FACULDADE DE BIBLIOTECONOMIA E COMUNICAÇÃO – FABICO/UFRGS | DEZEMBRO DE 2019 | EDIÇÃO #54
DESIGUALDADE E DIVERSIDADE
KAROLAINE LEÃO
“ELES ACHAM QUE A GENTE NÃO TEM CAPACIDADE PARA SER O QUE A GENTE QUER SER, COMO PROFESSOR, ADVOGADO. MAS, SE A GENTE ESTUDAR, TEREMOS CAPACIDADE, SIM, PARA SER O QUE QUISERMOS NA VIDA” EZEQUIEL MARQUES, ESTUDANTE. PÁGINA 46
EDITORIAIS MAIS DIVERSIDADE, MENOS DESIGUALDADE
O ABISMO ENTRE AS CORES
Os repórteres e fotógrafos desta edição da Sextante resolveram unir dois temas para nortear a produção de suas reportagens: desigualdade e diversidade. Ou será que deveríamos dizer que as repórteres e as fotógrafas é que decidiram fazer isso? Tratar desses assuntos em uma revista experimental de um curso de Jornalismo no Brasil já significa esbarrar de cara em um primeiro desafio: a falta de um gênero neutro na língua portuguesa. Na turma que produziu os textos, há 16 mulheres e apenas três homens. Na de foto, são 13 mulheres e cinco homens. Mesmo assim, as normas da língua portuguesa indicam que sempre se deve usar o gênero masculino para se referir a um grupo de pessoas composto por homens e mulheres. É possível dizer, então, que a língua portuguesa já é, por si só, machista por não ter um gênero neutro? E se a linguagem já é pouco inclusiva, o que dizer de todo o resto? Desigualdade e diversidade são palavras que remetem à diferença, mas de formas praticamente opostas. Diversidade é a qualidade daquilo que é diferente. Desigualdade é o estado de coisas ou pessoas que não são iguais entre si. Jornalistas precisam compreender que as pessoas são diversas e que todas podem ter suas histórias contadas. Ou seja, têm que saber que as pessoas não devem ser tratadas de forma desigual. São duas maneiras de compreender as diferenças, o que nem sempre é simples. Para jornalistas do Brasil de hoje, isso é ainda mais difícil. Principalmente para aqueles que estão se formando em universidades públicas, que vêm sendo atacadas justamente por serem espaços com muita diversidade e de combate à desigualdade. Nesse cenário, é estimulante conviver com alunas e alunos que preferem não aceitar essa distorção. Ao escolher esses temas e construir suas pautas, essas e esses futuras e futuros jornalistas deixam bem claro que sempre respeitarão a diversidade e questionarão a desigualdade. Isso é ser jornalista, que, coincidentemente, é uma palavra que vale para qualquer gênero.
O Brasil, com toda sua extensão e sua gente, sempre montou um cenário de grandes diferenças, que vêm acompanhadas das desigualdades. Das fazendas aos quilombos. Das coberturas dos condomínios aos viadutos. Dos negros aos brancos. Dos gordos aos magros. Aqui é onde se vê de tudo; onde a pele, o dinheiro, o corpo e o gênero são motivos de orgulho, mas também de preconceito. É com base nessa realidade que a edição 54 da Sextante mostra as diferenças que encantam e as desigualdades que indignam a nossa vasta sociedade. Essa indignação não poderia deixar de ser representada, uma vez que o Brasil atinge nível recorde de pessoas em situação de miséria. De acordo com o IBGE, em 2018, 13,5 milhões de brasileiros se sustentavam com R$145 por mês. A desigualdade entre rendas também aumentou no período, refletindo o abismo entre ricos e pobres, aumentando as diferenças. Estamos no país onde 1% da população mais rica tem rendimento mensal quase 34 vezes maior que da metade mais pobre. Os números da realidade nua e crua nos fizeram refletir sobre a desigualdade como uma das temáticas de nossas reportagens. A outra aqui presente, a diversidade, veio como forma de demonstrar a maneira que resistimos e encontramos espaços mesmo com índices desmotivadores. E as cores da diversidade quase foram apagadas neste semestre. A colorida revista que hoje está em suas mãos precisou ser planejada inicialmente em preto e branco por conta dos contingenciamentos e cortes de verbas que atingem as universidades públicas. Reconquistamos as cores, mas ainda esperamos mais investimentos para avançarmos. A partir dessa perspectiva é que abordamos também a visão de um mundo de quem não tem a concepção de cor que temos. As 18 reportagens apresentadas ao longo da edição contam histórias que estão por todo o lado na vida em sociedade. São diversos enredos e distintos personagens. Conhecê-los nunca foi tão necessário.
Thaís Furtado thais.furtado@ufrgs.br
Comissão editorial
* Todas as reportagens estão disponíveis em versão digital no site www.ufrgs.br/humanista
Sextante é um instrumento que mede a distância angular entre um astro e a linha do horizonte. Com ele, os navegadores calculam sua posição e podem corrigir eventuais erros de navegação.
ÍNDICE Pluralidade
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Construção Civil
10
Moradia
14
Agricultura
18
Voluntariado
22
Adoção
26
Meia-idade
30
Saúde
34
Arte
38
Cultura
42
Racismo
46
Síndrome de Down
50
Ensino
54
Síndrome de Asperger
58
Pornografia
62
Gordofobia
66
Torcidas
70
Transexualidade
74
Andrielle Prates Ariel Lopes
Anderson Dorneles Jadde Molossi Steffany Cuacoski Alnilam Orga Júlia Flor
Camila Bengo Natássia Ferreira Nathália Cassola Karolaine Leão Raíssa de Avila
Filipe Bertoglio e Gabriela Plentz Jaqueline Kunze Luísa Santini
Vitória Pinzon Júlia Vargas Tamires Rodrigues
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JORGE CARRASCO
“A ARTE É O REFLEXO DE UM TEMPO, MAS TAMBÉM ELA DEFINE ESSE TEMPO” Eduardo Veras
Professor do Instituto de Artes da UFRGS Página 38
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PLURALIDADE
IDENTIDADE DRAG
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DRAG DEIXOU DE TER APENAS UMA DEFINIÇÃO E SE TORNOU DIVERSIDADE. HOJE, É UMA FORMA DE RESISTÊNCIA, REPRESENTAÇÃO, MANIFESTAÇÃO ARTÍSTICA E GLAMOUR Texto: Andrielle Prates andrielle.prates26@gmail.com
Julha se apresenta como Chameleón, representando a ideia das diferentes personalidades que ela pode ter
Fotos: Geovana Benites e Mariana Alves geovanasbenites@gmail.com alvesb.mari@gmail.com Diagramação: Anderson Dorneles anderson.615@hotmail.com
Na definição do dicionário, drag queen é o homem que se veste de mulher, imita voz e trejeitos considerados femininos, usando roupas exóticas e maquiagem, seja por diversão ou trabalho. Porém, a palavra carrega um significado muito maior e foi adotada para representar uma forma de arte, na qual a figura drag é uma persona que está sempre em processo de transformação, descobertas e mudanças. Desde que o mundo é mundo, homens se vestem de mulher como uma forma de arte. Na Grécia Antiga, onde nasceu o teatro, os papéis femininos eram feitos por homens, uma vez que mulheres eram proibidas de se apresentar no palco. O tempo passou, mudou, e com ele a arte drag ascendeu e veio conquistando seu espaço pelo Brasil. Em Porto Alegre, essa arte vem se tornando cada vez mais acessível e respeitada. A cena antes era pouco explorada pelos porto-alegrenses, mas começou a crescer a partir de espaços abertos na cidade que deram lugar à diversidade artística e ampliaram vozes que não eram devidamente ouvidas. Com a ascensão, em abril de 2017, o primeiro bar drag da capital gaúcha foi aberto: a Workroom. O espaço, cujos donos preferem chamá-lo no feminino, foi inspirado no reality show norte-americano RuPaul’s Drag Race, que acompanha as participantes em desafios de canto, dança, costura, talento, SEXTANTE Dezembro de 2019
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Lo Litta tenta demonstrar fofura através da sua maquiagem
humor e personalidade para escolher a nova estrela drag dos Estados Unidos. Idealizado pelo administrador e proprietário Rodrigo Krás Borges e pelo seu sócio, Gabriel Dreher Bittencourt, o bar está sempre de portas abertas para receber todos aqueles que reconhecem e apoiam a arte das transformistas. Frequentado majoritariamente pelo público LGBTQ+ e por mulheres, o espaço atualmente conta com um casting de 28 drags locais, que se apresentam uma vez por mês conforme a escala organizada pelo bar. Dar visibilidade a performistas independentes de Porto Alegre e proporcionar diversão segura à comunidade LGBTQ+ são algumas das funções da Workroom, que, com o seu cenário colorido e um ambiente aconchegante, conseguiu visibilizar a cena drag na capital e ampliar as opções de diversão do público da região. “A ideia surgiu numa mesa de bar no final do ano de 2016. Eu sempre quis abrir um negócio voltado à responsabilidade social e ao entretenimento”, ressalta Rodrigo. Muito mais do que um empreendimento, a Work contribui para a socialização dos artistas e para a quebra de barreiras que ainda permeiam a questão, uma vez que acolhe a arte de um público que sempre foi colocado às margens da sociedade e possibilita ampliar essas vozes capazes de romper
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com as construções sociais que desmerecem os movimentos artísticos. A identidade drag queen não é uma representação fidedigna da imagem da mulher, não é um modelo de corpo representativo da mulher, tampouco representativo do homem. As drags não se encontram ou se encaixam em nenhum modelo estereotipado de gênero, sexo ou sexualidade. Apesar de às vezes suas identidades queens adotarem nomes femininos, elas são avessas à sociedade heteronormativa. O mesmo vale para os kings (geralmente artistas do sexo feminino que se vestem e personificam os estereótipos do gênero masculino), por isso, deve-se pensar nesse movimento como uma liberdade de expressão, pois arte é isso. Atualmente, a expressão drag não possui apenas as funções de entretenimento, como em lipsyncs (sincronia labial, ou seja, dublar uma música de modo verossimilhante ou caricatural), voguing (dança que se caracteriza por posições típicas de modelo), ou esquetes cômicas, abordando principalmente a cultura e o universo gay através de zombarias e roupas esbeltas e conceituais. Em decorrência das várias transformações, com o intuito de perpetuar sua existência, a arte drag é capaz de modificar estilos, linguagens e conteúdos, como uma forma de manifestação política, na luta para despertar uma
sociedade adormecida. O profissional tem responsabilidades com sua arte e, sobretudo, com a sociedade para a qual se torna a voz e referência. A drag possui uma função social cênica de entretenimento e de política que não se basta no autoprazer e no divertimento do cotidiano. Corroborando com isso, Porto Alegre tem o privilégio de contar com artistas que são resistência em meio ao conservadorismo.
LO LITTA É LIBERDADE Foi em 2015 que tudo aconteceu. Quando, no final da sua graduação, o artista Lorenzo Lopes Soares, de 25 anos, passou a se interessar por figuras performáticas e pela possibilidade de atuar de uma forma diferente do que é apresentado nos palcos tradicionais. Encontrou na arte drag o espaço para se expressar como queria e ainda falar sobre gênero e sexualidade. “Foi pela drag que eu entendi a importância de ser LGBT e de me posicionar como tal. Acabei conhecendo pessoas de toda a sigla, que antes eu não tinha a possibilidade de conhecer. Fui acolhido pelas pessoas que passam pelas mesmas questões que eu e consegui exercitar empatia e acolher questões que não me atravessam, mas que passam pela vida de outras pessoas”, comenta Lorenzo. Trabalhando profissionalmente há quase quatro anos como Lo Litta, o
performista considera importante realizar as apresentações misturando características que quebram a expectativa do público, de forma a surpreender as pessoas com as diversas faces do fazer drag. Com um extenso histórico de shows em Porto Alegre, Lorenzo acredita que a cena drag é artisticamente rica, pois, mesmo que a cidade ainda não seja o maior polo da arte drag, é possível encontrar uma pluralidade de manifestações artísticas com diferentes formatos, pensamentos e propostas. A capital gaúcha ainda não coloca em primeiro plano as atividades artísticas , o que torna difícil manter a arte de pé, mas os artistas locais fazem de tudo para sustentar a profissão, com base na sua liberdade, no reconhecimento, respeito e apoio do público. “Drag significa a liberdade de poder fazer tudo aquilo que eu passei a vida inteira ouvindo que eu não poderia fazer”, destaca. Para a cena drag se manter na região, é necessário que outros lugares abram suas portas para prestigiar essa arte performática. Arte essa que só existe quando as personas expressam exatamente o que estão sentindo naquele instante, de forma que a atenção e interação do público estejam voltadas a elas. Para a mensagem ser compreendida de forma correta, o público fica em silêncio, com olhos e ouvidos atentos aos gestos explorados nos palcos. Mais do que encarnar uma personagem, fazer drag é uma forma de externar sentimentos resguardados, de fazer denúncias políticas e dividir com o público o peso de viver com a incompreensão.
MULHER DRAG EXISTE SIM!
“O DRAG PRA MIM NÃO É SIMPLESMENTE UM PERSONAGEM, É PARTE DA MINHA VIDA E DA MINHA CONSTRUÇÃO COMO SER HUMANO” Julha Franz Artista Visual
fazer a mesma subversão que os homens performistas faziam. Foi quando ela percebeu que fazer drag king era a sua verdade. Assim nasceu o Leon Lojas, seu personagem. O processo de personificação da artista começou, e com ele a conquista de muitos espaços. Apresentações fora do estado, participação em grandes festivais, status e um reconhecimento que nenhuma outra mulher havia tido. O fazer drag é muito maior do que a definição do feminino e do masculino. Fazer drag é sobre expressão, sobre singularidade, sobre explorar o interior de cada um e, principalmente, sobre identidade. Resumir essa arte a gênero é infiel à proposta do seu contexto geral, em que ampliar a visão das pessoas sobre o mundo é um dos propósitos. Pensando nisso, Julha passou a não considerar mais apenas uma linguagem de gênero para personificar nos palcos e hoje tem um novo personagem: Chameleón, um drag queer, ou seja, um drag não binário (identidade de gênero que não é exclusivamente homem ou mulher). O nome foi escolhido a partir da ideia
do camaleão, que reflete a habilidade de representar o estado da artista no dia ou semana da performance. “Drag pra mim não é simplesmente um personagem, é parte da minha vida e da minha construção como ser humano. É uma maneira de comunicar e provocar questionamentos. A minha identidade é fluida, e esse personagem me permite fazer, de vez em quando, personagens mais femininos e, de vez em quando, mais masculinos”, ressalta. Poder surpreender a si mesma a cada apresentação é uma das habilidade de Julha, que preza por sua espontaneidade e acaba escolhendo a sua persona “de espírito” horas antes do show. “Tudo o que eu faço é espontâneo, justamente pra tentar ser o mais verdadeira possível com o que está dentro de mim”, comenta. Apesar da sigla LGBTQ+ ter como principal objetivo promover a diversidade, a manifestação artística drag não surgiu vinculada ao movimento, mas acabou sendo incorporada à sua cultura a partir do processo social que rompe com a perspectiva binária heteronormativa. Ainda assim, no início da sua trajetória como drag king, Julha – mulher lésbica – sofreu muito preconceito dentro da comunidade LGBTQ+ com o não reconhecimento da sua arte e a invisibilização da sua participação no movimento. Drag não se define com frases feitas ou com conceitos padronizados, pois drag é verbo, é sujeito e é protagonista de diversas histórias, com os mais variados enredos. Pluralidade, resistência, representação e manifestação artística são palavras que podem resumir parte do que é a identidade drag.
Não é novidade que mulheres sofrem preconceito de gênero, principalmente em espaços majoritariamente masculinos como o da cena drag, mesmo que essa identidade se proponha a uma desconstrução de gênero. Mas as mulheres existem e têm o direito de ocupar os lugares que quiserem, e Julha Franz ocupou. Em 2015, com a ascensão da cena drag em Porto Alegre, a artista visual e ex- diretora artística da Workroom Julha Franz começou a se montar como drag queen, porém o que ela queria mesmo era SEXTANTE Dezembro de 2019
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CONSTRUÇÃO CIVIL
ELAS EXIGEM ESPAÇO 10
SEXTANTE Dezembro de 2019
Texto e diagramação: Ariel Lopes ariellopescarmo@gmail.com Fotos: Eduarda Stefenon e Karoline Costa dudastefenon@gmail.com karoline.costads@gmail.com
Daniella e Natália transformaram a amizade de infância em parceria profissional nos canteiros de obra
EM UM MERCADO DE TRABALHO CARACTERIZADO PELA PREDOMINÂNCIA MASCULINA, ELAS TÊM MOSTRADO QUE CONSTRUÇÃO TAMBÉM É COISA DE MULHER
Consertos mal arrematados, gambiarras e muita, mas muita sujeira. Esse é o cenário de uma futura cafeteria no bairro Independência, em Porto Alegre. Por enquanto, o lugar está longe de parecer com o seu objetivo final. Está nas mãos e nas ferramentas de duas mulheres, Daniella Ferreira e Natália Navarro, a missão de transformá-lo. Daniella e Natália são a cara e a força de trabalho da N.N. Manutenções e fazem parte de um grupo que vem crescendo e tomando espaço: são mulheres que encontraram o seu sustento dentro da construção civil. A parceria das duas é de longa data: vem desde a infância vivida na praia de Atlântida Sul, no Litoral Norte do Rio Grande do Sul. É também desde pequena a curiosidade de Natália em construir. “Eu fazia várias casinhas, saía catando tijolo, madeira, até lona. A gente ia pra praça e fazia concursos de melhores casas. Eu sempre ganhava.” Aos 13 anos, começou a acompanhar o cunhado nos serviços de eletricista. Já mais velha, encontrou dificuldades em se manter só com serviços de elétrica, então começou a trabalhar como ajudante de pedreiro e aprendeu o ofício. A vida profissional de Natália não foi só na construção: ela é tricampeã estadual de surf. Mas, entre idas e vindas, já são praticamente 20 anos dentro da obra – sendo sua própria chefe. Para Daniella, o caminho ainda é recente. Formada em pedagogia, lecionou até cansar da rotina da sala de aula. Acompanhava a amiga em alguns trabalhos até decidir entrar para o time da N.N. Manutenções definitivamente. “Eu até penso em voltar pra pedagogia, SEXTANTE Dezembro de 2019
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mas compensa mais, financeiramente inclusive, ficar na obra. Tem semana que a gente tira o que eu tiraria em um mês de trabalho como professora.” Elas não deixam de encarar cada obra como um desafio. “Uma coisa é ter alguém com 40 anos de profissão do teu lado te ajudando, outra é estar sozinha. A atenção é redobrada, a gente fica com os olhos atentos principalmente por ser mulher. Sempre tem uma desconfiança na qualidade do trabalho”, explica Natália. Essa falta de confiança motivada pelo gênero não é nenhuma novidade na vida delas. “Lá na praia, recebi um chamado da imobiliária para consertar o chuveiro de uma casa. Quando eu cheguei, o inquilino queria pegar as minhas ferramentas para fazer o serviço, achando que eu não saberia fazer”, lembra Natália. O futuro café é, contudo, uma mostra positiva de que a maré está virando a favor delas. “Dos orçamentos que a Deise, Bia e Milene trabalham na ONG Mulher em Construção, que já capacitou milhares de mulheres para trabalhar na construção civil
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FORMAÇÃO
“LÁ NA PRAIA, RECEBI UM CHAMADO DA IMOBILIÁRIA PARA CONSERTAR O CHUVEIRO DE UMA CASA. QUANDO EU CHEGUEI, O INQUILINO QUERIA PEGAR AS MINHAS FERRAMENTAS PARA FAZER O SERVIÇO, ACHANDO QUE EU NÃO SABERIA FAZER” Natália Navarro Pedreira
dona recebeu, o do homem era o mais barato e rápido, o nosso era o mais caro e demorado. Mas foi na conversa e no que a gente passou de seriedade que garantimos o serviço”, diz Natália. E se elas pedem um tempinho a mais, é sinal de capricho. “Obra sempre tem problema. A gente orça com tempo de sobra para que a qualidade seja boa e o serviço saia bem feito”, explica Daniella.
Para conseguir entrar em um mercado de trabalho tão masculino, não basta saber fazer: é preciso se especializar. Em um movimento contrário ao feito pela maioria dos homens no ramo, que começam a aprender já dentro dos canteiros de obra, as mulheres buscam primeiro algum tipo de estudo sobre as técnicas para então tentar a inserção no mercado. Além de garantir o aprendizado, a especialização também dá confiança para que as mulheres se candidatem às vagas pretendidas. Foi pensando nisso que Maria Beatriz Kern, a Bia, fundou a organização não-governamental (ONG) Mulher em Construção, um projeto que 13 anos depois de seu início já mudou a vida de mais de cinco mil mulheres. A ONG oferta cursos e oficinas de capacitação para mulheres na área da construção civil. Quando criança, os reparos da casa em que Bia morava eram feitos pela mãe. “A gente foi muito lesada por caras sacanas, que eram contratados e não faziam o serviço.” Anos mais tarde, trabalhando com serviço público, encontrou mulheres com dificuldade para conseguir sustentar suas casas.
Então, viu na construção civil não só uma maneira de suprir as necessidades dessas chefes de família, mas principalmente uma forma de empoderamento. “Toda vez que uma mulher pega uma ferramenta, ela entende que isso é uma construção dela. Uma reforma que primeiro é interior, que passa para fora e que é aplicada.” Na primeira oficina realizada, foram 300 inscritas para 25 vagas. Depois disso, decolou. “Hoje nós temos uma lista de espera enorme! E a gente queria fazer mais, formar mais, mas não tem como.” O Mulher em Construção conta com a parceria de empresas de engenharia e lojas de material de construção. Falta, contudo, apoio governamental. “A gente propôs uma revitalização da rua, mas ninguém topou. Eu já dei palestra em um monte de lugares fora do Brasil, mas aqui ainda falta esse reconhecimento.” Mais do que despertar as capacidades de cada uma, Bia se orgulha em dizer que o Mulher em Construção modifica também a consciência das comunidades e grupos envolvidos. “Nossas oficinas hoje envolvem famílias inteiras. Imagina qual é o impacto para as crianças que convivem com mulheres trabalhando em obras, que aprendem desde cedo que não existe trabalho de menino e trabalho de menina?”
