo uma experiência espiritual. Já outros espíritos ficam no plano terrestre apenas para resolver algo antes de seguir em frente, como o caso do fantasma que volta para apontar onde está seu corpo ou um tesouro escondido. De acordo com Fagundes, o motivo pelo qual ele consegue perceber as realidades espirituais seriam as suas experiências de quase-morte. A primeira ocorreu quando foi diagnosticado com um caso grave de meningite aos três meses. Ele conta que, após a doença, e desde que começou a falar, manifestava ver coisas que as outras pessoas não viam, como os mortos da família. “É difícil falar em sobrenatural, porque

para mim tudo é natural, é o nosso desconhecimento referente à natureza que faz a gente usar esse termo.” Ter convivido desde sempre com o que ele chama de outra dimensão moldou a sua vida, e ele afirma se sentir honrado por ter esse privilégio.

Antropologia da Paranormalidade A mestranda em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Gabrielle Cabral focou seus estudos na Antropologia da Religião e, atualmente, dedica-se a pesquisar espiritualidade e tecnologias. De acordo com ela, “sobrenatural” é um termo usado por teólogos da Idade Média que designa a ação direta de Deus. Já o termo “paranormal” surgiu no século XX, com os pesquisadores da Society for Psychical Research, com o intuito de substituir o termo “sobrenatural”. Enquanto paranormal designa o que está “além do escopo da ciência”, sobrenatural quer dizer “além das leis da natureza”. “Ao caracterizar os fenômenos anômalos como paranormais, os investigadores psíquicos queriam sinalizar que tais ocorrências fazem parte do mundo natural e, portanto, podem ser apreendidas por meio da investigação científica, apagando as filiações religiosas carregada pelo termo sobrenatural.”

Segundo Gabrielle, a vontade de se comunicar com espíritos está muito presente, porque não queremos acreditar que a vida termina com coisas inacabadas, ainda mais quando é uma pessoa jovem que faleceu. A Antropologia geralmente interpreta os espíritos, as crenças do outro, como uma metáfora para outra coisa, como forma de coesão social ou como algo com uma função dentro da sociedade. Há poucos estudos sobre a realidade ontológica do espírito e do paranormal, e há também poucos dados sobre a quantidade de pessoas trabalhando na linha tênue entre vida e morte. Segundo a ParanormalSocieties.com, que afirmava ter a maior lista de sociedades e grupos de paranormais do mundo, apenas nos Estados Unidos havia cerca de 3,6 mil integrantes registrados até 2016. O site parou de ser atualizado há três anos sem explicações e, desde então, não surgiu uma nova plataforma para colher esses dados. O que sempre permanece dos caça-fantasmas são os relatos e as histórias, sejam narrados de boca em boca, sejam em livros, filmes ou em vídeos do Youtube.

Fagundes se considera um mago e escreve sobre o paranormal


FILIPE sANTOS cÉZAR

REVISTA EXPERIMENTAL DO CURSO DE JORNALISMO DA FACULDADE DE BIBLIOTECONOMIA E COMUNICAÇÃO (FABICO) DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL (UFRGS) Disciplina de Jornalismo Impresso Direção da Fabico Karla Maria Müller Chefia do Departamento de Comunicação Maria Berenice da Costa Machado

Comissão editorial: Andielli Silveira, Bárbara Lima, Deborah Mabilde, Elias Santos, Filipe Batista, Giulia Reis, Vinicius Rodrigues Dutra e Yuri Correa Comissão de fotografia: Andielli Silveira, Deborah Mabilde, Diego Rodrigues, Elias Santos, Luciana Forgiarini e Paola Pavezi

Professora-editora Thaís Furtado

Comissão online: Gabriela Garcia, Giulia Secco, Sthefania Castillo e Yuri Correa

Orientação Gráfica Ana Gruszynski e Graziele Borguetto

Comissão de distribuição e lançamento: Ana Carolina Parise, Elivelto Corrêa, Giulia Reis, Luciana Forgiarini, Sthefania Castillo e Thayse Ribeiro

Monitor Juan Ortiz Estagiária Júlia Fernanda Costa dos Santos Participação: Turma de Fotojornalismo II sob orientação da professora Ana Taís Martins Portanova Barros e da estagiária docente Camila Freitas Siqueira Agradecimentos: Janaína Kalsing e Luís Eduardo Gomes Impressão: Gráfica da UFRGS

Projeto Gráfico: Amanda Hamermüller, Felipe Goldenberg e Glauber Machado Capa: intervenção de Filipe Batista em ilustração de Breno Dias Ilustrações páginas 2, 3 e 79: Breno Dias Diagramação: Ana Carolina Parise, Caroline Silveira, Diego Rodrigues, Filipe Batista e Vinicius Rodrigues Dutra Revisão: Juan Ortiz, Júlia Fernanda Costa dos Santos e Luciana Forgiarini




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