Revista subversa v 2 n 7 2015

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SUBVERSA

ISSN 2359 – 5817 Volume 2 | n.º 7 | Abril 2015

EDIÇÃO ILUSTRADA | FOTOGRAFIA | Caroline Aguiar

GUILHERME PIMENTA | MAURICIO LIMA | BRENO RICARDO| JORDANO SOUZA | EVANDRO CAMARGO | SAMUEL H. DIAS | DIEGO DE TOLEDO LIMA| MAURICIO CHEMELLO |JOSÉ EUGÊNIO DE ALMEIDA| LETÍCIA MONTEIRO | VINICIUS BANDERA| FERNANDA FATURETO | RAFAELA MANICKA


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Subversa | literatura luso-brasileira |

V. 2 | n.º 7

© originalmente publicado em 15 de Abril de 2015 sob o título de Subversa © Edição e Revisão: Morgana Rech e Tânia Ardito

Fotografia: Caroline Aguiar carolineaguiar.fotografia@gmail.com

Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados como autores desta obra. Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos textos ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem com a realidade.


SUBVERSA V. 2 | N.º 7 | 15 DE ABRIL DE 2015

GUILHERME PIMENTA | © CANELAS | 5 MAURICIO LIMA | © O VELHO SOZINHO|10 BRENO RICARDO | © AS MAGNIFICAS REVELAÇÕES DE UM SUBCONSCIENTE LIVRE| 14

JORDANO SOUSA | © CAMINHOS | 17 EVANDRO CAMARGO | © LENDAS PARAGUAÇUENSES | 19 SAMUEL H. DIAS | © PIERRE | 22 DIEGO DE TOLEDO LIMA |© CORRENTES DA LIBERDADE | 25 MAURICIO CHEMELLO | © VOCÊ SABE QUE EU NÃO SOU DEUS | 27 JOSÉ EUGÉNIO DE ALMEIDA | © VISITAS DE DOMINGO | 29 LETÍCIA MONTEIRO | © A MORTE DO CISNE | 32 ESPECIAIS VINICIUS BANDERA | © TINHA UM ABISMO NO FIM DO CAMINHO | 34 FERNANDA FATURETO | © A SOLIDÃO | 40 RAFAELA MANICKA|© INVERNO| 43


EDITORIAL Este número, para além das conquistas que comemoramos e as que já planejamos para o mês de Abril na Subversa, dedica-se também a referir a essência libertária da literatura. Em Portugal, o mês de Abril traz consigo os ventos libertadores do dia 25, que marcou a Revolução no ano de 1974, data em que vem à tona, todos os anos, discussões, manifestações, homenagens e novas formas artísticas de abordar o momento em que o país venceu a ditadura salazarista. Repare que em “abordar”, neste caso, habitam muitos outros verbos possíveis: protestar, relembrar, questionar, doer, orgulhar, sentir. E, dentro de “sentir”, mais uma série de outras coisas e por aí fora. Mas a questão é que, para a literatura, mesmo quando nenhum verbo dá conta de explicar a luta desmedida pelo poder e pelo aprisionamento social e individual, ainda é possível reinventar a linguagem, criar verbos impossíveis, novas formas de palavras, imagens, ritmo e, enfim, expressar aquilo que não se pode comunicar de outra maneira. Nestas páginas, o que encontrarão é basicamente isso, maneiras de dialogar com esta força dinâmica da vida que aprisiona e liberta, constantemente, desde as mais delicadas sutilezas aos sentimentos e materialidades mais fortes e concretos. Para nos ajudar, a fotógrafa mineira Caroline Aguiar trabalhou conosco estes temas e, ainda que repleta de afazeres acadêmicas, se aventurou por estas belas imagens. Com vocês, o sétimo número do volume dois. Boa leitura. As editoras.


CANELAS GUILHERME PIMENTA Belo Horizonte, MG.

Canela de pássaro na água enquanto os olhos fixos na vela do barco procuram algum apoio. O voo é calculado. A ave vira sua asa direita de lado e o vento carregado de sal performa tarefa bem feita, consegue empurrar o animal em uma curva perfeita. Canela de pássaro sente a brisa e nem se atreve a tremer, porque quem avisa o seu dever à comida perde a oportunidade de comer. E para quê, me diz você, vem um pássaro sem maldade pousar em um barco em bela tarde, senão para comer? Tarde bela, sim. Azul que contrasta com o branco da vela e, acima dela, o predador arrasta asa e cerra os olhos analíticos ao convés. Ao invés de se apressar como da última vez, dez minutos entre mastro e ar fez-se muito bem – e quando é que não faz? Um tempo a mais e nada acontece. Quase o impulso vence e a ave desce no susto em direção ao chão.