APOIO E ORIENTAÇÃO Com mulheres qualificadas, é hora de entrar no mercado de trabalho. Agora, a questão é como garantir o sustento em um espaço de trabalho que ainda abre pouca brecha para a presença feminina. Para Natália e Daniella, a solução foi trabalhar em parceria com a Diosa, uma startup que faz o meio de campo entre a prestadora de serviços e o cliente. Enquanto o pai viajava, Maira Peres se viu sozinha para cuidar de uma obra em sua casa, em São Leopoldo, na Região Metropolitana de Porto Alegre. “Eu posso sair de casa? Eu tenho que ficar trancada no quarto? Eu não sabia como lidar com aqueles homens e pensei que seria muito mais fácil se fossem profissionais mulheres.” Foi desse desconforto ao ter estranhos
trabalhando em sua casa que ela criou a Diosa, hoje administrada com a sócia Larissa Blessmann. A empresa começou em 2016, mas exigiu anos de pesquisa e preparação. Durante as investigações do mercado, Maira percebeu padrões de insatisfação entre os clientes. “A maioria reclamava que o serviço era mal feito, demorava, e muitas mulheres também sentiam o mesmo desconforto de estar rodeada de homens desconhecidos.” Baseadas nisso e na vontade de oferecer novas oportunidades de emprego para mulhe-
“NOSSAS OFICINAS HOJE ENVOLVEM FAMÍLIAS INTEIRAS. IMAGINA QUAL É O IMPACTO PARA AS CRIANÇAS QUE CONVIVEM COM MULHERES TRABALHANDO EM OBRAS, QUE APRENDEM DESDE CEDO QUE NÃO EXISTE TRABALHO DE MENINO E TRABALHO DE MENINA?” Bia Kern
Presidente da Mulher em Construção
Maira e Larissa são as donas da plataforma Diosa
res, elas criaram a plataforma online que faz o intermédio entre quem precisa de um serviço e profissionais de elétrica, hidráulica, pintura, reforma e marcenaria. A Diosa também atua como um apoio na hora da mulher se inserir no mercado. “A gente ajuda a como passar orçamento, como se portar com o cliente, como cobrar. Muitas sabem fazer, mas não sabem precificar o trabalho, então nós estamos aqui para tudo o que precisarem”, enfatiza Larissa. As trabalhadoras da Diosa percebem uma maior aceitação dessas mulheres no mercado de trabalho, mas notam que ainda existem muitas dificuldades. “As empresas de grandes obras não querem se comprometer a lidar com os possíveis problemas que podem acontecer, não querem adaptar a estrutura de um canteiro para que a mulher se sinta confortável em trabalhar lá”, frisa Maira, dando como exemplo a falta de banheiros e vestiários femininos. Uma rede de apoio solidificada é a base para que as mulheres ocupem lugares diversos na sociedade. Com incentivo, creem na própria capacidade de arrumar o que está torto e de construir no que é vazio. SEXTANTE Dezembro de 2019
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MORADIA
UM LUGAR PARA ENQUANTO NO PAPEL A CONSTITUIÇÃO GARANTE A TODOS O DIREITO À MORADIA, ALGUNS BRASILEIROS PRECISAM ESCOLHER DIARIAMENTE ENTRE COMER E RESIDIR
Apesar da conquista de uma moradia, muitas pessoas ainda vivem em situações precárias na ocupação Sarandi
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A CHAMAR DE LAR Texto, fotos e diagramação: Anderson Dorneles anderson.615@hotmail.com
Existem pessoas que abrem as janelas de suas casas para um jardim, outras para avistar uma linda rua. Tem ainda aquelas que possuem como paisagem, por exemplo, um belo litoral e há também quem não possui nenhuma janela para abrir. Esse último caso, infelizmente, tem significativa expressividade no Brasil. No bairro Sarandi, em Porto Alegre, em 2014, alguns moradores que não possuíam casas decidiram ocupar uma área totalmente vazia do bairro para construir suas moradias. A mobilização iniciou-se de maneira bastante difícil, como relata Silvana Oliveira, ocupante do espaço: “No começo foi horrível, a polícia vinha e ameaçava tirar a gente dali e dizia que iam derrubar tudo. A gente nem conseguia dormir direito no primeiro ano. Nos primeiros dias, colocaram fogo numa casinha, então teve muita briga, e a polícia não respeitava a gente. Nós éramos tratados como ladrões mesmo”. O déficit habitacional brasileiro corresponde à falta de moradias para um determinado número de pessoas, sendo contabilizadas as que não possuem casa ou que moram em situações precárias. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) feita em 2015, o Brasil possui um déficit de aproximadamente 7,7 milhões de moradias. Esse número é resultado do grande comprometimento da renda com o pagamento de aluguel que atinge 3,27 milhões de famílias; além das que dividem o mesmo teto, um total de 3,22 milhões. As chamadas habitações precárias são 942,6 mil e os 317,8 mil restantes pertencem ao chamado adensamento excessivo, ou muita gente morando no mesmo lugar. SEXTANTE Dezembro de 2019
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“Ninguém ocupa porque quer, ninguém sai de uma situação de conforto pra ir correr risco com a sua família, ocupando uma área com o risco de sofrer violações pela polícia e pelo Estado”, pondera Claudia Favaro, fundadora do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto do Rio Grande do Sul (MTST-RS), onde atuou até 2017. Hoje ela é arquiteta coordenadora do Mãos Arquitetura.Terra.Território, uma organização que tem especial dedicação à assessoria técnica para movimentos sociais urbanos. Antes de conquistar sua casa com a ocupação, Silvana e sua família moravam de favor no pátio de sua sogra. Através do movimento, ela conquistou sua própria moradia. “Eu fico muito feliz quando eu olho para a minha casa. Para muitas pessoas, pode parecer que não é nada. A minha casa é simples, mas ela é minha. Eu posso te receber a hora que eu quiser, porque ela é minha. É um sentimento muito bom de ter um lugar meu.” Possuir um local para morar é um direito constitucional. O Artigo 6º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 diz que: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. Então, o Estado tem o dever de prover moradias para A ocupação no bairro Sarandi iniciou-se em 2014 e hoje tem cerca de 126 casas
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sua população. No entanto, no Brasil, nem sempre a constituição é respeitada.
RETRATO DA DESIGUALDADE O fato de se ter ou não um teto para morar está diretamente relacionado com questões econômicas. De acordo com o relatório País estagnado: um retrato das desigualdades brasileiras, realizado pela Oxfam em 2018, o Brasil é o nono país mais desigual do mundo em questão de renda. “A questão da moradia é a forma como a desigualdade se materializa ou não se materializa, porque a moradia é uma coisa muito básica na vida de uma pessoa. E a gente tem imagens clássicas em que a moradia demonstra claramente a desigualdade social no Brasil”, declara Claudia. Como um exemplo clássico há a favela de Paraisópolis em São Paulo, em que apenas um muro separa diversas casas amontoadas e sem condições básicas de moradia de um condomínio luxuoso. Portanto, aqueles que possuem um poder aquisitivo maior obviamente possuem uma ou mais moradias com uma melhor localização e têm uma qualidade de vida mais alta, enquanto muitos não possuem nem o que comer.
UM SONHO CONQUISTADO POR MEIO DA LUTA Lutar pelos direitos constitucionais e do cidadão é algo comum na história do Brasil. A busca por moradia não é um caso à parte. Para ter um lugar para
morar, muitas vezes a única opção é ocupar áreas urbanas que não estão em uso e, naquele espaço, construir uma casa. “A ocupação é um movimento organizado em que as famílias se unem para lutar por moradia juntas. O importante é dizer que a luta por moradia é digna, é justa. Ela busca garantir às famílias acesso ao direito de ter uma residência, direito esse que está na constituição, que está no estatuto da cidade e que tem respaldo de acordos internacionais que o garantem”, declara Fernando Campos Costa, coordenador do MTST-RS. Em um país em que todos valorizam a propriedade privada, poucos sabem que, de acordo com a Constituição Federal de 1988, uma propriedade só é considerada como tal quando cumpre uma função social. E é aqui que se estabelece a diferença entre ocupação e invasão. “Eu acredito que existe muito erro no entendimento entre o que é ocupar e invadir. Invadir tu invade o que não é teu e o que não tem nenhuma relação contigo, enquanto ocupar tu ocupa um espaço que, se ele não tá cumprindo função social, ele não é propriedade. Então as pessoas ocupam os espaços para dizer que não está se cumprindo a lei e, portanto, o Estado deveria tomar uma atitude e construir moradias ali. O sentido de ocupação é o de denúncia, pois quem não está cumprindo a lei é o proprietário que não usa o lugar com o propósito de função social”, explica Claudia . Após as famílias se estabelecerem na ocupação do bairro Sarandi, uma dona apareceu exigindo a posse de sua propriedade. O caso foi acompanhado pelo poder judiciário, e foi decidido que as famílias teriam que pagar pelo espaço que estavam habitando. Para continuar vivendo ali, elas tiveram que pagar prestações de R$ 260 a R$ 360 mensais que variavam de valor dependendo do tamanho do terreno. Isso por três anos. O caso continua em andamento, mas o pagamento já foi realizado pelas famílias que aguardam o fim do processo. Apesar de toda a negociação na justiça, Silvana observa que ainda existe um olhar preconceituoso em relação à
Silvana conquistou a sua casa por meio de um movimento de ocupação no bairro Sarandi
ocupação por parte da polícia. “Falta mais policiamento aqui. Quando a polícia aparece, é porque na outra rua deu um tiro, na outra rua aconteceu alguma coisa, e então eles acham que é alguém daqui, porque para eles vai ser sempre uma invasão. Só que muitas vezes a gente precisa de segurança porque o pessoal vem de outros lugares para cá, e eles acham que a gente não está dando segurança para os outros.” Com aproximadamente 126 casas, a ocupação Sarandi consiste em basicamente uma rua. Casas simples e chão de terra dão ao lugar a sensação de um espaço em desenvolvimento. Andando pela rua, é possível perceber moradias de madeira e de concreto. Apesar dos moradores estarem ali desde 2014, eles continuam tendo dificuldade no acesso a água encanada e energia elétrica. Já foi tentado várias vezes o contato com a prefeitura para ter acesso a esses serviços, porém a resposta foi de que não se tem
“EU FICO MUITO FELIZ QUANDO EU OLHO PARA A MINHA CASA. PARA MUITAS PESSOAS, PODE PARECER QUE NÃO É NADA. A MINHA CASA É SIMPLES, MAS ELA É MINHA. EU POSSO TE RECEBER A HORA QUE EU QUISER, PORQUE ELA É MINHA. É UM SENTIMENTO MUITO BOM DE TER UM LUGAR MEU” Silvana Oliveira
Moradora da ocupação Sarandi
dinheiro para realizar obras no local. “A coisa mais impactante para um militante é ver a transformação social acontecendo. Ver as famílias se organizando, a solidariedade entre elas e ver isso de certa forma humanizando a cidade. As famílias lutando e se organizando por um direito, e ver o quanto o poder popular tem força. É muito forte”, declara Fernando. Essas comunidades geralmente possuem um sentimento de coletivo muito consolidado, justamente por terem passado por todo um processo coletivo em busca de algo em comum. A área ocupada no bairro Sarandi é uma prova disso. “Aqui é um espaço bom de se morar, é um lugar em que a gente convive muito bem, todo mundo se conhece. Eu adoro morar aqui, porque desde o começo todo mundo lutou pelo mesmo objetivo, e agora nós queremos só progresso”, relata Silvana. SEXTANTE Dezembro de 2019
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AGRICULTURA
SEMENTES DE PASSADO E DE FUTURO SÍMBOLOS DA BIODIVERSIDADE AGRÍCOLA E SOCIAL, AS SEMENTES CRIOULAS PRESERVAM CULTURAS E GARANTEM O FUTURO DA ALIMENTAÇÃO Texto: Jadde Molossi jaddemolossi@gmail.com Fotos: Mariana Guazzelli guazzinha@gmail.com Diagramação: Alnilam Orga alnilam_orga@hotmail.com
Amarelão, argentino, oito carreiras, caiano, catete branco, cunha, lombo baio, sabugo fino, brancão, pampeano, pintado, taquarão. Em comum, esses nomes todos denotam algum tipo de milho e, mais especificamente, referem-se àquelas que figuram entre as principais variedades de milho crioulo produzidas no Rio Grande do Sul. Além desses tipos, ainda existem muitos outros, de diversas cores e tamanhos. E, além do milho, ainda há o feijão, o arroz, a fava, a abóbora, o melão… O universo dos alimentos crioulos engloba uma infinidade de variedades que não se encontra no supermercado.
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As sementes crioulas são aquelas que possuem uma adaptação específica ao seu ambiente e forma de cultivo. O desenvolvimento dessas variedades é tanto resultado de um processo de seleção natural, relacionado às condições ambientais do local, quanto das práticas de manejo aplicadas sobre elas. “A seleção passa pela relação com o ambiente, com o sol e a sombra que se tem sobre a área, com a forma de trabalhar do agricultor, os minerais presentes na água e no solo, a preferência da família”, explica Juarez Pereira, produtor de arroz crioulo em Barra do Ribeiro, na região metropolitana de Porto Alegre. “A semente que está aqui traz uma sabedoria de muitas vitórias, porque passou por diversos momentos de seleção.” Milenares, centenárias, as sementes crioulas sempre passaram de geração para geração como heranças de família, garantindo o alimento àqueles que as cultivavam. Mas essa história não é uma linha reta.
HERANÇA (QUASE) PERDIDA Nas décadas de 1950 e 1960, uma intensa modernização das técnicas agrícolas – cunhada como Revolução Verde – disseminou novas sementes que produziam mais em menos tempo, e as variedades crioulas foram sendo deixadas de lado. “Nesse período, vários agricultores abandonaram as suas sementes e passaram a depender da compra das sementes comerciais”, explica Viviane Camejo, doutora em Desenvolvimento Rural pela UFRGS. A Revolução Verde difundiu o uso de agrotóxicos, fertilizantes, sementes híbridas e máquinas agrícolas, e, apesar da conotação positiva do nome, não trouxe só vantagens ao campo. “As mudanças que aconteceram nessa época trouxeram, mais tarde, preocupações com a qualidade da água e do solo, e com a biodiversidade”, conta Viviane. O produtor rural Amilton Munari, do município de Maquiné, litoral norte do estado, foi um dos que se preocupa-
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“A SEMENTE QUE ESTÁ AQUI TRAZ UMA SABEDORIA DE MUITAS VITÓRIAS” Juarez Pereira
Produtor de arroz crioulo
ram com os efeitos da Revolução Verde. Nadando contra a corrente de homogeneização e privatização de um bem que antes era público, Amilton decidiu criar uma nova revolução para si mesmo: mudar a maneira com que produzia os alimentos. “Vi que a diversidade era muito mais importante, que a gente teria de tudo para come. E as sementes estavam sumindo”, conta. Agricultor “de nascença”, como ele diz, Amilton sempre viveu no meio rural plantando para subsistência, e, tendo se formado técnico em agropecuária, chegou a praticar agricultura em larga escala de hortaliças. Há 25 anos, porém, fez os cultivares híbridos darem lugar aos crioulos, e a produção em grande quantidade à de grande diversidade. Começou trocando apenas algumas sementes de fava, aipim e amendoim da família, e hoje, com 50 anos, estima cultivar mais de mil variedades de plantas nos seus quatro hectares de lavoura. Tornou-se um guardião de sementes.
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CADA SEMENTE, UMA HISTÓRIA São chamados guardiões e guardiãs de sementes os agricultores e agricultoras que se dedicam ao resgate e à conservação das sementes crioulas. O trabalho dessas pessoas é relevante não só pela manutenção da agrobiodiversidade, mas também por promover a preservação de uma cultura. Para Irajá Antunes, pesquisador da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) na unidade Clima Temperado, o termo “agrosociobiodiversidade” demonstra bem tudo o que os guardiões ajudam a preservar. “Aí entra não só a diversidade genética
Juarez, de Barra do Ribeiro, cultiva o arroz Farroupilha, seguindo a tradição que acompanha a família há mais de 85 anos
no que é cultivado, mas também das relações que são estabelecidas com o ser humano – a forma de produzir, cultivar e utilizar os alimentos crioulos.” O arroz Farroupilha, por exemplo, carrega a história da família do produtor Juarez, da Barra do Ribeiro, que cultiva o grão há mais de 85 anos. “É um arroz de grão médio, um ilustre desconhecido. No estado, não existem mais de cinco famílias cultivando esse arroz. Ele está praticamente em extinção”, conta Juarez, que trabalha para garantir a perpetuação da variedade. Todo sábado, há mais de 20 anos, ele leva o arroz Farroupilha – e sete outros tipos – para vender na sua Banca do Arroz, na Feira dos Agricultores Ecologistas (FAE), em Porto Alegre. Vilmar Menegat, de Ipê, município da serra gaúcha, também comercializa alimentos crioulos na FAE a cada 15 dias. Para a banca Apema 1 da Feira, ele leva variedades que a família cultiva há décadas – pelo menos desde o seu bisavô –, além de outras que foi coletando ao longo do tempo. As espigas de milho multicoloridas encantam quem passa pela banca. É o caso de uma senhora
que gostou tanto de uma espiga de pipoca roxa na tenda do feirante que brincou que, em vez de estourar os milhos, deixaria a espiga como enfeite para a casa. “Tem milho Catete?”, pediu a senhora. “Quando eu era criança, só tinha esse.” Falas como essa, tão comuns no cotidiano de Vilmar e Amilton, mostram a dimensão afetiva da relação dos consumidores com as variedades crioulas. A busca por uma memória realçada pelo sabor de um feijão ou pela cor de um determinado milho está entre os principais fatores que guiam a escolha do alimento crioulo. “A pessoa consegue ter de novo a experiência de comer aquele tipo de planta que é uma recordação da infância. É como uma sobrevida, porque não se encontrava mais e a gente vai resgatando e adaptando novamente”, observa Amilton.
ALIMENTO PARA O ESPÍRITO Qualquer tipo de milho alimenta o corpo; os milhos Guarani, porém, têm o poder de alimentar também o espírito. É o que diz o cacique Santiago Franco, da aldeia Mbyá-Guarani Tekoa Yvy Poty, de Barra do Ribeiro. Certas variedades de milho, cultivadas desde tempos remotos pelos ancestrais guarani, são especialmente importantes para a etnia por terem um caráter sagrado – são alimentos que fazem parte das práticas espirituais do povo. No Nhemongarai, ritual anual de comemoração da vida e de batismo de nome das crianças Guarani, come-se um alimento feito com farinha de milho e água, o mbojape. É um elemento essencial da celebração. De acordo com Santiago, o mbojape ajuda muito a fortalecer a saúde. “O espírito de todo ser humano está preocupado com tudo o que acontece na Terra – muita violência, doença, criminalidade. A gente tem que alimentar o espírito para que ele tenha força para ficar aqui, senão ele vai embora. A gente morre”, explica. A modernização do campo, que chegou também às aldeias, é um dos fatores que hoje ameaçam a preservação das culturas indígenas. Santiago não é avesso às mudanças, mas reconhece
que a cultura do povo Mbyá-Guarani passa pela proteção das suas sementes tradicionais e dos seus modos de consumi-las. “Hoje muito alimento vem da cidade. Temos que continuar preparando nossa comida típica guarani, e ensinar para as crianças aprenderem sempre. Para não perder a tradição.”
GARANTIAS PARA O AMANHÃ Do ponto de vista da segurança alimentar, a conservação das variedades crioulas é importante para garantir a resiliência frente a condições adversas, devido à variabilidade genética. Assim como em outras áreas da vida, a riqueza das sementes crioulas está na diversidade. “Se tu tens uma pequena variabilidade, tens uma fragilidade maior. Qualquer doença ou praga que afetar uma planta vai ter mais chances de causar outras perdas”, explica o assistente técnico estadual de Agroecologia da Emater/RS-Ascar Ari Uriartt. Por outro lado, no cultivo de variedades crioulas, há uma grande possibilidade de que, por serem variáveis, entre elas apareçam algumas plantas resistentes à condição negativa – uma seca, por exemplo. “É por isso que a gente tem que manter essa variabilidade”, conclui o pesquisador Irajá Antunes. A pureza das sementes crioulas é importante para manter as singularidades de cada uma, mas o cruzamento de variedades
O guardião de sementes Vilmar explica com paixão as histórias das coloridas variedades de milho que cultiva
diferentes também é bem-vindo. “No caso do milho, se eu trabalhar com um puro, tenho que fazer uma seleção das sementes e conseguir mais com os vizinhos, porque ele vai produzindo menos. Quando eles cruzam entre si, se fortalecem porque um pega genes do outro”, conta o produtor Vilmar. As sementes crioulas secretam não só uma planta, mas uma espécie de sabedoria ancestral que dá confiabilidade à produção de alimentos. “Sua conservação, então, é uma segurança inclusive para os materiais que são resultado de melhoramento e cruzamento, que encontram nos crioulos os genes necessários para chegar a um cultivar de alta produtividade”, realça Uriartt. Para Juarez Pereira, proteger sementes crioulas é investir no futuro da humanidade. Por isso mesmo, a motivação para o trabalho é tão instintiva que dispensa explicações. “Se você perguntar para uma mãe por que ela dá tanto amor pro filho, isso é tão natural que vai tomá-la de espanto. Ocupar-se com o resgate e proteção de variedades vai nessa linha. Como eu poderia explicar o amor pela humanidade?” SEXTANTE Dezembro de 2019
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VOLUNTARIADO
TRANSFORMANDO
VIDAS
O VOLUNTARIADO MUDA A REALIDADE DE MILHARES DE PESSOAS DIARIAMENTE, PROMOVENDO A INCLUSÃO SOCIAL E O FIM DA DESIGUALDADE QUE EXCLUI, AFASTA, DISCRIMINA E MATA
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Texto: Steffany Cuacoski da Silva steffanycuacoskidasilva@gmail.com
Fotos: Lysiane Munhoz lysiane@parceirosvoluntarios.org.br
Diagramação: Júlia Teixeira Vargas vargastjulia@gmail.com
Em 2017, o número de pessoas que praticaram atividades voluntárias chegou a 7,4 milhões, 840 mil a mais do que em 2016, de acordo com a última pesquisa divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Apesar desse aumento, a média de horas dedicadas por semana caiu de 6,7 para 6,3 horas por indivíduo. Os dados são baseados na pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad Contínua) que considera trabalho voluntário aquele não compulsório, realizado por pelo menos uma hora na semana, sem qualquer vínculo empregatício de benefícios ou remuneração, em apoio a pessoas que não moram no mesmo domicílio do voluntário e não possuem vínculo familiar. Muitos dos projetos voluntários realizados no Brasil ainda partem de instituições como congregações religiosas, sindicatos, condomínios, partidos políticos, escolas, hospitais e asilos, além de ações realizadas e incentivadas por organizações sem fins lucrativos. As Organizações Não Governamentais,
as ONGs, surgem de uma necessidade de serviços públicos que não são supridos completamente pelo governo e são importantes ferramentas de superação das desigualdades sociais. São, portanto, organizações advindas da sociedade organizada que busca auxiliar, dar suporte e administrar recursos públicos ou privados, gerindo programas e projetos sociais de interesse público que causem impactos positivos na sociedade. Ainda é necessário um maior esclarecimento do conceito de trabalho voluntário. Embora se ouça falar muito sobre a importância de ações voluntárias e da transformação que o voluntariado gera, principalmente na base da pirâmide social, o senso comum o relaciona a apenas fazer algo para orfanatos, ONGs ou asilos. É preciso lembrar que levar a vizinha ao médico, ajudar um conhecido com necessidades especiais, auxiliar um idoso com o uso de novas tecnologias ou ficar com a neta do vizinho para que ele possa ir trabalhar também são exemplos de trabalho voluntário individual. O
voluntariado está construído sobre um grande pilar de valores, como a generosidade e a empatia, e ainda que a pessoa não tenha tempo hábil para se engajar numa grande causa, pode incorporar na sua rotina diária pequenas ações voluntárias em benefício do próximo e da comunidade. Em Porto Alegre, há vários projetos e ações sociais voluntárias pouco ou nada noticiadas pela mídia que transformam a vida de milhares de pessoas diariamente, promovendo a inclusão social e o fim da desigualdade que exclui, afasta, discrimina e mata. “São inúmeras as motivações de um voluntário. Seja ela religiosa, política, puramente solidária ou outras tantas. O que importa mesmo é como essas ações transformam realidades. E, quando falo em transformação, não me refiro somente ao beneficiado. O próprio voluntário sai de uma ação com outra perspectiva de vida. É viciante”, comenta a professora de administração e pesquisadora na área do trabalho voluntário na UFRGS Ângela Scheffer.
