Sextante 21/2 - Histórias inesquecíveis

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FACULDADE DE BIBLIOTECONOMIA E COMUNICAÇÃO – FABICO/UFRGS | MAIO DE 2022 | EDIÇÃO 58

HISTÓRIAS INESQUECÍVEIS


ARTE: SIMONE RODRIGUES


EDITORIAIS NINGUÉM SOLTOU A MÃO DE NINGUÉM

UM ENCONTRO QUE FICARÁ PARA SEMPRE

É muito difícil que você, que está com esta revista nas mãos, consiga mensurar o quanto ela é importante para nós. Ela representa muito mais do que o retorno das atividades presenciais, ainda de forma tímida, na Universidade. Representa até mais do que o nosso reencontro, mesmo de máscaras, numa manhã de sol. Esta edição da Sextante é o resultado de uma superação coletiva. É difícil dizer o que foi mais triste nos últimos anos. Se foi ver pessoas queridas partirem, ou ficar longe dos amigos, ou, ainda, assistir à lenta destruição do nosso país. Não é fácil dizer também se foi mais desafiador ensinar e aprender durante a pandemia, ou se foi fazer jornalismo a distância. Não existe educação nem jornalismo sem contato, sem troca, sem escuta, sem observação. Tivemos que aprender a fazer tudo isso pelas telas de uma hora para outra. Agora, o novo desafio é reaprender a viver fora das telas. Os repórteres desta edição da Sextante tiveram que chegar novamente perto de suas fontes e ver, em alguns casos, elas se afastarem correndo, sem sequer ouvir o que eles tinham a dizer. Afinal, todo mundo está reaprendendo a viver neste novo mundo, onde precisamos estar sempre avaliando o quanto é possível se aproximar e quando é necessário se afastar. É ainda um momento de incertezas, de insegurança, mas que já possibilita outras experiências para o ensino e para o jornalismo. Esta revista mostra que conseguimos atravessar um período doloroso sem que ninguém soltasse a mão de ninguém. Ela representa nossa força de seguir adiante juntos, desbravando este novo mundo, mesmo contra tudo e contra todos que possam achar que educação e jornalismo são descartáveis. Não são e nunca serão. Então, segura também na nossa mão e segue nas próximas páginas conosco.

A pandemia de Covid-19 nos deixou afastados das ruas e das histórias que elas comportam por dois longos anos. Durante esse período, nós, futuros jornalistas, tivemos que nos adaptar e ouvir nossos entrevistados através das telas e de ligações. Com a Universidade funcionando apenas com atividades remotas, a revista Sextante passou a ser produzida de forma virtual. No entanto, no dia 19 de fevereiro de 2022, conseguimos olhar novamente nos olhos de nossas fontes e ouvir seus relatos presencialmente. Foi a partir dessa volta às ruas, local ao qual os jornalistas pertencem, que esta edição da Sextante nasceu. Foi nesse dia também que nos encontramos, depois de tanto tempo, e novamente fizemos juntos o que amamos: jornalismo. Com a pergunta “qual é a sua história inesquecível?”, desbravamos um dos parques mais populares de Porto Alegre, o Parque Farroupilha, mais conhecido como Redenção, em busca de pessoas que nos contassem qual momento de suas vidas que elas jamais esquecerão. Em meio àqueles que aproveitavam uma manhã de sol para passear, praticar esportes, tomar chimarrão com os amigos, fazer compras, ou, até mesmo, trabalhar na Feira Ecológica do Bom Fim, que ocorre ali todos os sábados, dez histórias nos encontraram. Com os textos e fotografias prontos, foi o momento dos alunos e alunas de Artes Visuais do Instituto de Artes da UFRGS ilustrarem, sobre às fotos, as histórias de cada um dos nossos entrevistados. Nas próximas páginas, contamos esses momentos que serão sempre lembrados por essas dez pessoas que tornaram esta edição da Sextante inesquecível também para nós. E convidamos você a conhecer outras reportagens realizadas pela nossa turma em www.ufrgs.br/ sextante/, porque a edição 58 da Sextante virtual também será inesquecível.

Thaís Furtado | Professora-editora thais.furtado@ufrgs.br

Comissão editorial

@revistasextante @revistasextante /sextanteufrgs Site: www.ufrgs.br/sextante/

Sextante é um instrumento que mede a distância angular entre um astro e a linha do horizonte. Com ele, os navegadores calculam sua posição e podem corrigir eventuais erros de navegação.


ÍNDICE

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Marília viajou o mundo por nuvens e ciclovias

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Maria apresentou Lacan para a área da Educação

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Roberto organizou uma celebração de tamanho incomum

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Nivia teve que se reinventar

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João conheceu as cores dos barbantes de Jaime

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Juliana sentiu como se a Terra tivesse parado

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Ângela e Artur venceram junto com o filho

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Esther nasceu para o jornalismo

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João conseguiu superar um trauma

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Rosângela foge para se encontrar

SEXTANTE Dezembro de 2019


ARTE DE LUCIANA HOERLLE COM FOTOS DE LUCAS BORGHETTI, J. GONZALEZ E VITÓRIA FAGUNDES

JORGE CARRASCO

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LEMBRANÇAS QUE IMPORTAM MEMÓRIAS INÚTEIS OU TRAUMÁTICAS SÃO APAGADAS PELO CÉREBRO, ENQUANTO AS SIGNIFICATIVAS FICAM PRESERVADAS 6

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ARTE: VIVIAN DOMINOT

Pense em uma grande biblioteca. A maior que você possa imaginar. Só que nela não há livros e sim pequenas bolas de cristal que não param de chegar. Cada uma delas representa uma memória que é armazenada em parte do nosso cérebro. Enquanto isso, com um carrinho e uma espécie de aspirador, criaturinhas trabalham sugando algumas dessas memórias. Elas as retiram das prateleiras e mandam-as diretamente para um lixão. Números de telefone que já estão armazenados no celular, as lições de piano e as fórmulas matemáticas aprendidas no passado, o nome de todos os presidentes e de todas as capitais do país. Tudo isso vai para um lixão. Todas as memórias para as quais “não damos bola”. Afinal de contas, nossa biblioteca de lembranças precisa de espaço. Precisa ser bem gerenciada. Lá, ficam apenas as memórias com as quais nos importamos, e saem tantas quantas forem necessárias para termos espaço livre para novas experiências. Para evoluirmos. Eis aí a importância do esquecimento, segundo Pete Docter, que assina uma obra chamada Divertida Mente. Sim, é da aclamada animação dos estúdios Disney que estamos falando. A jornada das emoções por dentro do cérebro humano é muito mais que 90 minutos de entretenimento inocente. É também uma reflexão. E ciência. Segundo o diretor do Centro de Pesquisa da Doença de Alzheimer da Universidade de Columbia, Scott Small, esquecer não é só importante, como também é saudável. “A importância do esquecimento é um conceito relativamente novo para a ciência”, explica ele em uma entrevista para a revista Psychiatry News, da universidade onde trabalha. “Descobertas apontam para um mecanismo ativo em nosso cérebro que nos ajuda a eliminar informações desnecessárias para que possamos reter as mais relevantes e armazená-las por um longo prazo.”

Além disso, ele chama atenção para como seria ruim não esquecermos de nada. ”Por que alguém iria querer uma memória fotográfica, que dá acesso igual à miséria e à alegria? Nunca esquecer significa guardar mágoas, ressentimentos e experiências traumáticas. Isso seria um fardo e nos tornaria prisioneiros da dor.”

HISTÓRIAS INESQUECÍVEIS Bom, mas não há como falar de esquecimento sem falar do que é, de fato, inesquecível. São as bolinhas de cristal que não saem nunca da nossa biblioteca de lembranças. Por que, afinal, é importante que nós as preservemos? De acordo com Cristiane Furini, que pesquisa o tema no Instituto do Cérebro da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), a resposta para essa pergunta é simples. As memórias constituem a nossa identidade. “Nós lembramos porque isso tem um papel extremamente crucial na nossa vida e em quem somos. Somos formados pelas experiências que vivemos e pelas recordações que temos delas. Esse conjunto de memórias é que nos faz únicos”, diz. As bolinhas de cristal que ficarão para sempre nas prateleiras da nossa biblioteca são aquelas ligadas a momentos extremamente importantes. Raramente esquecemos de experiências muito felizes e que foram significativas na nossa trajetória de vida. O mesmo acontece com os episódios muito tristes. Mas, quando essa situação é tão forte que chega a ser traumática, automaticamente nosso cérebro dá um jeito de anular essa memória, como explica o pesquisador Scott Small. É por isso que raramente alguém recorda do momento exato de um acidente, por exemplo, pois seria insuportável. Assim, nossa biblioteca está sempre sendo renovada e transformada, e apenas as pequenas bolas de cristal especiais ficarão armazenadas para toda a vida. Duda Romagna e Guilherme Jacques

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BASTIDORES DE UM RECOMEÇO EM UMA MANHÃ DE SÁBADO, A TURMA DE JORNALISMO IMPRESSO DA UFRGS SE REENCONTROU NO PARQUE DA REDENÇÃO, EM PORTO ALEGRE, PARA CONHECER PESSOAS COM HISTÓRIAS INESQUECÍVEIS Fotos: Lucas Borghetti Arte: Taks

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ARTE: NICKOLE MONFRON

ASAS E PEDAIS

COMO O AVIÃO LEVOU MARÍLIA SALDANHA A AMAR O CICLISMO Texto: Duda Romagna maria.e.romagna@gmail.com Fotos: J. Gonzalez Artes: Gabi Berwanger e Nickole Monfron

Nascida em Porto Alegre, sob o sol de Gêmeos e com Aquário em ascendência, Marília Saldanha estava acostumada com o ar regendo sua vida. Sempre em movimento, com 21 anos, deixou a capital gaúcha para ser comissária de bordo em voos da extinta companhia aérea Varig. Morou com amigos em São Paulo e, após quatro anos, partiu para o Rio de Janeiro. Por conta de seu trabalho, criou asas e conheceu o mundo. Teve residência fixa na Cidade Maravilhosa por 21 anos e hoje lembra também de suas experiências morando no Japão. Porém, foi durante os quatro meses em que viveu em Los Angeles, quando tinha 31 anos, que sua história começou a ser traçada com duas rodas, dois pedais e um capacete.

