Sextante 59 - De repente 60

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FACULDADE DE BIBLIOTECONOMIA E COMUNICAÇÃO – FABICO/UFRGS | OUTUBRO DE 2022 | EDIÇÃO 59

DE REPENTE 60


FOTO: MARIANA ALVES


EDITORIAIS UM NOVO ENVELHECER

DESTINO COMUM

A rotina de idosos contemporâneos foi o tema escolhido pelos alunos da disciplina de Jornalismo Impresso nesta edição da revista Sextante. O primeiro semestre de 2022 estava cercado de expectativas: com grande parte da população vacinada (agradecemos à ciência!), nossos encontros foram, finalmente, 100% presenciais, após dois anos de aulas remotas e híbridas. Para o jornalismo, o encontro físico é essencial para reparar em expressões faciais, olhares e silêncios. Mas como se referir aos mais velhos? Idosos? Cidadãos da terceira idade? Indivíduos na velhice? Os próprios alunos tiveram dúvidas. Uma entrevistada não quis revelar a idade – informou à repórter que tinha “a idade da jornalista Glória Maria”. Há um tabu na hora de falar sobre velhice, associado ao medo da morte. Todavia, a insegurança é, aos poucos, superada em um momento no qual idosos adquirem, mais do que em qualquer período da história, autonomia para trabalhar, realizar procedimentos estéticos e, até mesmo, fazer shows de rock. O que é, de fato, um idoso? A Sextante recorreu à idade citada no Estatuto da Pessoa Idosa, criado em 2003 pelo governo federal e destinado “a regular os direitos assegurados às pessoas com idade igual ou superior a 60 anos”. O regramento define que o envelhecimento é direito de todo cidadão brasileiro. Mas o tempo passa rápido. De repente 30, de repente 60... A passagem do tempo, aliás, leva muitos a exclamar: “No meu tempo, era de outro jeito!”. O perigo dessa frase é reforçar a ideia de que ficamos para trás. Porém, se estamos vivos, o tempo não seria nosso? Talvez a lição a ser reforçada seja outra: é preciso aproveitar o hoje, independentemente da idade. Esta revista é um convite para você preencher o tempo da melhor forma possível. Boa leitura.

Olhar para o passado e para o presente, projetando – com base em dados e pesquisas – um futuro, é uma atividade recorrente na vida dos jornalistas. É preciso compreender contextos sociais e históricos para redigir matérias e descobrir novas pautas. Há um futuro, porém, sobre o qual nós, jovens jornalistas, não costumamos pensar muito. Trata-se de um destino natural da humanidade: a velhice. Um futuro que talvez tenhamos, caso a vida permita. E, ao que tudo indica, isso será cada vez mais possível. De acordo com dados de 2019 da Secretaria Estadual de Planejamento, Governança e Gestão do Rio Grande do Sul (SPGG), um em cada três gaúchos terá mais de 60 anos até 2060. Hoje, os idosos são um a cada cinco da população gaúcha. No Brasil, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), essa parcela da sociedade cresceu de pouco mais de 11% em 2012 para quase 15% em 2021. Apesar de ser uma das poucas certezas da vida – nascemos, envelhecemos e morremos –, por vezes, a velhice é tratada como tabu. Mas o envelhecimento é a chave da nossa evolução, é com ele que se intensifica tudo de melhor e de pior que somos. Soma de experiências, acúmulo de anos vividos e um bocado de alterações físicas: não limitamos a velhice a isso na 59ª edição da revista Sextante. Em oito reportagens aprofundadas, diferentes perspectivas sobre envelhecimento são exploradas pela turma de Jornalismo. Roqueiros de longa estrada, empresárias idosas, a busca pelo rejuvenescimento físico, paixões que passaram de geração em geração, indígenas anciões, o clube negro mais velho do país, lares residenciais para idosos e o envelhecimento trans são as pautas que fazem parte da coletânea de histórias desta revista. Narramos corpos que carregam, no mínimo, mais de seis décadas das mudanças históricas e sociais do mundo e que são manifestações vivas disso. Descubra conosco mais sobre o envelhecimento para além da superfície das aparências a partir das narrativas de quem mais pode falar sobre o assunto: os idosos.

Thaís Furtado | Professora-editora thais.furtado@ufrgs.br

Comissão editorial

Marcel Hartmann | Estagiário-docente e editor celhartmann@gmail.com @revistasextante @revistasextante /sextanteufrgs Site: www.ufrgs.br/sextante/

Sextante é um instrumento que mede a distância angular entre um astro e a linha do horizonte. Com ele, os navegadores calculam sua posição e podem corrigir eventuais erros de navegação.


ÍNDICE Diversidade

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Negritude

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Povos originários

18

Comportamento

24

Moradia

30

Trabalho

36

Saúde

42

Música

48

Mariana Alves

Júlia Ozorio

Lucas Keske

Arthur Mezacasa

Pedro Alt

Jovana Dullius

Maria Fernanda Chaves

Susi Tesch


FOTO: MARIANA ALVES

Ativista pelos direitos LGBTQIA+ há mais de 30 anos, Marcelly Malta é vice-presidente da Rede Trans Brasil (página 6)


DIVERSIDADE

Pioneira na luta pelos direitos de pessoas trans e travestis no Rio Grande do Sul, Marcelly Malta comemora a possibilidade de seguir atuando no movimento

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TRANSGREDINDO A IDADE VISTO COMO ALGO NEGATIVO, ENVELHECIMENTO É PRIVILÉGIO ENTRE PESSOAS TRANS E TRAVESTIS. PARA AS QUE ULTRAPASSAM A EXPECTATIVA DE VIDA, A PERSPECTIVA É DE UM FUTURO GENTIL E AFETUOSO Texto e fotos: Mariana Alves mbaptistalves@gmail.com

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Aos 71 anos, Marcelly relembra os anos em que viveu na Europa, onde conheceu novas frentes do movimento LGBTQIA+

Abandono, solidão, negligência, esquecimento e exclusão são palavras associadas ao envelhecimento e parte da realidade de pessoas transsexuais e travestis. Assim como o simples ato de existir, o processo de ficar velho é influenciado por uma série de fatores, como raça, gênero e sexualidade, que modificam a forma como cada pessoa vive a velhice, tornando essa experiência mais difícil ou até inalcançável.

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Não há estimativa oficial referente à expectativa de vida de pessoas transsexuais e travestis no Brasil. Contudo, dados coletados pela Rede Trans Brasil e pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), organização independente que realiza pesquisas sobre o perfil da população transsexual, indicam expectativa de 35 anos, 41 a menos do que a média da população geral, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). No Brasil, a violência é a principal responsável por privar esse grupo de viver a velhice: o país lidera o ranking mundial de assassinatos há treze anos

consecutivos, conforme o relatório de 2021 da Transgender Europe (TGEU). A dificuldade de inclusão no mercado de trabalho e a rejeição familiar são outros fatores decisivos no declínio da qualidade de vida, colocando pessoas trans e travestis em situação de vulnerabilidade social, física e mental. “Idosos e idosas trans estão situados numa intersecção identitária que os invisibiliza quase que triplamente, devido ao etarismo, à heteronormatividade compulsória e à transfobia. Infelizmente, chegar à velhice entre a comunidade trans já parece ser, em si, um desafio”, explica a pesquisadora


“O ENVELHECIMENTO É UM DIREITO QUE TODOS DEVERIAM TER” Marcelly Malta Lisboa vice-presidente da Rede Trans Brasil

Sophia Starosta, mestre em Psicologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que investigou questões ligadas ao envelhecimento e à memória entre travestis do Estado. Segundo Sophia, há mulheres que precisaram recorrer a processos de masculinização para serem aceitas pela

família e acessar serviços de saúde. Os sentimentos de isolamento e solidão se agravam nesse grupo, uma vez que a rede de apoio é menor do que a das pessoas cis. “A família por vezes se estabelece como a rede social e de apoio do idoso”, completa. Apesar do destaque que movimentos sociais LGBTQIA+ ganharam na última década, pouco se fala sobre o envelhecimento dessa população. “Isso pode criar lacunas em termos de conhecimento dos profissionais geriátricos e de saúde a respeito das particularidades do envelhecimento de pessoas trans”, diz Sophia. Por conta disso, desestig-

matizar a discussão sobre idade ajuda a viabilizar o desenvolvimento de políticas de atenção para pessoas trans e travestis idosas, garantindo seu direito à saúde e ao acolhimento do Estado. 71 ANOS DE CONQUISTAS “O envelhecimento é um direito que todos deveriam ter”, afirma a vice-presidente da Rede Trans Brasil, Marcelly Malta Lisboa, 71 anos. Nascida em Mato Leão, na região do Vale do Rio Pardo, Marcelly se identifica como mulher travesti. Aos 15 anos, se mudou para a Capital para buscar uma vida nova e iniciou na equipe de limSEXTANTE Outubro de 2022

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Professora de comunicação na UFRGS, Alessandra Primo acredita que transicionar aos 50 garantiu mais maturidade para encarar as diferentes pressões do envelhecimento que atingem as mulheres

peza da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Com o tempo, formou-se como enfermeira e seguiu trabalhando no hospital. “A Santa Casa me abriu as portas para tudo, foi lá onde comecei a me transformar”, afirma. Apesar do preconceito da época, Marcelly não sofria discriminação no ambiente de trabalho. Pelo contrário, encontrou colegas e amigos que a acolheram e apoiaram todo o seu processo de transição de gênero. Foi também através de colegas que “faziam a rua” que ela conheceu e começou a trabalhar paralelamente com prostituição. Aos 30 anos e atuando como servidora na Secretaria de Saúde do Rio Grande do Sul, Marcelly viveu uma das décadas mais difíceis na história do Brasil e do mundo. Doença com tratamento praticamente inexistente,

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a epidemia de HIV levou milhares de vidas nos anos 1980. “Nesses 10 anos, perdi muitas pessoas. Eram amigas minhas que eu via em um dia e, no dia seguinte, já não estavam mais aqui, porque não tinha medicação”, relembra. Na época, Marcelly já atuava nos movimentos sociais como profissional da saúde, auxiliando outras mulheres que trabalhavam com prostituição através da educação sexual no Grupo de Apoio à Prevenção da Aids (GAPA/ RS). A expectativa de vida das pessoas LGBTQIA+ era um tópico em discussão, e o preconceito que cercava o HIV fez ela mesma não acreditar que viveria muitos anos. Os 70 anos de vida também são 70 anos de conquistas importantes para a população de pessoas trans e travestis: a troca do nome na certidão de nas-

cimento, tirar a transsexualidade da lista de doenças mentais, projetos de empregabilidade, cotas em concursos públicos, uma ala especial no presídio central, entre muitas outras. Marcelly se aposentou como servidora pública aos 60, mas segue trabalhando pela garantia de direitos das mulheres travestis e transsexuais. “Acho que estou aqui para cumprir uma missão, e hoje é graças à minha idade que posso fazer isso. Ter um objetivo e trabalhar por isso me traz mais qualidade de vida.” Atualmente, ela coordena o desenvolvimento de um novo levantamento do perfil de pessoas trans e travestis junto à Rede Trans Brasil, com divulgação prevista para o próximo ano. Casada há sete anos, Marcelly acredita que o afeto e o carinho são fundamentais para um envelhecimento


saudável. Ela reforça a necessidade de superar a noção de que pessoas idosas não podem se relacionar. “Essa visão de envelhecimento de pensar que nós não podemos achar uma pessoa bonita, ou ficar com aquela pessoa, não podemos usar uma roupa bonita, sensual. Isso tudo é tão importante agora quanto na juventude, e eu sei aproveitar as coisas boas da vida”, afirma. UMA VIDA QUE COMEÇA AOS 50 Também vinda de uma família conservadora, a professora de comunicação da UFRGS Alessandra Primo, de 52 anos, se permitiu viver sua versão mais autêntica aos 50 anos. Motivada pelas reflexões que teve durante o isolamento social na pandemia de covid-19, ainda em 2020, ela se reconheceu enquanto mulher trans e decidiu iniciar a transição de gênero. “Transicionar aos 50 anos foi o que foi possível para mim, não gosto de pensar como teria sido em outro momento. A minha vida recomeçou da melhor maneira”, afirma. Alessandra Primo foi acolhida no ambiente de trabalho e reconhece o privilégio de poder ter seguido uma carreira acadêmica de sucesso, rumo incomum entre a população de pessoas trans e travestis, que muitas vezes encontram dificuldades de se inserir no mercado de trabalho e na academia. “Eu sou uma exceção porque até hoje não sofri violência. Sou uma exceção porque sou pós-doutora, mas gostaria que todas pudessem ter essa vida, essa oportunidade”, reforça. Além dos colegas, ela ainda conta com o carinho da filha de 11 anos, sua maior apoiadora, que aceitou a transformação com muita tranquilidade. Para Alessandra Primo, a transição chegou no momento certo. “Passando dos 50, nós sentimos uma carga, um peso. Eu estava cada vez mais irritada e descontente, porque não me sentia bem na minha pele. Agora tenho vontade de descobrir tantas coisas, sinto que ainda tenho uma vida toda pela frente”, afirma. Além do gênero, ela acredita que também passou por uma transição de cabeça, porque passou a enxergar a vida