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Feira de venda e exposição das peças confeccionadas nas oficinas do Clube de Reciclagem Morro da Cruz
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CLUBE DE RECICLAGEM MORRO DA CRUZ E AS “TOP AVÓS” Para um grupo de mulheres do Morro da Cruz, em Porto Alegre, desperdício é uma palavra inexistente. Na comunidade, tudo o que poderia ir para o lixo é reaproveitado. Meias-calças e guarda-chuvas, por exemplo, são transformados em colchas. Gravatas viram saias. Diferentes carretéis de lã se transformam em peças únicas para o inverno rigoroso da capital. Restos de couro são usados para fazer casacos. O Clube de Reciclagem Morro da Cruz possui uma proposta social e ecológica dentro da comunidade. O animado grupo de mães, avós, filhas, adultas e crianças, tem por finalidade gerar renda para sua comunidade com o poder de transformação da reciclagem de tecidos e materiais que são inutilizados e descartados. Tudo começou com Eva Fátima de Jesus, 62 anos, mais conhecida como tia Eva, que já trabalhava com um grupo de avós criando e confeccionando trabalhos com retalhos. O grupo é composto por aproximadamente 50 mulheres que usam a cria-
Élida, uma das “top avós” do Clube de Reciclagem Morro da Cruz, participa de feiras de venda das peças confeccionadas
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tividade para transformar resíduos em roupas, artigos de decoração, acessórios ou no que puder ser feito, complementando a renda de dezenas de famílias e transformando a vida de todas elas. Algumas das mulheres contam ainda que a reciclagem já foi a única renda da família. “Muitas chegam aqui com medo de não aprender a fazer as coisas, acham que não vão conseguir. Mas umas vão ensinando e aprendendo com as outras: tricô, costurar, fazer fuxico, artesanato, o que seja”, relata Eva. Com 75 anos, Élida Severo Nunes faz parte do grupo desde o primeiro dia. No clube, a aposentada aprendeu técnicas de costura e fuxico, que hoje utiliza para produzir colchas. Em um de seus trabalhos produziu uma “das grandes”, com 1.400 fuxicos, que demorou cerca de quatro meses para ficar pronta. Além dos trabalhos artesanais e das oficinas realizadas no projeto, algumas mulheres do grupo têm outra função: são modelos. As “top avós”, como ficaram conhecidas, desfilam as peças confeccionadas no próprio clube. O clube também é um complemento
“QUANDO FALO EM TRANSFORMAÇÃO, NÃO ME REFIRO SOMENTE AO BENEFICIADO. O PRÓPRIO VOLUNTÁRIO SAI DE UMA AÇÃO COM OUTRA PERSPECTIVA DE VIDA. É VICIANTE” Ângela Scheffer
Professora de administração e pesquisadora na área do trabalho voluntário na UFRGS
de renda para essas mulheres. Muitas delas afirmam que sustentar a família sozinhas, apenas com o salário, fruto das oito horas diárias de trabalho, nem sempre é o suficiente. Das vendas realizadas em ações, feiras e exposições, 15% ficam para os gastos e despesas do grupo. O restante vai para o bolso das artesãs. O Clube de Reciclagem Morro da Cruz oferece cursos e oficinas de artesanato, reciclagem e também recebe doações.
Voluntário da GAV aplica reiki em praça na periferia de Porto Alegre
DESENVOLVIMENTO COMUNITÁRIO O Grupo de Aprimoramento da Vida (GAV) é uma Organização da Sociedade Civil que surgiu em 2007, com encontros realizados por quatro amigas. As reuniões, sempre bons momentos de reflexão, troca e autoconhecimento, trouxeram o desejo de compartilhar com pessoas de comunidades carentes e periféricas da grande Porto Alegre o conhecimento derivado de suas trajetórias pessoais e profissionais. “Com o objetivo de trabalhar o desenvolvimento comunitário na área da saúde e do bem estar, o GAV tem como uma de suas principais atividades a aplicação de reiki, uma terapia reconhecida pelo SUS [Sistema Único de Saúde] que busca o equilíbrio através da transferência de energias”, conta Lúcia Silva, uma das idealizadoras e cofundadora do grupo. O reiki é uma forma de medicina alternativa baseada em pseudociência. Os praticantes usam a imposição de mãos para transferir “energia vital universal” para o paciente. O projeto piloto reikriando começou a ser realizado no ano de 2016 na Escola Municipal de Ensino Fundamental Deputado Marcírio Goulart
Loureiro, no Campo da Tuca, através do ensino, da formação e da aplicação do reiki. A coordenação foi realizada por Liane Jochims, mestre de reiki e integrante do GAV, e contou com a colaboração de voluntários, que auxiliam na elaboração e exposição das aulas, bem como na confecção de materiais. Os objetivos principais desse projeto são a difusão da cultura da paz, a melhoria da qualidade de vida e bem-estar dos participantes, contribuindo, assim, nas relações interpessoais na escola, nas famílias e na comunidade em geral. A iniciativa, que já beneficiou mais de 600 crianças e adultos, trans-
formou a instituição e causou inúmeros benefícios à comunidade. “O projeto do GAV não entra na nossa escola apenas através do reiki, mas numa dinâmica de melhoria das relações interpessoais. Alguns alunos apresentavam dificuldade de aprendizagem, mal comportamento em sala de aula. Tudo isso, um reflexo da realidade que já viviam em casa. E é nesses casos que podemos ver os reflexos imediatos do trabalho realizado. As crianças costumam apresentar um avanço em curto e médio prazo que impressiona”, conta Ricardo Menegotto, diretor da escola beneficiada.
SAIBA COMO AJUDAR Se você gostou de algum dos projetos e quer ajudar com doações ou realização de ações voluntárias, entre em contato. Clube de Reciclagem do Morro da Cruz Eva Fátima de Jesus (51) 99964-8009 / (51) 99316-5759 clubedereciclagemmc@outlook.com Grupo de Aprimoramento da Vida Lucia da Rocha (51) 99666-3849 gav.poa@gmail.com
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ADOÇÃO
ENTRE PAIS
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E FILHOS
O PERCURSO PELO QUAL PASSAM AS PESSOAS QUE DESEJAM FORMAR UMA FAMÍLIA É RETRATADO PELOS AMBIENTES EM QUE DEIXAM SUAS MARCAS Texto e diagramação: Alnilam Orga alnilam_orga@hotmail.com Fotos: Leonardo Melgarejo e Ricardo de Morais melgacorrea@gmail.com jornalistaricardom@gmail.com
No Lar Esperança, crianças abrigadas são integradas às que moram na comunidade
Às 13h de uma quarta-feira, o Abrigo Residencial (AR) 07, em Porto Alegre, está agitado, num abre-e-fecha do portão de grade pelo porteiro, Davi. “Aqui é bem tranquilo, só tem mais movimento nesse horário pelos colégios.” Um dos educadores do abrigo acompanha duas meninas pré-adolescentes até a escola, que fica a algumas quadras dali. Jeanne Luz da Silva, coordenadora das duas casas de acolhimento, os Abrigos Residenciais 07 e 08, chega apressada. Além da Sextante, ela tem de receber os assessores da Fundação de Proteção Especial do Rio Grande do Sul (FPE-RS), órgão que administra os oito Núcleos de Abrigos Residenciais e Institucionais de Porto Alegre. Estão fazendo uma matéria institucional sobre a oficina de arte com tintas que um professor voluntário está ministrando para cerca de 15 crianças. “A Amanda*, que estava saindo agora, já tentou matar aula só para ter essa oficina, de tanto que ela gosta”, comenta Jeanne. O AR 07 é a casa por onde meninas de zero a 18 anos e meninos de zero a 14 entram no acolhimento do Estado, trazidas pelo Conselho Tutelar ou pelo Juizado da Infância e Juventude. Os motivos vão desde desaparecimentos em locais públicos até denúncias de abuso sexual, cada qual com seu protocolo SEXTANTE Dezembro de 2019
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De janeiro a setembro de 2019, 308 crianças e adolescentes ingressaram no AR 07. Desse total, 100 retornaram para seus lares após a primeira audiência, mediante o encaminhamento do conselho tutelar. Houve apenas uma adoção no ano, uma menina de sete meses que saiu do AR 07 para o lar de sua nova família. Na outra ponta, uma adolescente atingiu a maioridade e foi morar com uma amiga. Além delas, 88 foram transferidas para outros abrigos mais adequados às suas necessidades, por proximidade de colégios, estágios ou oficinas de turno inverso ou por falta de vagas nas duas casas de acolhimento.
INCLUSÃO E RECOMEÇO
de acolhimento. No abrigo de cinco quartos coletivos, dois de meninos e três de meninas, com divisões por faixa etária, há vaga para 30 dormirem. Nessa casa, que geralmente é de passagem, as crianças e adolescentes esperam de cinco a 10 dias até a primeira audiência com um juiz. Nesse tempo, passam por um diagnóstico e pelo cuidado dado por enfermeiras, psicólogas e educadoras. Ali, recebem roupas, alimentos, educação, produtos de higiene e brinquedos. No AR 08, com 22 camas, ficam crianças e adolescentes com maior estabilidade, que já tiveram, na audiência, a definição de que não voltarão para sua família de origem. As crianças estão emocionalmente mais estáveis para estudar enquanto aguardam por adoção ou pelo encaminhamento para outro abrigo. Os adolescentes estão com uma rotina escolar definida, participando do programa Jovem Aprendiz ou de oficinas no turno inverso ao de estudo. O fluxo de pessoas é intenso na casa de passagem AR 07. São funcionários, voluntários, estudantes, oficineiros, pais e mães ainda vinculados às crianças, agentes do conselho tutelar e do juizado, e as próprias crianças e adolescentes, que compartilham o mesmo espaço. Mas, para os que vão ficando
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nos abrigos, a dedicação é exclusiva e a gestão está sempre em busca de novas maneiras de promover o bem-estar. Jeanne já viajou com as crianças do acolhimento e outros educadores para Gramado, na Serra Gaúcha, para a praia, entre outros locais de lazer. Ela afirma que a mobilização de empresas parceiras, que fornecem transporte e alimentação em ações como essas, é vital para o bom funcionamento dos abrigos. “A gente não faz nada sozinho, e a prefeitura não tem que estar arcando com tudo. Isso é um problema social, é meu, é teu, é de todos. Todo mundo tem que ter essa conscientização, de que a sociedade tem que ajudar.”
“ISSO É UM PROBLEMA SOCIAL, É MEU, É TEU, É DE TODOS. TODO MUNDO TEM QUE TER ESSA CONSCIENTIZAÇÃO DE QUE A SOCIEDADE TEM QUE AJUDAR” Jeanne Luz da Silva
Coordenadora dos Abrigos Residenciais 07 e 08 de Porto Alegre
O Lar Esperança, localizado no bairro Mário Quintana, é um dos destinos possíveis para crianças e adolescentes que passaram pelo AR 07. O local é bem arborizado e tranquilo, mesmo estando a apenas uma quadra de distância da movimentada avenida Protásio Alves. Um bom ambiente para as cerca de 210 crianças e adolescentes que passam diariamente pelo Lar. Dessas, a maioria é formada por crianças da comunidade que estudam na creche regular da instituição. Outras 60 crianças, de seis a 15 anos, participam de atividades do Lar no turno inverso ao da aula, como parte do Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos. Apenas 14 dormem no local através do acolhimento institucional, ainda que não estejam destituídos de seus pais de nascença e possam receber visitas deles. Cíntia Gimenez Borges, responsável pelos projetos institucionais do Lar Esperança, é a porta-voz da organização. “O propósito da instituição é sempre colocar pessoas capacitadas, que venham realmente para assegurar o direito da criança e do adolescente. Capazes de lidar com esse perfil, com a desorganização de uma criança, e de entender a individualidade de cada um.” Paulo Ricardo Campos Henriques, diretor administrativo do Lar Esperança, também é pastor e estimula a espiritualidade nas crianças. “Oramos com eles, tentamos compreender o que está acontecendo com a família
deles naquele momento em que estão em crise. Então a gente faz um acompanhamento espiritual também com eles aqui”, explica Paulo, sinalizando o prédio do Lar Esperança.
SOBRE PERFIS “E a vida tratou de juntar quem nasceu pra se amar!”, escreveu em letras cursivas uma garota, acima de seu desenho representando ela, seu pai e sua mãe. A imagem ilustra uma das primeiras páginas do Guia para Adoção de Crianças e Adolescentes, material produzido pelo Movimento de Ação e Inovação Social (Mais), que visa a conscientização de possíveis pais. A adoção é um processo baseado no amor, no conhecimento e na lei. Processo que pode transformar desconhecidos em pais e filhos vinculados pelo afeto. Como parte desse processo, existem etapas para a criança ou adolescente e para os possíveis pais, que são chamados de pretendentes no Cadastro Nacional de Adoção (CNA). Entre as etapas, os pretendentes preenchem um formulário com o perfil de filho desejado. O Rio Grande do Sul é o segundo estado com maior número de pretendentes a adoção, atrás apenas de São Paulo. Mesmo assim, esse dado não é uma garantia de que o perfil dos possíveis filhos disponíveis seja o mais desejado pelos possíveis pais. De um lado, são 5.880 pretendentes. Do outro, há 634 crianças e adolescentes destituídos de suas famílias em busca de novas pessoas para chamar de pais. Dados fornecidos pela Coordenadoria da Infância e Juventude do Rio Grande do Sul (CIJ-RS) apontam algumas tendências em relação aos perfis desejados pelos pais e os perfis das crianças reais. Em 4 de outubro de 2019, do total de cadastrados, 41,16% aceitam todas as etnias; para 73,57%, independe o sexo da criança; 37,04% aceitam crianças com irmãos (sem maiores especificações); e 35,29% aceitam adotar gêmeos. No entanto, há pretendentes com restrições de perfil. A maior disparidade entre o perfil buscado pelos pretendentes e as crianças disponíveis está na idade: 5.700 possí-
veis pais – ou seja, quase 97% do total – procuram crianças de até 10 anos, que somam apenas 119 no sistema. Para as outras 515 crianças e adolescentes, de 11 a 17 anos, há só 180 pretendentes. As contas não fecham, e as chances de uma criança ser adotada caem sucessivamente após seus cinco anos, ao ponto de haver 50 ou menos pretendentes para cada ano, dos dez em diante. A estratégia da “busca ativa”, realizada por grupos de apoio à adoção em parceria voluntária com os poderes públicos, empenha-se para efetivar as adoções necessárias: grupos de irmãos que não devem ser separados, crianças acima de cinco anos, e aqueles com deficiência ou doenças crônicas. Esse método existe para que um maior número de crianças seja adotada, para além das crianças idealizadas pelos pretendentes em seu cadastro no CNA.
FORMANDO VÍNCULOS Giana Frizzo é professora do Departamento de Psicologia do Desenvolvimento e Personalidade da UFRGS e desenvolve pesquisas como coordenadora do Núcleo de Pesquisa e Intervenção em Famílias com Bebês e Crianças (Nufabe). No momento, seu Núcleo faz o acompanhamento de 11 famílias que adotaram crianças de dois a cinco anos. A partir dos dois anos, a criança já tem consciência e fala, de modo que, às vezes, pode contestar a legitimidade de seus novos pais. “Aquele momento em que a criança diz: ‘Tu não é meu pai’. A
gente tem histórias lindíssimas retratadas nos artigos, onde os pais dizem ‘não sou teu pai ou tua mãe biológico, mas a gente agora é uma família e estamos juntos até o final’, e eles relatam como esse impasse é um momento de virada na relação”, conta Giana. Os pretendentes precisam adequar suas expectativas enquanto pais à realidade de seus filhos, quando se trata de adoção. Esse preparo para receber seus filhos consiste em conhecer a história da criança, suas características, preferências e limitações. Giana vê o reflexo disso na reação de pais ao tempo desenvolvimento dos filhos: “As pessoas acabam atribuindo à questão da adoção questões de desenvolvimento, que para qualquer criança e família são desafiadoras”. Filhos nascem e são recebidos por suas famílias, que dão carinho, cuidado e atenção. Isso acontece tanto com filhos criados pelos pais biológicos, quanto com os que ganharam pais depois de crescidos. Ser pai ou mãe é complexo. Muitas situações saem fora do planejado, e as crianças têm características próprias que não podem – ou não devem – ser moldadas. Os pais precisam de uma motivação intrínseca: o desejo de formar uma família com essas crianças. Só assim poderão criar um ambiente seguro para seus filhos e dar uma continuação a uma história que acaba de começar. * O nome foi trocado para preservar a identidade da criança. SEXTANTE Dezembro de 2019
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MEIA-IDADE
CHARMOSOS E ACABADAS AOS 50 ANOS, UM HOMEM AINDA PODE SER CONSIDERADO UM SEX SYMBOL. POR QUE EXISTE ESSE CONCEITO DE QUE A IDADE É SEMPRE MAIS CRUEL COM AS MULHERES? Texto: Júlia Canella Flor j.canella@hotmail.com Fotos: Edna Machado e Matheus Riskalla efmachados@gmail.com matheus.riskalla78@gmail.com Diagramação: Ariel Lopes ariellopescarmo@gmail.com
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Em uma sociedade de aparências, existem pequenas injustiças que muitas vezes passam despercebidas. Já parou para pensar, por exemplo, como o gênero pode ser um fator decisivo para determinar se você é atraente ou não dependendo da sua idade? A partir dos 40 anos, começa a ficar mais difícil para as mulheres chamarem a atenção do sexo oposto. Entretanto, o mesmo não parece ser uma regra para os homens. A masculinidade madura traz consigo a ideia de prosperidade, charme e sucesso, e homens de cabelos grisalhos conseguem ostentar tudo isso e ainda parecerem atraentes para as mulheres (em alguns casos, até mais jovens). Não é uma regra, mas basta pensar em vários exemplos – seja no mundo da moda, das celebridades do cinema hollywoodiano, ou até mesmo em situações mundanas do cotidiano – para se perceber que a meia-idade cai bem nos homens, mas nem tanto nas mulheres.
NA COR DOS TEUS CABELOS Aos 52 anos, Sandra Maria Barroso nunca pensou duas vezes antes de investir na aparência. A veterinária aposentada é uma frequentadora assídua do Luminosité, um dos salões de beleza mais elegantes do bairro Moinhos de Vento, em Porto Alegre. Para ela, o investimento nunca foi menos que óbvio. "Imagina se eu fosse parar de pintar o cabelo, ia ficar parecendo 20 anos mais velha!", brinca. As companheiras de salão, em suas respectivas cadeiras altas de frente para o espelho, não demoram em concordar. Ali elas são todas parceiras em sua luta contra o envelhecimento. Luísa Lima da Costa, de 48 anos, vai ao Luminosité pelo menos uma vez por mês para pintar de castanho as raízes grisalhas do seu cabelo. De quebra, aproveita para fazer as unhas e jogar conversa fora. "A gente não pode ficar assim, desleixada. Se eu pinto o meu cabelo, é porque eu gosto
DIVULGAÇÃO
Em "Once Upon a Time in Hollywood", o padrão se torna evidente: galãs mais velhos contracenam com atrizes nos seus 20 anos SEXTANTE Dezembro de 2019
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e me sinto bonita, e ninguém tem nada a ver com isso." Sandra e Luísa acreditam que se manter jovem e bem conservadas não é uma escolha, mas sim uma necessidade. E, para elas, não existe prova maior da idade do que uma cabeça cheia de fios brancos. Leo Bueno, cabeleireiro do Luminosité, reflete sobre a clientela do salão e chega à conclusão de que a maior parte dos seus frequentadores é, de fato, de mulheres mais velhas. "Temos muitas gurias também, mas, se fosse para dizer quais são as mais frequentes, acho que mulheres acima dos 40 ganham em disparada. Já homem, a gente quase não vê", admite Leo.