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“A vida da gente é como um livro. Dependendo da idade que tu tens, do percurso que já teve, ele pode ser um livrinho menorzinho, mas ele já tem conteúdo. Na medida em que o tempo passa, não só a quantidade de anos, mas a riqueza das experiências, o livro vai sendo feito. Tenho a sensação de que minha vida já é um calhamaço”, diz Marília.

DE VOLTA À ORIGEM

CICLOVIAS PELO MUNDO As primeiras ciclovias são datadas do final do século 19, em Utrecht e Brabant, na Holanda. Em 1900, foi inaugurada a California Cycleway, ou Ciclovia da Califórnia, um empreendimento único para a época. Com 14 quilômetros de extensão, a faixa ligava as cidades de Pasadena e Los Angeles. Foi nessa época que ocorreu o chamado bike boom, momento em que a compra de bicicletas disparou nos Estados Unidos. Quando Marília morou em Los Angeles, deslocar-se com bicicletas já era um hábito para muita gente. Em Porto Alegre, somente em 2008 foi estabelecido um Plano Diretor Cicloviário, que hoje conta com cerca de 80 quilômetros de faixas exclusivas para bicicletas. Esse movimento, que foi se intensificando até os dias atuais, principalmente em cidades onde o relevo é plano, foi o que encantou Marília na Califórnia. Foi a bicicleta que movimentou sua vida social, já que estava sozinha em outro país e não conhecia ninguém. Além de exercitar-se, ela também fazia amigos pedalando pelas ciclovias construídas na beira das praias. As suas relações com o mundo, com a natureza e com as pessoas tomaram uma nova configuração. Já de volta ao Brasil, em 2006, pouco antes do decreto de falência da companhia aérea em que trabalhava, Marília decidiu deixar a profissão, após 20 anos. Ainda no Rio, se dedicou mais às suas

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“A VIDA DA GENTE É COMO UM LIVRO. TENHO A SENSAÇÃO DE QUE A MINHA JÁ É UM CALHAMAÇO” próprias experiências e aos pedais. “Selei um compromisso com a bicicleta, é algo muito maravilhoso. Eu disse: eu quero isso para minha vida”, comenta. Na época, tinha 40 anos e soube aproveitar a agitação do Rio de Janeiro, mas chegou um momento em que sentiu que precisava sair daquele caos.

Por 25 anos, Marília ficou fora de Porto Alegre, mas decidiu voltar. Conta que envelhecer de uma forma mais tranquila, em uma cidade mais pacata do que as do Sudeste, era uma prioridade. “Eu tive um corte na minha relação com Porto Alegre. Esse percurso é forte, tinha uma coisa que me separava da cidade e da família. Eu fui atravessada pela experiência de cidade grande, de cidade populosa, de cidade com uma efervescência cultural incrível, tanto de São Paulo quanto do Rio de Janeiro.” Hoje, com 57 anos, Marília tem a bicicleta como sua maior companheira. Diariamente, passeia pelas ciclovias da capital gaúcha. Aos sábados, levanta cedo para ir até a Feira Ecológica do Bom Fim. Com sua cestinha atrelada à traseira da bicicleta, máscara PFF-2 no rosto, capacete e muita história para contar, ela continua voando, mas agora pelas ruas da cidade de onde decolou pela primeira vez.


ARTES: GABI BERWANGER

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UMA VIDA INESQUECÍVEL MARIA NETROVSKY FOLBERG FOI UMA DAS PRIMEIRAS PESQUISADORAS A APRESENTAR, NA UFRGS, UMA TESE NA ÁREA DA EDUCAÇÃO UTILIZANDO CONCEITOS DO PSICANALISTA JACQUES LACAN Texto: Ricardo Morais jornalistaricardom@gmail.com Fotos: Lucas Borghetti Artes: Leonardo Miguel e Yasmin Schlupmann

ARTE : YASMIN SCHLUPMANN

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Como uma rainha sentada em seu trono, Maria Netrovsky observava de um banco no Parque da Redenção as pessoas passearem, se exercitarem e trabalharem em um sábado pela manhã. Com um chapéu de palha cobrindo seu rosto claro e um óculos escuro protegendo os olhos do sol forte, ela segurava, com a mão esquerda, a caixinha azul de seus óculos e, com a direita, uma bengala. Queen Mary, como ela diz ser chamada carinhosamente por um de seus sobrinhos, não gosta de falar sua idade, prefere deixar no imaginário das pessoas. Mãe de quatro filhos, avó de sete netos, diz que ser mãe é bom, mas ser avó é melhor ainda: “É PPP. Puro Princípio do Prazer. Não tem tantas preocupações que o papel de mãe tem, mas só os prazeres de mimar e dar amor”. Maria nasceu e cresceu na capital gaúcha, mais precisamente na zona leste da cidade. Estudou no tradicional Instituto de Educação General Flores da Cunha, que fica junto ao parque onde descansava e que hoje está praticamente destruído. O colégio foi fechado para reformas em 2017, porém apenas 10% da obra foi realizada. “É doloroso passar na frente da escola que passei mais de 20 anos da minha vida, inicialmente como aluna e, depois, como professora”, lamenta, reclamando da forma como o prédio está abandonado. Foi nesse período que a menina percebeu que era apaixonada pelo magistério e decidiu fazer intercâmbio nos Estados Unidos para se especializar em matemática. Quando retornou ao Brasil, decidiu ingressar na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), justamente no curso de Pedagogia, que fez com que ela se apaixonasse ainda mais pelo magistério. Mas a vida lhe propôs uma nova jornada, e foi na própria UFRGS que ela construiu toda a sua trajetória profissional. “A minha história com a UFRGS é inesquecível.” Maria fez graduação em Pedagogia na UFRGS, mestrado em Aconselhamento Psicopedagógico na PUC-RS e doutorado em Educação também na UFRGS, onde foi professora até a sua aposentadoria. Para conseguir conci-

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liar a carreira na Universidade com a maternidade, contou com um grande companheiro ao seu lado, seu esposo, o médico Leonardo Folberg, que a auxiliava nas demandas domésticas. “Pensa estar com alguém por mais de 40 anos o tempo todo junto, sempre dando força e me auxiliando em tudo”, lembra ela, que em 2012 ficou viúva.

UMA TESE INOVADORA Maria foi uma das primeiras pesquisadoras a apresentar, em 1983, uma tese na área da Educação utilizando conceitos do psicanalista francês Jacques Lacan, que, na época, de acordo com ela, só era estudado na área da Linguística. “Ele era conhecido por ser um estruturalista, com foco na linguística estrutural. Mas ninguém o conhecia pela parte da psicanálise. “Minha tese foi tão bem acolhida pela comunidade acadêmica que fui convidada a apresentá-la no Congresso Internacional de Psicanálise em Paris”, conta. A forma inovadora com que Maria utilizou os estudos de Lacan fez com que ela passasse a ser reconhecida não só por seus alunos do curso de Pedagogia da UFRGS, mas também por estudantes e pesquisadores de outras universidades. “O assunto me fascina tanto que até hoje recebo amigos e estudantes em minha casa para debatermos sobre as teses de psicanálise de Lacan”, conta. A pesquisadora criou uma relação tão forte com gestores, colegas e alunos da Universidade, que, quando estava

“MINHA TESE FOI TÃO BEM ACOLHIDA PELA COMUNIDADE ACADÊMICA QUE FUI CONVIDADA A APRESENTÁLA NO CONGRESSO INTERNACIONAL DE PSICANÁLISE EM PARIS” na época de se aposentar, a então reitora Wrana Panizzi lhe telefonou e lhe perguntou se realmente era isso que ela queria fazer. Wrana disse que só assinaria sua aposentadoria se Maria lhe confirmasse que tinha mesmo esse desejo. Mas Maria respondeu que realmente já era o momento de parar. Entretanto, mesmo aposentada, continuou sendo professora convidada da Universidade e mantém contato com todos até hoje. “Reconheço e parabenizo a importância que a instituição tem para sociedade, com todas as ações que ela promove. Porém fico chateada ao ver que nem todos percebem a sua importância”, lamenta. Depois de folhear uma revista Sextante, Maria levantou do banco da Redenção e saiu caminhando devagar com seu chapéu e sua bengala, levando junto toda uma vida dedicada ao ensino e à pesquisa, que formou tantos professores e pesquisadores apaixonados por seu trabalho como ela.