“O ENVELHECIMENTO DO CORPO NÃO NECESSARIAMENTE PRECISA ACOMPANHAR LINEARMENTE O ENVELHECIMENTO DA NOSSA MENTE” Alessandra Primo professora universitária

sob uma perspectiva social completamente diferente. “Enquanto homem, branco, de classe média alta, em um emprego público, eu tinha muitos privilégios. Eu dei um salto dessa pirâmide e hoje sou minoria, então tenho outra visão de mundo”, completa. Essa nova perspectiva de vida também facilitou muitos processos que ela considerava que seriam grandes desafios, como voltar a frequentar espaços públicos com seu novo visual. “Achei que uma ida à praia seria um momento

muito tenso, mas foi algo muito natural, porque eu estava simplesmente feliz com meu corpo”, conta. Ela reflete que as questões do envelhecimento também mudam quando se é mulher, porque há uma preocupação maior com a vaidade e a autoestima devido às pressões da sociedade, mas a maturidade ajuda a transformar a pressão em uma forma de autocuidado. Alessandra Primo deseja envelhecer da maneira mais jovem possível, com um espírito aventureiro para seguir desbravando o mundo e a si mesma. “O envelhecimento do corpo não necessariamente precisa acompanhar linearmente o envelhecimento da nossa mente. Nós podemos até lutar contra o envelhecimento do corpo tendo uma vida sadia e uma vida feliz”, afirma. Para viver essas descobertas, ela também busca se reinventar afetivamente e encontrar um amor para dividir os anos que estão por vir. Carinho, afeto, amor, companhia, acolhimento – são essas as palavras que devemos associar ao envelhecimento trans.

BASTIDORES De início, a ideia era trazer um panorama do envelhecimento de pessoas trans e travestis mostrando a trajetória dessas pessoas frente a adversidades. Além da dificuldade de encontrar fontes com esse perfil, a intenção de mostrar um lado mais positivo da vida dessas pessoas, com foco nos seus sonhos e perspectivas para o futuro, mudou a direção da matéria e me levou até a Alê, que é professora na FABICO. Inicialmente também tive dificuldade de encontrar um profissional da saúde ou pesquisador da área. Depois de muitos contatos, encontrei a professora Paula Sandrine, que me indicou a Sophia, sua orientanda de mestrado no Instituto de Psicologia da UFRGS e também uma mulher trans. Tanto na hora da entrevista quanto da redação, tomei bastante cuidado para não levar personagens a um lugar de vitimização, de sofrimento e negatividade, muito frequente no jornalismo quando se fala sobre pessoas trans e travestis. Marcelly e Alê são grandes exemplos de conquistas que vão muito além da sua identidade, então foi nesse aspecto que busquei focar ao longo da reportagem. Apesar da densidade do tema, foi uma matéria muito divertida de produzir, principalmente pelo tempo longo que conversei com Marcelly e Alê. De forma geral, acredito que consegui transmitir uma ideia mais positiva sobre as vivências de pessoas trans e travestis sem deixar de mencionar as dificuldades que precisamos combater para garantir vida longa e próspera para esse grupo.

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NEGRITUDE

MAIS ANTIGO DO Na sede do Floresta Aurora, florestinos se reúnem para convívio social, confraternizações e valorização da cultura e história negra

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QUE A LIBERDADE CLUBE SOCIAL NEGRO MAIS VELHO DO PAÍS GUARDA HISTÓRIAS DE RESISTÊNCIA E AFETO. ESPAÇO TAMBÉM UNIU IDEALIZADORES DO DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA Texto e fotos: Júlia Ozorio juliaozoriocontato@gmail.com

“Mais antiga do que a liberdade” é a frase de slogan da Sociedade Beneficente Cultural Floresta Aurora, o clube negro mais velho do Brasil. Sediada no bairro Belém Velho, em Porto Alegre, a instituição foi criada por negros alforriados em 1872, 16 anos antes da abolição da escravatura. O clube marcou a história do Brasil: uniu idealizadores do Dia da Consciência Negra, que eram colegas da turma de teatro. A instituição, ligada às lutas abolicionistas, nasceu porque os criadores buscavam auxílio mútuo e enterro digno de escravizados, até então jogados em valas rasas. O local se tornou reduto do povo negro – foi lá que amizades e famílias surgiram. Atualmente, o clube, outrora famoso entre a mocidade por seus bailes, tem, em sua maioria, sócios pagantes com mais de 50 anos, conforme o vice-presidente de finanças, Sérgio Luiz SEXTANTE Outubro de 2022

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Fonseca. Todos com vidas profundamente ligadas ao clube, como é o caso do advogado Antônio Carlos Côrtes, de 74 anos, criado na Colônia Africana de Porto Alegre e florestino há mais de cinco décadas. Ele conheceu o clube pelos pais, Egydio Ribeiro Côrtes e Isolina dos Santos Côrtes. “Meu pai me falava muito sobre a Sociedade Floresta Aurora, e a minha mãe tinha sido eleita a Rainha do Sorriso na década de 50. Então, nos anos 1970, procurei o clube e me associei”, relembra. Foi lá que Antônio fez amigos e ajudou a escrever a história do negro no Brasil. Ele se reunia com colegas da turma de teatro do Floresta Aurora em casas e na Esquina Democrática para tratar de questões raciais. Em 1971, essa turma criou o Grupo Palmares, projeto que plantou a semente do 20 de novembro, o Dia da Consciência Negra. “Propúnhamos o ‘não’ ao 13 de maio [dia da abolição da escravatura], porque nada tinha a festejar, e ‘sim’ a uma celebração à data da morte do Zumbi dos Palmares. Isso ecoou no Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro”, recorda. Nos anos 1980, a ideia foi abraçada pelo Movimento Negro Unificado, dando o arremate na proposta de criação de uma data para a reflexão sobre a cultura negra no país. Foi em 2011 que a data foi oficializada pela então presidente Dilma Rousseff como Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra em formato de feriados municipais. Por ironia, em Porto Alegre, onde a ideia nasceu, a data não é feriado. Último remanescente do grupo que sugeriu o 20 de novembro ainda vivo e no Estado, Antônio assumiu como presidente do Floresta Aurora em 1977. O clube estava endividado e integrantes temiam pelo fechamento. “Havia um grupo de discoteca chamado Magia Negra que fez o primeiro Black Porto, no Grêmio Náutico Gaúcho, e foi um sucesso. Quando tentaram realizar a segunda festa, a direção não deixou. Não queriam negros lá. Procuraram outros clubes e também não conseguiram. O Floresta Aurora

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“QUANDO EU ERA CRIANÇA E ADOLESCENTE, NÃO PODIA FREQUENTAR OUTROS CLUBES, VIA MINHAS COLEGUINHAS INDO E NÃO PODIA. AQUILO ME DEIXAVA ANGUSTIADA. O FLORESTA AURORA ERA O NOSSO REDUTO” Margarida Maria Maximiliano engenheira civil

abrigou esses jovens. Fazíamos festas às sextas, sábados e domingos. Era cobrado um ingresso para participar e ainda havia os comes e bebes. Eu devo a esses jovens o pagamento de 90% das dívidas da Sociedade”, relembra. Para ele, essas festas promoviam a união e a autoestima. “Esses jovens passaram a chamar o Floresta Aurora de Mansão Black”, diz. Quando analisa os anos vividos juntos do clube, Antônio afirma: “Pode ter alguém que ame o Floresta Aurora, mas ninguém o ama mais do que eu”. AMOR PARA CUIDAR Maria Eunice da Silva, cuja idade, afirma bem-humorada, é a mesma da jornalista Glória Maria, passou a frequentar o clube ao ser convidada pelo colega da faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Antônio. Ela se associou em 1977 e foi estandarte dos carnavais do clube entre 1980 e 1982. Em 2010, ela se tornou a primeira e única presidente mulher da instituição. A advogada assumiu a gestão em um momento turbulento: o clube tinha dívidas altas, em cerca de R$ 300 mil. Foi preciso vender a então sede, no bairro Pedra Redonda, e ainda assim Maria Eunice arcou com quase R$ 150 mil do próprio bolso para quitar as dívidas e não deixar o tão amado clube fechar. Com a venda do imóvel, a presidente foi ressarcida e ainda comprou a atual

sede, no bairro Belém Velho. “Um lugar lindíssimo, grande, com piscinas, salão, campo de futebol e metros e metros de mata nativa”, se orgulha. Ela explica o motivo para ter arriscado suas economias. “Nunca esqueço as palavras de um antigo presidente. Ele falava que aqueles negros que fundaram, escondidos, o Floresta Aurora não tinham condições econômicas. Eles fizeram muito mais do que nós, que estamos formados e temos casa própria”, observa. “Nós, negros, temos o dever de honrar a história daqueles que fundaram a Sociedade”, completa. Convivendo desde a década de 1970 com o clube, ela resume o afeto que sente: “A minha relação com o Floresta Aurora é visceral. Eu o amo e sinto ciúmes dele. Vou fazer o que eu puder, enquanto estiver viva, por ele, em respeito aos meus antepassados”. VIDAS COMPARTILHADAS Um dos membros mais velhos do Floresta Aurora é o advogado José Flávio Rocha Silveira, de 80 anos. Por sua longa trajetória no clube, ganhou recentemente o título de Presidente de Honra da instituição. Ele ajudou a fundar, em 1968, o bloco carnavalesco do clube, Os Intocáveis, para disputar os bailes de carnaval realizados no Restaurante Universitário da UFRGS, contra a agremiação do Clube Náutico Marcílio Dias. “Fizemos carnavais icônicos, muito elogiados. Havia três bailes e um infantil. Todo mundo se reunia e saíam festas bonitas”, conta. Foi em uma festividade no clube que José Flávio conheceu sua companheira, Jalmira Teixeira Silveira, de 79 anos. “Podemos afirmar que nos casamos aqui [no Floresta Aurora]”, diz. Assim como o marido, Jalmira é florestina desde a mocidade. Ela, que veio do interior para estudar Farmácia e Bioquímica na UFRGS, conheceu o clube na década de 1950. Quando se formou, em 1963, foi homenageada na Festa dos Bixos – evento do clube que valorizava a conquista acadêmica dos frequentadores. “Nós saímos pintados fazendo festa. Era um triunfo a todos os que passaram e se formaram naquele ano”, relembra


Maria Eunice da Silva foi a primeira e única presidente mulher do Floresta Aurora em 150 anos de história

A relação de Antônio Carlos Côrtes com o Floresta Aurora é antiga. Ainda pequeno, via seus pais frequentando as festas do clube

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O casal José Flávio e Jalmira Silveira se conheceu em uma festividade do clube há cerca de seis décadas

Jalmira. “Isso incentivou a nossa juventude a estudar. Achavam bonito celebrar aquela conquista e também queriam estar ali”, acrescenta José Flávio. Entre as comemorações, a vida do casal foi se desenrolando junto ao clube. “O Floresta Aurora é uma cachaça. Eu luto e faço tudo por ele”, conta José Flávio. A esposa concorda: “Faz parte da gente, de nossas vidas. Nos conhecemos aqui e frequentamos há mais de 50 anos”. DE GERAÇÃO EM GERAÇÃO Maria Idalina Martimiano, de 98 anos, nasceu em Pelotas e veio para Porto Alegre na infância. Neta de escravizados, era levada pelos pais ainda criança para o Floresta Aurora. Foi lá que constituiu seu círculo social e conheceu o amor de sua vida, Alberto Martimiano Filho. Eles engataram um

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namoro após uma festa do clube em 1939, se casaram em 1943 e viveram 57 anos juntos, até ele falecer, em 2000. O amor pela instituição passou de geração em geração. “Quando eu era criança e adolescente, não podia frequentar outros clubes, via minhas coleguinhas indo e não podia. Aquilo me deixava angustiada. O Floresta Aurora era o nosso reduto”, conta a filha Margarida Maria Martimiano, de 69 anos, engenheira civil. Margarida, que fez do clube o seu refúgio, hoje retribui o afeto recebido dentro deste espaço o mantendo seguro, forte e adequado para uso. A filha utiliza dos seus conhecimentos de engenheira para ajudar, voluntariamente, nas obras e para manter em dia o Plano de Prevenção e Proteção Contra Incêndios (PPCI) da instituição. Já de bengala, Maria Idalina tem lapsos de memória, mas conta que foi no Floresta Aurora que viveu toda a sua vida. “Desde pequena eu frequento [o clube]. Sempre fui, toda a vida”, diz.