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Mas não. Desta vez mais tenso, o pássaro mantém o bom senso e espera por alguma ação. Desta vez o tempo lhe deu razão. Saído ao vento, o dono do espólio olha em volta e bota o pé em cima da caixa que os olhos de predador almejam, enquanto a pata o firma com fervor e atenção. Caixa azul. O azul é o mesmo do mar, mas neste não pode o pássaro simplesmente entrar em um mergulho. E olha que ele se enche de orgulho ao piar sobre seus feitos, um sem número de jeitos de pescar. Mas por que então toda essa fixação pela caixa azul, se para o sul tudo que se vê é mar? É maldade, porém pura realidade, que a refeição é mais segura quando o peixe já não é vivo para nadar. Talvez quando ele era mais jovem e delgado; agora ele vem voando meio de lado e a canela sempre sente mais gelado o ar. A vida segue em frente, você sabe, e quem não se adapta bem cabe o próprio fim também naquela caixa. O peito abaixa até a asa se deitar. Meio sem jeito no convés, o homem firma os pés e olha o infinito. O dia é bonito, a ave bem sabe, mas não é possível que este estranho animal fique ali parado até que o tal dia se acabe. Será? O tempo passa lá e lá, e o enfado é indiscutível quando um apito corta o ar. É daqueles de pena arrepiar, não fosse a cena em seguida. A ave tem a oportunidade de sua vida quando o homem de média idade segue o som barco adentro. O apito, que não foi fraco, foi sim aviso sobre algum momento. No alto e no centro, o pássaro estava sozinho outra vez. Hora de descobrir se a resposta para sua escassez de comida está ali. Há um mês, sem esperança em voo de despedida, ele avistou o azul, não tão natural quanto o mar ao sul, sendo aberto pelo animal quase nu. Lá dentro havia peixe cru, quando ele morre e ainda não perdeu seu frescor; quando ele não luta mais, mas ainda mantém todo

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o sabor. Uma bela truta que de cima da vela um exímio caçador reconhece tão bem. Naquele dia também a ave pousou e foi além. Dona de si, quis tomar o peixe a força, como tanto fez no mar. Só que dessa vez não era o azul, e sim um homem nu a quem tinha que enfrentar. Faz um mês e o abdômen ainda dói. A espera valeu e o pássaro está sozinho desde que o homem desceu. Escondido atrás da vela, deslizou devagarinho quando percebeu que não havia mais apito. Patas na lona, canela firme, a ave estática esperava que algum som lhe viesse à tona. Bom, o animal continuou lá em baixo. O coração quietou o faixo e lhe permitiu ouvir os próprios passos. Uns dois foram em falso e lhe falta agora a concentração, de quase botar para fora sua última refeição — dela mal se lembrava. Nada acontece, nada. Pata depois de pata, esquerda e direita, tudo em ordem para que a caminhada fosse feita com cuidado. Caminhar, sim, porque faz muito barulho voar de lado. A caixa parecia ser mais baixa vista do alto. De perto, seu azul não lembrava em nada o mar; mesmo assim, ali estava a solução. Enfim! Alguma coisa porém estava errada, uma informação que lhe faltava: como abrir aquela caixa? É fácil para o outro animal, que em vez de asas tem dois membros que parecem pedaços de pau com ganchos no fim. Contra patas e canelas fracas, dá pena até em mim. Em um pulo, nela ela estava em cima. Não estava em clima de esforço, a dor da fatiga crescente em seu torso, e bicar lhe costuma dar enxaqueca – ainda mais se contarmos o nervosismo, que sempre deixa a boca seca. Mas pássaro não é rico, não tem braços nem tem dente, portanto não lhe resta nada além do bico – nada que lhe viesse à mente. E ave bica baixo quando quer. Fica um barulhinho qualquer que até brisa disfarça. Só que a caixa azul parece carapaça. Impenetrável.

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Bica-bica que fica mais alto que brisa, dá dica para as ondas que tentam competir. Elas também ficam para trás. A bicada aumenta de volume, um pouco mais de cada vez. Um erro de estratégia, pois bem. Erro comum, porém, quando ficamos sem paciência. Assim, totalmente distraído, o pássaro não percebeu a emergência. Os tais ganchos do outro animal o acertaram com violência e a ave foi jogada para longe, sem rota – a asa de lado forçando cambalhota. Sem saber se estava caindo ou voando, conseguiu firmarse no ar, dois palmos da superfície do mar. Subiu num voo em círculos porque voa de lado, recuperando-se do enjoo e do estômago embrulhado. O dono da caixa acompanhava com seu olhar a nova rota baixa, ele e seu mau-olhado. O pássaro vestiu seu rosto magoado em resposta àqueles olhos que diziam para ficar longe do que é meu. Ou seu, mas nunca da ave que não é dona de nada. Agora, qualquer lugar onde haja sinal de lona é zona proibida. O pássaro perdeu a oportunidade de sua vida, e agora é esperar o dia em que o mar vem lhe levar. Será? Claro que não! Se um pássaro tem um coração que bate, ainda há, antes que o tempo lhe mate, razão suficiente para lutar. O mergulho de lado foi diagonal, capaz de assustar qualquer animal com tamanha determinação. O coração bateu nas asas, bem quando o bico chegava para o ataque. Aquele animal enorme de araque tentou seus ganchos, com tanta lentidão que a ave deu a volta antes deles terminarem sua rota. O homem girou, mas quem se importa? O pássaro não, pois seu coração é bem mais forte. Não importa que voe de lado quando se é tão determinado. Humilhado, o animal tentou de novo, e essa tentativa eu louvo por ter sido mais consistente. Foi um golpe diferente, mas de resultado igual. Mal o animal se recuperou, o pássaro investiu em golpe fatal,