ARTES: LEONARDO MIGUEL

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ARTE: LAURA TONIAL

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UM BOLO DEMOCRÁTICO COMO ROBERTO JAKUBASZKO AJUDOU A TORNAR O ANIVERSÁRIO DE 70 ANOS DO PARQUE FARROUPILHA UMA DATA INESQUECÍVEL Texto: Rafaela Pollacchinni rafa.pollacchinni@gmail.com Fotos: J. Gonzalez Artes: Laura Tonial e Vivian Dominot

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Um espaço repleto de histórias, o Parque Farroupilha, também conhecido como Parque da Redenção, deixa sua marca em cada um que frequenta o local. Personalidade popular das redondezas, Roberto Jakubaszko, de 71 anos, conhece como poucos os quase 40 hectares que formam o parque. Sua vida esteve em grande parte ligada à Redenção, da infância à fase adulta, e até hoje ele visita diariamente o lugar que é um dos principais pontos turísticos de Porto Alegre. Economista aposentado, um dos fundadores, em 1972, do Conselho de Usuários do Parque Farroupilha, Roberto foi nomeado prefeito do local, em setembro de 2021, pelo prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB). Sua função, de acordo com o site da prefeitura, é ficar responsável por auxiARTES: VIVIAN DOMINOT

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“FOI UM MOVIMENTO ENORME PARA PODER MOBILIZAR ALGO DENTRO DO PARQUE QUE FOSSE MEU, TEU, DELE, NOSSO, UMA COISA BEM COLETIVA” liar o município a cuidar desse espaço público, acompanhando os serviços de manutenção e comunicando problemas que surjam, para que a prefeitura possa realizar ações necessárias. Roberto coleciona recordações que ajudam a construir a memória coletiva da cidade. Dentre tantos acontecimentos, ele relembra a comemoração do aniversário de 70 anos da Redenção, em 2005. Para tornar a data inesquecível, ele

ajudou a desenvolver um projeto ambicioso: produzir um bolo de 70 metros de comprimento para celebrar a data. O local escolhido para a realização do evento foi ao lado do espelho d’água. “A nossa ideia era fazer um metro de bolo por cada ano do parque. Isso foi algo que nos marcou bastante, porque a gente teve um trabalho muito grande para localizar alguém que nos ajudasse a fazer um bolo de 70 metros. Então, procuramos por produtores de farinha e achamos uma empresa na serra gaúcha. E eles nos ajudaram a fazer”, conta.

UM BOLO DE QUALIDADE No início, surgiram alguns problemas. As dimensões do bolo foram um empecilho para o desenvolvimento da ideia por uma questão de logística – era algo caro e muito trabalhoso. Foi


considerada a possibilidade de usar as redes de padarias e de supermercados da cidade para auxiliar na produção, mas, quando de fato convenceram o fabricante de farinha a fazer o bolo, já era tarde para buscar ajuda de outros parceiros. O bolo teria que ser feito na própria Redenção. E não era qualquer bolo que a organização do evento desejava. “Fizemos referência a uma torta que a gente conhece como Marta Rocha. Queríamos um bolo desse padrão, bonito, e que a gente pudesse fatiar no dia do aniversário do parque, para dar uma fatia a cada uma das pessoas que fossem comemorar conosco”, relembra. A produção foi iniciada três dias antes do aniversário. Uma estrutura foi montada no parque para que fosse possível realizar os preparativos, além de ter sido necessário mobilizar instituições como a Guarda Civil e a Brigada Militar para fazer a segurança do local no período da noite. Roberto relata que também foi preciso ter a aprovação da vigilância sanitária com o objetivo de

estabelecer padrões de segurança para garantir a saúde de quem consumisse a torta. A empresa responsável pela fabricação levou uma equipe de um pouco mais de 20 pessoas de Caxias do Sul para Porto Alegre. Com tudo encaminhado, foram 72 horas de trabalho contínuo a fim de que o bolo de proporções incomuns ficasse pronto na data da comemoração. Membros do Conselho de Usuários do Parque participaram de toda a organização do evento, que contou também com o apoio da comunidade.

CELEBRAÇÃO COLETIVA No dia, após todo o empenho das pessoas que se envolveram na atividade, a celebração ocorreu dentro daquilo que havia sido programado. “Foi algo maravilhoso, fantástico. Veio gente do interior para comer fatias desse bolo. Esse bolo marcou de uma forma indelével o uso da Redenção”, afirma Roberto. Ele conta que também houve algumas adversidades, como pessoas que entra-

ram inúmeras vezes na fila para pegar uma fatia e que já não comiam mais, jogando fora pedaços do bolo. “Foi um movimento enorme para poder mobilizar algo dentro do parque que fosse meu, teu, dele, nosso, uma coisa bem coletiva. Isso marcou de uma maneira que está até hoje gravada na memória das pessoas mais antigas.” Um projeto inteiramente coletivo transformou o aniversário de 70 anos da Redenção em uma data para todas as pessoas, algo que reafirma o ambiente democrático do parque, como um lugar disponível para toda a população. Diversos cidadãos se envolveram em um projeto que tinha como propósito tornar um momento especial do parque em algo coletivo, para os frequentadores e para os indivíduos que quisessem apenas conhecer o local. A coletividade foi capaz de mover uma iniciativa em prol de toda a comunidade. Para aqueles que, assim como Roberto, participam ativamente da vida social da cidade, esse tipo de recordação fica para sempre. SEXTANTE Maio de 2022

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ARTE : STELA JACOB SALDANHA

De acordo com a Pesquisa Global Entrepreneurship Monitor 2020 (GEM), feita em parceria com o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), o Brasil é o sétimo país com o maior número de mulheres empreendedoras no mundo. São em média 30 milhões sendo donas do seu próprio trabalho. E foi assim que começou uma das histórias da vida de Nivia Rejane Andrade Monteiro, de 56 anos, moradora de Novo Hamburgo, no Vale dos Sinos. Em 2003, depois de um ano trabalhando na loja de um empresário que havia convidado o marido dela para o negócio, Nivia conseguiu comprar sua parte na parceria e abriu sua primeira loja – que era no estilo 1,99 – na rua Primeiro de Março, no centro da cidade. Com o bom desempenho do primeiro empreendimento, ela abriu um segundo bazar próximo ao Bourbon Shopping Novo Hamburgo. Por conta disso, passou a contar com a ajuda da filha e da irmã para gerenciar os comércios. Com os investimentos dando certo, ela conseguiu comprar dois apartamentos, um deles na praia, e se sentia realizada com as conquistas. Entretanto, quando a filha decidiu começar a estudar direito e precisou deixar a loja, o que coincidiu com a decisão da irmã de descansar e se afastar do trabalho, Nivia se viu desamparada. “Eu acabei ficando sozinha, e administrar sozinha é muito difícil. Eu, ao invés de fechar, quis manter todas. Não devia ter feito isso.” Foi a partir daí que as coisas começaram a tomar rumos que ela não conseguiu mais controlar.


ELA SE ENCONTROU APÓS A FALÊNCIA DE SEUS DOIS EMPREENDIMENTOS, NIVIA MONTEIRO PRECISOU SE REINVENTAR COM UMA NOVA OCUPAÇÃO Texto: Rochane Carvalho rochane.anjos@gmail.com

Fotos: J. Gonzalez Artes: Luciana Hoerlle e Stela Jacob Saldanha

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Durante três anos sozinha, ela tentou segurar as pontas para manter o que tinha construído, mas em 2019 não teve mais jeito. “Aí que a coisa foi pro brejo, e, quando eu vi, já tava até o teto de problemas, tendo que resolver, rescindir contrato, demitir funcionários e pagar indenização”, explica. Ela lembra que o estopim da situação foi uma obra que estava sendo realizada pela prefeitura do município para melhorias na tubulação na rua da loja mais antiga. Durante os seis meses que o serviço demorou pra ser feito, Nivia viu a procura no bazar despencar. “Muitas vezes eu ia no banco e, quando voltava, tinha que pensar pra que lado que eu ia para chegar na loja. Onde eu tinha que entrar, onde eu tinha que sair. Foi um transtorno total no centro. E tu imagina o cliente que vem do bairro.” Foi aí que o que ela não queria dizer precisou ser dito: “Nós temos que fechar”. Só que ela tomou a decisão de fechar a loja que ficava próxima ao shopping, e não a do centro. Com a turbulência nas lojas, Nivia não viu apenas os clientes indo embora,

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“EU ME PREOCUPAVA EM CONSTRUIR UM PATRIMÔNIO, EM CONSEGUIR AS COISAS, MAS NÃO ME PREOCUPAVA COM A MINHA SAÚDE MENTAL” mas o matrimônio também. Ela conta que, com os problemas financeiros, a relação ficou insustentável. Depois disso, ainda precisou fazer um acordo com o ex-marido para quitar as contas da loja fechada. Saiu praticamente sem nada. “Eu não fui na justiça, porque não dava tempo para pedir o que eu realmente merecia. Eu me conformei porque a minha filha continuou morando com ele.” Mas ela tinha esperança, podia se reerguer com o estabelecimento que lhe restou. Só que a situação foi se complicando cada vez mais. Dos sete funcionários que as lojas tinham somadas, ficaram

apenas três. Então ela precisou liquidar a loja do centro também. Sobrou do patrimônio apenas algumas prateleiras e uma dívida, que, na época, chegava a R$50 mil. Isso foi o que mais lhe decepcionou. “Meu nome ficou sujo, hoje eu não tenho nome, estou endividada. A pior coisa de todas foi eu não ter conseguido sair com o meu nome limpo”, conta ela com os olhos marejados.