“É PRECISO QUE O GOVERNO FOMENTE ESSES PATRIMÔNIOS, QUE POR MUITO TEMPO RELEGOU AO ESQUECIMENTO. PRESERVAR CLUBES SOCIAIS NEGROS É DE IMPORTÂNCIA EDUCATIVA E SOCIAL, PARA QUE OS JOVENS TENHAM O DIREITO DE ENTENDER SUAS RAÍZES E SE ENXERGAR ENQUANTO GENTE” Giane Vargas professora de História da Universidade Federal do Pampa (Unipampa) e coordenadora do projeto Clubes Sociais Negros


PRESERVAR O FUTURO O envelhecimento do clube, que por 150 anos manteve viva a história do povo negro, é motivo de orgulho para os frequentadores, mas também preocupação: a Sociedade enfrenta a baixa adesão da mocidade. “O nosso sonho é que nossos filhos assumam o clube, tenham cargos, cuidem e preservem”, diz a florestina Jalmira. Para frequentadores, o Floresta Aurora precisa oferecer atividades para o público jovem para garantir a preservação da instituição. O atual presidente do clube, Gilmar Afrausiano, explica que estão sendo feitas modernizações, como a criação de um site e redes sociais, além de planos para a instalação de brinquedos. Para Giane Vargas, professora de História da Universidade Federal do Pampa (Unipampa) e coordenadora do projeto Clubes Sociais Negros, manter vivo o Floresta Aurora é também obrigação do Estado. “Para preservar, é preciso de recursos humanos e financeiros. É preciso que o governo fomente esses

patrimônios que, por muito tempo, relegou ao esquecimento. Preservar clubes sociais negros é de importância social e educacional para os jovens terem o direito de entender suas raízes, se enxergarem enquanto gente e sonhar”, conclui.

O amor pelo Floresta Aurora é quase genético na família de Margarida Maria e Maria Idalina Martimiano: foi passado, há três gerações, de pais para filhos

BASTIDORES Contar uma história não é tarefa fácil, menos ainda quando se é branca e decide falar sobre o clube negro mais velho do país. Mas tenho para mim que temos que fazer o que pudermos para não repetir o passado, mudar o presente e garantir um futuro melhor. Olhar para o passado ajuda. Conhecer essas pessoas, que tiveram seus anos de vida interligados com o clube, foi importante para mim, mudou minha percepção. No início, a temática da velhice não me agradava. Tive pouquíssimo contato com avós. Conviver com a velhice não faz parte do meu cotidiano. Olhar o passado, ir nas casas das fontes, conversar horas e horas, ver fotos e livros antigos, conhecer o clube, a velhice compartilhada com seus frequentadores e o amor incondicional dessas pessoas por seus antepassados me fez muito feliz. A parte mais doída do processo, para mim, foi de enxugar décadas e décadas de vidas em poucas páginas. Afinal, quanto mais se vive, mais histórias se tem para contar. SEXTANTE Outubro de 2022

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POVOS ORIGINÁRIOS

Augusto Espíndola, por conta de sua idade, assumiu o papel de conselheiro na Aldeia Anhetenguá, na Lomba do Pinheiro, em Porto Alegre

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UMA VELHICE RESPEITADA KUFÀ, KUJÁ OU XERAMÕI. AS POPULAÇÕES INDÍGENAS BRASILEIRAS CHAMAM E VEEM SEUS IDOSOS DE FORMA DIFERENTE DO RESTO DA SOCIEDADE Texto: Lucas Keske lucaskeske@hotmail.com Fotos: Júlia Ozorio juliaozoriocontato@gmail.com

Pela margem do grande rio caminha Jaguarê, o jovem caçador. O arco pende-lhe ao ombro, esquecido e inútil. As flechas dormem no coldre da uiraçaba. Assim começa Ubirajara, o livro da tríade indianista de José de Alencar que busca retratar os povos originários brasileiros antes da chegada dos europeus. A obra, mesmo que de 1874, ainda dita muito da visão que, em geral, a sociedade brasileira tem sobre os povos indígenas – e também sobre as pessoas idosas de tal origem. Camacã, o velho chefe, assim definido por Alencar, é descrito de forma estereotipada no livro. Assim como o autor, muitos ainda acreditam que o papel de cacique é sempre o mais importante da comunidade e, também, que é obrigatório que essa função seja ocupada pela pessoa mais idosa. Mas o cacique é o líder político de uma aldeia e não necessariamente o mais velho do grupo. A verdade é que, em geral, pouco se sabe ou mesmo se busca saber sobre a vida de pessoas idosas em comunidades indígenas brasileiras. SEXTANTE Outubro de 2022

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É difícil explicar exatamente como os povos originários entendem a velhice, já que, além das incontáveis diferenças entre as mais de 200 etnias indígenas do Brasil, é preciso considerar que esses indivíduos são cidadãos livres e podem escolher como viver suas vidas. Para os povos indígenas, todas as atividades são importantes, inclusive as desempenhadas por idosos. “Não dou mais muito pra lavoura”, diz Augusto Espíndola ao explicar suas funções na aldeia Anhetenguá, na Lomba do Pinheiro, em Porto Alegre. Aos 69 anos, ele conta que, por causa da idade, tem liberdade para reduzir os serviços braçais que realiza. Essa redução, segundo ele, é concedida não só pelo cacique, mas pela comunidade como um todo. E é uma concessão importante, já que é principalmente da agricultura que a aldeia tira sustento econômico. Hoje, por ter mais experiência de vida, Augusto é conselheiro dos demais. UMA VISÃO ECONÔMICA Do ponto de vista legal, o idoso é qualquer brasileiro que tenha idade igual ou superior a 60 anos. Tal parâmetro cronológico está definido na Constituição Federal de 1988 e reafirmado no Estatuto da Pessoa Idosa, de 2003. Contudo, existe um notável critério econômico atrelado às fases etárias, que não são divididas em partes A placa de “terra protegida” indica a entrada dos territórios indígenas demarcados do país

“A MAIORIA TEM A VISÃO DE QUE QUEM É VELHO ESTÁ ACABADO, E ISSO É UM DESRESPEITO TOTAL” Newton Terra gerontólogo

iguais. A vida social é composta por frações diferentes entre infância, adolescência, idade adulta e velhice. A vida adulta e economicamente ativa costuma ser a mais longa. Pela visão econômica, espera-se que indivíduos que, por opção ou não, param de trabalhar “retirem-se” da sociedade e deixem de tratar de questões relevantes. Essa lógica pode ser identificada na semântica da própria palavra “aposentadoria”, que carrega o sentido de “retirar-se a seus aposentos”. Não há, nas línguas indígenas pesquisadas, uma palavra equivalente a “aposentadoria”, pois os anciões continuam sendo vistos como indivíduos relevantes, que transmitem sua sabedoria aos mais jovens. Augusto não se surpreende com a ideia de aposentadoria entre os não indígenas, mas explica que vive mais próximo das tradições Mbyá Guarani, povo originário do qual faz parte e que está presente desde o Paraguai até o Rio Grande do Sul. Para ele, por sinal, é difícil pensar em países, estados, ou

divisões de terra. Ela apenas indica que hoje mora na aldeia de Cirilo, apontando para o cacique da comunidade e seu sobrinho. José Cirilo Pires Morinico, de 56 anos, afirma que não há uma idade específica para um guarani começar a trabalhar e outra para parar, como 18 e 60 anos, por exemplo. O mais comum é que os jovens comecem a fazer parte das tarefas relacionadas ao trabalho a partir do momento em que a comunidade os julgue capaz. Existem ritos de passagem, como o Nhemongarai – que, segundo uma analogia feita por Cirilo, equivale ao batismo da Igreja Católica – e outros ritos que marcam a entrada na idade adulta. Contudo, não há nenhuma cerimônia que marque quando um guarani se torna uma pessoa idosa. No Brasil, em 2021, havia 31,23 milhões de pessoas idosas, representando 14,7% da população residente no país, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Os números são da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) e tendem a aumentar com o tempo. Em 2012, pessoas com 60 anos ou mais representavam 11,3% da população. Segundo a Constituição Federal, “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” é um dos objetivos fundamentais da nação. Entretanto, as estatísticas brasileiras revelam que os idosos não estão sendo tratados de acordo com os termos da lei. IDOSOS VISTOS COMO DESCARTÁVEIS Conforme números da Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos (ONDH), no primeiro semestre de 2022, o Brasil registrou uma média de 227 casos de agressões contra idosos por dia. Os dados apontam que, ao contrário do que pensam os indígenas, em geral existe um entendimento de que a velhice faz com que as pessoas passem a atrapalhar a vida dos demais, sendo inúteis economicamente e, por isso, descartáveis.

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Cacique Cirilo Morinico é o líder político de sua aldeia

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A casa de reza (à esquerda) fica no centro da aldeia Anhetenguá

O gerontólogo gaúcho, especialista em envelhecimento saudável, Newton Terra, lamenta que exista essa noção de que os idosos são inúteis: “A maioria tem a visão de que quem é velho está acabado, e isso é um desrespeito total”. Segundo Terra, as condições de saúde física e mental de uma pessoa idosa dependem 25% de suas características genéticas e 75% de seus hábitos durante a vida. Para tanto, nomeia quatro pilares que sustentam o envelhecimento saudável: participativo, com discussões sobre temas latentes da sociedade; saudável, com tratamentos de saúde competentes; seguro, ao não sofrerem nenhum tipo de violência, seja ela física ou psicológica; e produtivo, mantendo-se ativos, ainda que sem a mesma efetividade ou responsabilidade de antes. ANCIÕES RESPEITADOS Na tradição Kaingang, segundo o cacique Odirlei Fidelis, os kofàs – como denominam os idosos – também têm um papel muito importante na sociedade. “A aldeia vive baseada no que os mais velhos dizem”, explica. A idade

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“A ALDEIA VIVE BASEADA NO QUE OS MAIS VELHOS DIZEM” Odirlei Fidelis cacique Kaingang

tem influência na hierarquia da comunidade, e a grande maioria das pessoas idosas ocupa a prestigiosa função de conselheiro, como acontece entre os guaranis. Cirilo, cacique da aldeia Van-Ká, no Lami, em Porto Alegre, explica a existência das autoridades pequenas, como os poin chin, que compara ao papel de policiais, e as grandes autoridades, os poin nan, como pajés e caciques. Esta última categoria, entre os Kaingangs, é predominantemente ocupada por kofàs. Em relação à diminuição, ou não, da realização de trabalhos braçais, isso é uma escolha pessoal, mas dificilmente alguém chega a ser totalmente excluído dessas tarefas. O cacique afirma que no passado a idade pesava mais como critério para a escolha de quem ocuparia os maiores

cargos, mas que, devido à necessidade de tratar questões externas com não indígenas, parte dessas funções são hoje ocupadas por Kaingangs mais jovens e que estudaram em escolas convencionais. Por isso, a maioria dos kofàs se mantém reservados a questões internas, como as relacionadas com a cultura do seu povo. Já na tradição do povo Tikuna, a mais numerosa da Amazônia brasileira, o respeito com os idosos é equivalente ao respeito às crianças, mas por motivos diferentes. De acordo com a descendente de Tikunas Kate Lima, analista em políticas públicas formada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), enquanto as crianças carregam pureza e inocência, os kujás, como são chamadas as pessoas idosas pelos tikunas, carregam experiência e sabedoria. Segundo Kate, a história de seu povo é preservada pela cultura oral, ou seja, é repassada pela fala de geração para geração – tradição comum na maioria das etnias indígenas. Como a comunidade tikuna tem uma constituição colaborativa, e não competitiva, os idosos


Guaranis de todas as gerações se reúnem ao redor do fogo

não param de trabalhar em momento algum, ainda que possam ser ajudados pelos mais jovens. Essa lógica define a idade adulta como um grande momento de aprendizado, em que se deve buscar manter características da infância, mas absorver conhecimentos para facilitar e dar sentido à chegada da velhice. É comum que os tikunas idosos sejam escolhidos para as funções mais relevantes, mas isso não é, necessariamente, a regra. Os 60 anos podem sim ser usados como parâmetro para o povo de Kate definir a velhice, mas dificilmente ocorre uma mudança abrupta. Todos se preparam para a velhice, trocando de função ao longo dos anos. O prestígio de ocupar cargos ajuda a dar sentido de utilidade durante a velhice, pois dificilmente alguém aceita sair totalmente das obrigações e discussões da vida social. Por isso, é frequente a participação de todos na rotina da comunidade até o fim da vida. Por fim, Cirilo afirma que os xeramõis – como são chamados os idosos na língua guarani –, assim como seu tio Augusto, costumam aceitar ajuda dos

mais jovens, ao que retribuem com mais conhecimento e experiências de vida. Inclusive, são eles que apontam os dons e virtudes das crianças que nascem na comunidade enquanto ainda estão na barriga de suas mães. Tal fato evidencia

o prestígio e consideração que as pessoas idosas da comunidade recebem, assim como a grande influência deles na comunidade. Ou seja, o Brasil ainda tem muito o que aprender sobre idosos com seus povos originários.