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golpe direto no rosto do tal inimigo. No susto ele gritou, dançou e recuou, tropeçou na caixa azul. Com o impacto ela caiu e se abriu, enquanto o animal sumiu de costas na água. E o silêncio. O silêncio da vitória. Depois de tanto tempo, a oportunidade de sua vida. Que alegria! Com mais água do que o mar em seu bico – jeito que eu também fico quando faminto – o pássaro que agora é rico caminha até seu prêmio. Mas em um milênio você não verá comparável decepção. Seu coração ficou bem pequeno ao saber que ali dentro não havia pescado. O conteúdo tinha sido trocado! Ao invés de peixe fresco havia uma porção de cilindros, algo pesado.

Tudo errado, tudo. O

pássaro sentiu ódio, lógico, mais salgado que o sódio do mar. Decidiu sua volta ao ar, mas não sem antes usar seu bico. Esse cilindro é de furo fácil. Deve ser por isso que estava seguro por carapaça. Esperava qualquer coisa a sair dele, menos água. Corrigiu-se para não se trair: não é água, é algo amarelo e amargo. Não lembra nem água de lago, que também tem a sua cor. Pelo menos não era tão ruim o sabor. E os venenos não são bons. Pena que não era nada perante a cena que imaginou: uma caixa com peixes frescos. O cheiro, o sabor, e a brisa amena. Mas é hora de ir embora, voltar para seus restos. De novo o tédio. Mas não! Ele está diferente, percebeu quando a última canela passou a corda que segura a vela. Aquele líquido é remédio? Ou é milagre ou ele está medicado: ele agora voa reto, e é o mundo que está de lado.

GUILHERME PIMENTA é designer e escritor, poeta e romancista com diversos livros auto publicados. Possui o blog Sobre Pessoas, onde escreve textos de até quinhentos caracteres. Mesmo sem ponto nenhum, prefire ir direto ao ponto.

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O VELHO SOZINHO MAURICIO LIMA Novo Hamburgo, RS.

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- Posso usar esta cadeira? – perguntou o velho sozinho - Claro – respondi. Ele prontamente sentou ao meu lado Eu havia imaginado que ele pegaria a cadeira e se sentaria em algum outro lugar Aquilo que estava de fato acontecendo eu não conseguia imaginar Desespero e solidão transbordavam em sua voz, eu, como há muito já havia transbordado, só fiquei um pouco desconfortável, irritado, pois só queria ficar só Comíamos em silêncio, tentei pensar em poesia, ver uma outra coisa que eu não veria, que não diria, mas a realidade era avassaladora O velho sozinho sentado comia Acho que ele só queria sentar ao lado de alguém tanto quanto eu de ninguém

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Parecia abandonada um bando de nada nadando quase afogada Olhei de relance Ele parecia emburrado... Ou seria enrugado? Parecia que esperava que algo esperasse por ele, mas não aparecia! Começou então a sugar a carne que estava presa no meio dos dentes Era uma sinfonia coerente com toda aquela gente presa aquele lugar Sem me despedir, com um aceno com a cabeça, meio não dado meio não visto, levantei e fui embora, como se sugado por entre os dentes daquela tarde vazia

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A minha cadeira, vazia, o faria companhia, não fosse ele não estar lá, o velho amigo (?) Eu estava com tanta fome que me dava azia Na minha cabeça eu já tinha comido, mas sequer havia feito o pedido

MAURICIO GOLDANI LIMA é gaúcho da cidade de Novo Hamburgo. Professor, músico e poeta, amante e incentivador das artes. Escreve desde 2007, mas participa de publicações em revistas gaúchas desde 2014. No momento, trabalha para o lançamento de seu primeiro livro de poesias.

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AS MAGNÍFICAS REVELAÇÕES DE UM SUBCONSCIENTE LIVRE

BRENO RICARDO Belo Horizonte, MG.

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De repente o mato virou gramado! O parque malcuidado onde eu me encontrava, tomou ares de guia turístico e eu me senti o mais rico viajante. Relaxei e ri, perdi o equilíbrio de mim mesmo, enquanto fugia das angústias desse mundo demasiadamente real. A minha mente se esvaziou quase por completo. Estive sem problemas e pude ver o quão belas são as nuvens de algodão flutuando no céu como eu flutuava na terra. Éramos bem semelhantes, porque os dois éramos a leveza e a liberdade do recriar-se sem dificuldades. Elas pareciam saídas de um desenho animado; essa textura se expandia e chegou a transformar-me a mim e ao caminho por onde ia. Era um caminho mágico, como nas lendas da Idade Moderna ou ainda como os clássicos da Disney. Continha pedras brancas que brilhavam como o sol que nelas refletia seu poder e beleza: uma sutil extravagância; um exclusivo show de magnificência! Eu as amei, principalmente, porque estava com o coração livre das paixões do passado e despreocupado quanto às do futuro. (É assim que eu sempre estou, atordoado na angústia do não-ser, afinal, o pretérito e o porvir nada mais são que o se iludir). Estando no presente como o mais puro dos selvagens, pude desfrutar o vão mineral e ele me satisfez profundamente. Nesse caminho mágico de aventuras surreais, eu pulei um calango grande como um jacaré. Ele não quis ser visto quando o olhei de ré – e transformou-se em uma raiz sem sentido, ali no chão: raiz sem árvore, como o louco que não desenvolveu seu potencial de loucura. Depois recaiu uma normalidade sobre tudo e foi tão de repente que me perguntei se na verdade ela não veio sobre o nada, preenchendo-o de suas mesmices, mas... Não!; não é dada disso! Eu estou mentindo, perdão! Em verdade em verdade vos digo que, aproximando-me de casa, me preocupei com a minha mãe e avó que lá estavam. As duas não poderiam saber de toda essa maravilha que