NO CINEMA E NA MODA A vida útil de um galã de cinema vai muito além dos seus 20 ou 30 anos. Em Era uma vez em Hollywood, filme mais recente do diretor Quentin Tarantino,
DICK THOMAS JOHNSON/FLICKR
Maryl Streep, de 70 anos, já ironizou o fato de mulheres mais velhas não serem protagonistas nos filmes
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“APESAR DE TERMOS, SIM, MULHERES MAIS VELHAS QUE SÃO MODELOS, DIFICILMENTE ELAS VÃO SER CHAMADAS POR UMA REVISTA DE MODA OU COSMÉTICOS PARA REPRESENTAR OS PRODUTOS. É MAIS COMUM APARECEREM COMO DONAS DE CASA TESTANDO PRODUTOS DE LIMPEZA OU COMO MÃES DE FAMÍLIA NUM COMERCIAL DE SUPERMERCADO” Eduardo Fonseca
Diretor executivo da Lance Models
Brad Pitt, 55 anos, e Leonardo DiCaprio, 45 anos, vivem – como de costume – dois personagens bonitões e cheios de vitalidade, enquanto contracenam com atrizes como Margot Robbie, 29 anos, e Margaret Qualley, 25 anos. Essa, na realidade, não deixa de ser uma cena bastante comum no cinema internacional: um homem pode sustentar o seu posto de galã por décadas a fio, enquanto grandes atrizes vão perdendo seus papeis de protagonistas conforme os anos avançam. Em uma entrevista icônica para o jornal britânico The Guardian, Meryl Streep, hoje com 70 anos, reconheceu esse feitiço estranho que transforma atrizes mais velhas, depois de uma certa idade, em mães e conselheiras das verdadeiras protagonistas de um filme. “Quando eu tinha 40, me ofereceram três papeis de ‘bruxa’ em um verão. E eu pensei, ‘Ok, é isso aí. Você faz 40 anos e, oh meu Deus’.” E se até uma grande atriz como ela, que foi indicada mais de 20 vezes ao Oscar, já sentiu essa diferença, não é difícil concluir que é uma trajetória relativamente comum entre as mulheres na indústria hollywoodiana. Como no cinema, a aparência e a juventude são vitais para uma carreira no mundo da moda, onde “ser visto” é um princípio básico da profissão. E, novamente, a vida útil de um modelo masculino supera a de uma modelo feminina em vários anos. Quando mais velhos, os homens tornam-se imprescindíveis para propagandas de perfumes e relógios, anúncios de cerveja ou de carros esporte. Mais uma vez a meia-idade masculina evoca um ar de dignidade e sucesso indiscutível. Eduardo Fonseca é diretor executivo da Lance Models, uma agência de modelos porto-alegrense. Ele acredita que a ausência de mulheres de meia-idade na profissão seja um sintoma claro dos resíduos machistas da sociedade em que vivemos, e conclui: “Apesar de termos, sim, mulheres mais velhas que são modelos, dificilmente elas vão ser chamadas por uma revista de moda ou cosméticos para representar os produtos. É mais comum aparecerem como donas de
Diferente da grande maioria das mulheres, Acácia Hagen exibe os cabelos brancos com orgulho
casa testando produtos de limpeza ou como mães de família num comercial de supermercado”.
NA VIDA QUE A GENTE VÊ "Tem gente que dá a explicação biológica. Mas é claro que, na natureza, as fêmeas mais jovens vão ser sempre as mais atraentes, por estarem em idade de reprodução. Mas eu te pergunto: quem é que na sociedade atual vive em condição de natureza? Ninguém." Assim diz a socióloga Acácia Maduro Hagen, que tem 59 anos e não vê nenhum problema nisso. Ela acredita que o verdadeiro problema está na sociedade que fez do termo "velho" um xingamento. Com longas mechas brancas se mesclando aos fios negros, Acácia tem orgulho do seu cabelo. Ela acredita que, quanto mais velhas, as mulheres têm, sim, que se cuidar mais, mas por uma questão de saúde e não de estética. O segredo para a felicidade e o bem-estar
talvez esteja mais ligado à aceitação do envelhecimento do que à tentativa de retardá-lo. A socióloga ainda arremata: “Velho grisalho é distinto. Por que eu com o meu cabelo branco vou ser outra coisa que não distinta também?” No Japão e em outras culturas orientais, a idade avançada demanda respeito. Quanto mais velha é uma pessoa, maior a dignidade e a reverência que ela inspira nos outros. No Brasil, a terceira idade é uma condição digna somente de pena e descaso. E quem se aproxima da velhice só pode ser, portanto, alguém que se encaminha para o próprio juízo final. "É engraçado ver esses comerciais de cosméticos", Acácia comenta. "A propaganda é para um creme antirrugas,
“VELHO GRISALHO É DISTINTO. POR QUE EU COM O MEU CABELO BRANCO VOU SER OUTRA COISA QUE NÃO DISTINTA TAMBÉM?” Acácia Maduro Hagen Socióloga
mas a modelo é uma garota com seus 20 anos e pele lisíssima. Mas o irônico é que é isso que as 'coroas' querem ver. Quando assistem à propaganda, querem ser iguais à jovem linda de 20 anos. Por outro lado, se fosse uma senhora igual a elas, ficariam indignadas com a comparação, não gostariam de ver uma velha num comercial de beleza." A socióloga é categórica quando afirma que ainda mais surpreendente é o fato de que o poder de consumo está todo nas mãos de mulheres mais velhas, e a faixa etária mais representada na mídia continua sendo a juventude. O estigma da velhice exerce um peso imenso na sociedade ocidental e afeta tanto os homens quanto as mulheres, mas isso não significa que a meia – e a terceira – idades não possam ser vividas com dignidade. Mulheres mais velhas que estejam de bem com o tempo passando, como Acácia, são difíceis de encontrar, mas isso não quer dizer que elas não existem. Fernanda Montenegro, quase uma Meryl Streep brasileira, é autora de uma frase simples e eficaz: “É uma realidade que vai piorar se você começar a achar que é uma desgraça. É da natureza e ponto, vamos tocar a vida”. SEXTANTE Dezembro de 2019
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SAÚDE
Empenhada na divulgação da doença, Simone está escrevendo um livro sobre sua vivência como acromata
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UM MUNDO
PRETO E BRANCO COMO É A VIDA DAS PESSOAS QUE CONVIVEM COM A ACROMATOPSIA, DOENÇA POPULARMENTE CONHECIDA COMO CEGUEIRA PARA AS CORES Texto e fotos: Camila Bengo camilabengo@outlook.com
Diagramação: Júlia Vargas vargastjulia@gmail.com
Pelo menos três décadas separam as trajetórias de Jessica Fontoura, 21 anos, e Simone Kichel, que prefere apenas dizer que já passou dos 50. Quando Jessica nascia, no início da tarde de 18 de dezembro de 1997, Simone provavelmente colocava seus óculos escuros, preparando-se para voltar ao trabalho após o intervalo de almoço. As duas não se conhecem, tampouco têm preferências em comum. Jessica, por influência do pai, torce para o Grêmio; Simone, por outro lado, tem o Internacional como time do coração. Enquanto Jessica aproveita as horas vagas para maratonar seriados, Simone prefere ir ao cinema, ao teatro ou frequentar exposições de arte. O maior medo de Jessica é perder as pessoas que ama. Também sobre o medo, Simone comenta, aos risos, que não anda mais de montanha russa. Contudo, apesar das diferenças de idade e personalidade, a produtora audiovisual Jessica e a funcionária pública Simone têm algo em comum: a forma de enxergar o mundo. E, nesse caso, em preto, branco e cinza.
Jessica e Simone são acromatas, nome designado às pessoas com diagnóstico de acromatopsia, uma deficiência visual congênita e de caráter hereditário causada pela combinação de genes específicos que impedem a formação adequada das células fotorreceptoras da retina, chamadas cones e bastonetes. Por conta da má formação, seus olhos são incapazes de reconhecer qualquer coloração, enxergando apenas uma gama de tonalidades pretas, brancas e cinzas, a chamada visão acromática. Além da cegueira total para as cores, as duas também manifestam outros sintomas típicos de quem tem acromatopsia: a baixa visão e a intensa fotofobia. Bastante rara, a doença ainda é pouco discutida na literatura médica. Os dados mais atualizados vêm da Biblioteca Nacional de Medicina dos Estados Unidos e indicam que há, aproximadamente, 30 mil pessoas com visão acromática em todo o mundo. Contudo, segundo a neuro-oftamologista Marcela Bordaberry, do Hospital Banco de Olhos, de Porto Alegre, a ausência SEXTANTE Dezemrbo 2019
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de sintomas externos perceptíveis pode dificultar o diagnóstico, comumente feito por meio dos testes de Ishihara – que avalia a capacidade do olho de reconhecer números formados por pontos coloridos – e de Farnsworth-Munsell – que utiliza objetos de matizes variadas para testar a capacidade do paciente de organizá-los por ordem de matiz. Nesse sentido, é possível que muitas pessoas tenham a acromatopsia sem saber, uma vez que ela não apresenta sinais visíveis, ou recebam o diagnóstico tardio. Descobrir que não enxerga cores é o primeiro desafio da vida de um acromata e, para Jessica e Simone, não foi diferente. Afinal, como sentir falta de algo que nunca se viu?
DIAGNÓSTICO Foi na infância que Jessica descobriu que as outras crianças não enxergavam como ela. Na pré-escola, lembra que a professora estranhava o fato de ela utilizar sempre a mesma cor para pintar
“QUEM ENXERGA CORES TEM A CONSTRUÇÃO DO QUE É BONITO BASEADO NISSO. SÓ QUE, PARA MIM, PODE NÃO SER NADA DEMAIS” Jessica Fontoura, Produtora audiovisual
os desenhos. A mãe foi comunicada da peculiaridade, mas achou que tudo não passava de preguiça da filha em variar as cores. Mais tarde, foi descoberto que os bastonetes (células da retina) de Jessica eram mortos, razão pela qual ela não via nenhuma cor. “Demorei a ter consciência do que são cores e de por que não as via, pois, para mim, o mundo sempre foi assim, nunca enxerguei de outra forma. Só comecei a entender que via as coisas de um jeito diferente das
outras pessoas quando já estava lá pela oitava série”, relembra Jessica. Com Simone, a história foi parecida. Vinda de uma família com oito irmãos – dos quais três, como ela, têm a visão acromática –, os primeiros sinais de sua doença também apareceram na infância. Porém, apenas quando o irmão mais velho descobriu a acromatopsia, ela compreendeu que também enxergava diferente. Ainda assim, a consciência acerca do problema de saúde demorou a se desenvolver. “Não havia um diagnóstico, pois os médicos não sabiam quase nada sobre a doença, que sequer tinha nome. Eu nem lembro exatamente quando foi que descobri o termo acromatopsia, mas já era adulta”, afirma Simone.
DIFICULDADES A escola foi o lugar em que Jessica e Simone se depararam com as primeiras dificuldades causadas pela doença. Jessica conta que os colegas de classe brin-
Para driblar a doença, Jessica escreve a cor nas etiquetas das roupas
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cavam que ela havia tornado suas vidas “preto e branco”. Isso porque, devido à condição da aluna, os professores não podiam utilizar gizes coloridos para escrever o conteúdo das aulas no quadro negro. Ainda assim, ela preferia copiar a matéria do caderno de colegas, pois a baixa visão dificultava a leitura no quadro. Anos antes, Simone também já havia enfrentado a mesma situação. Comum às duas também foi a estratégia adotada pelos pais: o material escolar era cuidadosamente etiquetado conforme a cor. Jessica não dava muita importância para essa questão, e até acha graça ao lembrar que a mãe insistia em comprar canetas coloridas, que acabavam por serem usadas pelas amigas. Já Simone se emociona ao lembrar dos mínimos cuidados da mãe e do pai, já falecidos: “Acho que para eles foi mais difícil, porque era novidade tanto quanto para nós. Porém, tinham a responsabilidade de providenciar o nosso bem estar. Nesse sentido, eles eram incansáveis e tinham uma sensibilidade incrível. Por exemplo, mesmo sem enxergar, a noção do significado de cada cor é muito forte para mim, porque tive a bênção de ter uma mãe que me explicava muito bem isso”. Ainda assim, atividades como comprar roupas acabam se tornando difíceis missões. Nesses momentos, é preciso pedir ajuda. O problema maior é, porém, explicar o motivo do pedido. “Ninguém entende quando tu perguntas a cor. Digo ‘que cor é essa blusa?’, e respondem ‘R$ 29,90’. Aí, pergunto de novo, digo que estou com uma dificuldade para enxergar, mas é complicado”, relata Simone, enquanto Jessica prefere “simplificar” o entendimento: “Só jogo um ‘ah, é que eu sou daltônica’, que é mais fácil”, brinca. Contudo, as duas concordam que não ver as cores não é a maior dificuldade enfrentada por um acromata. A intensa fotofobia causada pela doença faz com que a capacidade visual de Jessica e Simone se aproxime da cegueira em ambientes claros, sobretudo sob exposição à luz solar, impondo complicadores às suas rotinas. “Uso óculos, boné, mão no rosto, e o que tiver para
“MINHA MAIOR BANDEIRA É A DIVULGAÇÃO. ACHO MUITO IMPORTANTE SE CONHECER E DIVULGAR A ACROMATOPSIA, POIS AINDA EXISTEM PESSOAS QUE NÃO CONHECEM O QUE TÊM”
e atualmente trabalha no ramo do Marketing, conta que seu maior sonho é se tornar professora e ajudar a formar novos profissionais da área criativa. No cinema, sonha em fazer filmes lindos. Porém, não quer ser conhecida como “a diretora que não enxerga cores”. “Quero que primeiro as pessoas vejam os meus filmes e pensem: ‘Bá, que interessante isso’. Aí, pesquisando, venham a descobrir que tenho acromatopsia”.
Simone Kichel, Funcionária pública
me proteger. Os óculos de sol são muito importantes para quem tem acromatopsia. Mas, ao mesmo tempo em que te ajudam, eles te causam alguns constrangimentos. Por exemplo, se tu estás em um lugar em que, para os outros, aquele óculos não é necessário”, conta Simone, que tem uma vasta coleção do acessório.
SONHOS Por conta da acromatopsia, Jessica e Simone enxergam o mundo da mesma forma e enfrentam dificuldades semelhantes. Contudo, seus desejos para o futuro e o próprio modo de se relacionar com a condição visual são diferentes. O maior sonho de Simone é conseguir publicar o livro que está escrevendo, a fim de contar sua experiência como acromata. Além disso, a funcionária pública também sonha em conhecer outros acromatas, viajar para a Ilha de Pingelap, no Oceano Pacífico, – onde a maioria da população tem acromatopsia – e “contribuir significativamente” para o sucesso das pesquisas acerca da doença. “Minha maior bandeira é a divulgação. Acho muito importante se conhecer e divulgar a acromatopsia, pois ainda existem pessoas que não conhecem o que têm ou estão perdidas com outro diagnóstico. Acredito que, se nos encontrarmos, podemos nos ajudar”, diz Simone, que também iniciou uma campanha no Facebook a fim de localizar mais acromatas. Jessica, que é formada em Produção Audiovisual com ênfase em Cinema,
UM MUNDO COLORIDO?
Em meio às diferenças e semelhanças que ligam as trajetórias de Jessica e Simone, a imaginação acerca das cores é um ponto em comum. Como seria ver um mundo colorido, quando só se conhece o preto e branco? Ao pensar sobre a possibilidade de, algum dia, enxergar de outra forma, as duas se mostram indecisas e desconfiadas. “É uma dúvida, porque enfrento dificuldades, mas estou bem adaptada. Tenho curiosidade, mas não sei como seria. De repente, pode ser uma explosão de cores que vai me cansar. É um mistério”, diz Simone. Jessica pensa parecido e põe em cheque a real importância das cores em nossas vidas: “As pessoas criam uma expectativa sobre cores para mim, dizem: ‘que pena que tu não consegue ver o arco-íris, é tão bonito’. Mas e se um dia eu ver e não achar tão bonito assim? Quem enxerga cores tem a construção do que é bonito baseado nisso. Só que, para mim, pode não ser nada demais. Eu não sei se gostaria, pois precisaria de toda uma adaptação e tudo pode ser muito horrível”.
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ARTE
DESIGUAL ARTE 38
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A exposição Movimentos Orbitais, do artista Celo Pax, ocupou a Galeria Casa Musgo, em Porto Alegre
ARTISTAS INDEPENDENTES TENTAM DRIBLAR BARREIRAS EM BUSCA DE ESPAÇO
Texto: Natássia Ferreira natassiaferreira@gmail.com Fotos: Jorge Carrasco, Laia Biurrun e Mélani Ruppenthal jorge.carrasco.glez@gmail.com laiabiurrun98@gmail.com melanijornalista@gmail.com Diagramação: Ariel Lopes ariellopescarmo@gmail.com
Vincent Van Gogh, Pablo Picasso, Leonardo da Vinci, Michelangelo, Claude Monet, são nomes que você provavelmente já ouviu falar. Todos esses pintores marcaram a história com seu trabalho, seja em vida ou após a morte. Mas o que faz com que um artista entre para a posteridade como “o grande” do seu tempo? Por que alguns artistas ganham reconhecimento e outros não? Essas perguntas provocam a reflexão inclusive sobre o que é arte e por que existe uma desigualdade no meio artístico. Eduardo Veras, professor do Instituto de Artes da UFRGS que atua no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais e no Bacharelado em História da Arte, diz que existem muitas tentativas de explicar o que é arte. “A gente pode definir arte de um ponto de vista filosófico, histórico, mas é arriscado. Podemos pegar uma perspectiva sociológica: a arte seria aquilo que um determinado campo de conhecimento entende que é arte, neste caso, o campo da arte”, explica Veras. A arte que conhecemos hoje tem suas origens no período renascentista, na Itália do século XV. Esse movimento acarretou em mudanças na sociedade, na literatura, na ciência, e no conceito de arte. O Renascimento alavancou muitos artistas de renome que são lembrados até hoje e que tiveram suas produções difundidas para nomear o que conhecemos por arte nos dias atuais. “É no quattrocento, nos anos 1400, que as pessoas passam a chamar essa produção de arte”, explica Veras. Na história, há nomes que são facilmente guardados na memória, são pessoas que marcaram sua existência com algo grandioso. Leonardo da Vinci, por exemplo, pintou Mona Lisa e é um artista lembrado até hoje. As pessoas podem até não saber quem foi da Vinci, mas conhecem a Mona Lisa. O tempo e a história são fatores responsáveis pela projeção da arte. Ela se transforma através do momento histórico em que uma sociedade está inserida. A arte não é fixa, pelo contrário. “Ela é o reflexo de um tempo, mas também ela define esse tempo”, salienta Veras. SEXTANTE Dezembro de 2019
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Portanto, a concepção de arte que temos hoje foi projetada por homens brancos, num período que somente a Europa era considerada mundo. Hans Belting, historiador alemão, especialista em arte medieval, defende no livro O Fim da História da Arte que a disciplina de História da Arte precisa ser repensada, sair do tradicional pensamento europeu, que é excludente e diminui outras projeções de arte. Ele não mostra uma solução, mas aponta um pensamento preconceituoso que diminui outras criações que não sejam europeias. Portanto, normalmente o que é considerado arte é o que se aproxima dessa estética renascentista europeia.
NOVOS LUGARES PARA A ARTE Na Rua Vieira de Castro, ao lado do Colégio Militar de Porto Alegre e a poucos metros do Parque da Redenção, está localizada a Casa Musgo, que chama a atenção desde o primeiro momento em que se olha para ela. A casa de aspecto único se destaca do resto da paisagem pelas pinturas nas paredes. Rodrigo Bello Marroni e Martina Medeiros Nickel, artistas e proprietários do local, definem a casa como um espaço cultural independente que Os donos da Casa Musgo, Martina e Rodrigo, buscam dar maior visibilidade e circulação aos projetos artísticos
abrange galeria, atelier, sala de aula e loja. “É uma casa com muita atividade, que pretende desenvolver cada vez mais o lado da educação através da arte, ampliando o espaço de interação para promover o desenvolvimento humano e cultural”, destaca Rodrigo. Na entrada, está localizada a loja. Há produtos como capas de discos, ilustrações, fotografias, roupas, quadros, pequenas esculturas e os móveis de madeira, que ajudam a criar o ambiente da Casa Musgo. Os donos explicam que o espaço é um estúdio independente, com múltiplas atividades relacionadas à criação artística, à cultura e ao desenvolvimento humano. Eles trabalham com artistas já conhecidos, mas também com os emergentes.“Nossa essência é a difusão de design autoral”, fala Martina. Ao lado da loja fica a galeria. No dia da entrevista, a casa estava expondo “Movimentos Orbitais”, do artista Marcelo Pax, conhecido como Celo Pax. Muito colorida, a exposição tinha desde esculturas até quadros interativos que podiam ser acessados por QR Code através do celular do visitante. A presença da tecnologia no meio das obras confirma que a arte é mutável e se adapta à sociedade. Os artistas precisam se adequar para divulgar seu trabalho. “É uma dificuldade do artista hoje ter visibilidade, ser reconhecido. Por exemplo, a figura dos marchand, pessoas responsáveis por negociar obras de arte,
“ESTAMOS TENTANDO VIVER DISSO. ACHO QUE, MESMO PARA AS PESSOAS MAIS ESTABELECIDAS, É DIFÍCIL. PARA MIM, É UM PROCESSO” Grégori de Sá Estudante e artista
vem perdendo força, e isso obriga que o artista seja seu próprio agenciador”, aponta Martina. A busca por visibilidade acarreta em que o artista seja um profissional multitarefa. “Hoje o artista precisa ser publicitário, saber administrar o tempo, falar com jornais para conseguir uma matéria, saber utilizar as redes sociais. Acaba que isso, para um artista independente, fica bem complexo. É o jogo do mercado”, desabafa Martina. Para Rodrigo, o mercado da arte está ligado com a educação. “Quando há um déficit nessa área, é normal que a cidade não tenha um mercado aquecido. É um trabalho de longo prazo, que se executa desde a base para chegar a um adulto crítico e que consuma cultura.” A busca por espaço nesse mercado é contínua e precisa de muita dedicação e até mesmo sorte dos artistas que estão começando. Para aqueles já inseridos nesse mercado, como Rodrigo e Martina, precisa de muito amor e persistência pelo que se faz.
QUERO MEU ESPAÇO No feriado do dia 20 de setembro deste ano, a Casa de Cultura Mario Quintana recebeu o segundo Festival Porongos, que tem o objetivo de divulgar o trabalho de artistas e empreendedores negros. O festival apresentou a exposição sobreviveRmos, que teve a participação de Grégori de Sá. Iniciante nesse ramo, Grégori sabe que precisará de muita dedicação e vontade para romper barreiras de preconceitos para que sua arte ganhe espaço nesse mercado tão seletivo. Nas criações de Grégori, há muito das suas vivências e experiências. Sua formação em biblioteconomia contri-
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A presença da tecnologia no meio das obras, como o uso de QR Code, confirma que a arte se adapta às transformações sociais
estudante e artista, Grégori tenta driblar essa realidade. “Há uma ansiedade de [saber] quanto apoio institucional tu vai ter. Pessoas hiperativas como eu buscam novas formas de contornar isso. Estamos tentando viver disso. Acho que mesmo para as pessoas mais estabelecidas é difícil. Para mim, é um processo”, desabafa. Ciente da realidade e dividindo o trabalho de artista com uma bolsa de monitoria no Instituto de Artes, Grégori sabe que em algum momento esse espaço de privilégio deixará de fazer parte de sua vida, e as ameaças e os cortes feitos são algumas das realidades enfrentadas por toda a universidade. “Por exemplo, tenho bolsas e monito-
rias, enquanto elas existem. Quando tu entra numa bolha, principalmente mais elitizada, tem um feedback e tu consegue estar circulando, mas fora dela é mais complicado.” O meio das artes plásticas tem seus fundamentos na europa do século XV, um movimento que foi o boom de artistas de renome, e isso reverbera até os dias atuais. O preconceito e a desigualdade se fazem presentes em todos meios sociais, até mesmo no meio artístico, tão livre e permissivo para a criação. São os artistas independentes os que mais enfrentam certos obstáculos para adentrar nesse meio tão concorrido e seletivo.