JUNTANDO OS RETALHOS Nivia precisava pensar em como continuar depois de tudo pelo que tinha passado. A vontade de empreender seguia com ela. E, daquelas poucas prateleiras que tinha conseguido salvar, montou uma nova loja, menor que as anteriores e, dessa vez, em Sapucaia do Sul, na Região Metropolitana de Porto Alegre. Mas uma coisa fez com que ela encontrasse a paixão que a acompanha hoje. “Quando eu coloquei esse pequeno bazarzinho, eu não tinha como competir com ninguém, com nenhuma empresa, porque eu não tenho condições de comprar mercadoria de fábrica,


ARTES: LUCIANA HOERLLE

ter bom preço. Daí eu pensei que eu tinha que fazer alguma coisa diferente, que não tenha na cidade, que ninguém faça, tem que ser diferente.” Crochê e panos de prato passaram entre as possibilidades, mas segundo ela, todo mundo fazia isso. Foi pesquisando na internet que ela descobriu o tapete frufru, e foi amor à primeira vista. “O tapete frufru é uma coisa maravilhosa. As pessoas que trabalham com isso são gente muito boa.” A inspiração começou com a youtuber Maria Gomes, e foi com ela que aprendeu a dar os primeiros passos no novo ofício. “Teve uma vez que eu fui toda feliz comprar o tecido para começar a fazer, mostrei pra ela e ela me explicou qual tecido tinha que ser, qual era o melhor, me disse pra não comprar em loja, porque era mais caro, me explicou como cortar o tecido.” A distância não foi um impedimento para que essa amizade acontecesse, Maria é de Santa Catarina, mas elas conversavam por videoconferência. A rede de apoio que Nivia encontrou também ajudou para que ela se

sentisse segura com o seu produto, que conseguisse desenvolver o seu próprio estilo de trabalho e a sua identidade. Hoje ela trabalha apenas com retalhos para baratear o custo. As trocas com os colegas são feitas dentro de um grupo de Whatsapp com cerca de 250 pessoas de diferentes lugares compartilhando ensinamentos e experiências. Uma das coisas que faz Nivia valorizar o que tem agora é não esquecer da jornada pesada de trabalho que tinha. Foram mais de 15 anos sem ter nem um mês de férias. “Eu me preocupava em construir um patrimônio, em conseguir as coisas, mas não me preocupava com a minha saúde mental.” Ela acredita que esse pode ter sido o motivo para tudo ter acabado, inclusive o casamento e a família. Mas, apesar de tudo, o que ficou de lição – após tanto tempo trabalhando das 7h às 19h, de segunda a sábado – foi aproveitar os momentos de tranquilidade. “Hoje, se meu companheiro me convidar pra ir pra casa, se eu quiser ir, eu fecho as portas e vou. Se eu não tiver legal, eu vou pra casa.”

E O CAMINHO SEGUE NOS TRILHOS Além de ter o ponto no pé do viaduto da Estação Sapucaia, Nivia vai a Porto Alegre pelo menos uma vez por semana para vender os tapetes. É de trem que ela faz esse trajeto. Amarra no carrinho de duas rodas, que pediu de aniversário para o novo companheiro, algumas caixas e os tapetes dobrados. Os pontos escolhidos para montar a banca de venda são a Praça da Alfândega e a Redenção. Vai sempre sozinha. “Eu não tenho vergonha, quem tem que correr para pagar as minhas contas sou eu. Se eu conseguir fazer meu tapetinho, ter saúde e ser feliz é isso que eu quero.” Durante algum tempo depois de ter fechado as lojas, Nivia conta que, ao passar em frente dos locais sentia muita saudade, mas agora não é mais assim. “Eu chorava, lembrava das minhas coisas que eu abandonei. Hoje eu passo tranquila.” Apesar da experiência ruim, para ela, tomar a decisão de mudar os rumos da vida possibilitou que o corpo e alma se curassem. SEXTANTE Maio de 2022

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ARTE: SOFIA KERR

R5.JOYCE

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UM FIO DE

ESPERANÇA O TRABALHO DO ARTESÃO JAIME DA SILVA, QUE EXPÕE NA FEIRA ECOLÓGICA DO BOM FIM AO LADO DA ESPOSA, MARIA HELENA DOMINGUES, ENCANTOU O ARQUITETO JOÃO ROVATI, CRIANDO UM LAÇO DE AMIZADE ENTRE OS TRÊS Texto: Joyce Rocha joycercch@gmail.com

Fotos: Lucas Borghetti Artes: Gabriela Bittencourt e Sofia Kerr

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Cordões de barbantes coloridos são usados como matéria prima para Jaime da Silva revestir diferentes objetos. Aos sábados pela manhã, a mesa da barraca da Feira Ecológica do Bom Fim, onde expõe seu trabalho, fica forrada por bandejas coloridas pelos fios. Com duas peças na sacola que carregava em um sábado de sol, o arquiteto João Farias Rovati lembrou de como foi inesquecível o momento da descoberta das obras de Jaime, em 2021. A partir daquele dia, criou uma relação de clientela e amizade com o dono do Fio de Esperança, nome do box do artesão. “Eu sempre fiz o esforço na universidade para que os alunos olhassem a nossa cidade e enxer-

gassem a beleza que temos. Passeando por aqui, eu vi a beleza do trabalho do seu Jaime, que ele faz com cordões”, diz João, que se aposentou como professor universitário em 2019. Frequentador da feira do Parque da Redenção, João lecionava desde 1989 na Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e era responsável pela disciplina de Ateliê de Urbanismo. Após a aposentadoria, prefere ser chamado de professor emérito do que de aposentado. “Eu não gosto dessa palavra ‘aposentado’, porque professor não se aposenta. Prefiro professor emérito, que é uma forma mais delicada de se dizer.”

“É A BELEZA DESSAS CORES, A MARANHA, A MISTURA, QUE TEM MUITO A VER COM O NOSSO PAÍS” João Rovati

Arquiteto e professor

CORES DO CONTINENTE AFRICANO Diferente de João, que conta sua história com facilidade, Jaime é um senhor de poucas palavras. Ex-funcionário da Ambev, o artesão tem 70 anos e, há 10, manuseia os fios que dão vida às suas obras. Acompanhado pela esposa, Maria Helena Domingues, também de 70 anos, Jaime expõe suas produções na feira desde 2018. As cores usadas por ele são influenciadas por países do continente africano: Moçambique, Cabo Verde e Angola inspiram as escolhas dos barbantes. “Comecei fazendo oficinas nas escolas de samba, na Feira Afro e nas comunidades, depois vim para o Brique. O pessoal chega e já vê: minha ideia é valorizar essas cores, que normalmente têm essa relação com a África. Por exemplo, Moçambique, de onde vieram muitos negros.” Todos os finais de semana, Jaime e Maria Helena percorrem aproximadamente 12 quilômetros para expor as peças de barbante. O casal mora no bairro Jardim Leopoldina, na zona norte de Porto Alegre. Viúvos dos seus primeiros casamentos, encontraram um no outro nova companhia há 20 anos. Na época, Helena, como gosta de ser chamada, trabalhava como professora recreacionista na creche Francesca Zacaro Faraco, da UFRGS, onde permaneceu por 30 anos até a aposentadoria. Lá, diz que viveu muitos momentos inesquecíveis.