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Deus me revelou em seu mundo comum! Ter-me-iam por drogado, louco ou quem sabe um profeta como os bíblicos mendicantes. Estava imerso em tais conjecturas quando me vi em casa. Arregalei meus olhos que estavam baixos e disse algumas poucas palavras (é absolutamente dispensável lembrar-me delas). Então, entrei para o quarto e me deitei. Assim foi que me pus a entrar nas notas das músicas que ouvia, tornando-me um com elas. As sensações ímpares somaram-se e potencializaram as muitas imagens aleatórias de minha mais tenra infância. Eram pedaços de chão, uma vasilha, um colchão, essas coisas sem graça, juntas e misturadas, se combinando e recombinando formando algo demais contemporâneo. Balancei minha cabeça com as mãos e sucedeu-se que me movi energicamente com a maleabilidade de uma borracha (ou seria leve como um papel?). Não sei ao certo. Fato é que ondulei na apreciação de meu presente interior. E mais tarde, dormi. Foi positivamente um desmaio, já que nada mais vi de que viesse a me lembrar. Meu inconsciente estava descansado depois de revelar à consciência, tudo o que guardava em sua caixinha de lembranças e recalques. Então, o celular despertou e, como todos os dias, saí para o trabalho.

BRENO RICARDO escreve poemas, peças teatrais e crônicas. Já foi diretor de um grupo de teatro amador; possui três livros publicados on-line; e, atualmente, publica crônicas no blog da Capela Anglicana do Bom Samaritano, além de poemas e pequenas reflexões em sua página no Facebook.

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CAMINHOS JORDANO SOUZA S達o Gotardo, MG.

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tropeçando nas pedras do meu bairro antigo, percebi como um estalo de duas línguas famintas que o caminho era apenas para ser seguido, sem medição, sem lógica concreta.

caminhos são feitos pelos pés, a mente apenas os interpreta.

JORDANO JOÃO BATISTA DE SOUZA escreve desde a adolescência, já publicou vários poemas em blogs e revistas digitais, tendo alguns textos classificados em concursos. Atualmente o autor se dedica aos Haicais e poemas sobre o cotidiano. Depois de passar por Goiás e Brasília, voltou a morar em Minas Gerais, onde continua escrevendo.

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LENDAS PARAGUAร UENSES EVANDRO DO CARMO CAMARGO Paraguaรงu Paulista, SP.

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I - O amedrontador

É sempre difícil falar do passado. A memória nos trai e lembramonos do que melhor ou pior nos convém – dependendo do grau de saudomasoquismo do momento. Mas há tempos venho pensando em algumas figuras que fizeram parte de minha infância e juventude e que sempre, de uma maneira ou de outra, punham-me desconsertado, uma vez que tudo que é alheio ao que se convencionou chamar normalidade causa estranheza. Como nos informa Drummond em seu belíssimo conto “A doida”, toda cidade tem seus doidos, mas são eles de matizes tão distintos e possuem tais e quais particularidades que não poderiam jamais ser postos num mesmo balaio. O primeiro desses vultos tão especiais que me ocorre é o de um ser que até hoje não sei se existiu deveras ou era fruto de minha imaginação infantil; advirta, contudo, que dois ou três amigos, já grandes – porque em pequenos nunca mencionáramos tal figura – afirmaram tê-lo visto, assim como eu. Tratava-se de um homem estranhíssimo, cuja idade devia correr por volta dos 30 anos; possuía uma cabeça descomunal, com ralos cabelos castanhos bem claros mal cobrindo a testa enorme. Trajava mais ou menos à moda de Bruce Banner logo após voltar da terrível transformação em Incrível Hulk, qual seja, uma calça de brim bege pela canela com a barra em frangalhos, uma camisa surradíssima de mangas curtas, também tirante a bege, talvez com um xadrez bem desbotado e quase imperceptível ao fundo, sempre aberta bem abaixo do peito, que era vermelho e, à distância, parece que áspero, como a crista de um galo, crestado que era de sol. Seus pés, a exemplo da cabeça, eram igualmente desproporcionais de grandes em comprimento, espessura e largura. Uns pés atualmente quase desusados, mas dos quais havia razoável monta à época, quando não constituía novidade alguma perambular descalço pela cidade.