BASTIDORES Ao escolher este tema para a reportagem, esperava encontrar histórias interessantes, até então desconhecidas por mim, e que ajudassem a ilustrar como alguns dos povos originários do Brasil tratam as pessoas idosas de suas comunidades. Tinha certeza de que o processo de apuração não seria muito fácil, já que o próprio grupo alvo da reportagem é constituído por um número pequeno de pessoas em comparação a todos os idosos do país. Soma-se a isso o fato de que a maioria das comunidades indígenas se localiza em zonas rurais, de difícil comunicação e acesso ainda pior. Desta forma, o relato de Augusto, da aldeia Anhetenguá, é muito importante para esta reportagem, pois foi a comunidade dele que pudemos visitar para conversar presencialmente. Além disso, uma dificuldade não esperada, mas que acabou por se mostrar considerável, foi a busca por equilibrar a apuração da reportagem com os trabalhos demandados por outras disciplinas e pelo estágio. De qualquer forma, gostei do resultado final, pois entendo que contei histórias relevantes e pude trazer um ponto de vista comumente deixado de lado sobre as pessoas idosas, relatando hábitos e visões que podem ajudar a entender melhor as experiências de vida de um grupo de pessoas que é tão pouco conhecido ou mesmo pesquisado. SEXTANTE Outubro de 2022

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COMPORTAMENTO

Renato Petersen, 87 anos, e seu filho, também chamado Renato, colecionam miniaturas de trens

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PAIXÕES HEREDITÁRIAS DUAS HISTÓRIAS, DOIS HOBBIES. EM COMUM, INTERESSES COMPARTILHADOS ENTRE PAIS E FILHOS Texto: Arthur Mezacasa a.i.rthurmezacasa@gmail.com Fotos: Mariana Alves mbaptistalves@gmail.com

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Os Petersen montaram juntos uma maquete de ferrovia que ocupa todo o segundo andar da casa da família

Em uma casa discreta, escondida entre árvores e grandes condomínios no bairro Petrópolis, em Porto Alegre, se escondem montanhas, castelos, igrejas e galpões industriais. Esse cenário ocupa as salas da antiga residência sobre um tablado com vários metros de pequenos trilhos de trens em miniatura. Tudo ali é em miniatura, aliás. Os maiores elementos não passam de um metro. Esse mundo faz parte da vasta maquete mantida por Renato Petersen, de 87 anos, e seu filho, também chamado Renato Petersen, de 58.

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Os Renatos, além do nome, dividem há 50 anos a paixão pelos ferromodelos. A expressão vem do ferromodelismo, que é o hobby de construir réplicas de veículos, construções e paisagens do mundo real em miniatura. A prática também envolve pesquisa histórica e artística para que os cenários fiquem fiéis aos elementos originais. Além de aproximar os dois, dividir essa paixão com o filho fez bem para a saúde do Renato pai, que é professor aposentado. O compartilhamento de atividades entre idosos e outros mem-

bros da família é fator decisivo para o bem-estar na velhice, como mostra um estudo publicado em 2019 na revista científica Universo Psi. A pesquisa, que revisou resultados de outros 55 estudos, mostrou que o convívio dos idosos com pessoas próximas é tão importante para a manutenção da boa saúde após os 60 anos quanto ter uma alimentação saudável ou fazer atividades físicas. A maquete atual dos Petersen, já bastante detalhada – mas sempre em aprimoramento – é a quinta a ser montada pela dupla, após outras menos


Telmo Wollmann, 64 anos, e seu filho Ricardo compartilham da paixão por carros antigos

complexas. Para abrigar a instalação, a casa foi toda adaptada. A família de Renato filho vive no primeiro andar, enquanto o segundo é todo dedicado ao ferromodelismo. O local acabou sendo transformado em espaço de convívio para modelistas de Porto Alegre e Região Metropolitana. Renato filho conta que criou uma rede de contatos com vários praticantes do hobby ao longo dos anos. Alguns possuem trens, mas não têm um bom espaço de trilhos. Outros não possuem nem os veículos, mas têm interesse pelo tema. Há também aqueles que possuem trens e trilhos, mas gostam de variar o cenário. “O pessoal vem aqui no início da tarde e fica brincando por horas. Eles só vão embora quando são praticamente expulsos”, conta Renato. “Se tiver cerveja e pão de queijo, eles ficam por aí.” Se em cima dos tablados da maquete as miniaturas encantam, os bastidores são um pouco mais caóticos. Fora do campo de visão de quem visita o local, vários decodificadores e muitos metros de fios mantêm o pequeno mundo em funcionamento. “Tudo aqui é controlado por esse computador”, mostra Renato filho, apontando para uma grande TV suspensa na parede que usa como monitor. Ele trabalha no setor de

“ÀS VEZES, A GENTE DISCUTE, UM ACHA MELHOR COLOCAR UM ELEMENTO DA MAQUETE AQUI, O OUTRO ACHA MELHOR COLOCAR ALI, MAS ISSO MOSTRA QUE NÓS ESTAMOS TRABALHANDO JUNTOS” Ricardo Petersen praticante de ferromodelismo com o pai

tecnologia da informação e aos poucos vai automatizando todas as locomotivas que possui para controlá-las pelo computador. A ideia é tornar a operação mais intuitiva, principalmente para o pai, que às vezes se perdia com os muitos controles manuais das maquetes antigas. A utilização de ferramentas tecnológicas é outro ponto que o estudo de Forner e Alves ressalta como positivo para um envelhecimento ativo. Segundo a pesquisa, a inclusão tecnológica favorece o convívio com outras pessoas de diferentes idades, melhorando a autoestima da pessoa mais velha e diminuindo o isolamento social. De acordo com a

pesquisa TIC Domicílios 2020, 50% das pessoas idosas utilizam a internet no país. O levantamento foi realizado entre 2020 e 2021 pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic. br), órgão ligado ao Comitê Gestor da Internet do Brasil (CGI.br) e ao setor de Comunicação e Informação da Unesco. O professor aposentado relata, porém, que o acesso não é tão simples. “Aquele controle que meu filho instalou tu não precisa mais do que dois neurônios para operar, mas eu prefiro mexer só quando ele está presente”, diz. O filho justifica: “A operação em si fica mais fácil, mas ligar o computador, iniciar o software, isso é mais complicado para uma pessoa mais velha”. Sem a presença do pai, porém, Renato explica que o idoso gosta de se manter antenado nas últimas novidades tecnológicas. Afastado da parte técnica, Renato pai hoje cuida da parte visual da maquete. Na entrada da casa, um carrinho com material de pintura evidencia o trabalho necessário para deixar o cenário nas condições ideais. Muitas vezes são usadas técnicas para envelhecer a aparência dos veículos e prédios. As miniaturas são compradas principalmente na Europa e vêm em SEXTANTE Outubro de 2022

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Ricardo, então criança, acompanhava o pai na oficina durante a restauração da caminhonete modelo 1962

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pedaços que precisam ser montados. Dependendo da complexidade da estrutura, a montagem pode levar mais de um dia. Eles relatam que, no processo, às vezes surgem debates. “Às vezes, a gente discute, um acha melhor colocar um elemento da maquete aqui, o outro acha melhor colocar ali, mas isso mostra que nós estamos trabalhando juntos”, conta o filho. Um artigo publicado em 2011 pela Revista Brasileira de Geriatria e Gerontologia, de autoria de Maria Heliana Guedes, Helisamar Guedes e Martha Almeida,da área da saúde, mostra que o desenvolvimento de trabalhos manuais voltados à criação e expressão artística são positivos para a saúde de pessoas idosas. O texto investiga a importância da arteterapia para a manutenção da saúde após os 60 anos e mostra que a realização de hobbies, como o de adaptação das miniaturas feito por Renato, facilita a expressão dos sentimentos, promovendo bem-estar e reconciliação de possíveis conflitos emocionais. O artigo publicado na Universo Psi reforça esse papel. Vários dos estudos investigados mostram que participar de atividades de expressão artística em grupo auxilia na redução da frequência ou intensidade dos sintomas depressivos em idosos, contribuindo para o autoconhecimento e o resgate da autoestima e confiança dos participantes. FERRUGEM NO SANGUE Existem muitas formas para fazer com que idosos se socializem. Telmo Wollmann, de 64 anos, sabe bem disso. Ele é vice-presidente do Veteran Car Club, uma associação de apaixonados por veículos antigos. O clube realiza uma vez por mês o encontro de associados e parceiros para que possam mostrar seus veículos ao público e interagir com outros colecionadores, os chamados antigomobilistas. Normalmente, os encontros são realizados na praça do Shopping Total, no bairro Floresta, em Porto Alegre, onde também fica localizada a sede da instituição. Nesses eventos, Telmo e o filho Ricardo, de 23 anos, expõem suas máquinas. O veículo do pai, uma

“ACHO QUE SOU CULPADO POR ELE TER A FERRUGEM NO SANGUE” Telmo Wollmann praticante de antigomobilismo com o filho

caminhonete Ford F100 de 1962, foi herdado de outro Telmo – que é avô de Ricardo e gênese da paixão por veículos na família. Na frente da carroceria verde e branca, aparece a placa na cor preta, motivo de orgulho para o colecionador, pois indica que o carro possui ao menos 80% das peças originais. O neto leva para os encontros seu Ford Corcel GT 1972. O esportivo, nas cores vermelha e preta, sugere um perfil bem diferente do veículo do pai, que originalmente servia para transportar cargas e pessoas no interior de Cachoeira do Sul, onde o falecido avô residia. A atmosfera dos eventos do Veteran é a de reunião de velhos amigos. Os proprietários aproveitam para circular e conversar com outros, bem como para apresentar aos visitantes suas relíquias. No dia da entrevista, a banda Bigger Band tocava sucessos dos Rolling Stones, enquanto várias pessoas de jaqueta de couro e bandana na cabeça aproveitavam as bebidas vendidas em um food truck. O ambiente tinha aparência “rebelde”, mas era bastante familiar. Muitas crianças olhavam com curiosidade para os veículos bem polidos.

No artigo de 2011, no qual os especialistas tratam sobre os trabalhos manuais na velhice, explica que a família possui um papel fundamental na promoção da saúde psicológica em pessoas acima de 60 anos. O estímulo à prática dos hobbies por parte dos idosos é tão importante como a própria realização da atividade para a cognição e a memória. No caso de Telmo e Ricardo, o estímulo ocorreu pela contramão. Foi durante o processo de restauração da caminhonete, realizado a partir de 2005, e que incluiu o processo de limpeza, recuperação de algumas peças e compra de outras – muitas importadas dos Estados Unidos – que o filho tomou gosto pelo interesse do pai. Telmo conta que Ricardo, quando era criança, adorava brincar na carroceria enquanto ela estava na oficina. “Eu tenho fotos de quando ele era pequeno, dentro da cabine sem vidro, sem nada”, diz Telmo. Ricardo diz que, mesmo sem o histórico da família, talvez gostasse de ter um carro antigo, mas certamente a influência do pai foi importante. Ele lembra que poderia ter comprado um veículo novo para andar, talvez até um com mais segurança. “Mas comprei um velho”, ressalta. A experiência dos dois pode não ter seguido o caminho indicado pela ciência, mas Telmo e Ricardo são categóricos em afirmar o quanto o trabalho nos carros os aproximou. “Acho que sou culpado por ele ter a ferrugem no sangue”, diz o pai.