ENCANTO CONTAGIANTE As idas até a feira possibilitaram que o arquiteto João, morador das redondezas, conhecesse o trabalho de Jaime. “Eu já mandei as artes dele para parentes que tenho em Mônaco, Copenhagen, Boston e agora comprei duas para

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ARTE S: GABRIELA BITTENCOURT

ir para Buenos Aires. Estou fazendo propaganda dele”, brinca. O encanto de João pelo trabalho de Jaime é contagiante. Para o professor, as peças do Fio de Esperança são únicas pela habilidade do artesão em combinar as cores e transformar a união dos barbantes em formatos harmoniosos: “É a beleza dessas cores, a maranha, a mistura, que tem muito a ver com o nosso país”, diz João. Entre uma conversa e outra, muitos pedestres paravam para conhecer o trabalho de Jaime naquele sábado. Segurando uma bandeja revestida com fios de barbantes azuis e amarelos, em formatos circulares, ele explicava que a inspiração para aquela peça havia sido um pouco diferente das outras, ele a chamou de Van Gogh. Ao final daquela manhã, Jaime, Maria Helena e João seguiram conversando até que o professor emérito lembrou-se das batatas, que a esposa havia pedido que comprasse para o almoço, e seguiu o caminho de casa com a certeza de que voltaria a encontrar o casal de amigos muitas outras vezes. SEXTANTE Maio de 2022

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O DIA EM QUE A ARTESÃ DE CUIAS DE CHIMARRÃO HÁ MAIS DE 20 ANOS, JULIANA GUEDES SE VIU SOZINHA NA BR-101 NO DIA QUE A PANDEMIA DE COVID-19 IMPLODIU EM SANTA CATARINA Texto: Rafaela Frison rg_frison@hotmail.com Fotos: J. Gonzalez Artes: Joana Custódio e Sôf Vargas

Juliana Guedes, de 50 anos, ainda não conseguiu esquecer o dia em que a Terra parou. O medo vivido por ela e por sua esposa, Maria Gisela Silva Varniéri, naquele dia também foi sentido, em proporções e maneiras diversas, por milhões de brasileiros. Era o início da pandemia de Covid-19 no Brasil. As notícias há semanas alertavam sobre a disseminação do vírus em território nacional. Mas foi naquela data em específico que elas sentiram que algo estava errado e que este algo era sério. Juliana e Gisa passavam férias no litoral sul do estado de Santa Catarina quando o país implodiu. Naquele dia, elas haviam buscado uma amiga na praia de Ibiraquera para passarem juntas a tarde na cidade de Garopaba. No

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TERRA PAROU ARTE: JOANA CUSTÓDIO

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ARTE: JOANA CUSTÓDIO

entanto, no entardecer, ao retornarem, depararam-se com um bloqueio. Os moradores, por medo do vírus desconhecido, ergueram barricadas de areia nas principais ruas para impedir que os turistas acessassem as praias. Juliana e Gisa ficaram do lado de fora. Proibidas de passar, esperaram por horas em um posto de gasolina na beira da estrada até que a amiga, moradora do local, que por esse motivo tinha direito a passar pelas barreiras, levasse até elas os pertences deixados por lá. Com medo e Sem saber como o vírus era transmitido, elas improvisaram máscaras com blusas, amarrando-as bem em torno do nariz e da boca, e decidiram suspender as férias naquele exato momento. Assim, elas embarcaram no carro e dirigiram cerca de 400 quilômetros até Porto Alegre. Sozinhas. “Nos sentimos sós no mundo”, relata Juliana. Os vídeos gravados por elas durante o trajeto na BR-101, um dos principais eixos rodoviários do país, que interliga longitudinalmente 11 estados brasileiros de norte a sul, demonstram

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bem esta solidão. Foram quilômetros viajados apenas avistando a paisagem e os caminhões. Sem ver pessoas. Raul Seixas, em sua música O dia que a Terra parou, lançada em 1977, já fazia uma certa previsão: “Todas as pessoas do planeta inteiro resolveram que ninguém ia sair de casa. Como se fosse combinado em todo o planeta. Naquele dia, ninguém saiu de casa. Ninguém.” Parecia cena de filme. É por isso que Juliana fala que foi o dia em que a Terra parou, porque, naquele instante, ela só lembrava do longa-metragem dirigido por Scott Derrickson com nome homônimo à música de Seixas. Sim, parecia cena de filme, mas foi apenas uma das milhares de cenas reais que o mundo viveu ao se deparar com a pandemia de Covid-19. A Terra parou por meses e movimentou-se apenas lentamente por anos. Naquele dia em que, para Juliana, o mundo suspendeu a sua cinesia e ela e a esposa se viram sozinhas naquele carro, uma companheira que já havia

estado ao seu lado durante anos, mais uma vez, provou ser sua companheira de vida: a cuia de chimarrão. Esta e apenas um cooler com água era tudo o que elas tinham para se hidratar. Com medo de se contaminarem, elas não pararam em lugar nenhum até chegarem ao seu destino final.

RECLUSA EM CASA Artesã de cuias de chimarrão há mais de 20 anos, Juliana chegou em Porto Alegre, mas a solidão da estrada continuou, dessa vez, dentro de casa. Com a imposição do isolamento social pelas autoridades com o intuito de conter a disseminação da Covid-19, ela fechou seu atelier, localizado no centro da capital gaúcha, e não pôde mais expor seu artesanato na Feira Ecológica do Bom Fim, local de onde provinha a sua principal renda. Por meses, ficou reclusa em casa. Com o mundo isolado, foi na internet que ela viu a oportunidade de continuar vendendo a sua arte. “Nós já tínhamos uma página no Facebook,


mas não postávamos muito. A Gisa, no segundo mês de pandemia, começou a publicar, e começamos a vender por lá e enviar pelos Correios. Neste período, em questão de venda, foi até melhor do que se a gente estivesse aqui [no Parque da Redenção], porque muitas pessoas, com medo, não queriam sair de casa e começaram a pedir coisas pela internet”, conta. Adaptar-se sempre fez parte do vocabulário de Juliana quando o assunto são cuias de chimarrão. Ela iniciou a fazê-las ainda quando morava em Tapes, cidade localizada no litoral da Lagoa dos Patos, a 108 quilômetros de Porto Alegre. “Eu tinha um amigo que fazia cuias, e ele me convidou para trabalhar com ele. Quando eu cheguei lá, ele colocou uma resina e um porongo ARTE: SÔF VARGAS

“NOS SENTIMOS SÓS NO MUNDO” na minha frente e falou: ‘Te vira’. Eu aprendi a fazer sozinha”, relembra. “Mas o bom disso tudo é que eu descobri que eu era artesã, porque eu pensava além dele. Eu via uma coisa e já imaginava outras. Porque ele é bem tradicionalista até hoje. É um brasão na cuia, um bocal e era isso”, conta.

MULHER ARTESÃ DE CUIAS, SIM Foi assim, inovando, que ela conquistou o seu espaço em Porto Alegre. Após se mudar para a Capital, ela terminou o seu curso de Ciências Contábeis e foi trabalhar na área. Em seu último

emprego, uma colega queria uma cuia com uma coruja e não encontrava em nenhum lugar. “Eu falei que fazia a cuia para ela, e ela me falou: ‘Tu vai fazer a cuia?’, ‘Sim, eu trabalhei com isso a minha vida toda, não custa nada eu fazer para ti’. Quando eu terminei e entreguei, ela postou na mesma hora no Facebook. E aí não parou mais, todos do prédio começaram a pedir. Dali só foi, e chegou em um momento que eu não conseguia mais trabalhar e fazer as cuias. Hoje eu me mantenho e pago as minhas contas através do meu artesanato.” Mas, para ocupar este espaço, um universo impregnado pelo machismo, ela precisou provar que também tinha direito a confeccionar cuias. “Nesse meio, nenhum artesão dá informação. Eles têm medo de tu pegares o lugar deles, e eu como mulher é ainda mais difícil.” No entanto, Juliana não só ocupou este lugar, como inovou o mercado. Ela faz desde a cuia tradicional até outras bem diferentes, usando as mais diversas técnicas. Em suas cuias, para além de brasões e figuras de homens gaúchos, é possível encontrar imagens de mulheres negras, heróis da Marvel e bandeiras LGBTQIA+. “É possível trazer outras culturas para dentro do chimarrão”, afirma a artesã. “Às vezes, os caras querem pisar no meu pescoço, mas eu tô nem aí, porque isso é o que eu gosto de fazer, eu tenho a liberdade de fazer o que eu quiser, e as pessoas têm o direito de tomar chimarrão na cuia que elas quiserem, da cor que elas quiserem e do jeito que elas quiserem”, finaliza. Hoje, apesar de seguir todos os cuidados sanitários ainda necessários, o mundo da Juliana não está mais tão parado e solitário, como foi naquele dia em que a Terra parou. Ela segue expondo o seu artesanato na Redenção e afirmando o seu direito de ser uma mulher artesã que trabalha com a técnica de resina no porongo. Desde o dia em que a Terra parou e ela não pôde mais acessar as praias, Juliana não tirou mais férias, mas futuriza: “As próximas serão no mar”. E, dessa vez, com a Terra movimentando-se. SEXTANTE Maio de 2022

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ARTE: BETINA NILSSON

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UMA VITÓRIA EM

FAMÍLIA A INESQUECÍVEL HISTÓRIA DO CASAL ANGELA E ARTUR SEVERO NÃO É SÓ DELES. PARA QUE O FILHO INGRESSASSE NO COLÉGIO MILITAR DE PORTO ALEGRE, OS TRÊS TIVERAM QUE SE PREPARAR E VENCER DESAFIOS JUNTOS Texto: Guilherme Jacques g.a.jacques@gmail.com Fotos: J. Gonzalez Artes: Betina Nilsson e Nina Borghetti

Ângela e Artur Severo batiam papo com uma amiga, sentados na grama à sombra de uma árvore, aguardando o filho, João Pedro, de 13 anos. Enquanto o barulho denunciava a diversão que tomava conta do Parque da Redenção naquele sábado de sol, o jovem estava do outro lado da avenida José Bonifácio, em um ambiente muito mais sério e disciplinado, o Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA). No fim de 2022, João Pedro completará dois anos como aluno da instituição, uma das mais exigentes da cidade. Mas a jornada para conseguir uma das disputadas vagas da escola não foi fácil nem para ele, nem para seus pais.