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O curioso era que o tal não era alguém palpável, conversável, convivível. Sempre que o via, estava ele atrás de um alguma árvore de tronco grosso, de modo que, no mais das vezes, o mais que víamos era parte

de

sua

hedionda

cabeçorra,

a

observar-nos

sorrateiro.

Amedrontador. Parece que se locomovia a pequenos saltos; sim, saltitava. Semelhava, por vezes, alguma espécie já extinta de elo perdido entre um pássaro e um ser humano – não me esqueço de uma versão de O médico e o monstro do Piu-piu e Frajola em que o primeiro dos dois se transforma em um pássaro monstruoso ao beber a famigerada poção. Que me lembre, via-o sempre em lugares onde havia crianças – normalmente, perto da quadra do GEP, meu querido e inesquecível colégio da 1ª à 8ª série –, observando sem nada dizer ou fazer. De repente, que é feito do homem? Sumia como que por encanto. Pra onde ia? Onde vivia? Teria família? Que teto cobria sua cabeça? E seu quarto, sua cama, seus pertences... Mistério profundo. Como profundo e misterioso é o coração humano.

EVANDRO DO CARMO CAMARGO é colaborador frequente da Subversa e dispensa biografia.

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Pierre SAMUEL H. DIAS Muzambinho, MG.

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Despejando seu ódio, fazendo assim com que os laços se partam, eu então troco as letras por imagens e elas me retornam sentimentos. Assim como crianças que nos dão um motivo a mais para guardarmos as boas lembranças do passado. O Pintor, define as mais belas cores para capturar ao máximo a bela arte daquele momento. Caracóis azulados caem de minhas mãos e afogam-se na areia doce. O Que eu posso desejar partindo deste momento. A grande torre começa a desmoronar lentamente. Desistir absolutamente rumo à loucura. Ser individualista. Aos poucos vai me abandonar para não cobrir seu pequeno coração com minhas manchas. Eu desejei por algo em algum momento da minha vida? Mas isto não é recíproco. Nem ao menos as pessoas que gostamos... Vagarosamente desaparecendo entre a névoa criada pelo meu coração. Contando os segundos para dormir. Sono eterno, pasmo. Por favor, não deixem este céu ainda mais azulado. Voltando para algum bom momento... Um laço é criado de forma que nos tornemos apenas um, a esperança é cruel. Vamos nos ver ao menos uma última vez, antes que... Eu me fecho em um mundo onde suas palavras mergulham em trevas, transformando as boas lembranças em um monstro que nos devora. Bebendo desta fonte de pessimismo e a cicatriz incurável novamente volta a arder, dentro de um frasco azul... Em algum momento eu realmente estive vivo? A figura encapuzada e sentada em uma cadeira empoeirada ao meu lado, começa então a digitar meu nome em sua máquina, ouço engrenagens...

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Cada gota de sangue tem um valor perdido e os ossos brancos ficam em minha mente. Eu me dissolvo neste poรงo de mentiras Lentamente. Adeus e obrigado.

SAMUEL H. DIAS

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CORRENTES DA LIBERDADE DIEGO DE TOLEDO LIMA Joanópolis, SP.

Cansado, sensação que representava perfeitamente meu momento. Mesmo assim insisti no caminho, apesar das negativas de pessoas próximas. No exagero daquele calor os passos prosseguiam lentamente, vencendo a poeira da estrada. O chapéu de aba larga e o sapatão de trabalho duro, sinônimos de suor e superação.

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Perdi as contas de quantos obstáculos já havia superado, assim como o número de poemas lidos nas semanas anteriores. Aliás, números não importavam mais, nem frações e estatísticas. O céu azul me ajudou a esquecer de detalhes de uma vida, dramatizados na hora anterior dentro de um carro, a caminho do parque. Cansado da dramaturgia televisiva preferi a vida real, em traços instantâneos de paixão e tristeza, sentimentos tão próximos e ao mesmo tempo distantes na alma humana. Viajante solitário, acompanhado do silêncio de uma estrada qualquer, perdida no tempo contemporâneo: Vá em frente rapaz! Advindo de uma pessoa externa soou como música em meu peito, acompanhado dos latidos de cachorros nos sítios próximos. Homem livre, não tinha raiz fincada em lugar algum... Diferente daquele arbusto que localizei encostado numa cerca. Lembrei-me de uma antiga poesia, entoei a despedida e fui em frente: “É aí que estou acorrentado por mim mesmo à terra que sou eu mesmo Pequeno ser imóvel a quem foi dado o desespero Vendo passar a imensa noite que traz o vento no seu seio Vendo passar o vento que entorna o orvalho que a aurora despeja na boca dos lírios Vendo passar os lírios cujo destino é entornar o orvalho na poeira da terra que o vento espalha Vendo passar a poeira da terra que o vento espalha e cujo destino é o meu, o meu destino Pequeno arbusto parado, poeira da terra preso à poeira da terra, pobre escravo dos príncipes loucos.” (O escravo – Vinicius de Moraes)

DIEGO DE TOLEDO LIMA é técnico, engenheiro e servidor público estadual. Andarilho e cronista, com ênfase na vida do campo e natureza. Autor do livro “Crônicas Mantiqueiras”.