BASTIDORES A experiência de poder contar a história de hobbies transmitidos em família foi muito enriquecedora para mim. Na minha família, há exemplos dessa ligação através das gerações de pai e filho ou avó e neta, e isso me faz perceber como o vínculo é importante para que se mantenha a boa saúde mental. O que eu percebi de mais legal nas histórias das minhas fontes é que tudo aconteceu muito naturalmente. Os mais jovens não foram forçados a praticarem uma atividade, apenas demonstraram interesse e acabaram sendo incentivados pelos pais. Tanto os Wollmann quanto os Petersen relataram que na prática de seus hobbies às vezes surgem discussões. Mas também dizem que elas são fruto da convivência e da cumplicidade, do vínculo entre eles. SEXTANTE Outubro de 2022

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MORADIA

Leda Courtes (à esquerda) e Terezinha Dieguez (à direita) são moradoras do Vintage Senior Residence

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O REFÚGIO RESIDENCIAL EMPRESAS E PODER PÚBLICO COMEÇAM A INVESTIR EM RESIDÊNCIAS PARA IDOSOS QUE BUSCAM VIVER DE FORMA INDEPENDENTE Texto e fotos: Pedro Alt silvaaltpedro@gmail.com

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Na recepção do Vintage Senior Residence, condomínio localizado no bairro Petrópolis, em Porto Alegre, uma senhora impecavelmente bem-vestida aguarda sorridente. “Estou esperando minha amiga”, diz Leda Courtes, de 87 anos. Apesar de ser porto-alegrense, ela passou 66 anos em Cruz Alta, no noroeste do Rio Grande do Sul. Formada em Letras, trabalhou toda a vida profissional no setor administrativo de uma escola no município do interior gaúcho. Leda se mudou para Cruz Alta devido ao trabalho do marido, formado em Direito e Economia e que lecionava em uma universidade da região. “Desculpem o atraso, ainda está um pouco difícil”, diz Terezinha Dieguez, de 83 anos, ao sair do elevador do edifício construído pela Cyrela Goldsztein e administrado pela Auxiliadora Predial. Terezinha retirou uma máscara de pano com a insígnia de Nossa Senhora Aparecida para contar que era professora de Artes em um colégio particular da capital gaúcha. Seu marido, Orlei, também professor, falecera oito dias antes após sofrer paradas cardiorrespiratórias decorrentes do Parkinson. Apesar de o empreendimento ter sido pensado para a população acima de 60 anos, a presença majoritária de octogenários, em específico, surpreendeu Luiz Paludo, diretor de incorporações da Cyrela Goldsztein, responsável pelo Vintage. O investimento, aberto em novembro do ano passado, resultou de uma prospecção de mercado feita pela incorporadora. “Notamos que duas capitais brasileiras apresentavam grande potencial nesse nicho: Rio de Janeiro e Porto Alegre”, comenta o diretor. Segundo a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a proporção de idosos no Brasil subiu de 11,3% em 2012 para 14,7% em 2021. No Rio Grande do Sul, 18,2% da população tem mais de 60 anos e, em 2050, serão 32,3%, segundo projeção do IBGE. Em Porto Alegre, de acordo com a Pnad, 316 mil pessoas são idosas, ou 20,8% da população.

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“EU MESMA COMPREI. SOU BEM INDEPENDENTE, ACHO QUE FILHO NÃO TEM QUE TER OBRIGAÇÃO DE NADA” Terezinha Dieguez professora aposentada

O Vintage é o primeiro empreendimento do Rio Grande do Sul na categoria senior residence, segundo a Cyrela Goldsztein. Há piscina coberta e aquecida com aparatos de segurança, academia planejada, estúdio para alongamentos, espaço de cinema e quintal orgânico. Além disso, apresenta garagem, salão de festas e segurança privada. NOVO CONDOMÍNIO PARA IDOSOS Em Porto Alegre, outro empreendimento do tipo está em construção: o Magno Sênior Premier Living, no bairro Três Figueiras. Segundo a ABF, incorporadora responsável pelo projeto, o condomínio contará com apartamentos entre 21 e 32 metros quadrados — o empreendimento da Cyrela Goldsztein tem apartamentos de 42 ou 85 metros quadrados. “Como empresa, temos de prospectar o mercado imobiliário e esse, sem dúvida, é um nicho em crescimento”, comenta Luiz. A ABF já anunciou a construção de outro senior residence no bairro Moinhos de Vento. Leda foi uma das primeiras moradoras a se mudar para o Vintage, em novembro de 2021. “Não posso nem comentar quanto custou o apartamento, foi minha família quem comprou”, diz a professora aposentada, que tem dois filhos. Leda conta que a intenção inicial, até ser apresentada ao Vintage, era se mudar para Porto Alegre e viver em uma casa geriátrica. Após a morte do marido, com quem vivia, ela se mudou sozinha para um apartamento em Cruz Alta, já que não queria ficar na antiga residência pelas lembranças do casamento. Terezinha, que vivia no bairro Menino Deus, se orgulha de ter pagado pelo apartamento em que mora. “Eu

mesma comprei. Sou bem independente, acho que filho não tem que ter obrigação de nada”, comenta a porto-alegrense, que tem três filhos e morava só com o marido no antigo apartamento. “Atualmente, a presença de um idoso é um fator que aumenta o poder aquisitivo da família. Décadas atrás, mal havia aposentadoria”, comenta o médico Angelo Bos, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e especialista em Gerontologia. É claro que existem famílias com realidades muito diversas tanto no Brasil quanto em Porto Alegre. Muitos idosos não teriam condições de morar em um empreendimento como o Vintage, que tem um condomínio mensal de cerca de R$ 1,5 mil, de acordo com a Cyrela Goldsztein. Uma das características do Vintage mais elogiadas pelas moradoras é o atendimento feito pela empresa especializada em home care, isto é, de assistência médica a domicílio. No condomínio, enfermeira e técnica de enfermagem estão presentes 24 horas por dia. A empresa de home care também atua no gerenciamento de atividades de lazer e confraternizações, como recitais de música e bingos. “Aqui o bingo é levado a sério, tem até prêmio”, brinca Terezinha. Angelo não se surpreende com a independência dos idosos do Vintage. “Meus pacientes diziam: ‘Doutor, estou me preparando para o [cemitério] João XXIII’. Agora, as pessoas com 60 e poucos anos pensam no que farão pela frente”, comenta o professor. Sentadas de braços no sofá, Terezinha e Leda, que se conheceram no condomínio, riem contando histórias. “É como a gente sempre diz, a cabeça é de 30, mas o corpo é de 80”, brinca Terezinha. As moradoras fazem questão de mostrar o espaço dedicado ao atendimento médico diário no condomínio. “Não sei exatamente o porquê de chamarem a terceira idade de ‘melhor idade’. Todo dia, acordo com uma dorzinha”, comenta Leda, aos risos. A importância do atendimento especializado é reforçada pela médica geriatra Estefânia Mocelin, que atua no Hospital Mãe de Deus. “Quando


FOTO: CYRELA GOLDSZTEIN/DIVULGAÇÃO

Entre outras facilidades, o Vintage conta com academia moldada especialmente para a população idosa

O condomínio também conta com horta comunitária, com diversos temperos e plantas cuidadas pelos moradores SEXTANTE Outubro de 2022

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Leda e Terezinha contam com a ajuda profissional de Mariana, enfermeira (ao centro), e Érica, técnica de enfermagem (à direita)

o idoso vive com semelhantes, há uma estrutura preparada apenas para eles. Isso é importante porque algumas pessoas de 80 anos são independentes, mas outras, de 60, podem ser superdependentes”, analisa a médica. Ela destaca que são fundamentais, em moradias para idosos, botões de pânico (para avisar autoridades em emergência) e pisos antiderrapantes, todos presentes no Vintage. Quando adquiriu o imóvel, Terezinha buscou um apartamento em andar próximo ao posto de atendimento home care, no térreo, por conta da saúde do marido. Orlei, acamado há quatro anos, foi atendido tão logo sofreu paradas cardiorrespiratórias. “Me disseram: ‘Terezinha, tu precisas ficar perto da enfermagem por conta do teu marido’”, relata a professora aposentada, que mora no terceiro piso e se mudou em janeiro ao condomínio.

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Mas especialistas fazem ressalvas sobre empreendimentos focados em idosos, como a limitação do convívio com outras gerações e o possível isolamento quanto a mudanças da sociedade. “Podem faltar estímulos. Com a tecnologia, por exemplo: a convivência com jovens pode tirar idosos da zona de conforto”, exemplifica Mocelin. “A gente prefere conviver com outras gerações, claro”, diz Leda, mas ela diz que essa lacuna é contemplada pela constante visita de familiares e pelo convívio com funcionários do condomínio. “Somos professoras, a gente gosta dessa troca”, acrescenta Terezinha. GOVERNOS INVESTEM EM CONDOMÍNIOS O poder público de outros Estados vem investindo em condomínios voltados para idosos, o que não acontece no Rio Grande do Sul. Na cidade de São Paulo, o projeto Vila dos Idosos foi criado em 2007 e tem 145 apartamentos. O morador paga 10% de seu rendimento e condomínio simbólico de

“PODEM FALTAR ESTÍMULOS. NUMA TROCA INTERGERACIONAL ISSO PODE ACONTECER DE FORMA MELHOR. COM A TECNOLOGIA, POR EXEMPLO: A CONVIVÊNCIA COM JOVENS PODE TIRAR OS IDOSOS DA ZONA DE CONFORTO” Estefânia Mocelin médica geriatra

R$ 35 mensais. O idoso deve se inscrever na Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo (Cohab). Já na Paraíba, o projeto Cidade Madura foi inaugurado em 2014 na capital, João Pessoa, pelo governo estadual. Desde então, o programa foi expandido para outras cinco cidades: Campina Grande, Cajazeiras, Sousa,


FOTO: CYRELA GOLDSZTEIN/DIVULGAÇÃO

Patos e Guarabira. Para terem acesso ao condomínio, os idosos devem ter renda de até cinco salários mínimos. “Em Porto Alegre, mesmo no caso das instituições de longa permanência, moradias para idosos são todas filantrópicas”, diz Angelo, que participa de reuniões do Conselho Municipal do Idoso de Porto Alegre (Comui), órgão que delibera sobre políticas voltadas para idosos. Nas últimas cinco reuniões com atas disponíveis, há referências a casas geriátricas em processo de liberação, mas nenhuma alusão a projetos públicos. No caso do Guia de Orientação para Gestão da Política da População Idosa, elaborado pelo Conselho Estadual da Pessoa Idosa, não há qualquer menção ao tema da habitação. Leda e Terezinha brincam que são as mais assíduas frequentadoras da piscina térmica do Vintage, o local predileto de ambas no edifício. “Há pessoas aqui que a gente nem conhece, está chegando muita gente”, diz Leda. “Mas olha, se quiser, a gente coloca um maiô, viu? Nós também temos nossas roupinhas especiais”, brinca Terezinha.

No apartamento de Leda, no sétimo andar, a iluminação natural, proporcionada por duas amplas janelas voltadas a Sul e Oeste, impressiona. Fixado na geladeira, um esquema detalha horários de todas as atividades realizadas pela moradora ao longo da semana. “É muito bom morar aqui, só tem uma questão da lavanderia a resolver”, comenta a

Em seus fundos, o condomínio tem espaço para exercícios ao ar livre

idosa sobre a dificuldade em lavar roupas devido ao tamanho reduzido do apartamento. A Cyrela Goldsztein esclareceu que instalará um serviço de lavanderia no condomínio.

BASTIDORES Foi uma reportagem gostosa de se construir, a partir da entrevista com a Leda e a Terezinha. Apesar do luto de Terezinha, compreensível por conta da morte recente do marido, ela agradeceu pela oportunidade de falar de outros assuntos e de tirar o luto da mente, ao menos por um tempo. O acesso às fontes da reportagem foi tranquilo. Tanto o professor Angelo quanto a doutora Estefânia foram solícitos, sem falar da assessoria da Cyrela Goldsztein, transparente e receptiva. No caso dos dados, o IBGE é estruturado no sentido de acesso às informações utilizadas. A maior dificuldade que tive durante o processo de construção da reportagem foi conseguir tempo para visitar o empreendimento e cruzar dados e informações. As demandas da vida profissional e estudantil, no meu caso, parecem pesar muito mais nesse período pandêmico, o que torna tudo muito mais trabalhoso do que antigamente.