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O CMPA é uma das duas escolas de ensino militar do Rio Grande do Sul pertencentes ao Exército Brasileiro – a outra fica em Santa Maria, na região central do estado. O ingresso na instituição ocorre apenas em dois momentos da vida escolar: no sexto ano do ensino fundamental e no primeiro ano do ensino médio. E há duas formas de entrar: sendo filho de militares ou por meio de um processo seletivo realizado anualmente. Os dependentes de militares têm essa possibilidade garantida por terem suas vidas afetadas pelas constantes mudanças de cidade. Não é o caso de João Pedro. Por não ser filho de militar, ele precisou passar pelas duas provas, de língua portuguesa e matemática, que compõem o concorrido concurso de admissão da escola. Foi praticamente como enfrentar um vestibular aos 11 anos de idade. Mas ele contou com um incentivo de peso: o dos pais.

A DINASTIA DE EX-ALUNOS O ingresso de João Pedro no Colégio Militar tinha um sabor especial para a família. Principalmente para Artur. É que tanto ele quanto o pai são ex-alunos da instituição. Um formou-se em 1994 e o outro em 1973. O saudosismo e o conhecimento sobre a qualidade do ensino na instituição explicam a empolgação dele com a história de João Pedro. “Nós sabíamos que, quando tivéssemos ARTE: NINA BORGHETTI

um filho, ele estudaria aqui. Falávamos em tom de brincadeira, claro. Só que quando chegou a idade, ele começou a estudar para se preparar”, conta Artur, hoje com 46 anos, que acompanhou um sonho dele virar desejo também do filho. Isso foi em 2020, e todo mundo sabe o que aconteceu daí em diante com o ensino em todo o planeta. Salas de aula vazias e casas cheias, com mães e pais, de um dia para o outro, passando a fazer o papel de professores auxiliares sem ter formação para isso. Assim foi a preparação de João Pedro. “De manhã, ele tinha aula. E, à tarde, ficava se preparando para o Colégio Militar. Então, às vezes, estavam todos os amigos dele jogando online, e ele dizia ‘mãe, quero jogar também’ e a gente insistia.‘Não, só mais um último exercício. Vamos focar que vai dar certo’. Foi bem difícil”, diz Ângela. Para se preparar, o garoto também fazia um curso, bastante puxado, específico para isso, com muito conteúdo. Mas os perrengues dessa fase também tiveram um efeito que sequer estava no radar. Aproximaram a família. É que, além das aulas do antigo colégio e as de preparação de João Pedro ocorrerem de forma remota, os pais também estavam trabalhando em home office. “Por um lado foi bom, porque a gente podia acompanhar e sentir se ele estava conseguindo ou não”, conta

“NÃO TEM UM DIA QUE A GENTE VEJA ELE COM A FARDA DA ESCOLA E NÃO FIQUE TRANSBORDANDO DE ORGULHO” Ângela Severo mãe de João Pedro

Artur. “Indiretamente, nós assistimos às aulas, estávamos ali trabalhando ao lado dele. E, quando ele não conseguia fazer algum exercício, eu ajudava. No fim das contas, a pandemia nos ajudou a ajudá-lo.” Ângela, de 44 anos, apesar de ser contadora e estar imersa no universo dos números, auxiliou o filho com as dificuldades da língua portuguesa, com a qual ela tem facilidade. Já Artur ficou com a matemática. É que há uma outra (quase) dinastia na família. Ele é engenheiro e o pai, avô de João Pedro, também. Se o filho vai seguir a carreira? Ele desconversa. “Não. Ele já está até falando em ser militar para que os filhos possam estudar aqui [no CMPA] também.” O fato é que a família funcionou como um verdadeiro time naquele período. E o gol veio. João Pedro conseguiu a esperada vaga na escola. “Quando a gente recebeu o resultado, estávamos na casa da minha irmã, no Tocantins. Foi uns dias antes do Natal. Virou uma festa, nós pedimos pizza. Ele adorou”, Ângela lembra.

MAIS QUE UMA APROVAÇÃO Para Artur e Ângela, ver o nome de João Pedro na lista de aprovados significou mais que a garantia de que ele teria uma boa formação escolar. Foi a superação de um desafio maior. É que o menino faz parte do espectro autista. “Só que é um autismo de alto desenvolvimento. Então, ele tem muito empenho em aprender o que ele tem interesse. Não tem perda cognitiva, mas o relacionamento social dele é difícil”, conta Ângela.

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ARTE DE NINA BORGHETTI EM FOTO DE ARQUIVO PESSOAL

Segundo a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), o transtorno do espectro autista (TEA) engloba uma série de condições caracterizadas por dificuldades de comunicação e relacionamento social. Em todo o planeta, uma em cada 160 crianças está no espectro autista. No Brasil, não há dados de prevalência. Isso porque, embora as primeiras manifestações ocorram na infância, muitos casos são diagnosticados apenas na vida adulta. E estima-se que outros tantos não sejam sequer identificados, já que os sintomas nem sempre são específicos. É daí que vem a utilização da palavra espectro. Afinal, o autismo pode se manifestar com uma série de gradações e apresentações difusas. Há três principais. O primeiro é o autismo clássico, em que os indivíduos são voltados para si mesmos e não estabelecem contato social, em níveis de comprometimento que podem variar muito. O segundo é chamado de distúrbio global do desenvolvimento sem

outra especificação, notado pela dificuldade de comunicação e de interação social, mas sem sintomas que caracterizam uma apresentação clássica do transtorno. E o autismo de alto desempenho ou síndrome de Asperger, em que os indivíduos têm um comprometimento bem menor da sua capacidade de socialização e são muito inteligentes – geralmente, considerados superdotados em algumas áreas do conhecimento. É o caso de João Pedro. “Com três anos, ele começou a ler. Sozinho. Hoje, ele fala inglês fluente. Aprendeu sozinho também. Mas nós percebemos quando ele foi para a escola, porque ele não tinha tanto interesse nas outras crianças. Desde então, sempre procuramos o que poderíamos fazer para ajudá-lo”, conta Artur. Assim como outros que estão no espectro, ele também lida com o chamado transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH). “Para a gente, então, a maior superação não foi o ingresso dele. Foi a prova e a mudança

de rotina. No dia do concurso, ele precisava chegar aqui uma hora antes, entrar e, depois, a prova durava quatro horas. Então, ele precisava ficar cinco horas sentado. Imagina isso para uma criança hiperativa. Nós não tínhamos certeza de que iria dar certo”, revela Ângela. Mas deu certo. E é o próprio João Pedro, após a aula, quem confirma a identificação com o ritmo da escola, quase o de um quartel. “Estudar no CMPA está sendo muito legal neste momento. Acho que valeu a pena os dois anos de estudo. E eu também gosto dos meus amigos, dos professores e das aulas de matemática”, diz. Enquanto isso, os pais são só felicidade. “Pensamos muito se ele iria gostar, mas para nossa surpresa ele amou. Adorou o uniforme, a marcha, os hinos. As notas estão boas. E o colégio acolheu ele superbem. Não tem um dia que a gente veja ele com a farda da escola e não fique transbordando de orgulho”, diz Ângela.

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APRECIADORA DAS PALAVRAS CONHEÇA A HISTÓRIA DE ESTHER COHEN, A JORNALISTA GAÚCHA QUE PRESENCIOU A CRIAÇÃO DE UMA DAS MAIORES REVISTAS DO PAÍS Texto: Bettina Gehm begehm@gmail.com Fotos: Lucas Borghetti

ARTE : ADRIANE WÄCHTER

Artes: Adriane Wächter e Maya Bardini

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ARTES: MAYA BARDINI

Era sábado de manhã quando Esther Cohen fotografava uma parede, na Redenção, onde havia a pichação: “E no auge de minha agonia eu citava Xeikspir”. A brincadeira com o nome do dramaturgo inglês numa frase da música de Raul Seixas chamou atenção dela. “Sou apreciadora do bom português”, justificaria mais tarde. O gosto por idiomas quase a levou a cursar Letras, mas um professor de português do Curso Clássico – equivalente ao atual ensino médio – descobriu nela, através dos textos bem escritos, a vocação para o jornalismo. Esther tem 85 anos, 55 dos quais está casada com Saul, que a acompanhava naquela caminhada de sábado. “Dificilmente saímos separados”, disse. “Foi o Saul que, por me conhecer muito bem, me mostrou a pichação que te levou a me entrevistar.” Ele aguardou pacientemente enquanto a esposa contava a história de quando estagiou na Editora Abril, em São Paulo. Era 1968, ano de fundação da que viria a ser uma das maiores revistas do país: a Veja. Esther fez parte dessa história. Ela se formou pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em 1964, antes da Reforma Universitária brasi-

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leira e quando o curso de Jornalismo ainda fazia parte da Faculdade de Filosofia. Esther foi uma das 100 pessoas de todo o país selecionadas para um estágio de três meses em São Paulo. Na época, ela tinha sido recém efetivada no jornal Folha da Tarde, da empresa Caldas Júnior, em Porto Alegre. “Eu pedi uma licença, e o diretor na época, não lembro o nome dele, disse ‘não, então tu pede demissão. Se por acaso quiseres voltar, na volta a gente vê’.”