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VOCÊ SABE QUE EU NÃO SOU DEUS. MAURICIO CHEMELLO Porto Alegre, RS.

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Eis que coloquei um pé para fora de casa e fui. subi a rua e passei pela padaria e fui quando vi a sua casa eu parei as janelas fechadas o cachorro dormindo e o silêncio gritando baixei a cabeça e fui dobrei a esquina saltando o meio-fio quando alcancei a praia eu não parei entrei na água de sapatos caminhei até tocar as mãos triste constatação eu não conseguiria nunca alcançar o outro lado vivo então voltei desdobrei a esquina manchando a calçada levantei a cabeça e fui quando revi a sua casa eu reparei as janelas estavam abertas o cachorro latia... ...eu bobo te vi e você me reconheceu todo molhado de amor.

MAURICIO CHEMELLO é Mestre em Teoria da Literatura pela PUCRS, com estudos voltados à área da Escrita Criativa e Estética da Recepção, e Professor de Oficinas de Literatura.

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VISITAS DE DOMINGO JOSÉ EUGÊNIO BORGES DE ALMEIDA Maragogi, AL.

Desfiz a barba com pressa. Vesti-me que já tocavam a campainha. Visitas a penetrarem no meu mundo, a invadir tudo, as perguntas que exigem respostas, o sorrir às piadas sem graça, o obrigar meu corpo a fazer sala e eu fora dali, longe, ausente. Várias fugas ao banheiro na desculpa de dores de barriga, o meu refúgio de hora a hora a enfrentar-me refletido ao espelho, sem graça, apático. Coubesse eu no ralo da banheira e lá ia eu na água quentinha até a fossa e num murro, abrir a tampa e fugir dali todo sujo de excrementos, mas feliz, em plena liberdade. Mas voltava à sala cheio de covardia a aturar o cunhado que só boca aberta a dizer merdas, eu a rir em anuência, a concordar com as suas conclusões ilógicas, anulando-me só para não prolongar a conversa. Ele a mudar de assunto para outro sem interesse algum, a aturar as suas lembranças da meninice da qual

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não participei e ele a descrever em todos os pormenores tintim por tintim, buscando nomes que não conheço em situações que não vivi. Bebi uma garrafa inteira daquele vinho tinto alentejano que tanto gosto, aproveitando a distração da minha mulher tão entretida nas lérias do irmão prolixo. Elevei meu nível de tolerância à custa da vinhaça. Maravilhosa pomada. Já conseguia tirar partido de tanta conversa inútil, ou seja, sorrir como bom ouvinte sem ouvir porra nenhuma, refugiando-me dentro da minha cabeça, nas circunvoluções frontais, numa cadeirinha que lá tenho reservada para o meu volumoso traseiro. De lá consigo enxergar além dos homéricos falantes e só suas bocas se mexem sem produzir som algum, num doce diálogo de surdos. Esses subterfúgios são cômodos e providenciais, neles vou entrando cada vez mais profundamente dentro de mim, naquele aconchego, como um porto ansiado numa tempestade, onde se joga a âncora e não se quer mais velejar. Encostar os costados na preguiça dos tempos e simplesmente ficar. Numa exclusão de mim próprio que às vezes assusta-me por não conseguir achar uma explicação que seja transmitida por palavras e que possa ser aceite ao comum dos mortais que me cercam nesta vida de merda. Visitas fora, aconchego-me no sofá e pura e simplesmente, não penso em nada, fecho os olhos e adormeço. Tão bom.

JOSÉ EUGÊNIO BORGES DE ALMEIDA é médico e começou a escrever há quatro anos, com 64. Nesta jornada, já reuniu 39 prêmios em concursos literários diversos, publicou o romance juvenil “Uma Luz no Fim do Túnel” e está em fase final de edição de “Labirinto Eterno”, finalista do Prêmio SESC 2014, a sair pela Editora W5.

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A MORTE DO CISNE ou COMO HEI DE AGRADECER, MEU QUERIDO, POR ME CONCEDER ESTA DANÇA? LETÍCIA MONTEIRO Guaratinguetá, SP.

sei que enxergo além de uma pele; eu sei que cada passo desesperado, cravando trilha nos dois pontos do mundo, de um barbante, do meu quarto, me trouxe até aqui. Eu te adoro em suas vísceras mais sujas — e se pudesse, nelas

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encharcaria meus pulmões; ah, respirar a cópula do céu com a terra! — Vísceras. O diamante no barro. Você me juntou o sangue à carne. É um alívio como quando os homens viram o mar novamente fechado; apreciar a morte dos mais nobres inimigos! ou apreciar a tão estranha liberdade — e eu te adoro no afogamento de seus ombros no canibalismo de seus olhos. Te ofereço minhas cicatrizes. É o que restou da estrada: poemas inchados na pele. Ademais, empresto-lhe a dor da minha língua, uma reticência do corpo. Toma: devolva quando quiser. E espero que você me furte o que não consigo revelar — E o que de você me atravessa? Até onde te alcanço no horizonte?