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TRABALHO

Texto: Jovana Dullius jovanadullius@gmail.com Fotos: Jovana Dullius e Júlia Ozorio juliaozoriocontato@gmail.com

EM ÁREAS PREDOMINANTEMENTE MASCULINAS, ELKA HASSMANN E NILVA BELLENZIER ABRIRAM CAMINHOS AO CONSTRUIR NEGÓCIOS NOS RAMOS METALÚRGICO E DE PNEUS

NO COMANDO DEPOIS DOS 60 Elka Hassmann fundou uma metalúrgica no Vale do Taquari e trabalhou na empresa até os 80 anos

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FOTO: JOVANA DULLIUS

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Há quem conte os anos para que chegue o momento da aposentadoria. Há os que se aposentam e, depois, desejam voltar à correria da vida de trabalho. E se algumas pessoas sabem exatamente o dia e a hora em que estarão seguras para deixar o trabalho, há também os que já podem parar, mas jamais pensaram em não seguir trabalhando. Esses são os casos das empresárias gaúchas Elka Hassmann e Nilva Bellenzier. MULHER DE FIBRA Elka tem 94 anos e nunca se desligou da empresa que fundou com o marido em Imigrante, cidade a cerca de 130 quilômetros de Porto Alegre, no Vale do Taquari. Eles criaram a Metalúrgica Hassmann em 1953, quando ela tinha apenas 26 anos. Até os 80 anos, Elka trabalhava diariamente na empresa. Por trás de uma vida tranquila, Elka carrega uma história de luta. Saiu de casa com apenas 12 anos em

busca de uma vida melhor. Tinha que trabalhar para conseguir estudar e se tornou professora. Mudou-se para São Paulo e lá conheceu o marido, com quem voltaria alguns anos depois para Imigrante a fim de começar o que não era nem um sonho para ela. Quando chegaram ao Vale do Taquari, as dificuldades fizeram Elka repensar a escolha de voltar para sua cidade. ”Eu gostava de lecionar, gostava de lidar com pessoas e depois fui lidar só com máquinas. Acho que durante uns oito anos eu molhava o travesseiro à noite chorando. Mas quando uma coisa tem recompensa, a gente agradece”, conta. Assim, foi se criando a “mulher de fibra”, como os conhecidos a chamam. Na década de 1960, uma mulher estar à frente de uma empresa não era comum e nem aceito. Normalmente, elas trabalhavam dentro de casa ou ajudando na agricultura.

“O PRECONCEITO CONTRA A MULHER ERA MUITO GRANDE. EU GOSTAVA DE FUMAR E GOSTAVA DE USAR CALÇA COMPRIDA, E ISSO UMA MULHER SÓ PODERIA FAZER DENTRO DE CASA. MAS EU ME REVOLTAVA E FAZIA IGUAL” Elka Hassmann empresária

Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2022, mostram que, no estado de São Paulo, as mulheres representam 46% da força de trabalho. No Brasil, o número é de 44%. A primeira pesquisa realizada pelo IBGE

e nunca se afastou

totalmente da empresa Estefânia Mocelin,

médica geriatra

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FOTO: JOVANA DULLIUS

“PODEM FALTAR ESTÍMULOS. NUMA TROCA INTERGERACIONAL ISSO PODE ACONTECER DE FORMA MELHOR. COM A TECNOLOGIA, POR EXEMPLO: A CONVIVÊNCIA COM JOVENS PODE TIRAR OS IDOSOS DA Aos ZONA 94 anos,DE Elka ainda assina admissões, CONFORTO” demissões, lê relatórios


FOTO: JÚLIA OZORIO

Hoje, Nilva atua como diretora da Bellenzier Pneus

foi em 1967, quando as mulheres representavam 28% da força de trabalho. “O preconceito contra a mulher era muito grande. Eu gostava de fumar e de usar calça comprida, e isso uma mulher só poderia fazer dentro de casa. Mas eu me revoltava e fazia igual”, conta. Elka, desde o início da empresa, tomava as decisões em conjunto com o marido: participava de reuniões em que só havia homens e trabalhava fazendo o que não era permitido para uma mulher na época. No ramo metalúrgico, o trabalho era pesado, mas ela fazia de tudo. “Eu trabalhei em máquinas, trabalhei em adornos, com furadeiras, eu pintava janelas”, lembra. Mesmo diante dos desafios, a realização profissional e o gosto pelo trabalho seguiram por sua vida inteira. Com o tempo, já viúva, entendeu que não tinha mais as habilidades de quando era jovem, então foi dividindo a gestão da empresa com os dois filhos. Aos 80 anos, passou a não fazer mais o trabalho pesado, mas continuou na liderança, tomando decisões e pensando no futuro da empresa. Até hoje, praticamente todos os dias, Elka vai até a empresa, assina demissões, admissões, lê relatórios e nunca se afastou totalmente do local. De acordo com a psicóloga do trabalho Desiree Bianchessi, que atua no

Hospital de Clínicas de Porto Alegre, é normal que pessoas que fundaram a própria empresa tenham essa relação com o que fazem, já que acompanharam de perto o crescimento do empreendimento ao longo da vida. “O trabalho nos constitui como sujeitos sociais. E isso é fundamental para a gente entender como essas pessoas se mantêm e gostam do trabalho”,explica. Se para Elka continuar trabalhando é uma opção, para muitos idosos é o único caminho possível. Com a crise econômica pela qual o Brasil passa e por decisões políticas em relação à aposentadoria, é cada vez mais comum as pessoas serem obrigadas a trabalhar praticamente até o fim da vida. “Existem várias pessoas que são assalariadas e só com a aposentadoria não conseguem dar conta das despesas da casa, por isso seguem trabalhando”, destaca a psicóloga. No Brasil, dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) indicam que 18,5% da população com 60 anos ou mais seguem trabalhando. No Rio Grande do Sul, o número é de 22,4%. “Muitas vezes elas já poderiam estar aposentadas, mas são provedoras dos filhos e normalmente sustentam uma família ampliada. É uma situação social mais precária, que não dá o direito de escolha”, explica.

É comum que idosos não queiram ficar sem nenhuma atividade, mas Desiree diz que isso não poderia ser uma imposição. “Em geral, depois que se aposentam, as pessoas querem ter uma ocupação, mas isso não pode ser uma regra. Se a pessoa acha que precisa ter alguma ocupação depois de aposentada, tem que ser do desejo dela”, explica Desiree. NO RAMO DE PNEUS Distante de Imigrante, Nilva Bellenzier é outro exemplo de empreendedora que não abre mão de liderar sua empresa. Ela está à frente das 17 lojas da Pneus Bellenzier aos 67 anos. Nilva, o irmão e o pai abriram a empresa em 1973 com o objetivo de mudar de vida. O empreendimento começou pequeno, em Frederico Westphalen, cidade a 430 quilômetros de Porto Alegre, no noroeste do estado. No início, a família tinha que fazer tudo, sem nenhum funcionário. Com o tempo, a expansão da empresa fez com que conseguissem contratar mais pessoas. Hoje, Nilva atua como diretora. Ela é aposentada, mas segue trabalhando. A vida é mais tranquila do que quando começou, e, quando sentir que é a hora, ela pretende se afastar da empresa. “Nós já estamos pensando em uma transição. Acho que vai chegar um momento que SEXTANTE Outubro de 2022

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FOTO: JÚLIA OZORIO

Nilva Bellenzier está à frente das 17 lojas da Bellenzier Pneus aos 67 anos

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FOTO: JÚLIA OZORIO

“ACHO QUE VAI CHEGAR UM MOMENTO QUE VOU FICAR SÓ NO CONSELHO, PARTICIPANDO DE REUNIÕES UMA VEZ POR MÊS” Nilva Bellenzier empresária

vou ficar só no conselho, participando de reuniões uma vez por mês”, conta. Nilva é casada, tem dois filhos, e sente que o trabalho lhe deixou muito mais experiente do que quando começou, embora entenda que já não consiga mais se atualizar na mesma velocidade de anos atrás. “A gente não tem mais essa disposição para ficar se aprimorando, buscando novos conhecimentos”, fala. A psicóloga Desiree explica que é normal que, com o tempo, indivíduos percam algumas habilidades. “Pensando em pessoas que tenham um envelhecimento saudável e não sofram de doenças crônicas, a capacidade mental e psicomotora sofre modificações em razão da idade”, explica. Mas a experiência adquirida é um ganho, e o idoso pode passar a ter novos interesses. LIÇÕES DO TRABALHO Há quem pergunte qual o segredo para a longevidade, mas a resposta não está em uma simples receita. Praticar atividades físicas e planejar a aposentadoria pode significar um conforto maior na hora de deixar o emprego. “Sair desse lugar de trabalhar, dessa rotina de levantar todos os dias, se arrumar para trabalhar e ficar horas no trabalho é como um luto. Então, é importante planejar essa saída”, explica Desiree. Além do planejamento, buscar uma atividade que se gosta é um caminho para a satisfação pessoal. “É importante pensar que quem trabalha muitos anos em uma empresa acaba deixando seus desejos de lado e entra em uma rotina de cumprir coisas”, explica a psicóloga. Depois de anos de muito trabalho à frente da metalúrgica, Elka abriu espaço

para aproveitar, aos 94 anos, os frutos colhidos em uma vida inteira. Hoje ela viaja, gosta de ler e escrever e, na sua condição social, tem o privilégio de escolher o que a faça se sentir bem. Enquanto Nilva segue na empresa, alia os seus desejos pessoais com o trabalho. Gosta de fazer pilates, de ficar

com as netas e pretende viajar com o marido pelos próximos anos. “Eu acredito que pelo menos até os 85 anos a gente estará em plenas condições de viajar sozinhos e aproveitar bastante”, fala. Elka e Nilva conquistaram a velhice que todos os idosos brasileiros deveriam ter direito.

BASTIDORES Fazer jornalismo não é fácil. Eu estava decidida que gostaria de falar sobre mulheres acima dos 60 anos que lideram empresas e seguem trabalhando. Mas encontrar essas personagens foi difícil. Acionei contatos, publiquei nas minhas redes sociais, até que, quando estava quase desistindo, recebi retornos. Foi um desafio encontrar as fontes e, quando encontrei, conheci duas histórias de vida diferentes. Por isso, precisei encontrar uma forma de costurar bem o texto para que a narrativa fizesse sentido ao leitor. Achei importante a fala da psicóloga para auxiliar nesse trabalho. A realidade sobre o fazer jornalístico é que parece que o tempo é sempre curto. Por isso, sempre devemos ter um plano B e até um plano C. Precisamos ter em mente que nunca o que esperamos da reportagem sairá exatamente como havíamos planejado. Além disso, fazer essa reportagem me fez olhar para o envelhecimento de um jeito diferente. Quando entrevistei Dona Elka, ela deixou claro o que a minha geração ainda não entendeu: temos tempo. A vida acontece, devemos fazer o que podemos da melhor forma possível todos os dias e, depois, precisamos esperar. “Você já não esperou nove meses para nascer, menina?”, ela me disse. A realidade é que eu encontrei histórias muito diferentes do que pensei no início. Hoje, nenhuma das entrevistadas depende mais do trabalho para garantir o seu sustento. Mas a empresa foi o que as fez chegar ao patamar em que estão. Mesmo que as duas vivam os privilégios de estarem à frente de grandes empresas, é importante olhar para cada degrau que subiram ao longo da vida para chegar onde estão. SEXTANTE Outubro de 2022

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SAÚDE

QUANDO OS OLHOS REENCONTRAM O ESPELHO COM O AVANÇO DA MEDICINA E A MAIOR LIBERDADE DAS MULHERES, IDOSAS COM CONDIÇÕES FINANCEIRAS RECORREM A PROCEDIMENTOS ESTÉTICOS PARA FREAR EFEITOS DO ENVELHECIMENTO Texto e fotos: Maria Fernanda Chaves jornalistamariafernanda@gmail.com

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Anne marca com um lápis os pontos onde fará o corte com o bisturi no rosto de Rosa