Para pessoas como Grégori, viver de arte é um trabalho de amor e dedicação
NATÁSSIA FERREIRA
bui para a parte comunicacional de seu trabalho. “Existe uma identidade, tento abstrair, mas existe o meu eu ali: pessoas negras, pessoas não binárias, ou seja, tudo que me atravessa. Uso meu ponto de partida de forma ativa para o meu trabalho”, explica. O interesse por desenhos e por pintura teve início em sua infância, e Grégori mantém o apreço pelo mundo das artes até hoje. Estudante do Instituto de Artes da UFRGS, ele enxerga que a desigualdade na sociedade, não só racial, mas também de gênero, contribui para que haja desigualdade no meio artístico. “No Davi, o Departamento de Artes Visuais, eu não tenho nenhum professor e professora negros, por exemplo. Ainda há a necessidade da busca de algum espaço para fala. Os espaços não existem, precisam ser construídos aos poucos”, afirma. O mercado das artes, talvez por sua origem renascentista europeia, privilegia alguns. No entanto, isso não significa que artistas emergentes não possam quebrar essas barreiras e eles mesmos desenvolverem seus lugares de visibilidade. “Diria, como um todo, que a representatividade é bem baixa. Mas em geral há visibilidade, há produção porque a gente faz nossos próprios circuitos, e nós somos muitos”, relata Grégori. Viver da arte é um desafio para qualquer um. O retorno financeiro é um problema para os artistas. Enquanto
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CULTURA
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DIFERENTES PRATOS, NOVAS DESCOBERTAS RESTAURANTES FAMILIARES TRAZEM PARA A CAPITAL GAÚCHA O SABOR ASIÁTICO E EXPANDEM A DIVERSIDADE PARA SATISFAZER O PALADAR DOS PORTO-ALEGRENSES Texto e fotos: Nathália Cassola nathalia.cassola@hotmail.com
Diagramação: Tamires Rodrigues tamires.rodrigues@ufrgs.br
Maior entre todos os seis continentes que formam o mapa múndi, a Ásia abriga atualmente quase três quintos da população mundial. Sua civilização teve início há mais de quatro mil anos, antes mesmo do começo do mundo ocidental que conhecemos. As populações que ali se encontram são diversificadas, com diferenças que vêm desde os seus idiomas, crenças e religião, até os seus modos de comportamento ou governo. Dentro desse continente heterogêneo, existem várias regiões distintas, como a Ásia Meridional e o Oriente Médio. O Leste Asiático, também chamado de Ásia Oriental, é uma dessas regiões, sendo formado por alguns dos países que mais imediatamente lembramos ao mencionar os povos asiáticos, como a China, o Japão e as duas Coreias. Apesar dos oceanos de distância, essas diferentes culturas asiáticas também chegam ao Brasil por meio dos imigrantes, alguns deles abrindo seus próprios restaurantes com o gostinho de casa. A história de imigração do Japão para o Brasil é antiga, tendo o seu marco inicial com a chegada do navio Kasato
Maru em 1908. Essa embarcação, de acordo com dados da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, trouxe os 781 imigrantes que foram os primeiros japoneses a se estabelecer em terras brasileiras. Apesar de São Paulo ser conhecida como a maior comunidade de japoneses fora do seu país de origem, uma parcela desses imigrantes e de seus descendentes veio parar também no Rio Grande do Sul. Dessas famílias que se instalaram no Sul, surgiram restaurantes como o Yuu Pub Bar, aberto em 2016 e já popular entre os apreciadores da culinária japonesa. Diferentemente dos pratos frios, como o sushi, que estamos acostumados a ver espalhados pela cidade, o carro chefe do restaurante e bar é o chamado Takoyaki, bolinho recheado com polvo que é extremamente popular no seu país de origem. O prato é considerado comida de rua e tem presença forte nas cidades japonesas. “Desde 1989, quando fui para o Japão, eu me encantei pelo sabor e pelo produto. Sempre imaginava que, quando voltasse para o Brasil, teria que mexer com isso, porque é muito bom”, conta Edison Nishiyami, idealizador do Yuu. Como muitos outros filhos e filhas da primeira geração nascida brasileira, Edison passou por diversas cidades no Japão, como Nagoya e imediações de Yokohama, quando ainda era jovem. Essa emigração teve amplitude nacional
Edison Nishiyami, Flávia Lumi Miyamoto Aso, Li Mei Yun e Gabriela Kim são membros de famílias de imigrantes e descendentes do leste asiático que abriram restaurantes para trazer um pouco da sua culinária tradicional para o Brasil
e foi denominada como movimento dekassegui. Muitos desses descendentes nascidos aqui fizeram o caminho inverso dos seus pais e retornaram ao Japão para trabalhar e juntar dinheiro antes de voltar ao Brasil. Apesar da ideia inicial de voltar após alguns anos trabalhando por lá, Edison acabou morando no país até 2013, onde aprendeu a cozinhar o prato que agora é principalmente associado a seu restaurante na capital gaúcha. Foi durante a sua participação no festival do Japão, com a ajuda da esposa e companheira Vera Lúcia Bonim, que Edison percebeu a grande demanda pelo prato, o que incentivou a abertura do bar. O foco e diferencial do Yuu Pub é a culinária quente, que é bastante consumida por japoneses, mas pouco conhecida por aqui. “Na verdade, japonês não come só sushi, então nós optamos por ir pela contramão”, explica ele. O restaurante Daimu, localizado no bairro Moinhos de Vento, também é um negócio familiar com mais de duas décadas de história. Um casal de imigrantes japoneses e seus dois filhos são os responsáveis pela cozinha e administração do estabelecimento. Ali encontram-se os pratos japoneses mais populares, como o sushi, mas também uma linha própria de pratos quentes, que representa apenas uma parcela da diversidade da culinária japonesa. “Todas as partes do Brasil têm uma SEXTANTE Dezembro de 2019
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colônia japonesa. A gente tem ideia de transmitir a nossa cultura através da comida”, explica Flávia Lumi Miyamoto Aso, nascida no Brasil. Para eles, preservar a forma como o prato foi criado e respeitar a estética da culinária é um dos fatores mais importantes para se manter fiel às origens e também para se destacar no mercado. A família passou um período de oito anos no Japão, o que foi essencial para que o empreendimento desse certo. Com o tempo, os brasileiros começaram a conhecer mais sobre a cultura e a culinária deles. "Na época que a gente abriu, muitas pessoas não comiam sushi e tiveram que aprender a comer", explica Flávia. Aumentar a aceitação da população para comidas diferentes da que estão acostumados é uma das missões do Daimu.
DE XANGAI PARA O RIO GRANDE DO SUL Contudo, os japoneses não foram os únicos asiáticos a vir para o Brasil: a comunidade chinesa também se encontra presente em Porto Alegre. Li Mei Yun, co-fundadora do restaurante You Yi, foi uma dessas pessoas que procuraram melhores oportunidades de vida por aqui. Já há 30 anos no Brasil, ela saiu de Xangai, a maior cidade chinesa, durante o período em que o país
“A GENTE TEM IDEIA DE TRANSMITIR A NOSSA CULTURA ATRAVÉS DA COMIDA” Flávia Lumi Miyamoto Aso
Proprietária do restaurante japonês Daimu
estava reabrindo a sua economia. De acordo com ela, muitos outros jovens fizeram o mesmo, buscando trabalho e a chance de uma vida melhor. Ela veio para conhecer o país junto com o seu
O Takoyaki é carro chefe do Yuu Pub Bar, o primeiro restaurante a trazer o prato para o Brasil
marido, pouco depois do casamento, e nunca mais voltou. “A cultura era totalmente diferente de como a gente vivia lá. Éramos comunistas, bem fechados. Quando chega aqui, dá um choque”, conta. A língua foi uma das maiores dificuldades de adaptação para o casal, que passou os primeiros meses ilegalmente no país até que a sua primeira filha nasceu no Brasil. Para Li, manter contato com a cultura estando em um país tão diferente foi complicado. “Aqui não tem comunidade chinesa forte, tem poucas famílias”, explica. Os dois tiveram que trabalhar muito até alcançar a estabilidade e popularidade que hoje possuem, e todo o tempo que passavam no restaurante tornou difícil a transmissão da sua cultura para os filhos. Ela diz ter se arrependido de não ter dado mais atenção a isso. Para Li, é importante manter as tradições. Por isso, sempre conta curiosidades da história da China ou da sua cultura para os clientes que visitam o restaurante. A decoração do local também foi pensada para trazer a estética chiMáscaras relacionadas ao folclore japonês adornam a parede do Daimu
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sobre elas existe, e esses restaurantes e famílias trazem um pouco do seu país para o Brasil. Podem ser apenas uma pequena fração dessas culturas, mas ainda assim são um começo. Conviver com pessoas de diferentes origens das nossas nos ensina a respeitar as diferenças, a abraçar e valorizar o que torna cada um de nós únicos.
AS CULINÁRIAS DO LESTE ASIÁTICO
A China está presente não só no cardápio do You Yi, mas também na estética dos diversos elementos que decoram o local
nesa para a capital, como se fosse um pequeno pedacinho da China no meio de Porto Alegre. Apesar da saudade do país onde nasceu, Li diz que a vida deles agora é aqui.
A EXPANSÃO SUL-COREANA Diferentemente das culturas e cozinhas japonesas e chinesas, a comida da Coreia do Sul ainda é pouco representada na capital gaúcha. Uma alternativa disponível para quem quer experimentá-la é o BoM Korean Food Cafe, criado pela família Kim. Buscando trazer mais variedade para a cidade, o restaurante tem como proprietários um casal de imigrantes sul coreanos. Responsáveis pela cozinha, eles também contam com a ajuda dos dois filhos no estabelecimento. O espaço é pequeno e aconchegante, trazendo pratos tradicionais da culinária coreana e até mesmo bebidas e lanches que são consumidos no país. Além disso, em uma televisão, passam videoclipes de K-pop, o fenômeno musical que trouxe mais atenção para a Coreia do Sul nos últimos anos e aumentou o interesse pelo país. Nascida no Brasil, Gabriela Kim acredita na importância de manter esses laços com a Coreia e também de oferecer a oportunidade para que os gaúchos
conheçam um pouco mais sobre a culinária coreana. “A variedade de cultura enriquece uma cidade.” Em Porto Alegre, tem opções para todos os gostos: para quem quer se sentir mais perto de casa ou para quem quiser expandir o seu paladar e horizontes. É por meio do conhecimento e do contato com diferentes culturas que também podemos quebrar os estereótipos que ainda estão presentes na sociedade. As culturas asiáticas, em toda as suas plenitudes e séculos de existência, são extremamente ricas. A oportunidade de se conhecer mais
Apesar de terem alguns pontos em comum, as culinárias japonesas, chinesas e coreanas têm cada uma os seus pratos e gostos próprios. O gengibre e sabores agridoces são muito comuns no Japão e China, assim como o shoyu. Já na Coreia, a comida é mais apimentada e os sabores são mais fortes. Um dos acompanhamentos tradicionais para os coreanos é o kimchi, uma acelga fermentada na pimenta que é consumida em quase todas as refeições.
Em meio ao cardápio escrito na parede de giz do BoM Koream Food Cafe, tocam os últimos hits do K-pop
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RACISMO
COMO O RACISMO IMPACTA O DIA A DIA DAS CRIANÇAS Texto: Karolaine Leão karolaineleao@gmail.com Fotos: Karolaine Leão e Tamires Rodrigues karolaineleao@gmail.com e tamires.rodrigues@ufrgs.br Diagramação: Tamires Rodrigues tamires.rodrigues@ufrgs.br
Não é novidade alguma que o racismo está em todos os lugares e afeta todos os negros e negras. No Brasil – o último país do continente a abolir a escravidão –, a discriminação racial ainda atinge aqueles que estão em fase de descoberta de si próprios e do mundo. O racismo não exclui inocentes: crianças de zero a 12 anos, que sentem na pele o que é ser negro na sociedade. Expressões como “macaco” ou “macaca”, “cabelo duro” e “cabelo ruim” são umas das tantas direcionadas a essas crianças e que as afetam profundamente. Muitas vezes, as crianças negras são vítimas de racismo até mesmo dentro das instituições de ensino, seja por funcionários ou por colegas de classe que reproduzem falas preconceituosas dos pais. Essa foi uma das experiências negativas de Ketllyn Vieira, de 11 anos, que está no 5º ano e mora no bairro Lomba do Pinheiro, zona leste de Porto Alegre. A estudante trocou de escola neste ano após não aguentar mais os comentários racistas feitos por colegas sobre a cor da sua pele e sobre o seu cabelo. “O racismo mata, e eu estava a ponto de me matar”, aponta Ketllyn. Para a psicóloga e mestranda em Psicologia Social na UFRGS Liziane Guedes, todos os estereótipos sobre ser negro na sociedade impactam na vida
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OLHARES
QUE AFETAM
O projeto Afroativos, da Escola Municipal de Ensino Fundamental Saint'Hilaire, ĂŠ um exemplo de iniciativa que empodera e conscientiza os alunos sobre cultura afro e racismo SEXTANTE Dezembro de 2019
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das crianças, como na saúde mental, na autoestima e na forma como vão se perceber. Ketllyn, por exemplo, sentia-se mal em relação à sua própria aparência. “O racismo influencia as crianças de diversas formas, como no processo de aprendizagem, na oferta de oportunidades e no afeto que receberá dos professores. Pensar o racismo na infância é inclusive pensar como as crianças negras e brancas desde a escola terão olhares diferenciados”, ressalta Liziane. Entretanto a escola não é o único local onde o racismo está presente. Os locais públicos também são espaços de propagação de frases discriminatórias ou de olhares preconceituosos. Ezequiel Marques, de 11 anos, da comunidade Morro da Cruz, também localizada na zona leste da capital gaúcha, conta que já sofreu racismo por meio de frases e de olhares. No projeto sociocultural no qual participa durante o contraturno da escola, já foi alvo de xingamentos pela cor da sua pele. “Já me chamaram de macaco, de negão e falaram do meu cabelo.” Ele também suporta continuamente olhares que inferiorizam os seus traços feno-
“O RACISMO MATA, E EU ESTAVA A PONTO DE ME MATAR” Ketllyn Vieira Estudante
típicos quando vai passear com sua família em lugares públicos, ou até mesmo quando realizam compras. “As pessoas julgam mal as pessoas negras quando vão fazer compras. Já aconteceu comigo. A vendedora queria oferecer o sapato mais baratinho. Ela julgou minha família porque somos negros e achou que não tínhamos dinheiro para pagar o sapato”, descreve. Apesar da pouca idade, Ezequiel observa ainda a falta de representatividade em diversos segmentos da sociedade. A falta de professores, funcionários e artistas negros é destacada por ele. Ezequiel também comenta sobre a pouca presença dos negros em espaços públicos, o que lhe gera um certo incômodo. “Eles acham que a gente não tem capacidade para ser o que a gente quer ser, como profes-
sor, advogado. Mas, se a gente estudar, teremos capacidade, sim, para ser o que quisermos na vida.” Para a psicóloga Liziane, a escassez de representatividade também é um dos fatores que afetam as crianças negras. Ela acredita que quanto mais as crianças estiverem entre os seus pares, com pessoas parecidas, mais saudável será o desenvolvimento delas. Caso contrário, há uma tendência natural da criança tentar se parecer como as demais, como forma de pertencimento a um grupo. Isso implica na forma como ela vai se vestir, usando tons que não chamem a atenção, bem como recusas de andar com o cabelo solto. Assim, a criança negra se camufla em grupos que, na maioria das vezes, são majoritariamente brancos.
DESIGUALDADE EM NÚMEROS O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo, como apontou o relatório da Oxfam Brasil, e a cor da pele é um elemento estruturante para tal, ainda que os negros, incluindo crianças, representem 53,6% da população, de acordo com a pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
Ketllyn é integrante do projeto Afroativos e se expressa por meio de poemas que cria sobre racismo
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Apesar da pouca idade, Ezequiel atenta para casos de racismo na mídia e para a falta de representatividade do negro na sociedade
(IBGE) de 2014. A discriminação racial não apenas persiste no cotidiano das crianças do Brasil como também se reflete nos números da desigualdade. Conforme a pesquisa do IBGE de 2018, as crianças negras, quando chegam aos 15 anos, têm 9,1% de chance de serem analfabetas, enquanto que, para as brancas, o percentual é de 3,9%. A média de anos de estudo é outro fator que elucida a desigualdade. A média é de 8,4 anos para negras e 10,3 anos de estudo para brancas. A mesma pesquisa apontou ainda que 95,8% das crianças negras estavam na etapa escolar adequada em 2018. O índice das crianças brancas foi de 96,5%. Os números evidenciam a diferença entre os dois grupos, resultante de processos históricos, culturais e políticos baseados na crença de uma superioridade branca. Apesar dos mais de 130 anos de abolição da escravidão, a população negra ainda sofre diariamente com a discriminação racial. “Se tratando de um país como o Brasil, o racismo vai ser um elemento que vai estruturar e constituir tanto a sociedade quanto as pessoas que vivem nela. Esse processo não isenta as crianças. Pelo contrário, ele influencia diretamente na forma como as crianças vão crescendo e percebendo o outro”, complementa a psicóloga, que também chama a atenção para o que é tratado nas escolas sobre
“AS PESSOAS JULGAM MAL AS PESSOAS NEGRAS QUANDO VÃO FAZER COMPRAS. JÁ ACONTECEU COMIGO, A VENDEDORA QUERIA OFERECER O SAPATO MAIS BARATINHO” Ezequiel Marques Estudante
o “ser negro”. Para Liziane, é preciso cumprir a lei 10.639/03, de 2003, que torna obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana em todas as escolas, públicas e particulares, do Ensino Fundamental até o Ensino Médio. Para a psicóloga, abordar a história do negro apenas pelo viés do período escravocrata é um dos complicadores que colaboram para negação da própria imagem. Também é necessário, por exemplo, evidenciar a representatividade na literatura infanto juvenil, desde que o papel do negro não seja estereotipado.
INICIATIVAS PARA UMA INFÂNCIA SEM RACISMO Pensando no impacto do racismo para as crianças, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) lançou em 2010 a campanha “Por uma
infância sem racismo”. O objetivo era alertar a sociedade sobre o racismo na infância e adolescência e a necessidade de uma mobilização social que assegure o respeito e a igualdade étnico e racial desde pequeno. Desde então, outros projetos e espaços, ainda que poucos, estão sendo criados. O projeto Afroativos - Solte o Cabelo, Prenda o Preconceito, da escola Escola Municipal de Ensino Fundamental Saint'Hilaire, localizada na Lomba do Pinheiro, é um exemplo. A idealizadora do projeto, professora Larisse Moraes, ressalta também a importância da obrigação definida pelo legislativo de abordar nas escolas a cultura afro-brasileira. A professora tem encontros semanais com cerca de 300 crianças com o objetivo de conscientização sobre a cultura afro, o que ela chama de “afrobetização”: "É a ressignificação da história da cultura africana e afrobrasileira através da alfabetização". Ketllyn, a estudante que precisou trocar de escola por conta do racismo, hoje é uma das integrantes do projeto. Além de participar em sala de aula, ela acompanha as reuniões do Afroativos, debatendo pautas de dentro e fora da escola. As discussões fortalecem a resistência desses estudantes e promovem o empoderamento das crianças negras. Atualmente, Ketllyn se sente à vontade para se vestir como quiser e usar o penteado que quiser. O racismo em qualquer faixa etária é doloroso, mas na infância o processo é mais cruel ainda. Infelizmente, nem todas as crianças negras têm acesso a projetos ou acompanhamento com psicólogos. O racismo é crime. O racismo mata. É preciso identificar, evitar e combater todas atitudes e ações discriminatórias desde a infância para uma sociedade justa e igualitária. Como diz a filósofa estadunidense Angela Davis: “Numa sociedade racista, não basta não ser racista, é necessário ser antirracista”. SEXTANTE Dezembro de 2019
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SÍNDROME DE DOWN
CROMOSSOMO 21
Ivanete, mãe de Yasmin, diz que, se a filha está feliz, seu coração está em paz
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FREQUENTEMENTE, OUVIMOS QUE O EXCESSO DE MATERIAL GENÉTICO NAS PESSOAS COM DOWN É O CROMOSSOMO DO AMOR. CONTUDO, A INCLUSÃO E O ACOLHIMENTO DESSAS PESSOAS NO ESPAÇO ESCOLAR NÃO É NADA AMOROSA Texto e fotos: Raíssa de Avila raissa_avilaribeiro@outlook.com Diagramação: Anderson Dorneles anderson.615@hotmail.com
Quando Ivanete Vicenzi contou a uma amiga que queria ser mãe, a reação não tinha como ser diferente: “Você está louca?”. Durante toda vida, ela tinha certeza que não queria gerar uma criança, mas repentinamente sentiu uma necessidade de viver a maternidade. Planejou tudo e, na primeira tentativa, descobriu que estava esperando uma menina. O ano era 2001, e a gravidez de Ivanete foi absolutamente normal. A família toda compartilhava da ansiedade pela espera da Yasmin, que cessou na noite do dia 4 de junho, às 23h10 min, quando o choro da menina pôde ser escutado pela primeira vez. Logo depois do nascimento, Ivanete ficou esperando vagar um quarto no hospital, quando pôde finalmente ficar mais tempo com a bebê. Ela tinha se formado havia pouco tempo, com a Yasmin ainda na barriga, como técnica de enfermagem e começou a reparar nos olhos puxados da filha e na língua que insistia em sair da boca. Comentou sobre isso com o pai da menina, que no dia da alta do hospital decidiu falar para o obstetra: “Doutor, a Ivanete tem uma pergunta para fazer sobre os olhos da neném”. A resposta do médico deu a Ivanete certeza de sua desconfiança. “É sobre isso que viemos falar.” Yasmin nasceu com um cromossomo a mais na célula 21, em outras palavras, é uma pessoa com síndrome de down. A anomalia não é considerada
uma doença, mas gera dificuldades de aprendizagem e mudanças no fenótipo, como a Ivanete notou. A partir daquele momento, um misto de choque e amor tomou conta de Ivanete. “Eu amei ela desde o primeiro instante, mas questionamentos começaram a vir na minha cabeça, queria saber por que aquilo tinha acontecido comigo, com a minha filha”, comenta. Depois de 20 dias, Yasmin já estava fazendo atividades, como fisioterapia, na Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae) de Caxias do Sul, cidade na Serra Gaúcha onde moram. Ivanete, que se preparava para ter a casa cheia por conta da chegada de sua primeira filha, se viu sozinha. “Eu ficava dias inteiros sozinha, só eu e ela. Algumas pessoas vinham visitar porque ouviam falar que ela tinha nascido com algum problema e queriam saber qual era.” No Brasil, estima-se que 270 mil pessoas tenham síndrome de down, sendo um caso em cada 700 nascimentos.