LETÍCIA GABRIELA MONTEIRO é estudante de Letras na USP e pretende estudar adaptações literárias para o cinema infantil.

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TINHA UM ABISMO NO FIM DO CAMINHO

VINICIUS BANDERA

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Rio de Janeiro, RJ.

Ele chegara à ilação de que era o momento de voltar, mas não sem antes cumprir o que se propusera como missão. Nisto consistia o seu dilema. Já divisava o objeto de seu desejo, o qual vinha perseguindo lograr havia anos, mas, entre ver e ter, tinha um abismo. Como transpô-lo? Nisto também consistia o seu dilema. Voltar era só dar meia-volta, como no quartel. O caminho do retorno era muito mais dilatado e demorado do que aquele exíguo espaço que o separava do que viera buscar. Não obstante, ir em frente pressupunha atravessar o abismo (pior do que atravessar o deserto). Não sabia nem ouvira dizer quem o houvera conseguido e como. Ele passava os dias com os olhos presos à outra margem, tendo que procrastinar o seu desiderato. Se o seu olhar pudesse servir-lhe de ponte; congeminou certa vez. É como alguém que, nadando através do Atlântico, da América para a Europa, chegando nas cercanias de Lisboa, dá-se conta de que uma inexequível providência há a obstar que alcance os poucos mais de mil metros derradeiros; daí, vem-lhe à razão a alternativa, não se sabe se pior ou não, de tentar voltar. Para ele, a volta não seria tão dificultosa, mas, como no caso do Atlântico, não conseguiria concluí-la (por suposto, tal inferência parece óbvia dada à nímia limitação física humana). Não por uma questão de tempo. Gastara quase todo o seu tempo útil de vida inútil em ir em direção ao que colimara, deslindando ali e acolá, sempre tendo um norte cartesiano. Para voltar seria menos penoso, pois já conhecia os recônditos do percurso, embora tornar-se-ia mais pesado, porquanto teria que carregar o incomensurável fardo da frustração. Adentrar aos confins da terra prometida e não poder prosseguir... O pouco tempo que lhe restava era-lhe suficiente para viver o que viera buscar, mas com esse abismo à frente

o

tempo

estava-lhe esvaindo como uma

hemorragia que ele não sabia como estancar. Não há como parar o tempo, donde se conclui que não havia como parar com a sua hemorragia. Só lhe restava tentar vencer o abismo intransponível ou voltar. Não conseguia entrar em Lisboa, então fazia-se mister que retomasse. Já não aguentava nadar os mil metros e alguma coisa, mesmo que não houvesse a impossibilidade de que

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falamos; aguentaria voltar através das milhares de milhas? Moisés morreu instantaneamente. Deus concedeu-lhe a clemência de o tirar do dilema de não ter como ir nem voltar. E a ele, haveria um deus a adjudicar a morte em seu favor, sem dor nem desespero, como se tratasse de um sono do qual não se acorda? O caminho da vinda, por mais sacrifícios e armadilhas que lhe tenha custado, fora um bálsamo diante do momento que se lhe apresentava. Se dependesse de sua vontade optaria por não ter chegado próximo de seu objeto, a ponto de sentirlhe a presença, a despeito de que ainda não lhe discernisse o ponto exato em que se encontrava. Preferia continuar indo a uma distância tal que não imaginasse tão extensa ela era, mas com consciência de que tinha que ir seguindo, seguindo, seguindo... sem nenhuma previsão de quando chegaria o momento de parar, pois já se sentia próximo do que viera buscar; tomar-se-ia premente, pois, perscrutar mais um pouco para um ponto, menos para outro, que parecia ser por ali. Como um navio que estivesse se preparando para atracar ao cais, ou um avião circulando para pousar. Imaginem um avião nessa situação e sem poder aterrisar. Era o que estava ocorrendo com ele, guardadas as devidas proporções. O combustível acabando, a hemorragia incontida. A decisão tinha que ser tomada estando ele premido por situações análogas: lanço-me ou não por sobre o abismo, e como? O como era tudo o que obliterava a sua decisão. Pouso no mar (se houver) ou em uma estrada, um terreno qualquer extenso e plano? O avião não tinha combustível para voltar nem para alcançar um aeródromo alternativo. Ele não tinha tempo (o combustível maior dos seres vivos) para voltar; morreria logo no primeiro terço do percurso. O avião cairia ou pousaria sobre um local plano que talvez pudesse encontrar. Ele, esvaecido pela sua humana condição agônica; como pular sobre o abismo? Vira umas árvores por perto, espaçadas umas das outras. Pensou em fazer de uma delas, ou mais de uma, uma ou mais de uma, vara. Já assistira a competições de salto com vara. O atleta vinha correndo com uma vara na mão e, em dado momento, fincava-a no chão e se projetava para além dela, ultrapassando uma altura de alguns metros, não sabia precisar quantos, caindo incólume sobre a areia acolhedora. Pela televisão, ele estimava que se tratava de uma altura equivalente a três ou quatro homens enfileirados na vertical. Quanto ao abismo