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“Quero ficar 15 anos mais jovem”, diz Rosa Maria Kunz, de 66 anos, deitada na maca do consultório. Não é sua primeira intervenção estética: a aposentada operou varizes, colocou silicone, fez redução de estômago, tirou o excesso de gordura da barriga e colocou implantes dentários. “Também teve [procedimento para] as orelhas, né, Rosa?”, acrescenta a médica dermatologista e cirurgiã Anne González. Para rejuvenescer a aparência, Rosa fará lifting facial e preenchimento com ácido hialurônico. O lifting facial consiste em cortes com bisturi em pontos das laterais do rosto, onde a médica insere um fio e estica a face. Já a aplicação do ácido, com seringa, remove linhas de expressão do rosto. Ao fim do processo, Rosa espera se ver diferente no espelho. Dados de 2020 da Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética (ISAPS) mostram que, entre procedimentos não cirúrgicos, a aplicação da toxina botulínica é a mais popular entre idosos: quase 1,4 milhão de intervenções do tipo foram realizadas no mundo em pessoas de 51 a 64 anos e 209 mil entre pessoas acima de 65 anos. A substância paralisa a musculatura do rosto onde é aplicada. Os dados abarcam o contexto de isolamento social daquele ano e são uma estimativa a partir da consulta com um grupo de cirurgiões associados à entidade. Entre pessoas de 51 a 65 anos, foram quase 1,5 milhão de procedimentos em 2018 e 1,6 milhão em 2019. Para pessoas acima dos 65 anos, esse tipo de intervenção estética também cresceu, em menor proporção. A face da atual geração idosa não tem nada do estereótipo de “velhinho”. A expectativa de vida da população e as técnicas de rejuvenescimento avançaram junto com a medicina. Novos idosos investem em procedimentos estéticos cirúrgicos e não cirúrgicos para não envelhecer. A médica dermatologista Themis Freitas da Rosa percebe aumento no número de pacientes acima dos 60 anos em busca de intervenções estéticas: do total de pacientes com essas demandas, ao menos 35% são

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“RECEBO PACIENTES COM 90 ANOS PREOCUPADAS COM A ESTÉTICA. HOJE, AS PESSOAS PRESERVAM A VAIDADE” Themis Freitas da Rosa médica dermatologista

idosas. “Recebo pacientes com 90 anos preocupadas com a estética. Hoje, as pessoas preservam a vaidade”, explica. Os procedimentos mais procurados reduzem rugas e melhoram a flacidez. O período pós-menopausa também leva muitas mulheres a procurarem ajuda. “Há uma mudança brusca na pele, em função da queda hormonal. Elas perdem elasticidade e ganham peso”, diz a médica. Ao puxar as maçãs do rosto, a aposentada Ivani Moreno, de 64 anos, aponta onde “deu uma levantada”, mas ela diz não ter problemas de aceitação. Procedimentos estéticos ela fez poucos: antes do último, a aposentada nem sentia necessidade de intervenções porque não se olhava muito no espelho. Quem incentivou foi o filho, que é adepto das intervenções estéticas e levou Ivani até a médica. Ivani queria um resultado natural, sem excessos, apenas que rejuvenescesse “uma ou duas décadas”. Após o procedimento, sentiu-se mais jovem: “As pessoas perguntavam o que eu tinha feito, me elogiavam”. Em seguida, colocou extensão de cílios, passou a frequentar mais a esteticista, começou a dar mais atenção para o cabelo. Passou a se olhar mais no espelho. Segundo Anne, a maioria das pacientes idosas busca tratamentos estéticos menos invasivos para despertar “o melhor do que já tem”. O objetivo é alcançar resultados sutis que rejuvenesçam, sem serem aparentes. “Algumas pessoas de mais idade não se arrumam mais porque não veem razão. Depois que fazem o tratamento, resgatam a autoestima, voltam a usar batom, maquiagem, arrumam o cabelo”, conta.

Pesquisa publicada na Revista Brasileira de Cirurgia Plástica em 2018 concluiu que não havia diferença de qualidade de vida e autoestima entre idosas que realizavam procedimentos estéticos e as que não realizavam, mas que havia “altos níveis de satisfação pessoal e na vida social” das idosas submetidas a intervenções. O estudo observou que 60% das idosas operadas realizaram a cirurgia para melhorar a autoimagem e 84% disseram ter atingido o objetivo após o procedimento. O que impera, entre os relatos das idosas, é o benefício próprio (92%) que sentiram depois do procedimento. No que tange às relações, 64% das idosas operadas sentiram uma influência positiva na vida social depois da intervenção estética. Somente 20% delas relataram muita melhora no relacionamento com o parceiro após a cirurgia. Foi com o incentivo do marido que a engenheira agrônoma Shirley da Rosa, de 61 anos, fez uma reposição de seios há mais de duas décadas. Meses depois, o marido faleceu, e ela enfrentou um período difícil que refletiu na aparência. Mais adiante, Shirley fez novos procedimentos. “Queria retomar uma vida normal. Ficar mais bonita, talvez conhecer outra pessoa ou simplesmente ficar de bem comigo”, explica. Desde então, ela fez abdominoplastia para eliminar a pele flácida, botox e preenchimento labial. A Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica diz que estudos da área mostram que a idade não é fator de risco em determinados procedimentos estéticos. Algumas pesquisas concluíram que riscos do lifting facial em pessoas acima de 65 anos não são maiores nem menores do que em pessoas jovens. Mas, quando cirurgias requerem anestesia geral, os riscos aumentam, e a recuperação pode demorar mais tempo do que a duração do resultado. No estudo publicado na revista da entidade, 16% das idosas operadas apresentaram alguma complicação. O problema mais relatado foi a abertura dos pontos cirúrgicos, em 12% dos casos.


Ivani diz que as pessoas não acreditam que ela tem 64 anos

FOTO: PÂMELA RAIMUNDO

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Rosa diz estar muito satisfeita com os resultados imediatos dos procedimentos, mas Anne avisa que o resultado definitivo só aparece em algumas semanas, depois do retoque

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“QUERIA RETOMAR UMA VIDA NORMAL. FICAR MAIS BONITA, TALVEZ CONHECER OUTRA PESSOA OU SIMPLESMENTE FICAR DE BEM COMIGO” Shirley da Rosa engenheira agrônoma

REJUVENESCER CUSTA CARO A condição financeira é central no envelhecimento físico: não disfarçar as rugas nem sempre é uma escolha. O perfil da idosa que procura mudanças estéticas é de uma mulher de classe média alta, resume a médica Anne. O estudo publicado na Revista Brasileira de Cirurgia Plástica mostrou que idosas operadas tinham renda média acima de seis salários mínimos, enquanto que o grupo de não operadas tinha nem três salários mínimos mensais. O grau de escolaridade era desigual: 36% das idosas operadas possuíam Ensino Superior, ante 24% no grupo de não operadas. De acordo com a médica Anne, muitas idosas compram várias intervenções para atingir o resultado desejado — em média, um “pacote” sai por R$ 8 mil, o que pode incluir aplicação de toxina botulínica e preenchimento com ácido hialurônico, entre outros. Para a manutenção, meses depois, pacientes desembolsam cerca de R$ 5 mil. Um único procedimento estético custa de R$ 1 mil a R$ 1,5 mil. O valor pode ser até quatro vezes maior conforme o número de sessões ou de ampolas utilizadas. Parte da população desconhece tais intervenções porque passa longe dessa realidade. Para Ivani, a aparência de uma pessoa depende do meio em que vive. “Sempre trabalhei. Quando era solteira, ia no salão. Quando casei, parei porque não tínhamos condição. Depois que melhorei minha situação financeira, passei a fazer cabelo, unhas

e cuidar da pele”, diz. De origem pobre, Ivani vê diferença na aparência física das mulheres que a antecederam. “Minha avó era toda enrugadinha, mas fazia trabalhos braçais, levava madeira em cima da cabeça para fazer fogo”, conta. Ivani e Shirley destacam a influência do machismo na aparência física feminina. “As mães se dedicavam ao trabalho da casa e não tinham tempo para elas”, conta Ivani. Para Shirley, o atual cuidado estético de idosas reflete uma mudança maior. “Se um relacionamento não dá certo, partimos para outra, o que interfere na saúde. Minha mãe ficou em um casamento infeliz por muito tempo, e isso refletiu no corpo, que é um reflexo do que vivemos”, diz. Ivani e Shirley não acham que exista pressão da sociedade em relação ao envelhecimento físico delas: acreditam que essa é uma pressão que “a própria mulher faz” porque quer estar bonita e dentro dos padrões e dizem que não se sentem pressionadas pelos padrões das

redes sociais. Já Rosa questiona por que a sociedade “enxerga a mulher de 55 anos já como idosa”. Conta que sempre foi vaidosa, mas que percebe o impacto em sua autoimagem do uso das redes sociais. “Estava feliz com os meus dentes, mas achei a clínica na internet e tive vontade de fazer implante”, conta. Como a sociedade praticamente não cultua ícones de beleza acima dos 50 anos, a médica Anne diz ser mais difícil estabelecer padrões estéticos para pessoas mais velhas. “A mulher idosa não quer virar outra pessoa. Ela quer melhorar, continuando a ser ela”, diz. Quadro diferente do que deve viver a geração que hoje tem 20 anos quando chegar aos 60: “Antes se falava em tratamento, hoje virou prevenção. As pessoas mais jovens não querem expressão nenhuma no rosto para não ter rugas. Fica nítido o medo do envelhecimento”, acrescenta a médica. Para essa geração, se olhar no espelho poderá ser um desafio daqui alguns anos.

BASTIDORES Entrevistar uma pessoa é tarefa delicada em pautas corriqueiras, que dirá quando a história humana é parte central. É preciso balancear a objetividade da reportagem com a subjetividade de quem aceita contar a intimidade. O primeiro desafio foi encontrar pessoas idosas dispostas a falar sobre a relação com envelhecimento físico e procedimentos estéticos. Depois, usar de sutileza e sensibilidade para tratar cada pessoa – vidas se abriram para mim. Quando pensei no envelhecimento físico na atualidade, achei que valia a investigação, porque há uma transformação que envolve aumento da expectativa de vida, perspectiva de prolongamento da qualidade de vida dos idosos e libertação de amarras da sociedade. Busquei me desvincular de quaisquer hipóteses antes de ouvir relatos para, só depois das entrevistas, entender contextos do envelhecimento físico com os procedimentos estéticos disponíveis na atualidade. O processo da reportagem me levou a conclusões que eu não tinha de início. Foi uma oportunidade de refletir sobre autoimagem, estima e cuidado das pessoas idosas. Os relatos apontam menos para uma busca pelo rosto sem rugas e mais para uma forma de autocuidado. A discussão também chamou a atenção para a lógica bem diferente dos jovens de hoje – idosos do futuro – que perseguem a perfeição inatingível.

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MÚSICA

O BOM E VELHO ROCK AND ROLL NA VEIA SÉRGIO DIAS SOFRE COM UM PROBLEMA NA COLUNA. KING JIM, APÓS TRANSPLANTE DE FÍGADO, CRIOU A BANDA LOS 3 PLANTADOS. LILIAN KNAPP EXPERIMENTA O CENÁRIO UNDERGROUND. COMO É SER ROQUEIRO DEPOIS DOS 60 Texto: Susi Tesch susisusi4@gmail.com

Sergio Dias, em turnê nos Estados Unidos, não abre mão de subir ao palco

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FOTOS: BETA KLEIN/DIVULGAÇÃO

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FOTO: SUSI TESCH

A banda Rolling Stones surgiu em 1962 e continua fazendo turnês, com 60 anos de estrada. Se o rock, criado na década de 1950, já é um velhinho, o que dizer daqueles que, como Mick Jagger e seus parceiros, continuam nos palcos depois dos 60 anos? São vários shows, ensaios, gravações, que exigem preparo físico e vocal. Mas os artistas que são apaixonados pelo rock parece que não querem largar esse vício, mesmo com todas as dificuldades que a idade impõe. Exemplos não faltam. Inclusive, no Brasil. No artigo Idosos “roqueiros” e juventude eterna: pistas para reflexão, publicado na revista científica Kairòs-Gerontologia, os autores explicam que tanto o rock quanto a velhice são objetos de estereótipos negativos. Isso faz com que a ideia de ser roqueiro pareça inconciliável com a de ser idoso. “Apesar de nascer como um movimento de e para jovens, o rock é hoje menos vinculado a esse critério”, diz o texto, ressaltando que o gênero musical é vivenciado por pessoas de todas as idades. O MUTANTE Para Sérgio Dias, 70 anos, guitarrista e vocalista da banda Os Mutantes, administrar uma carreira entre Estados Unidos, Europa e Brasil é uma recompensa que a vida lhe deu. São 56 anos na estrada. “Sempre falei e compus o que eu acreditava e sentia”, define. Mas hoje Sérgio enfrenta algumas dificuldades que a idade e a pandemia lhe impuseram. Como passou dois anos sentado vendo televisão, está difícil de voltar a fazer caminhadas e exercícios. O artista sofre de um problema em uma vértebra da coluna. “Isso dói demais, principalmente ao me abaixar ou ficar de pé por muito tempo. Mas isso nunca me impediu de fazer algum show”, garante. Realmente, Sérgio não se entrega. Chegou a ter uma infecção generalizada quando fez uma biópsia da próstata. Quase morreu, mas 15 dias depois tocava em Nova York com um cateter de aproximadamente 60 centímetros introduzido numa veia do braço para injetar antibiótico até o coração. Lite-