O DISCURSO INCLUSIVO Com dois anos, Yasmin começou a frequentar uma escola infantil para que Ivanete pudesse trabalhar. Nessa época, Ivanete já havia se divorciado do pai de Yasmin. Como a síndrome também provoca enfraquecimento do tônus muscular, algumas coisas aconteceram mais lentamente para a pequena, como os primeiros passos, dados apenas aos quatro anos. Apesar da dificuldade de aceitação por parte da família, Ivanete define a infância de Yasmin como
normal, até o momento em que precisou procurar uma escola para que, como naturalmente acontece com toda criança, ela pudesse ser alfabetizada. No entanto, o caminho que as duas precisaram trilhar foi bem diferente. Em um primeiro momento, Ivanete achou que seria melhor procurar uma instituição particular para que a filha tivesse mais amparo e a matriculou em uma escola pertencente a uma rede religiosa em fevereiro de 2007. No dia 11 de maio daquele mesmo ano, na sexta-feira que antecedia o domingo de Dia das Mães, o diretor da instituição ligou para Ivanete e pediu, sem pestanejar, que ela buscasse Yasmin e a levasse embora do colégio para não mais voltar. Yasmin foi expulsa do colégio. No telefonema, ele alegou que ela era muito agressiva, não aceitava normas e que, em vez de ficar em sala de aula sendo alfabetizada, ficava circulando pelos corredores com uma monitora. Ele também comentou sobre reclamações de pais de alunos que não gostavam que Yasmin estivesse na classe. O baque foi tão grande que Ivanete não quis tomar nenhuma medida legal contra o lugar. “Só queria acabar com aquele sofrimento”, conta ela. Às pressas, procurou outra instituição particular e matriculou Yasmin e, desta vez, o colégio não tinha nenhuma orientação religiosa. A adaptação não foi fácil, e a pequena reclamava frequentemente Yasmin está iniciando o processo de alfabetização na escola especial
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Yasmin gosta de se arrumar para ir à escola
da falta de acolhimento do lugar. Em uma reunião com a professora, Ivanete ouviu que, em muitas ocasiões, Yasmin ia para o fundo da sala chorar. Preocupada, Ivanete questionou o que era feito nessas situações, e a resposta foi de que deixavam Yasmin chorando. “Eu pagava caro para que ela estivesse na aula, sendo ensinada, amparada, e descobri que ela ficava no fundo da sala chorando. Aquilo partia meu coração como mãe.” A psicóloga Beatriz Lima Costa, que tem mestrado em psicologia na área de processos educativos, alerta que, muitas vezes, a escola para a criança com deficiência acaba sendo um espaço de socialização e não de educação e alfabetização. “A inclusão na escola não é efetiva se não cumpre o papel principal da educação, que é o ensinamento dos saberes científicos.” A Lei 7.853 sobre o acesso à educação para crianças com deficiência, de 1989, se torna falha nesse sentido, pois reitera a obrigatoriedade da matrícula dos alunos tanto na rede pública quanto na privada, mas não abrange a experiência de ensino que essas crianças enfrentarão. Em meio a todas essas situações, Yasmin sentia os impactos. Com oito
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“A INCLUSÃO NA ESCOLA NÃO É EFETIVA SE NÃO CUMPRE O PAPEL PRINCIPAL DA EDUCAÇÃO, QUE É O ENSINAMENTO DOS SABERES CIENTÍFICOS” Beatriz Lima Costa Mestre em psicologia
anos, ainda não tinha iniciado a alfabetização e não desenvolvia os conhecimentos que os demais colegas tinham. Na época, orientada por uma psicopedagoga, Ivanete começou a cogitar matriculá-la em uma escola apenas para pessoas com deficiência. Relutante no início, Ivanete decidiu tentar, depois de ver Yasmin cada vez menos feliz com a ideia de ir ao colégio. A Escola João Prataviera é pública, regida pelo Estado, e o único requisito para efetuar a matrícula é apresentar um diagnóstico médico de deficiência intelectual. Nessa escola, a realidade educacional é diferente, embora o objetivo de ensinar seja o mesmo. As turmas são reduzidas, com no máximo 12 alu-
nos, de diferentes idades. Ao invés de ser dividida por séries, a escola tem dois níveis, que são subdivididos em cinco etapas. Para avançar, as professoras levam em conta não só o desempenho nas atividades, mas também a capacidade motora e emocional dos alunos. Todas as professoras têm especialização voltada para educação de pessoas com deficiência. Esse é um pré-requisito para lecionar no João Prataviera, contudo os professores não recebem formação especial do Estado.
A VIDA COMO ELA É A diretora da escola João Prataviera, Jucélia Consoladora Campos Chisini, já ouviu muitas histórias semelhantes a de Ivanete e Yasmin. “Esses relatos são muito presentes, já recebemos vários pais que chegam até nós chorando.” Ela acredita que o problema na inclusão nas escolas regulares seja um efeito cascata. “Todo o sistema é falho. Faltam professores com a formação necessária e pessoas para amparar esse aluno. As salas têm mais alunos e isso dificulta.” Hoje, a efetividade da inclusão no Brasil é medida pelo número de matrículas no ensino básico. Segundo dados do Censo Escolar da Educação Básica,
o modelo para que mudanças efetivas aconteçam. “Os profissionais da área precisam estar nesse papel de denunciar o que não funciona para que cada vez mais a educação inclusiva seja efetiva”, explica a psicóloga.
AUTONOMIA Além da dificuldade no ensino regular, achar atividades no contraturno para Yasmin também é um desafio. Ela já tentou ballet, dança e faz natação até hoje, mas Ivanete sentia falta de algo que ajudasse no desenvolvimento social e pessoal da filha. No meio deste ano, Yasmin começou a frequentar as aulas do projeto DownChefs, em Caxias do Sul, que oferece aula de culinária para pessoas com síndrome de down. O projeto foi idealizado por Kaká Cassol, gastrônoma, que queria pôr em prática uma antiga vontade de trabalhar com pessoas com síndrome de down. Em uma semana, ela tirou a ideia do papel e, junto com o chef de cozinha Rafael Traiber, lançou o projeto totalmente voluntário e gratuito. Todos os alimentos utilizados e até o espaço onde as aulas acontecem são doações. Já na primeira aula, Yasmin aprendeu a fazer hambúrguer e brigadeiro. Ivanete conta que, além de auxiliar na autonomia da filha, a socialização com
outras pessoas com síndrome de down é muito valiosa para ambas. “Lá sei que a Yasmin está sendo aceita e está feliz. Não preciso me preocupar com o que ela fala e com o que outros irão pensar, pois todos nós já passamos pelas mesmas coisas.” Agora, Yasmin pede para a mãe se pode replicar as receitas em casa, o que, para Kaká, é a demonstração da força do projeto. “O principal intuito é esse, ver os alunos demonstrando suas habilidades, criando autonomia e mostrando sua capacidade.” As aulas acontecem duas vezes por mês, e a primeira turma do projeto se encerra em dezembro, com um jantar especial, aberto ao público e feito pelos novos chefs. Kaká ainda estuda como dará continuidade à iniciativa, mas garante que as experiências que vivenciou já são muito valiosas. “Em uma aula, a Yasmin, no meio de uma explicação, veio até o chef, abraçou ele e disse ‘eu te amo’. Eu pude sentir a verdade do que ela disse e a mudança que estamos fazendo”, conta Kaká. Agora, Yasmin vai pouco a pouco construindo seu processo de alfabetização e socialização, um caminho árduo, mas cheio de vitórias. Yasmin faz aulas com a chef Kaká Cassol no projeto DownChefs
FOTO: BELISA STEDILE
o índice de inclusão de pessoas com deficiência em classes regulares passou de 85,5%, em 2013, para 90,9% em 2017. No entanto, a maior parte dos alunos com deficiência não tem acesso ao atendimento educacional especializado. Somente 40,1% conseguem ter esse tipo de atendimento. Adaptada ao colégio especial há oito anos, hoje, com 18 anos, Yasmin ensaia os primeiros passos na alfabetização. “Eu gosto de ir pro colégio, lá eu escrevo e faço conta”, diz Yasmin. Ivanete pondera que estudar na João Prataviera trouxe a sua filha uma maior autonomia. Além disso, Ivanete fica tranquila quanto ao emocional da filha. “Logo que ela começou na nova escola, pegava o antigo uniforme e dizia que era da escola ruim. Hoje sei que ela está feliz, ela pede para ir ao colégio. Prefiro ela assim, apesar de o processo de alfabetização ser mais lento.” Beatriz considera que a educação inclusiva é a melhor opção, embora entenda que na prática o processo seja bem mais difícil. “Como psicóloga, não acredito que as escolas especiais sejam a melhor solução para o desenvolvimento das pessoas com deficiência, mas entendo as falhas no sistema atual e a necessidade das famílias procurarem essa alternativa.” Contudo, ela acredita na importância do debate sobre
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ENSINO
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ENQUANTO O MERCADO DE TRABALHO EXIGE CADA VEZ MAIS O DOMÍNIO DA LÍNGUA INGLESA, O ENSINO SEGUE ESTAGNADO NAS ESCOLAS E ELITIZADO NOS CURSOS Texto: Filipe Bertoglio e Gabriela Plentz filipebert@gmail.com gabrielaplentz@hotmail.com Fotos: Alberto Bastos Fanck e Rafaela Pereira betofanck@gmail.com rafapereira1509@gmail.com Diagramação: Alnilam Orga alnilam_orga@hotmail.com
Com uma curta caminhada pela cidade, ou usando o computador por alguns minutos, somos inundados de termos que pouco tempo atrás não faziam parte do cotidiano do brasileiro. Vemos anúncios de novos livings, olhamos os posts e stories através dos nossos smartphones, tablets e notebooks. Coworking e home office viraram realidade. O inglês já não pertence somente aos americanos e britânicos, virou a língua franca do mundo. Língua oficial da aviação, da informática, dos negócios multinacionais, do fazer científico, do turismo internacional. Porém, apesar do rápido cenário de globalização, as atuais conjecturas de qualidade de ensino público e diferenças socioeconômicas fazem com que a imensa maioria dos brasileiros ainda não tenha domínio de inglês. Atualmente, o conhecimento da língua inglesa para leitura e, principalmente, para conversação já virou pré-requisito para diversas vagas de estágio, emprego e bolsas de estudo. Além disso, o inglês é a principal opção
de língua estrangeira em provas como o Enem e o vestibular da UFRGS. Contudo, um relatório de 2013 feito pela British Council – órgão britânico que visa trocas culturais e o ensino do idioma – mostrou que apenas 5,1% dos brasileiros acima de 16 anos afirmam ter domínio da língua inglesa. Apesar do Brasil ter sediado a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas Rio 2016, esse percentual permanece estagnado.
A FALTA DE ESTRUTURA NO ENSINO PÚBLICO Uma das causas dessa desigualdade no país é a qualidade do inglês no ensino público básico. Desde 1996, é obrigatório o ensino de uma língua estrangeira nas escolas. Contudo, somente em 2017 foi sancionada a Lei 13.415, que torna obrigatório o ensino da língua inglesa a partir do sexto ano do ensino fundamental. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) – documento que define como se dará a aprendizagem durante os níveis básicos de educação – afirma o caráter híbrido e global do
idioma, reconhece a importância da bagagem cultural dos falantes durante o ensino e propõe uma ressignificação para aplicá-lo ao mundo digital e globalizado. A BNCC estrutura o ensino de inglês em cinco Eixos Organizadores – oralidade, leitura, escrita, conhecimentos linguísticos e dimensão intercultural – todos estimulando visões e produções críticas, conversação, análise e inserção das novas tecnologias para o aprendizado. Apesar da Base estabelecer, no papel, como deveria ser ensinado e quais os resultados esperados, a realidade é bem diferente. Dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) afirmam que as turmas brasileiras de escolas públicas a partir do sexto ano do ensino fundamental têm uma média de 27,2 alunos. Fato que dificulta o âmbito da conversação. No ensino médio, a média passa para 30,6. No aspecto infraestrutural, ainda de acordo com o INEP, em 2018, apenas 48,9% das escolas de ensino fundamental possuíam biblioteca ou
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sala de leitura, só 43,9% tinham laboratório de informática, 63,4% possuíam internet e 50,7% tinham banda larga. Todos os números apresentam melhoras nas escolas de ensino médio, porém na etapa da vida mais recomendada para o aprendizado de uma língua estrangeira – assim como das demais disciplinas –, mais da metade das escolas não conta com biblioteca ou laboratório de informática, embargando assim o olhar crítico e inserido no contexto digital desejado pela BNCC, por exemplo. Esses números mostram a estrutura do ensino público como sendo a principal mantenedora do baixo domínio de inglês no Brasil, tendo em vista que mais de 81% dos alunos são matriculados nessa modalidade.
“O ENSINO QUE TIVE NA ESCOLA NÃO ME PROPORCIONOU UM BOM ENTENDIMENTO DE INGLÊS, O QUE ME FEZ ENTÃO BUSCAR UM CURSO ESPECÍFICO, PORÉM GRANDE PARTE DOS CURSOS DE IDIOMAS DEMANDA UM ALTO INVESTIMENTO, NEM SEMPRE ACESSÍVEL”
REFORÇO ELITIZADO
financeiros consegue recorrer a cursos particulares. Em Porto Alegre, uma pesquisa rápida indica que a faixa de preço dos cursos tradicionais varia entre R$ 300 e R$ 500 por mês. Para uma criança começar no nível iniciante e completar o ciclo em um dos cursos, são necessários de cinco a oito anos. Considerando uma mensalidade de R$ 400, sem con-
Mesmo possuindo mais infraestrutura, as escolas particulares também não conseguem suprir a demanda de formar alunos com capacidade cognitiva suficiente na língua inglesa. O currículo acaba sendo muito técnico e formal, focado em leitura e interpretação de texto para o vestibular. A diferença é que quem possui recursos
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Jaqueline Almeida Bancária
Edson e Jaqueline estão há um ano e nove meses aprendendo inglês com Ana Paula (à direita), fundadora do English Project RS
tar valores extras, como transporte e materiais, em cinco anos o montante desembolsado seria R$ 24 mil. O salário mínimo de um brasileiro, atualmente, está em R$ 998. A estudante de Engenharia de Energia da UFRGS Evelyn Dierks estudou durante quatro anos em um dos cursos tradicionais de Porto Alegre. Ela começou as aulas ainda durante o ensino fundamental em um colégio particular, aos 11 anos, e acabou o ciclo da língua estrangeira aos 15 anos, quando estava no ensino médio. Naquela época, Evelyn começou o inglês por conta da percepção dos pais dela de que seria um ensinamento importante. Hoje, com 22 anos, ela sente os efeitos positivos: “Para mim foi essencial. Tanto para ler conteúdos da faculdade, quanto para elevar meu currículo. Principalmente quando preciso de dados de instituições internacionais. Já passei por situação de não encontrar material de qualidade sobre certos assuntos em português e ter que pesquisar em inglês”.
A fase da vida em que o aprendizado acontece também é importante. No último semestre, Evelyn tentou estudar alemão, mas o ritmo da sua rotina fez com que ela desistisse: “Acabei parando porque minha cabeça chegava tão exausta na aula que não me fazia mais bem. Então, acho que pra quem estuda e trabalha fica bem difícil aprender línguas”. Com a estudante de Publicidade e Propaganda da UFRGS Rafaela Cazarré, 19 anos, não foi diferente. Atualmente, ela trabalha com social media e marketing digital, uma atividade que requer o entendimento de muitos termos de língua inglesa. Rafaela ficou oito anos em um curso de inglês, tendo iniciado aos oito anos de idade: “Agradeço muito aos meus pais por terem me colocado desde cedo. Uma língua, quando tu aprende desde pequena, é muito mais fácil de naturalizar. Tanto é que eu até tentei fazer aula de espanhol agora, mas, além de tomar muito tempo, eu tenho outras prioridades”.
PROJETOS ALTERNATIVOS Como alternativa à falha grade curricular das escolas e ao alto custo dos cursos tradicionais, surgem projetos que buscam viabilizar e tornar mais acessível o ensino de inglês. Esse é o caso do English Project RS, iniciativa da estudante de Direito da UFRGS Ana Paula Santos. O projeto visa levar a língua inglesa principalmente a estudantes de baixa renda que entraram no ensino superior com pouco ou nenhum conhecimento de inglês e que se viram obrigados a aprender o idioma para conseguir acompanhar o conteúdo das disciplinas e para competir em vagas de estágio e emprego. “Eu notei que, dentro da faculdade, todo mundo é aluno igual, mas as oportunidades dentro dela começam a se bifurcar de acordo com o que se tem de conhecimento prévio ou não”, afirma Ana Paula. O English Project RS oferece mensalidades mais acessíveis e turmas reduzidas e adequadas às constantes mudanças dos horários dos cursos. Jaqueline Almeida, 21 anos, bancária e graduanda em Administração Pública e Social, é, há um ano
e meio, uma das alunas de Ana Paula: “O inglês é o idioma universal, que abre portas para oportunidades tanto na vida pessoal quanto profissional. O ensino que tive na escola não me proporcionou um bom entendimento da língua, o que me fez então buscar um curso específico, porém grande parte dos cursos de idiomas demanda um alto investimento, nem sempre acessível. Nessa busca, soube do curso da Ana e me matriculei, tanto pelo valor ser mais acessível, quanto pela disponibilidade de horário, que encaixava na minha agenda.” A UFRGS também oferece uma opção de ensino de língua estrangeira, tanto para alunos da universidade, quanto para o público em geral acima dos 17 anos. Trata-se do Núcleo de Ensino de Línguas em Extensão (Nele). O programa oferece turmas para diversos idiomas, incluindo o inglês, em modalidade semestral, com preços também acessíveis. Muitas pessoas buscam aprender inglês a partir da própria iniciativa: trocando o idioma das configurações do celular ou consumindo produções audiovisuais apenas na língua de ori-
gem. Foi o que fez o estudante de Relações Públicas Victor Boldt, 22 anos. A partir do estímulo da família e do contato com videogames e outros recursos apenas em inglês, ele aprendeu a falar o idioma de maneira que se tornou professor. Há uma grande disponibilidade de filmes, músicas e jogos que podem servir de ponto de partida para aprender inglês através de um contato orgânico com o idioma. Dado esse cenário de ensino da língua inglesa deficiente no Brasil – causado por má aplicação curricular, diferenças socioeconômicas e infraestrutura pública precária – a sociedade brasileira ainda mantém uma noção do inglês como sendo “um algo a mais”, uma distinção social. Porém, numa era informatizada e de crescente globalização, o idioma se tornou uma necessidade. A facilitação e a qualidade de ensino de inglês, principalmente na rede pública, são essenciais para a redução das desigualdades, tanto estudantis, quanto profissionais, tornando vestibulares, cursos superiores e disputas de emprego mais competitivos entre todos. Contudo, esse cenário ainda parece distante. SEXTANTE Dezembro de 2019
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Sร NDROME DE ASPERGER
DIFERENTES, MAS IGUAIS Os estudos em psicologia ajudaram Milenne a chegar ao diagnรณstico de autismo
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A SÍNDROME DE ASPERGER É, MUITAS VEZES, ASSOCIADA A ESTEREÓTIPOS E MITOS. DIANTE DA INCOMPREENSÃO, AQUELES QUE CONVIVEM COM A CONDIÇÃO ENCONTRAM ALTERNATIVAS PARA TRANSFORMAR ESTE CENÁRIO Texto e fotos: Jaqueline Kunze jaquelinebkunze@gmail.com Diagramação: Alnilam Orga alnilam_orga@hotmail.com
“O autista adulto não tem o mesmo suporte que a criança. A gente só existe durante a infância e ‘puf’, desaparece, deixa de existir. O autista não cresce, é como se a gente virasse purpurina”, brinca Milenne Souza de Lima, 25 anos, diagnosticada aos 24 com Síndrome de Asperger. Como graduanda em Psicologia pela Universidade Federal de Ciências da Saúde (UFCSPA), a jovem está desenvolvendo seu Trabalho de Conclusão de Curso voltado a autistas adultos. Ela pretende se especializar na área, uma vez que, assim como ela, inúmeros indivíduos passam a vida sem ter ciência de que existe uma causa e um nome para suas dificuldades. O Transtorno do Espectro Autista (TEA) está relacionado a dificuldades na interação social e comunicação. Ele se manifesta em diversos conjuntos de sintomas, varia em graus de suporte e se apresenta de maneiras diferentes para cada indivíduo. Em casos com maior necessidade de suporte, pode demonstrar ausência completa de qualquer contato interpessoal, já em situações mais brandas, a pessoa pode passar a vida sem saber da condição. Apesar de aparentar maior grau de autonomia em comparação a manifestações com sintomas mais graves, as pessoas com síndrome de Asperger também sofrem. Inclusive, em alguns aspectos, podem ter questões mais específicas à condição. Nesse caso, o indivíduo sente necessidade de criar vínculos sociais, como amizades, mas não consegue interagir da mesma forma que outras pessoas. Tem consciência de suas dificuldades e, sem um diagnóstico, não compreende o porquê delas. É paradoxal: se sentir diferente e parecer igual, circular pelas ruas e vivenciar as rotinas de modo a passar despercebido, viver como um camaleão. “Conforme a gente vai crescendo, e principalmente para os que não têm diagnóstico, há uma tendência, por questão de sobrevivência social, de assumir comportamentos se espelhando nos outros”, explica Milenne. No entanto, esse mascaramento de sintomas se torna
exaustivo, pois é incongruente com o que o indivíduo sente. Em razão dessa vulnerabilidade, quadros como depressão, ansiedade e mesmo o desenvolvimento de traumas são mais propensos para essas pessoas. Vivian Missaglia, especialista em neuropsicopedagogia do Transtorno do Espectro Autista, enfatiza que, por não haver prejuízo cognitivo, com uma inteligência preservada na média e, por vezes, acima da média da população em geral, há negligência em relação aos desafios vividos pelos aspies. “Além da identificação tardia, frequentemente, indivíduos com Asperger acabam sendo privados de muitas coisas: oportunidades, acessibilidade, atendimentos e inclusão.” Ela também chama a atenção para o déficit de profissionais para atender esse público: “Mesmo os especialistas não têm convivência com essas pessoas, porque não temos nem conhecimento de quem são e de onde estão essas pessoas em função da dificuldade de diagnóstico preciso”. Ela, que estuda autismo há 19 anos, conheceu adultos aspies nos últimos cinco anos.