PERÍODO DE APRENDIZADO A jornalista, que hoje trabalha com publicidade como freelancer, contou que a rotina na Abril era lotada de atividades: “De manhã, tínhamos de assistir a palestras de especialistas em algumas áreas de interesse jornalístico. Depois, éramos distribuídos numa frota de ônibus e levados para a sede da Abril que, lembro, era bem distante do Centro. Lá fomos divididos em equipes com coordenadores, cada qual com uma lista de pautas pra gente escolher uma ou duas por dia. Uma vez escolhidas, tínhamos de determinar como tratar o assunto até virar um artigo ou reportagem”. Entre as reportagens que fez naquela época, Esther destacou o dia em que

entrevistou Francesc Domingo Segura, pintor espanhol radicado em São Paulo. Disse que lembrava direitinho da tarde em que foi até Santo Amaro, onde o artista morava com a segunda esposa e mantinha um estúdio. Mais tarde, por mensagem, Esther contou que encontrou duas cópias dessa matéria: “Uma com menos conteúdo, tipo rascunho, com emendas feitas à caneta. E outra, com muito mais informações, 12 folhas datilografadas. É que, embora eu tenha com o tempo desenvolvido o poder de síntese, já mostrava uma tendência a ser prolixa. É só o tema valer a pena e me darem corda. Sabes que gostei do que li? Acho que não fiz feio no estágio”. Ao final de cada semana, o estágio na Abril afunilava e diminuía o grupo de estagiários. Não poderiam ficar todos os 100 para compor a equipe da Veja. Esther foi ficando. “Era uma época que quase não tinha mulher no jornalismo gaúcho”, recordou. Quando trabalhavam em redações, as mulheres geralmente ficavam com a coluna social. O que Esther contou em seguida transparece o motivo. “No final, eles me chamaram e disseram assim: ‘olha, vamos ser bem francos. Nós vamos ter, em Porto Alegre, só três pessoas na sucursal. Um


editor e dois repórteres. E, como tu é mulher e casada, nós achamos que tu não vai ser uma pessoa que vale a pena pra nós, porque’, olha o que eles disseram, o exemplo: ‘se nós tivermos que fazer uma cobertura de uma revolução na Argentina, do lado ali de Porto Alegre, tu é mulher e casada, nós vamos te chamar de madrugada? Não vamos. Tu não vai aceitar’”. Ofertaram então que Esther escrevesse na Cláudia, revista feminina que a Abril já publicava na época, mas o trabalho continuaria sendo em São Paulo. “Olha a coincidência, alguns anos antes eu sonhava com isso”, disse. Mas, recém casada, abriu mão: “O que tu acha que eu ia fazer? Eu ia dizer pro meu marido: ‘olha, eu tô indo pra São Paulo. Se tu quiser, tu vem junto e tenta a sorte lá’. Ele tinha vida aqui, família aqui. Não dava”. Os dois também mantinham uma boutique para gestantes e uma pequena agência de publicidade na capital gaúcha, que Saul tocou enquanto Esther estava em São Paulo.

UMA CARREIRA PREMIADA Depois disso, Esther fez carreira em Porto Alegre: trabalhou no jornal

“QUASE NÃO TINHA MULHER NO JORNALISMO GAÚCHO” Zero Hora e chegou a ganhar prêmios, como o Esso regional, com uma série de reportagens publicadas na Folha da Tarde, e o da Associação Rio-Grandense de Imprensa (ARI). Diz que foi muito feliz. Ao final do áudio gravado naquele sábado na Redenção, em meio aos sons

de balanço da pracinha ao lado, é possível ouvir Esther dizendo: “Essa é uma história inesquecível, tu não acha?”. Mais tarde, também em conversa por mensagens, ela confirmou e corrigiu algumas datas desta história, pedindo desculpas pelos enganos e mostrando que ainda é uma jornalista atenta. Falei que era normal não lembrar dessas coisas, e ela logo rebateu: “Ah, mas eu tenho orgulho da minha memória”.

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OS BRIGADEIROS QUE TRANSFORMARAM

UMA VIDA HÁ DOIS ANOS, JOÃO NICHES LARGOU O CRACK E HOJE SE DEDICA À CONFEITARIA Texto e fotos: Vitória Fagundes fagundes.vitoria@icloud.com

ARTE: GABI BERWANGER

Artes: Gabi Berwanger e Stela Jacob Saldanha

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Dizem que não desistir de tentar é uma das maiores lições de vida que se pode ter. E foi isso que aconteceu com João Roberto Silva Niches, de 39 anos, de Viamão. Ele teve a persistência de lutar pelos seus sonhos mesmo depois de passar por muitas dificuldades, que começaram com uma grande perda. Aos 14 anos, tornou-se usuário de crack e passou a viver nas ruas. A dependência começou após a morte de seu pai, com a qual João não conseguiu lidar. Ele foi assassinado em seu local de trabalho, como segurança. “Foi um choque para mim, e minha mãe precisou segurar as pontas.” Depois desse trauma, João começou a morar nas ruas e perdeu, inclusive, o contato com seu filho.

O CRACK João fumou crack por 22 anos. Ficou sem rumo na vida e sem o apoio da família. “Eu fui expulso de casa pela minha mãe, porque eu roubava muita coisa. Eu cheguei a roubar a cama dela.” Ele conta que, nesse período, passou por várias situações de perigo. Em 2002, por exemplo, chegou a sofrer uma tentativa de homicídio. “Deus me libertou de muitas mortes”, lembra. Só quando chegou no fundo do poço que João

“HOJE EU SOU UM MILAGRE DA VIDA, PORQUE TIVE QUE PAGAR MEU PREÇO” notou que precisava largar as drogas. “Ali eu vi que não era pra mim mais, me liguei que usar droga não era pra mim. É muito difícil, porque essa vida nas drogas não é brincadeira.” Por isso, em 2019, buscou ajuda em uma clínica de reabilitação. O crack é considerado um problema de saúde pública e está associado à violência e à criminalidade, assim como a problemas psicológicos e sociais. O 3º Levantamento Nacional sobre o Uso de Drogas, publicado em 2017 pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em parceria com outras instituições, mostrou, por exemplo, que 3,2% dos brasileiros haviam usado substâncias ilícitas nos 12 meses anteriores à pesquisa, o que equivale a 4,9 milhões de pessoas. Em relação ao crack, aproximadamente 1,4 milhão de pessoas entre 12 e 65 anos relataram ter feito uso da droga e similares alguma vez na vida. João é um exemplo de quem conseguiu largar o vício. Mesmo que há dois anos ele não use mais crack, como qualquer ex-usuário, ainda é considerado um dependente químico. De acordo com o Relatório Mundial sobre Drogas, com dados de 2019, divulgado pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), 35 milhões de pessoas sofrem de transtornos decorrentes do uso de drogas no mundo e necessitam de tratamento. “Hoje eu sou um milagre da vida, porque tive que pagar meu preço”, diz João.

A CONFEITARIA Foi por meio de um curso de confeitaria oferecido por uma universidade particular de Novo Hamburgo que João encarou os estudos e logo conseguiu montar seu negócio com a venda de brigadeiros gourmets, que hoje são a sua especialidade. “A universidade estava oferecendo esses cursos gratuitos aos jovens, aproveitei e me inscrevi, porque sabia que algo bom iria surgir.”

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Mas o amor pela confeitaria não é de agora. Ele conta que sua mãe e seu falecido pai amavam cozinhar. E é através do dote da família que o confeiteiro adora se aventurar: “Sei fazer todo tipo de prato. O ato de cozinhar para mim é prazeroso, me faz bem”. As vendas são realizadas, principalmente, no Parque da Redenção, em Porto Alegre. Todos os doces são preparados, de acordo com ele, com muito amor. João conta que a venda dos brigadeiros possibilitou a ele conhecer novas histórias de vida: “Eu aprendi a escutar. Esses tempos conheci uma menina com síndrome de Down e ofereci os docinhos aos pais dela. O pai dela comprou o docinho e, em questão de minutos, ela me abraçou dizendo ‘ai tio, obrigada’. Isso foi prazeroso”. O esforço, no entanto, é diário, pois nem sempre é fácil ter retorno financeiro. “Tem dias que consigo vender bastante e outros dias nem tanto. Quando eu me desanimo e fico chateado, eu lembro aonde posso parar novamente se eu desistir. E todo dia agradeço a Deus.” Um dos objetivos de João agora é o de poder montar uma clínica de reabilitação para dependentes químicos que precisam de ajuda. “Um dos sonhos eu já realizei, que foi o de ter a minha família de volta”.