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ralmente, Sérgio deve ter rock na veia. Somente uma vez cancelou um show, em 2015, no Brasil, mas só porque os médicos o prenderam dentro do hospital. Para ele, o mais difícil tem sido fazer viagens.“Muito cansativas.” Na primeira turnê do retorno dos Mutantes, foram 27 mil quilômetros em uma van, com 30 shows em 32 dias. Sérgio tem orgulho da trajetória que construiu, mesmo que tenha passado por momentos delicados. “Sempre fomos muito criticados. Principalmente quando houve a volta dos Mutantes, com a Zélia Duncan no vocal, em 2006. Inclusive a Rita Lee falou um monte de bobagem”, desabafa. A banda já passou por diversas formações desde seu retorno. Sérgio atende o máximo de fãs que consegue e fica impressionado quando recebe vídeos de crianças de dois anos cantando Ando meio desligado. Mas o que ele acha mais “louco” é que em seus shows a maioria do público é jovem. “O mínimo a se fazer é manter uma banda que seja viva, que lance discos, que dê a cara a tapa. Não adianta voltar para ser uma banda cover de Mutantes.” Mas alguns hábitos de jovens de hoje não são aprovados pelo músico. Um pouco antes da pandemia, Sérgio tinha acabado de tocar na Califórnia, quando uma menina insistiu que ele fumasse um baseado. “Dei um tapa para ser gentil com ela, eu não tava a fim”, conta. Mesmo que as drogas sempre tenham feito parte de sua vida, ele se surpreendeu: “Porra, meu! Eles pingam ácido no baseado”. CELEBRANDO A VIDA Ao longo de 39 anos de estrada com a banda Garotos da Rua, o saxofonista e vocalista gaúcho King Jim, de 65 anos, relata as dificuldades de administrar sua carreira hoje. “Não é fácil”, desabafa. Ele e a banda vivenciaram o ápice da carreira no Rio de Janeiro nos anos 1980, quando o rock explodia no Brasil. Mas o direcionamento da indústria fonográfica para outros gêneros musicais fez com que grupos como os Garotos da Rua deixassem de fazer sucesso.

“MUDEI DE VIDA PARA PODER ESTAR VIVO” King Jim músico

King Jim diz que é comum ouvir falar que o rock acabou, que é música de “velho”. “Se o mambo, o tango, o tchá tchá tchá e o jazz não acabaram, o rock também não vai acabar”, acredita. Ele lembra que o rock provocou mudanças na história da humanidade. “Não é só a música, mas também a postura.” Mas se já é difícil manter essa postura na juventude, para quem já passou dos 60 anos é ainda mais complicado. Principalmente se a saúde não ajuda. King Jim passou por um transplante de fígado em 2013 por conta de uma hepatite C, que demorou a ser descoberta e acabou provocando uma cirrose. Enquanto aguardava um doador de fígado, ficou em estado grave. Chegou a ter encefalopatia, que é a deterioração da função cerebral. “Eu não sabia quem eu era”, conta. Com a ajuda de familiares e da equipe da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, conseguiu suportar a espera mudando de hábitos. “Mudei de vida para poder estar vivo”, resume. Após a cirurgia, o músico, com 56 anos na época, não pôde voltar em seguida para os palcos. Precisou rea-


FOTO: FERNANDA CHEMALE/DIVULGAÇÃO

King Jim viveu o auge da fama com a banda Garotos da Rua nos anos 1980. Hoje, aos 65 anos (à esquerda) segue carreira em Porto Alegre

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FOTO: FERNANDO FLAMBART/DIVULGAÇÃO

Lilian Knapp acredita que o rock mantém a mente sempre jovem

quando ele estava desanimado no hospital. Ela teria dito: “Agora tu vai ficar bem Jimmy. O Bebeto já está bom, e o King Jim fez o transplante, quem sabe vocês não fazem uma banda?”, conta King. Foi assim que surgiu o trio que hoje faz músicas incentivando a doação de órgãos. São transplantados, sexagenários que tocam rock com milonga. Mas King Jim diz que, independente da idade, não é fácil ser roqueiro no Rio Grande do Sul, principalmente por falta de profissionais que agenciem shows.

prender a andar, falar, cantar e tocar. Com o amadurecimento, largou a bebida e as drogas. “Quando tu tem o fígado de uma outra pessoa dentro de ti, ajuda a pensar diferente, parece que tem alguém sussurrando algumas coisas”, explica. Ele sabe que a doadora foi uma mulher e diz ter o máximo respeito por isso. “É uma chance que eu tenho de ficar mais um tempo aqui, ser uma pessoa melhor e poder fazer alguma coisa na minha área.” E King Jim realmente não perdeu essa chance. Junto com os amigos e músicos Jimmy Joe e Bebeto Alves,

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“SER UM INDIVÍDUO ÍNTEGRO TALVEZ SEJA A MAIOR REBELDIA QUE VOCÊ POSSA TER, AINDA MAIS NOS DIAS DE HOJE” Sérgio Dias músico

que também passaram por transplantes quase na mesma época, ele formou a banda Los 3 Plantados. O nome teria sido sugestão da namorada de Jimmy,

DA JOVEM GUARDA AO UNDERGROUND Lilian Knapp iniciou sua carreira de cantora aos 16 anos, formando dupla com Leno. Ela era uma das estrelas da Jovem Guarda, movimento cultural de enorme sucesso nos anos 1960, do qual faziam parte Erasmo e Roberto Carlos. Nos anos 1980, Lilian seguiu carreira solo e, com essa trajetória, passou a ter dois grupos de fãs: um da primeira fase e outro, da segunda, quando gravou o sucesso Sou Rebelde, de Paulo Coelho. Mas hoje, aos 74 anos, é que sua “rebeldia” está mais evidente. Paralelamente à carreira solo, ela faz parte da banda de rock independente Kynna Underground, criada em 2008, ao lado de Luís Carlini, na guitarra, e Kdu Nolla, na bateria. A banda é totalmente diferente de tudo que Lilian já havia feito. Eles gravaram, por exemplo, Um Lugar do Caralho, do músico gaúcho Júpiter Maçã. “O público da Jovem Guarda se chocaria com os palavrões”, diz ela. O álbum da banda, Underground, tem duas faixas autorais e 10 de releituras de bandas do rock gaúcho, entre elas, Miss Lexotan 6mg, também de Júpiter Maçã. “Eu sou Miss Lexotan, me identifiquei perfeitamente com a música em vários momentos.” Em um dos shows da banda em São Paulo, quando divulgavam o disco, Lilian foi surpreendida pelo interesse


FOTO: FERNANDO FLAMBART/DIVULGAÇÃO

“O COMPLICADO DE FICAR JOVEM POR MUITO TEMPO É QUE VOCÊ VAI ENVELHECENDO E O CORPO NÃO ACOMPANHA A SUA CABEÇA”

Lilian formou a banda Kynna com Luis Carlini e Kdu Nolla e ganhou novos fãs

Lilian Knapp cantora

de fãs bem jovens. “A casa era de dois andares, as pessoas passavam pelo nosso andar para comprar cerveja e ficavam ouvindo a gente.” Foi uma experiência nova para a cantora, pois, quando estreou nos palcos na época da Jovem Guarda, ela já era famosa. “Eu não tinha receio de entrar no palco, pois sabia que estavam me esperando”, conta. Com a Kynna, ela se apresenta sem ser conhecida. “Ser aceita nesse meio underground é mais legal ainda”, diz Lilian. A única música antiga de sucesso que tocaram naquela noite foi Pobre Menina, que já virou cult. “Tenho muitos fãs jovens que vieram por causa dos pais”, diz ela. Mesmo com o entusiasmo por ter novos fãs, Lilian conta que foi o público da Jovem Guarda, que envelheceu com ela, que não a abandonou durante os piores momentos da pandemia. “Se não fosse por eles, não sei o que teria sido da minha vida.” Foram praticamente três anos participando só de alguns shows virtuais. Mas ela aproveitou para escrever dois livros e vender CDs e camisetas para seus admiradores. “Passei muito bem esse período graças aos fãs”, reconhece. Lilian diz que o rock mantém seu espírito jovem. “O complicado de ficar jovem por muito tempo é que você vai envelhecendo e o corpo não acompanha a sua cabeça.” Sérgio, King Jim e Lilian mostram que o segredo de fazer rock depois dos 60 é manter a atitude rebelde, mesmo que a definição de rebeldia vá mudando. “Ser um indivíduo íntegro talvez seja a maior rebeldia que você possa ter, ainda mais nos dias de hoje”, define Sérgio.

BASTIDORES A primeira etapa da apuração da reportagem foi agendar as fontes. Primeiro falei com Sérgio Dias, que mora nos Estados Unidos e me respondeu quase que de imediato, concordando com a entrevista. Foi então que comecei a entrar no tema da revista, pois o músico só usa Facebook, nada mais, nem WhatsApp. Tentei mandar para ele um link de videoconferência, mas ele ficou confuso, então me adaptei e fiz uma chamada de vídeo pelo Facebook mesmo. No dia marcado, ele teve que tomar um remédio forte para dor nas costas e não conseguiu dar a entrevista. No outro dia, ele retornou, mas eu não estava disponível. Quando finalmente consegui entrevistá-lo, meu filho de seis anos, Mathias, viu que eu estava conversando com o Sérgio dos Mutantes e enlouqueceu. Queria mostrar seu violão. “Filho vai com esse violão fazer barulho lá no quarto”, eu disse. E o entrevistado rebateu: “Ele não vai fazer barulho, ele vai fazer música”. Meu segundo contato foi com o King Jim, que mora na minha cidade, em Porto Alegre, então marcamos a entrevista em um café num shopping. King foi muito atencioso e, após a entrevista, continuamos conversando sobre música e cultura. Já Lilian Knapp mora no Rio de Janeiro. Eu estava desesperada atrás de uma terceira fonte e queria ter uma mulher na reportagem. Não conseguia encontrar ninguém com mais de 60 anos e que ainda estivesse trabalhando. Foi então que vi, entre meus CDs, o da banda Kynna, e me lembrei da Lilian, que sabia que era uma pessoa incrível e acessível. Com a Lilian, marquei a entrevista numa plataforma de vídeo online. Ela acessou sem problemas e batemos um longo papo. Mas com certeza, tendo essas três fontes com histórias incríveis, meu maior desafio foi cortar 40 mil caracteres dos 50 mil que eu tinha escrito. Com certeza, vou ter material para mais algumas reportagens.

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FOTO: GABRIELLY VEDANA

REVISTA EXPERIMENTAL DO CURSO DE JORNALISMO DA FACULDADE DE BIBLIOTECONOMIA E COMUNICAÇÃO (FABICO) DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL (UFRGS) Disciplina de Jornalismo Impresso Direção da Fabico

Diagramação

Ana Maria Mielniczuk de Moura

Graziele Borguetto

Chefia do Departamento de Comunicação

Impressão

Marcelo Träsel Professora-editora

Thaís Furtado Estagiário-docente e editor

Marcel Hartmann

Orientação e tratamento fotográfico: Flávio Dutra Comissão editorial: Júlia Ozorio, Maria Fernanda Chaves

e Pedro Alt

(mestrando do Programa de Pós-graduação em Comunicação da UFRGS)

Comissão de imagens: Lucas Keske, Mariana Alves e Susi Tesch

Monitora

Comissão de redes sociais: Arthur Mezacasa e Jovana Dullius

Rafaela Pollacchinni

Repórteres: Arthur Mezacasa, Jovana Dullius, Júlia Ozorio, Lucas Keske, Mariana Alves, Maria Fernanda Chaves, Pedro Alt e Susi Tesch

Estagiárias

Duda Romagna, Júlia Diefenbach e Pâmela Maidana

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Gráfica da UFRGS

SEXTANTE Outubro de 2022

Capa e contracapa: fotos de Mariana Alves




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