MULHERES NO ESPECTRO Os critérios utilizados para diagnosticar o autismo foram estudados e definidos com base em amostras predominantemente masculinas, mas a condição pode ter manifestação diferenciada no sexo feminino. Em razão disso, a proporção de quatro meninos para uma menina no espectro vem sendo questionada, pois se acredita que meninas estejam passando despercebidas à avaliação médica. A inadequação social, comum na Síndrome de Asperger, se apresenta nos meninos por meio do isolamento. Eles ficam excluídos dos demais, o que chama a atenção. Já no caso de meninas, há uma camuflagem social, elas interagem com seus colegas, não despertam estranhamento e passam despercebidas, mas internamente se sentem excluídas e solitárias. Milenne relata que era uma menina quieta na época da escola, que se dava bem com todos os colegas, mas SEXTANTE Dezembro de 2019
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Apesar de ser formado em Jornalismo e ter um emprego estável, Guilherme já foi impedido de ter uma carteira de habilitação em razão do Asperger
não se incluía em nenhum grupo. Em razão de dificuldades de adaptação, passou por oito instituições diferentes até concluir o Ensino Médio. Acreditava que era excluída por ser aluna nova, que, quando se enturmasse, ficaria mais fácil: “Mas nunca ficou mais fácil”, conta. Durante a adolescência, de maneira inconsciente, começou a criar personagens na tentativa de se adequar e chegou a ser questionada pelos colegas de por que mudava de personalidade da noite para o dia: “Eu não entendia muito bem o quanto meu comportamento era percebido, se eram tão visíveis as mudanças. É como se na adolescência desse um estalo de que, se eu não tivesse amigos naquele momento, nunca mais iria encontrar. E, no desespero, comecei a agir de um jeito completamente diferente do que eu achava certo”. Milenne apenas teve uma avaliação
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precisa por ser estudante de Psicologia na UFCSPA. Durante uma aula sobre autismo, baseada em uma suspeita antiga de se encaixar no espectro, procurou um especialista já com uma base teórica. Faz um ano desde que recebeu o diagnóstico. Ter consciência de seus limites a ajudou a não se cobrar tanto e a se organizar para lidar com características hostis do ambiente universitário. “Dá pra dizer que a vida melhorou bastante. Finalmente faz sentido que minha história tenha acontecido do jeito que aconteceu, porque sou desse jeito”, diz. Selma Sueli Silva, 56 anos, lembra de se sentir diferente desde os três anos. “Percebia que não era igual ao meus tios e minha irmã de dois anos.” Mais tarde, ao estudar sobre o assunto e verificar o comportamento de Victor, seu filho, diagnosticado com autismo aos 11 anos, notou várias semelhanças entre eles e comentou com seu psicólogo. Como resposta, ouviu que isso ocorria pela convivência, que ela e o filho se espelhavam um no outro e, portanto, não havia razões para suspeitas. A descoberta do autismo de 1º grau veio muito tempo depois, quando Victor tinha 18 anos:
“O diagnóstico é uma libertação em qualquer idade. Percebi que haviam roubado minha identidade. Agora, com ela recuperada, consigo me entender, me aceitar, não ser tão intransigente comigo e com ninguém”.
DESPREPARO DA SOCIEDADE E DAS INSTITUIÇÕES Se, por um lado, pessoas sofrem por não saberem de sua condição, por outro, há quem vivencie impedimentos e preconceitos em razão dela. A família de Guilherme Moscovich, 26 anos, procurou por profissionais da área da saúde desde cedo. Durante a primeira infância, ele demorou para começar a falar, realizando tratamento fonoaudiológico e psicológico até, aos 12 anos, chegar ao diagnóstico de Asperger. “Foi um processo de ir eliminando outros fatores”, comenta Sandra Moscovich, sua mãe. Durante o Ensino Fundamental, surgiu a oportunidade de realizar uma viagem de estudos. Apesar de professores acompanharem a turma, a escola exigiu que houvesse alguém para estar junto de Guilherme, caso contrário, ele não poderia ir. Como solução, sua
irmã foi junto, mas antes se cogitou a possibilidade de pagar a viagem a um profissional da saúde para conseguir a permissão. Anos depois, ao tentar a habilitação para carteira de motorista, foi barrado ao informar sobre o autismo. Ao relembrar esses episódios, Guilherme comenta que quem convive com essa condição não deve se desanimar. Hoje, ele trabalha no setor de Arquivo e Memória do Hospital Moinhos de Vento em Porto Alegre, é formado em Jornalismo pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e está frequentando a autoescola para, enfim, obter a carteira de motorista. Para ele, uma das maiores dificuldades é a falta de compreensão da sociedade sobre o espectro autista.
INFORMAÇÃO ALIADA À INCLUSÃO Depois de um período de muito sofrimento, Selma Sueli Silva e seu filho, Victor, decidiram compartilhar suas vivências, criando um blog e um canal no YouTube chamado Mundo Asperger: “A gente não queria glamourizar o autismo, mas mostrar que, apesar das dificuldades, com as ferramentas adequadas, todo autista pode evidenciar seu potencial e suas habilidades”, comenta Selma. Desde então, já receberam muitos agradecimentos tratarem do assunto, que pode ser bastante denso, com leveza e bom humor. Ela, que ouviu dizer que o filho seria dependente o resto da vida, se orgulha em dizer que Victor se torna escritor. Aos 22 anos, ele já publicou cinco livros e lança o sexto em fevereiro de 2020. Uma das principais motivações para a criação do projeto é a disponibilização de informações que eles custaram a ter: “Para que nenhuma família ou pessoa se sinta sozinha como a gente se sentiu um dia”, diz Victor. Ainda não é intuitivo compreender o espectro autista. A especialista Vivian esclarece: “Embora um grupo
“MUITAS VEZES A PESSOA COM ASPERGER ACABA SENDO PRIVADA DE MUITAS COISAS, DE OPORTUNIDADES, DE ACESSIBILIDADE, DE INCLUSÃO” Vivian Missaglia
Especialista em neuropsicopedagogia do Transtorno do Espectro Autista
de crianças com esse quadro clínico tenha sido descrito originalmente por Hans Asperger em 1944, a síndrome de Asperger foi oficialmente incluída no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais pela primeira vez em 1994”. Por isso, ela ainda é bastante desconhecida, embora a ONU estima que 70 milhões de pessoas no mundo tenham autismo, considerando toda a diversidade existente dentro do espectro. A percepção de que ainda há muito a aprender sobre a condição também motivou Tiago Abreu, 23 anos, a criar o podcast Introvertendo. Para ele, a descoberta da Síndrome de Asperger, aos 19
anos, foi o ponto de partida para uma melhor qualidade de vida. Desde então, mantêm autonomia em seu cotidiano, trabalha, graduou-se em Jornalismo pela Universidade Federal de Goiânia (UFG) e construiu amizades duradouras, algo que, durante a infância e adolescência, parecia impossível. Em razão do difícil relacionamento social, foi uma criança e adolescente solitário, sofreu bullying durante o período escolar e não conseguia manter contatos duradouros com as pessoas de seu convívio. O diagnóstico veio no início da vida adulta: “Identificada a síndrome, é o momento de relacionar com a vida pessoal e procurar assistência profissional para que as potencialidades sejam exploradas e as dificuldades minimizadas”. Parece simples e, às vezes, pode ser considerado um detalhe pelos outros, enquanto, de maneira sutil, pessoas com a Síndrome de Asperger enfrentam uma gama de desafios que impactam todas as áreas de suas vidas. Apesar da incompreensão, iniciativas como o podcast de Tiago, o blog de Victor e Selma e os estudos acadêmicos de Milenne podem contribuir para a mudança deste cenário, como enfatiza Selma: “Mais informação, mais libertação e menos preconceito”.
Guilherme foi um dos primeiros a se formar em Jornalismo na Unisinos de Porto Alegre SEXTANTE Dezembro de 2019
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PORNOGRAFIA
BASTIDORES DUAS ATRIZES E UM ATOR PORNÔ CONTAM AS SUAS VIVÊNCIAS E OPINIÕES ACERCA DA DESIGUALDADE DE GÊNERO NA INDÚSTRIA PORNOGRÁFICA
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DO PRAZER Texto: Luísa Santini Januário luisasantini5@gmail.com Diagramação: Caroline Silveira c.silveira794@gmail.com
Nick trabalha à noite como bartender e fez seu primeiro filme pornô em 2019
“Eu sou apaixonada pelo meu trabalho”, diz Júlia* após explicar como é o seu dia a dia como atriz pornô e cam girl. Estudante de Turismo em Santa Catarina, ela ingressou na indústria pornográfica há dois anos, aos 20. “Sempre gostei do lúdico, do erótico; acho interessantes as plataformas de strip-tease online e penso que é importante termos novos atores e empresas no mercado, então quis fazer parte de tudo isso”, relata. Júlia conta que acorda às 7h, toma banho, coloca uma roupa adequada e organiza seu local de trabalho. Em horário comercial, das 8h às 18h, no conforto da própria casa, ela presta um serviço de sexo virtual – que acontece por meio de strip-tease, conversas instigantes, fetiches, jogos de sedução, performances de masturbação e tudo mais que pode estimular sexualmente a pessoa que está assistindo ao vivo. Em 2019, ela começou a atuar também em produções profissionais. Ela pede para imaginar o cenário de um filme de Hollywood: “Existem atrizes, atores, câmera, sonoplastia, diretor, take, ação. Eu poderia falar que sou atriz, sem especificar o entretenimento adulto, porque tudo o que tem na direção de um filme de cinema, tem na pornografia”, explica. Assim como Júlia, muitas outras pessoas encontram no ramo um propósito. Pedro*, 26 anos, é professor de biologia; nas horas vagas, há dois anos e meio, ele também faz performances ao vivo com
Fotos: Fernanda Polo e Júlia Ozorio fernanda.polo@ufrgs.br juliaozoriocontato@gmail.com
uma frequência semanal e hoje atua em alguns filmes aqui e ali: “Comecei por entretenimento próprio, por puro prazer, e percebi que poderia ganhar uma grana com isso”. Nick Fox, 23 anos, trabalha à noite como bartender e fez seu primeiro filme pornô este ano. Ela também atua como cam girl quando não está filmando em produtoras. Os três têm opiniões diversas a respeito da pornografia, tema que vem sendo discutido e estudado ao longo dos últimos anos principalmente por feministas.
A DESIGUALDADE DE GÊNERO NO PORNÔ Em meados das décadas de 1970 e 1980, opiniões divergentes a respeito da sexualidade polarizaram o movimento feminista, que se dividiu em grupos pró-sexo e anti-pornografia: enquanto as primeiras, liberais, viam a pornografia como empoderadora e emancipadora da sexualidade feminina, as segundas, radicais, diziam que a pornografia era a própria naturalização da violência e da desigualdade de gênero. Antropóloga e pesquisadora formada na UFRGS, Mariana Rost discorda das feministas radicais, porque acredita que a pornografia está no campo da fantasia e, portanto, não reproduz a realidade: “A pornografia é um registro sobre a sexualidade, e a sexualidade pode ser o que as pessoas quiserem”. Jane Felipe, professora da UFRGS e psicóloga com ênfase em SEXTANTE Dezembro de 2019
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Júlia não enxerga desigualdade de gênero na indústria pornográfica
gênero e sexualidade, apesar de reconhecer que a pornografia também disponibilizou para as mulheres a possibilidade de conhecer a sua própria sexualidade, entende que a indústria pornográfica tradicional, mainstream, está muito centrada na figura e no prazer masculino, colocando as mulheres em lugares subservientes de satisfação e submissão a determinadas práticas sexuais muitas vezes violentas. Entretanto, alerta que os filmes pornográficos não são os únicos elementos a se pensar entre as situações que inferiorizam as mulheres. Para ela, há um conjunto de discursos e práticas em diversos artefatos culturais que alimentam os micromachismos do dia a dia. Mas Júlia não enxerga essas desigualdades de gênero em conteúdos pornográficos. Para ela, todo desejo e todo fetiche é aceitável, desde que haja consentimento entre as partes: “A pornografia envolve todos os participantes da cena, que estão tendo prazer, e por isso não é machista; é igualitária”. Nick Fox, no entanto, chama a atenção para a criação de estereótipos femininos e
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“TODO MUNDO NA VOLTA DISSE QUE ERA NORMAL DOER. NÓS CONTINUAMOS QUANDO ELA PAROU DE CHORAR, E FIQUEI PENSANDO, EM CASA, QUE A EXPRESSÃO DE DOR DEVE SER ATRATIVA PARA OS FILMES. ELA ERA A GRANDE ESTRELA DA CENA, MAS PRECISOU SOFRER PARA ISSO” Pedro*
Professor e ator pornô
masculinos no pornô, seja em relação ao padrão de corpo, às vestimentas utilizadas, aos papéis interpretados ou ao modo de se comportar no sexo: “No pornô tradicional, o homem sempre vai ser o macho alfa, e a mulher sempre vai acabar sendo mais submissa”.
Para Nick, a desigualdade de gêneros aparece também fora do set de filmagem: ela sente que atores e atrizes são tratados de formas diferentes pelas pessoas. Uma vez, quando contou em uma roda de amigos que era atriz pornô, as mulheres a encararam com desconfiança e desprezo: “Enquanto isso, os homens olhavam com uma cara de fome, como se eu fosse um pedaço de carne”. O abuso do dia a dia também já a colocou em situações degradantes, quando homens tentavam encostar em seu corpo após saberem da sua profissão. “Não teve uma vez que eu falei que trabalhava como atriz e que não tive que passar ou por julgamentos ou por olhares de tesão”, revela. Pedro vê a desigualdade de gêneros a partir da sua perspectiva de masculinidade. Enquanto ele é cobrado para ser viril, ter uma boa performance e estar no controle do sexo heterossexual, suas parceiras de cena já passaram por danos tanto físicos quanto psicológicos. Quando gravou seu primeiro filme, focado em práticas de BDSM (expressão sexual para práticas como bondage, dis-
ciplina, dominação, submissão, sadismo e masoquismo), notou que a menina estava com dor: “No primeiro momento eu continuei, porque é tão mecânico... mas então parei. Ela chorou muito. Todo mundo na volta disse que era normal doer. Nós continuamos quando ela parou de chorar, e fiquei pensando, em casa, que a expressão de dor deve ser atrativa para os filmes. Ela era a grande estrela da cena, mas precisou sofrer para isso”. Nick pensa que a inferiorização da mulher no pornô também mostra uma certa infantilização: “Eu tenho um corpo teen, então cuido para não fazer uma voz infantil, para não usar roupas Quando não está filmando em produtoras, Nick atua como cam girl
que podem me confundir com uma adolescente”. Assim como a psicóloga Jane, ela acredita que essa fetichização seja um retrato da desigualdade de gênero e da pedofilização. “É como se, desde cedo, houvesse uma naturalização daquilo que a gente chama de cultura do estupro. Esse corpo infantilizado precisa ser admirado, desejado dentro de determinados padrões de beleza e de comportamento”, explica Jane. Em relação à cultura de estupro, Pedro atenta para o fato de que os homens, hoje, são ensinados que “não” significa “sim”, e que isso aparece em conteúdos pornográficos. “Além das cenas mais pesadas, que chegam a levar à exaustão, há também simulações de estupro: não só no pornô, mas em várias mídias a mulher demonstra que não está a fim e depois cede”, complementa Nick.
A NOVA ERA DOS FILMES ADULTOS Essa pornografia tradicional, no entanto, parece estar concedendo espaço para conteúdos alternativos e experimentais. A antropóloga Mariana chama a atenção para a diversificação pornográfica, principalmente no que se refere ao pornô feminista. Produzido majoritariamente por e feito para mulheres, essa vertente pretende mostrar relações menos estereotipadas e mais próximas do real. “É positivo que elas se apropriem da pornografia para produzir conteúdos com os quais se identifiquem, e não só vídeos destinados a um público masculino e heterossexual”, fala. “É do ponto de vista feminino que tudo acontece; são as mulheres que mandam na cena”, concorda Nick. Pedro, porém, acha que esse formato ainda é um pouco superficial, até mesmo heteronormativo em relação a posições sexuais, mas acredita que não objetifica tanto o corpo feminino e que é isso o que a indústria deve buscar. Segundo Júlia, a pornografia feminista é uma tentativa de revolucionar a indústria: “Eu acho artístico; é o tipo de pornô que eu gosto de assistir”. *Os nomes foram trocados para preservar a identidade dos atores.
O QUE OS VÍDEOS NÃO CONTAM Segundo estudo feito em 2018 pelo canal Sexy Hot, 22 milhões de brasileiros assumem consumir pornografia; 76% são homens. Conforme dados da Pink Cross Foundation, das cenas de violência sexual representadas em frente às câmeras, 94% dos atos são contra atrizes. E, apesar de geralmente receberem um cachê maior (Júlia, por exemplo, fatura 3 reais por minuto como cam girl, e Pedro não recebe nem 20% do valor total por filme estrelado), as atrizes pornô têm expectativa de vida de 36 anos.
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GORDOFOBIA
O PESO DA DISCRIMINAÇÃO AS FACES E CONSEQUÊNCIAS DO ESTIGMA SOCIAL DA OBESIDADE Texto: Vitória Pinzon vitoria.pinzon@gmail.com Fotos: Isaias Mattos isaias.mattos@gmail.com Diagramação: Tamires Rodrigues tamires.rodrigues@ufrgs.br
A gordofobia talvez seja um dos preconceitos mais desafiadores da atualidade, no sentido de que está muito longe de ser superado. Em primeiro lugar, porque é uma discriminação baseada em uma característica puramente física, e a sociedade tende a menosprezar problemas sociais relacionados à aparência. Em vista de tantos problemas enfrentados pela população brasileira todos os dias, não seria futilidade se preocupar com a pouquíssima oferta das grandes marcas de roupas com manequim maior que 44 ou com a minúscula representatividade de pessoas gordas no cinema e na televisão? Em segundo lugar, porque é um preconceito amparado muitas vezes pela área da saúde. Afinal, todo mundo sabe – e prega a plenos pulmões – que saúde física e obesidade são condições opostas. Tudo isso transforma a missão de expor e condenar o comportamento gordofóbico em um trabalho árduo e
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vagaroso. Não é por acaso que ainda não existe no Brasil nenhuma legislação específica que classifique como criminosa a discriminação contra pessoas obesas. A gordofobia, apesar do recente aumento de visibilidade na mídia em função de casos envolvendo artistas e celebridades, ainda é vista como uma questão de menor importância.
MAS GORDURA É MESMO DOENÇA? De acordo com a nutricionista Débora Corrêa, uma pessoa que tem um aumento da gordura corporal está em um processo pró-inflamatório. “E isso favorece o desenvolvimento de doenças crônicas não transmissíveis, como diabetes, hipertensão, artrite, gota e esteatose hepática." Contudo, o peso, de forma isolada, não define o estado de saúde geral de uma pessoa. Ele é uma consequência multifatorial, ou seja, que normalmente provém de mais de uma causa, incluindo fatores genéticos e emocionais. O estigma social da gordofobia se faz presente na esfera médica quando alguns profissionais da área já classificam de imediato esse paciente como “relaxado”, “preguiçoso”, ”desleixado” com a própria saúde, porque, afinal, como ele estaria nessa condição de outra forma? "A gente deve questionar a maneira que nós estamos tratando esses pacientes. Porque, afinal, nunca se falou tanto em nutrição e, ao mesmo tempo, nunca tivemos tanto aumento nos níveis de obesidade. Ou seja, a nossa conduta como profissionais de saúde não está
sendo eficiente", afirma Débora. Especializada em comportamento alimentar, prática que visa compreender como se dá o relacionamento das pessoas com a comida, Débora ressalta que essas abordagens nutricionais voltadas exclusivamente à perda de peso, e não à compreensão e adaptação de hábitos de vida, são responsáveis por grande parte dos transtornos alimentares hoje presentes na sociedade. "Eu acho um absurdo um paciente chegar no consultório e o profissional já ir logo mandando ele subir na balança. Eu sempre começo as minhas consultas perguntando: você quer trabalhar com peso? Prefere trabalhar com medidas? Não quer nenhum dos dois? É você quem decide.”
SAÚDE FÍSICA X SAÚDE MENTAL É difícil encontrar uma pessoa gorda que não tenha ouvido a seguinte frase: "Não é preconceito, é uma questão de saúde". Mas de que saúde estamos falando? Se os aspectos físicos são vistos com preocupação alarmante, a saúde mental geralmente fica em segundo plano. Segundo a psicóloga Carine Tavares, do Instituto Fernando Pessoa, pessoas que sofrem com a gordofobia têm maior probabilidade de desenvolver uma série de transtornos psicológicos, como depressão, ansiedade, dependência química, transtornos alimentares e o transtorno dismórfico corporal – doença em que o indivíduo mantém um foco obcecado em corrigir um defeito que ele considera ter na sua aparência.
Depois de muitos anos de acompanhamento psicolรณgico, Maju hoje celebra sua beleza em campanhas no mundo da moda
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"A curto prazo, esses distúrbios já são bastante danosos, pois afetam praticamente todas as esferas da vida de uma pessoa, o trabalho, as relações sociais e afetivas, a autoestima e o senso de valor próprio. Mas, a longo prazo, se não procurado auxílio profissional, esses transtornos podem levar até mesmo a atos suicidas em casos mais extremos", diz a psicóloga. Ela também afirma que, via de regra, o quadro dos pacientes cuja discriminação começa na infância e na adolescência é mais grave, já que, de acordo com Carine, a gordofobia é uma das principais razões de bullying nas escolas.