ARTES: STELA JACOB SALDANHA

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AS FUGAS QUE FORMAM

CAMINHOS NA DÉCADA DE 1970, VINDA DE CACHOEIRA DO SUL, ROSÂNGELA MARIA DA LUZ, HOJE COM 58 ANOS, FOI LEVADA À FUNDAÇÃO ESTADUAL PARA O BEM ESTAR DO MENOR (FEBEM), ONDE VIVEU DURANTE OITO MESES. ATÉ TOMAR UMA DECISÃO Texto: Isabel Gomes isabel.gomes@ufrgs.br Fotos: Vitória Fagundes

ARTE: SOFIA KERR

Artes: Bruna KL e Sofia Kerr

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Aos 14 anos, Rosângela Maria da Luz virou Cristiane. Não houve mudança nos documentos, nem uma simples vontade de trocar de ares. O autobatismo foi, na verdade, um ato de rebeldia. Essa foi a identidade que ela escolheu ao chegar na Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor (Febem), atual Fundação de Atendimento Sócio-Educativo (Fase/RS). Na época, década de 1970, a instituição não separava as áreas dos abrigos e de atendimento a adolescentes autores ARTE: SOFIA KERR

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de ato infracional. Recebia, portanto, crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade, órfãos e jovens em conflito com a lei. Nenhuma dessas situações foi exatamente o motivo que levou Rosângela até lá.

DA FUGA AO ENCONTRO Natural de Cachoeira do Sul, município da região central do Rio Grande do Sul às margens do rio Jacuí, ela decidiu, aos 14 anos, fugir de casa. O interior já era pequeno demais para

caber sua vontade de viver. Não era fugitiva de primeira viagem: aos nove anos já tinha tido a primeira experiência. Caçula entre nove irmãs, Rosângela costumava apanhar na infância. “A mãe eu acho que foi muito sofrida, ‘judiava’ muito dos filhos, não tinha muito tato.” Um dia, sua mãe, de saída para lavar as roupas na sanga, pediu para que ela fizesse um arroz no fogão a lenha. Rosângela cumpriu a tarefa que lhe foi solicitada, mas o arroz ficou mole demais. “Quando ela viu que o arroz ficou mole, eu apanhei tanto, com batedor de roupa e tudo. O pau tava pegando. Eu fingi que desmaiei. Eu estava em cima de um sofá, ele era branco, nunca vou me esquecer. Eu saí de lá, saí correndo. Botei meu vestido verdinho de chitinha, minha melhor sandalinha e fugi de casa”. O rumo possível para uma criança de nove anos foi uma tia que morava longe. Ao chegar lá, a justificativa para a visita inesperada foi que sua mãe havia a mandado passar uns dias na parente. “Passou um dia, passou dois, passou três, e eu só com a roupa do corpo, chegou uma hora que ela me apertou.” De lá, foi para uma vizinha, onde se abrigou por mais alguns dias e planejou seu retorno estratégico para casa: decidiu voltar em uma Sexta-Feira Santa, quando os mandos católicos teriam mais força do que as leis que regiam sua casa e, seguindo os costumes da data, a mãe de Rosângela não poderia batê-la. A estratégia deu certo. Passados cinco anos, foi então que a segunda fuga veio. Desta vez, o destino era um pouco mais distante do que a casa da tia: Porto Alegre. Para custear a viagem, Rosângela arrumou dinheiro emprestado com um conhecido da família, dono de um clube da cidade. O empréstimo, feito supostamente para comprar um livro, pagou o bilhete do trem que trilhou os 196 quilômetros até a Capital. Embora algumas de suas irmãs vivessem em Porto Alegre, ela decidiu tomar as rédeas da própria vida. Não queria ir para a casa de ninguém. Procurou emprego, mas recebeu nãos como resposta devido à idade. Sem conhecer


ARTE: BRUNA KLEIN

a cidade, acabou ficando pela Praça XV de Novembro, no centro, onde passava os dias. Por lá, por vezes encontrava um policial militar. “O brigadiano queria me levar para o quarto. Eu não queria, era virgem ainda, eu conseguia fugir dele. Aí um dia ele me pegou pelo braço, nunca me esqueço, eu tava comendo uma coxinha. Ele disse: ‘hoje tu vai comigo ou tu vai para Febem.’”

“ENTÃO TU PODE ME LEVAR PARA A FEBEM” Foi assim que, em meados da década de 1970, Rosângela chegou na instituição que acolhia menores de idade. Pela revolta diante da situação, apresentou o nome errado e foi dessa forma que, dentro da Febem, passou a viver como Cristiane. Na ala feminina, Rosângela (ou Cristiane), com o ensino fundamental incompleto, até a sexta série, era uma das com maior nível de ensino entre as meninas que lá estavam abrigadas. Foi auxiliar de almoxarifado e trabalhou no depósito da instituição. Do local, guarda boas lembranças e define como “legal” a época vivida.

“EU SAÍ DE LÁ, SAÍ CORRENDO. BOTEI MEU VESTIDO VERDINHO DE CHITINHA, MINHA MELHOR SANDALINHA E FUGI DE CASA”

vira mulher. Foi justamente com esse raciocínio que tomou uma decisão: uma terceira fuga. “Já tô com 15 anos, eu sou adulta, eu vou fugir daqui”, pensou na época. E não precisou muito: avistou um matagal próximo à sede da fundação e por lá conseguiu traçar seu destino à liberdade.

Dentre as histórias que guarda da instituição, Rosângela lembra que, no espaço em que deveriam ter apenas pessoas do sexo feminino, havia uma do gênero masculino. Ao questionar a uma colega sobre o porquê de um menino estar na ala feminina, a colega explicou que essa pessoa estava em processo de transição de gênero, a qual, pouco tempo depois, passou pela cirurgia de redesignação sexual e pôde ser transferido. Até hoje, Rosângela não esquece do nome morto, como é chamado o nome de nascimento ou nome anterior de uma pessoa transgênero ou não binária: Isabel. Mas não sabe qual foi o novo nome adotado. Foi dentro da Febem que Rosângela completou 15 anos, a idade que carrega o estereótipo social de que toda menina

De fuga em fuga, Rose, como prefere ser chamada, foi fugindo dos obstáculos da vida. Sofreu tentativa de homicídio mais de uma vez. Teve sua casa incendiada. E isso não é nem um terço de tantas histórias inesquecíveis que a formaram como uma mulher forte, que relembra dos problemas da vida sorrindo. Hoje, com 58 anos, Rosângela é autônoma, e a venda de picolés é seu ganha-pão. Marca presença aos sábados e domingos no Parque da Redenção, em Porto Alegre. De sorriso largo e fala cantada, ela atrela a sua personalidade ao signo de Áries. O que é inegável é que Rose carrega consigo as principais características comumente vinculadas ao signo: coragem, persistência e impulsividade.

CORRIDA COM OBSTÁCULOS

SEXTANTE Maio de 2022

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ARTE DE LUCIANA HOERLLE EM FOTO DE LUCIANO DEL SENT

REVISTA EXPERIMENTAL DO CURSO DE JORNALISMO DA FACULDADE DE BIBLIOTECONOMIA E COMUNICAÇÃO (FABICO) DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL (UFRGS) Disciplina de Jornalismo Impresso Direção da Fabico Ana Maria Mielniczuk de Moura

Comissão editorial: Duda Romagna, Guilherme Jacques, Lucas Borghetti, Rafaela Frison e Rafaela Pollacchinni

Chefia do Departamento de Comunicação Marcelo Träsel

Repórteres: Bettina Gehm, Guilherme Jacques, Isabel Gomes, Joyce Rocha, Duda Romagna, Rafaela Frison, Rafaela Pollacchinni, Ricardo Morais, Rochane Carvalho e Vitória Fagundes

Professora-editora Thaís Furtado Subeditora Stéfani Fontanive (mestranda do Programa de Pós-graduação em Comunicação da UFRGS)

Monitora Bibiana da Costa Davila Estagiários Gabriel Omelischuk e Júlio Câmara Diagramação Graziele Borguetto Impressão Gráfica da UFRGS

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SEXTANTE Maio de 2022

Fotógrafos: J. Gonzalez, Lucas Borghetti e Vitória Fagundes Revisores: Daniel da Silva Baptista, Filipe Pacheco, Joyce Rocha, Júlia Bordinhão e Luís Andrei Arndt de Souza Comissão de lançamento e distribuição: Bettina Gehm, Isabel Gomes, Luara Rodrigues Brundo, Ricardo de Morais Rodrigues e Rochane Carvalho (curso de Jornalismo). Gabi Berwanger (curso de bacharelado em Artes Visuais) e Vivian Dominot (curso de licenciatura em Artes Visuais) Parceria: Projeto de extensão Ilustraê! com coordenação e orientação da professora Paula Mastroberti, do Instituto de Artes da UFRGS Assistente editorial do Ilustraê!: Luciana Hoerlle Capa e contracapa: Arte de Nickole Monfron em foto de Lucas Borghetti


ARTE DE BETINA NILSSON EM FOTO DE LUCAS BORGHETTI



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