A IMPORTÂNCIA DA REPRESENTATIVIDADE "Eu aprendi o transtorno alimentar no ballet, aos 14 anos. As meninas costumavam dizer para tomar água e laxante e só comer alface, que aí você vomita água. Foi assim que eu desenvolvi a bulimia e passei os 10 anos seguintes da minha vida escondendo essa doença", lembra Maria Laura Liboni, dentista e modelo plus size paulista. Maju, como é conhecida, conta que sempre quis trabalhar com moda, mas que não via como fazer isso com o peso que tinha. "Na época da minha adolescência, não existiam perfis de mulheres gordas, nem marcas de rou-
pas plus size fazendo sucesso na área da moda, ou seja, eu achava que, se eu quisesse ser modelo, teria obrigatoriamente que perder peso.” Hoje, já bem resolvida com o seu corpo, a modelo fala sobre a importância da representatividade e sobre como a falta dela está moldando o modo como as pessoas veem o corpo gordo, principalmente através das redes sociais. "Uma pessoa magra pode se expor da maneira que ela quiser, pode mostrar o quanto de pele quiser, que dificilmente ela vai sofrer alguma repercussão negativa por causa disso. Uma pessoa gorda é censurada no Instagram. Existem perfis de pessoas cujas fotos, quando você vai abrir, aparecem embaçadas e mostrando a seguinte mensagem: você deseja continuar? É considerado um conteúdo sensível, colocado na mesma categoria de cenas de violência ou nudez." Maju também vê a publicidade infantil como uma ferramenta que poderia ser melhor utilizada para combater esse preconceito na raíz. Ela compara com os recentes avanços relacionados à publicidade infantil negra, com a produção e difusão de bonecas com cabelo crespo, por exemplo. "Isso é dar oportunidade para que outras pessoas sejam vistas. É uma coisa maravilhosa olhar e sentir que você pertence a alguma coisa. Foi o que eu senti quando VITÓRIA PINZON
"EU APRENDI O TRANSTORNO ALIMENTAR NO BALLET AOS 14 ANOS. AS MENINAS COSTUMAVAM DIZER PARA TOMAR ÁGUA E LAXANTE E SÓ COMER ALFACE, QUE AÍ VOCÊ VOMITA ÁGUA. FOI ASSIM QUE EU DESENVOLVI A BULIMIA” Maju
Dentista e modelo plus size paulista
entrei pela primeira vez em uma loja de roupas plus size. Não era uma arara escondida num canto, junto com as roupas para gestantes, era uma loja inteira. Isso significou muito para mim, como eu tenho certeza que para muitas outras pessoas gordas também. É saber que alguém pensou em pessoas como você em algum momento.”
MUITO MAIS DO QUE O ASSENTO DO ÔNIBUS Quando se fala em problemas de acessibilidade de pessoas gordas, o que vem à mente são os espaços de mobilidade no ambiente público, como assentos de ônibus e as poltronas de aviões. Mas o problema inclui também a falta de oferta de itens básicos para as pessoas gordas. "Eu cresci vendo as mulheres da minha família usando fraldas durante a menstruação, porque não existe absorvente para mulheres gordas. Minhas tias não conseguiam comprar sutiã, calcinha ou meias", relata Maju. A discriminação gordofóbica está presente nos menores atos, invisibilizando toda uma parcela da sociedade que não tem acesso a coisas triviais do dia a dia, mas que fazem toda a diferença na vida de uma pessoa já marginalizada pela sua aparência. Em Porto Alegre, os transportes públicos já mostram avanços na questão da acessibilidade de pessoas com sobrepeso
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Maju chama a atenção para a censura dos corpos considerados fora do padrão nas redes sociais
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TORCIDAS
ESTÁDIO DE FUTEBOL É LUGAR DE MULHER QUATRO TORCEDORAS FALAM SOBRE A PAIXÃO POR SEUS TIMES DO CORAÇÃO E SOBRE A IMPORTÂNCIA DE PODER DIVIDI-LA COM OUTRAS MULHERES Texto, fotos e diagramação: Júlia Teixeira Vargas vargastjulia@gmail.com
O universo futebolístico que encanta pessoas mundo afora se configura como um ambiente notoriamente hostil para as mulheres. São inúmeros relatos de agressões físicas, verbais e sexuais sofridas por mulheres – sejam pelas torcedoras ou profissionais – nas arquibancadas ou no entorno dos estádios do país.
A PRIMEIRA TORCIDA ORGANIZADA FEMININA DO RIO GRANDE DO SUL A Força Feminina Colorada (FFC) foi a primeira torcida organizada feminina do Rio Grande do Sul, criada em 2009 em uma comunidade do Orkut. A ideia de formar uma torcida exclusivamente feminina surgiu a partir do fato de várias mulheres não terem companhia para ir aos jogos. Hoje, uma década depois, mais de 200 meninas estão cadastradas oficialmente na FFC. Francine Malessa, 28 anos, atual diretora de comunicação da Força Feminina, entrou para o grupo em 2014, no fim de um relacionamento abusivo. “Eu tinha um pouco de receio
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de ir sozinha, e meus pais e namorado da época de fato não gostavam que eu frequentasse os jogos. Na segunda vez que fui ao estádio naquele ano, conheci uma ex-integrante da torcida e entrei em contato. Fui aceita logo em seguida, me envolvendo cada vez mais com a torcida e com o feminismo e logo me tornei diretora. Hoje, eu não consigo ser eu sem me identificar como parte da torcida.” Francine conta que relacionamentos abusivos são frequentes entre as integrantes do grupo. Para ela, participar da FFC foi fundamental para sair de um relacionamento desse tipo. “Entrar na torcida, começar a frequentar estádio e me inteirar das questões do futebol foi muito importante para eu me encontrar depois da separação. E é algo bem comum a FFC ser um ponto de acolhimento e reestruturação emocional pessoal de várias mulheres.” Hoje, a Força Feminina tem banda e lugar reservado no estádio Beira-Rio, mas as ações vão além do futebol. “A gente auxilia a Mirabal, casa de passa-
gem para mulheres vítimas de violência doméstica. Já levamos algumas em um jogo, realizamos doações constantes e organizamos festas para as crianças em datas como Páscoa, Dia das Crianças e Natal”, conta Francine.
COM O AVAL DE ELIS REGINA Diferente do Sport Club Internacional, o Grêmio não tem uma torcida organizada exclusivamente feminina reconhecida pelo clube, mas sim alguns grupos com essa ideia. Um deles é o Coletivo Elis Vive, vinculado à Tribuna 77, uma torcida com pautas políticas e antifascista. O nome é uma referência e homenagem à cantora gaúcha Elis Regina, que foi sócia do clube tricolor e bastante ativa nas pautas feministas durante sua vida. Tiele Kawarlevski, 29 anos, uma das participantes, conta que o coletivo surgiu em 2018 por inspiração do programa Amor e Sexo, de Fernanda Lima, também gremista. “Numa noite de novembro, enquanto víamos ao programa e comentávamos no grupo
Integrantes da Força Feminina Colorada fazem celebração de Dia das Crianças na Ocupação Mulheres Mirabal
Participantes do Coletivo Elis Vive antes da semi-final da Libertadores, na sede da Tribuna 77, ao lado da Arena do Grêmio
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[do whatsapp], uma das meninas deu a ideia de criarmos um grupo só com as mulheres da Tribuna para discutirmos nossas pautas de Tribuneiras. Aí nasceu o Coletivo Elis Vive. No mês seguinte, já fizemos nossa primeira reunião e o grupo só aumentou.” Assim como Francine, Tiele também não tinha companhia para ir aos jogos e tinha receio da atitude masculina na arquibancada. O pior, para ela, é a maneira como os homens olham as mulheres nos estádios, mas acredita na mudança. “A gente já meio que se acostumou – e não deveria – a andar por aí como se fosse uma picanha recém tirada da churrasqueira. Isso é irritante, é escroto e reflexo de todo o machismo existente, mas aos poucos mudaremos. Estamos na luta. E não retrocederemos.” Fazer parte do Coletivo Elis Vive mudou a forma de Tiele assistir futebol. “Se antes eu andava sempre sozinha com meus fones de ouvido, hoje eu tenho mulheres confiáveis ali comigo, irmãs mesmo. Se em alguma vitória eu me empolgar além da conta e beber demais, ou passar mal, agora sei que não estarei sozinha. E isso sempre fortalece a coragem.”
CANSADAS DOS COMENTÁRIOS MACHISTAS NO FACEBOOK Outro grupo formado por mulheres torcedoras tricolores é o Gurias do Grêmio. No final de 2017, três amigas resolveram criar um grupo no facebook apenas com mulheres gremistas para falar de futebol. A ideia surgiu pois elas estavam cansadas de comentar algo em comunidades mistas e serem hostilizadas por homens. Hoje 340 meninas estão na comunidade no facebook e 82 fazem parte do grupo no whatsapp, onde comentam os jogos em tempo real e promovem discussões de inúmeros interesses femininos, como feminismo, saúde, educação e política. O grupo não tem a pretensão de ser uma torcida organizada, mas sim um espaço em que as mulheres sintam-se encorajadas a falar de futebol sem julgamentos. Ritiele Moura, 23 anos, conta que, assim como a maioria das mulheres, não tinha companhia para ir aos jogos antes do grupo, que serviu para reacender sua paixão por futebol. “Foi nele que eu percebi que não estava sozinha na minha loucura pelo Grêmio e comecei a falar de futebol mais a fundo. Antes,
“SE ANTES EU ANDAVA SEMPRE SOZINHA COM MEUS FONES DE OUVIDO, HOJE EU TENHO MULHERES CONFIÁVEIS ALI COMIGO, IRMÃS MESMO. E ISSO SEMPRE FORTALECE A CORAGEM” Tiele Kawarlevski
Integrante do Coletivo Elis Vive
eu tinha medo de falar e ser julgada por ser mulher.”
TORCE JUNTO DELAS, ALGO MAIOR Inspiradas pelos ideais de sororidade, empatia e auxílio mútuo, em 2018 o grupo Gurias do Grêmio lançou a campanha “#DeixaElaTorcer”, estimulando mulheres a utilizarem suas redes sociais para expor as opressões sofridas por elas e exigir respeito por parte do público masculino. A campanha obteve engajamento imediato e voluntário de torcedoras e clubes de futebol de diversos estados brasileiros e chegou ao topo O grupo “Gurias do Grêmio” assistiu a um Grenal em 2018 com churrasco e cerveja
ARQUIVO PESSOAL - GURIAS DO GRÊMIO
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A campanha #TorceJuntoDelas, no Beira-Rio, pedia fim do machismo nos estádios
FOTOS: ARQUIVO PESSOAL
do Trending Topics do Twitter Brasil. Porém, em abril de 2019, o grupo viu a necessidade de criar uma segunda campanha, após duas meninas serem hostilizadas na Geral do Grêmio, torcida mista tricolor, enquanto torciam e alentavam o time. O #TorceJuntoDelas surgiu como tentativa de trazer mais homens para a campanha, a fim de mostrar que a luta por um estádio mais seguro para as mulheres não era apenas delas. “Nosso intuito é conscientizar os homens que eles têm um papel importante na luta contra o machismo nas arquibancadas. Sempre que acontece alguma coisa, os homens costumam dizer ‘Ah, mas nem todo homem é assim’. Então a nossa mensagem é, bom, se vocês não são como esses caras, então ajam de maneira a impedir, de maneira a repudiar esse tipo de torcedor”, conta Thais Odorissi, 26 anos, uma das idealizadoras da campanha. Para ela, a campanha é muito importante, porque o futebol pode mover uma mulher tanto quanto move um homem. “O futebol pode trazer para a vida de uma mulher momentos, histórias, pessoas tão incríveis quanto traz para os homens. Eu amo muito o Grêmio e não consigo falar da minha história sem falar da história do Grêmio.” Mais uma vez e de imediato, a campanha foi abraçada por torcedoras de diferentes clubes do país, como o Internacional e o Fortaleza. Para Thais, isso foi o que mais mudou na relação dela com futebol. “Hoje, antes de torcer o nariz para uma mulher com a camisa de outro time por clubismo, eu fico é muito feliz por ela estar vivendo esse universo tão maravilhoso da mesma forma que eu posso – e tenho o direito – de viver”. A campanha #DeixaElaTorcer, na Arena do Grêmio, lutava pelo respeito às mulheres nos estádios SEXTANTE Dezembro de 2019
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TRANSEXUALIDADE
RESPEITO, SAÚDE E AMOR CONHEÇA O DIA A DIA E AS DIFICULDADES ENFRENTADAS PELA POPULAÇÃO TRANS EM BUSCA DE IGUALDADE Texto e Diagramação: Tamires Rodrigues tamires.rodrigues@ufrgs.br Fotos: Giovanna Parise e Rochane Carvalho giparise.jornal@gmail.com e rochane.anjos@gmail.com
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“EU SOU A PRIMEIRA TRANS A ESTUDAR ENFERMAGEM NA UFRGS” Sophie Nouveau
Estudante de enfermagem
Sophie gosta de cabelo curto não apenas por estética, mas como uma escolha política para quebrar os padrões esperados pela sociedade
Transexualidade é uma palavra que muita gente ainda não entende. O Manual de Comunicação LGBTI+ da rede GayLatino apresenta o termo transexual para a pessoa que tem uma identidade de gênero diferente do sexo designado no nascimento. Um exemplo é quando a pessoa nasce com o corpo masculino, mas se identifica como mulher. Por esse motivo, recorre a tratamentos médicos, que vão da terapia hormonal à cirurgia de redesignação sexual. Existe confusão entre os termos gênero e orientação sexual, mas, afinal o que eles significam? Segundo a professora da Faculdade de Educação da UFRGS e pesquisadora Jane Felipe, gênero é uma categoria histórico-social que deve ser entendida como as expectativas que a sociedade tem sobre o que é ser menino ou menina. O fato de ser homem ou ser mulher vai depender do contexto histórico, social e cultural no qual a pessoa está inserida. Do ponto de vista biológico, existem machos, fêmeas ou intersex (pessoas que nascem com a genitália ambígua e que antigamente eram chamadas de hermafroditas). Embora o termo gênero tenha sido usado no campo da psicologia anteriormente, ele começou a ser mais difundido especialmente a partir de 1980 por feministas anglo-saxãs para justamente designar expectativas sociais. Naquela época, significava dizer que
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ser homem ou ser mulher era diferente. As expectativas em relação aos gêneros eram diferentes das que se tem hoje. Já o conceito de orientação sexual está relacionado com a forma que a pessoa orienta o seu desejo afetivo sexual. Se essa pessoa se apaixona por uma pessoa do mesmo sexo que o dela, se diz que ela é homossexual – ou bissexual se tem relações com ambos os sexos. Uma pessoa transgênero é a que não se alinha às expectativas de gênero que lhe são atribuídas desde o nascimento, podendo transitar entre um gênero e outro. Segundo a psicanalista e mestre em Sociologia Letícia Lanz, em seu livro O corpo da roupa, travestis e transexuais são transgêneros por definição. Isso quer dizer que a palavra transgênero é o oposto da cisgênero. Já as travestis são pessoas que vivenciam papéis de gênero feminino, mas não se reconhecem como homens ou como mulheres, mas como membros de um terceiro gênero ou de um "não gênero".
DESIGUALDADE EM NÚMEROS Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a média de vida dos transgêneros no Brasil é de 35 anos, enquanto que a média de vida do brasileiro é de 75,5 anos. Uma das causas dessa baixa expectativa de vida é a violência física e psicológica que pessoas trans sofrem. Segundo dados da Organização Não Governamental Transgender Europe (TGEU), entre 1º de outubro de 2017 e 30 de setembro de 2018, 167 transexuais foram mortos no Brasil. O país
continua líder no ranking dos que mais matam transexuais no mundo. Muitas vezes essas pessoas são expulsas de casa e não conseguem terminar seus estudos. O número de evasão escolar entre a população trans é estipulado em 82% segundo pesquisa conduzida pelo defensor público João Paulo Carvalho Dias, presidente da Comissão de Diversidade Sexual da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). A falta de qualificação e o preconceito existente no mercado de trabalho fazem com que 90% das pessoas trans recorram à prostituição ao menos em algum momento da vida para se sustentar. A estimativa é feita pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) com base em dados colhidos nas diversas regionais da entidade. A não aceitação familiar ainda é muito presente na realidade das pessoas transexuais. Sophie Nouveau, 22 anos, estudante de Enfermagem da UFRGS, fala que já chegou a ser expulsa de casa algumas vezes desde o momento em que começou a demonstrar comportamentos destoantes do padrão normativo masculino. Ela percebeu que o seu pai não lhe dava mais carinho e não lhe dava mais roupas. “Hoje eu me reconciliei com a minha família, sim, mas eu já passei por todas as situações que dizem respeito a se sentir sozinha no mundo.” Sophie é natural de Caxias do Sul, cidade na Serra Gaúcha que ela considera ainda conservadora. Era comum ela ouvir piadinhas de seus colegas de escola, que não entendiam o que ela realmente era. Por já demonstrar um padrão diferente de “menino” desde muito nova e por ouvir que nunca seria aceita, ela ainda jovem fez aulas de contorcionismo. “Eu achava que o circo seria o único lugar onde eu arrumaria um emprego, porque eu era uma aberra-
ção, e no circo eles aceitam aberrações.” Quando Sophie passou para Enfermagem na UFRGS, se mudou para Porto Alegre. Na universidade, ela percebeu um certo preconceito de alguns professores que achavam que ela usava “maquiagem demais”. Mas isso nunca a impediu de continuar a graduação. “Eu sou a primeira trans a estudar Enfermagem na UFRGS.” Depois de algum tempo, conseguiu um estágio na Secretaria Estadual de Saúde, onde ela consegue auxiliar em estratégias para melhorar o atendimento de pessoas transexuais.
ME ACEITE COMO SOU Eric Seger, 32 anos, faz pós-graduação em Educação Física na UFRGS. Ele começou sua transição em 2012, durante a graduação, causando um certo “impacto” nas outras pessoas. Ele nunca sentiu um preconceito explícito na UFRGS, mas ao mesmo tempo sentia que as pessoas olhavam para ele de um jeito diferente. “Elas não entendiam o que estava acontecendo. Muitos professores e colegas não sabiam quem eu era, ou tinham certeza que eu era uma mulher que estava ‘querendo ser um homem’.” Eric já passou por situações difíceis. Em aulas práticas, ele era colocado no grupo das meninas, porque as atividades eram separadas por gênero. Por Eric se sentir, dentro da universidade, uma pessoa “estranhada”, como ele define, teve uma certa dificuldade na interação com a instituição. Contudo, quando foi fazer algumas cadeiras no Instituto de Psicologia e entrou para o Núcleo de Gênero e Sexualidade, encontrou outra realidade dentro da universidade. O núcleo lhe permitiu ter uma inserção social e falar sobre a causa trans. Ao voltar para universidade para fazer pós-graduação, ele ingressou através de cotas para pessoas trans da Faculdade de Educação. Eric diz que essa ação afirmativa foi bem importante
para continuar estudando. Infelizmente são poucos cursos que oferecem essa possibilidade.
SAÚDE TRANS Como o preconceito ainda é visível no ambiente hospitalar, tanto Eric como Sophie já ouviram relatos de transexuais que foram procurar atendimento de saúde e esse recurso lhes foi negado. Eles lembram também de casos de homens trans que não conseguiram orientação adequada para uso de hormônios e acabaram se automedicando. Sophie auxilia o desenvolvimento do ambulatório T, o primeiro para pessoas trans e travestis de Porto Alegre. O espaço abriu em agosto deste ano na Unidade de Saúde Modelo, no bairro Santana. Sophie fala que essa ação é necessária para dar um atendimento mais humanizado para trans e travestis. “Espero que não precise mais criar ambulatórios específicos, porque todas as pessoas merecem atendimento igualizado”, diz ela.
AMOR É ACEITAÇÃO Eric está há seis meses namorando Morgana, drag queen de Florianópolis. Para ele, o relacionamento dos dois é
importante, porque há uma dificuldade sistêmica em encontrar pessoas cisgênero que queiram ter um relacionamento com pessoas trans. “Muitas vezes, para pessoas cis, pode ser difícil assumir essa posição, porque o preconceito se estende para elas. Além disso, muitas podem ser transfóbicas e achar que um homem trans não é um homem de verdade, que ele não tem características desejáveis.” Eric afirma que o relacionamento foi muito importante para sua constituição como alguém que merece ser amado e tratado com respeito. “Tenho um namorado que me aceita como eu sou.” Sophie também afirma que é muito difícil encontrar homens cis que assumam mulheres trans, principalmente pelo preconceito que a sociedade tem. Muitas vezes, mulheres trans acabam se sujeitando a relacionamentos abusivos pelo fato do parceiro ter assumido o relacionamento. Mesmo com as dificuldades, a comunidade trans está conquistando seu espaço e reconhecimento na sociedade a pequenos passos. O preconceito e a falta de oportunidades ainda é a maior barreira para ser ultrapassada.
O coletivo Homens Trans em Ação, do qual Eric é um dos fundadores, surgiu com o objetivo de multiplicar as redes de apoio para homens que querem fazer a transição SEXTANTE Dezembrode 2019
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GABRIELLA VON
REVISTA EXPERIMENTAL DO CURSO DE JORNALISMO DA FACULDADE DE BIBLIOTECONOMIA E COMUNICAÇÃO (FABICO) DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL (UFRGS) Disciplina de Jornalismo Impresso Direção da Fabico Karla Maria Müller
Comissão editorial: Andrielle Prates, Filipe Bertoglio, Gabriela Plentz, Júlia Flor e Raíssa de Avila
Chefia do Departamento de Comunicação Enoí Dagô Liedke
Comissão de fotografia: Jaqueline Kunze, Luísa Santini e Nathália Cassola
Professora-editora Thaís Furtado Orientação Gráfica Ana Gruszynski e Graziele Borguetto Monitor Juan Ortiz Estagiária Caroline Silveira
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Comissão online: Filipe Bertoglio, Gabriela Plentz, Jadde Molossi, Júlia Flor e Natássia Ferreira Comissão de distribuição e lançamento: Andrielle Prates, Camila Bengo, Karolaine Leão, Raíssa de Avila, Steffany Cuacoski e Vitória Pinzon (Apoio: equipe da Agerp)
Projeto Gráfico: Amanda Hamermüller, Felipe Golderberg e Glauber Machado Capa: Caroline Silveira
Participação: Turma de Fotojornalismo II sob orientação da professora Ana Taís Martins Portanova Barros e da estagiária docente Camila Freitas Siqueira
Foto de capa: Geovana Benites e Mariana Alves
Impressão: Gráfica da UFRGS
Revisão: Caroline Silveira e Juan Ortiz
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Diagramação: Alnilam Orga, Anderson Dorneles, Ariel Lopes, Caroline Silveira, Júlia Vargas e Tamires Rodrigues
GIOVANNA PARISE
“EU ACHAVA QUE O CIRCO SERIA O ÚNICO LUGAR ONDE EU ARRUMARIA UM EMPREGO, PORQUE EU ERA UMA ABERRAÇÃO E, NO CIRCO, ELES ACEITAM ABERRAÇÕES” SOPHIE NOUVEAU, TRANSEXUAL. PÁGINA 74
“DRAG SIGNIFICA A LIBERDADE DE PODER FAZER TUDO AQUILO QUE EU PASSEI A VIDA INTEIRA OUVINDO QUE EU NÃO PODERIA FAZER” LO LITTA, DRAG QUEEN. PÁGINA 6