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que se dispunha a arrostar, não sabia presumir quantos dezenas de homens deitados no sentido longitudinal seriam necessários para cobrir o seu diâmetro. O seu tormento aumentou quando ele, em um ímpeto de desesperança, fez-se uma pergunta cabalística: se eu por um milagre qualquer ultrapassar o abismo, conseguirei alcançar o que vim buscar, a que dediquei quase toda a minha vida, ou não? Sentou-se no chão, olhou para um e outro lado, para trás, levantou-se e andou por perto, indo e vindo; simplesmente não soube responder à pergunta que jamais se houvera colocado até então. E se eu chegar mais perto, implica deduzir que isto me facilitará a travessia? De perto há mais possibilidade do que de longe? Mesmo que haja, pode ser que surja um abismo justamente quando se está a poucos passos do fim. Noventa e nove por cento foram vencidos, mas era no um por cento restante que estava o que buscava e o que buscou por toda a vida. É como o gol no futebol: de nada vale a bola bater na trave dezenas, milhares, milhões... de vezes; se não entrar, não é gol. Sem gol não há vitória. Sem vitória; viver pra que? Sim, ultrapassar o abismo... Que abismo? É físico, como aquele que ele tinha visto em um antigo filme de cowboy? Não importa se concreto ou ideal, para os fins colimados que para si traçara parece-nos que um abismo é um abismo, isto é, algo intransponível ou de quase impossível transposição. Se alguém não consegue fazer algo, está diante de um abismo. Abismo é então mais do que um obstáculo, empecilho, estorvo. É, é, não poder fazer algo, pela simples razão iniludível de que é impossível fazê-lo. Niestzsche afiançou que somente voa sobre abismos quem tem vocação de águia. Aqui estamos tratando de seres humanos. E o nosso ultrapassar não se refere tãosomente a façanhas metafísicas, mas também, sobretudo, físicas. Ele, o que precisava sobrepujar o abismo, poderia dizer que as uvas estavam verdes e desistir de seu intento. Como estaria confortado se assim o fizesse, gastaria o irrisório tempo de que dispunha a sobreviver por ali mesmo, ou então voltaria devagarzinho, sem pressa de percorrer o retorno, porquanto não haveria mesmo tempo de cumpri-lo ao menos em sua terça parte, já o dissemos. Mas não podia desistir. Não era coisa sua. Algo sobrenatural, ou pelo menos insólito, instava-o a tentar prosseguir. Talvez fosse mais confortável desistir sempre que um abismo maior nos impusesse a tanto. Pareceria ser como um avião - novamente ele; será

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que já pousou ou se esfacelou? - desfazendo-se de combustível e carga para aumentar a sua velocidade de cruzeiro diante de uma emergência surgida de inopino; quem sabe alguém passando mal a bordo. Mas o ser humano tem coisas e sentimentos, principalmente estes, que lhe não deixam impune se deles se desfizer. Entendemos o espírito de seu aforisma, Nietzsche, mas o nosso problema é outro, precisamos ultrapassar o abismo por baixo, em seu plano térreo e telúrico; a águia não faria isso. Conseguiria tão egrégia rainha dos céus dar um salto - não voar - e chegar sã e salva à outra margem? Nem nós, nem você, grande pensador do caos. Voar é um apanágio dela, a natureza lho deu; quanto a nós, reservou-nos o atributo de

nos mantermos eretos e andando, quando

muito, correndo. Também podemos vencer o abismo voando, basta-nos não mais que tomarmos um avião. E aquele do qual vimos falando: já caiu, ou pousou? Já se foi o tempo suficiente para o seu combustível findar. Nunca saberemos de seu desfecho nem o dessa pessoa que teve por contumácia a missão de sobrepujar o abismo para, com isso, contemplar, ou não, e até viver, ou não, o litigo que ele próprio lhe arrogara como destino; não se sabe o que era, pode ter sido uma verdade axiomática.

VINICIUS BANDERA é formado Ciências Sociais (UFF) e História (UFF). Pósgraduado (lato sensu) em Filosofia Contemporânea (UERJ), Sociologia Urbana (UERJ) e Política Internacional (Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo). Mestre em Ciência Política (UNICAMP), doutor em Sociologia (UFRJ) e pósdoutor em História Social (USP). Professor universitário e autor do livro Liberalismo e cientificismo: conflito de paradigmas na correção/proteção de menores na virada do século XIX para o XX (Editora UFRJ, no prelo), que foi escolhido em seleção nacional. É autor de centenas de textos literários e científicos. Publicou Náufragos da fé, pela Laço Editorial, Deus fez a noite para matar o dia pela Editora Autografia e a coletânea Mulheres da vida (Editora Multifoco, no prelo). Finalista no Prêmio de Literatura SESC/Editora Record categoria conto 2012/2013. Segundo colocado no concurso nacional de literatura Prêmio Lima Barreto, promovido pela Academia Carioca de Letras, com a coletânea de contos intitulada Volver a empezar (2014). Diretor, roteirista e editor de longas metragens em HD digital.

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A SOLIDÃO FERNANDA FATURETO Uberaba, MG.

O sol interrompia a solidão disposta no quarto, entre frestas da persiana. O corpo da mulher nu refletido no espelho voltado para a cama antevia a cena que poderia ser refeita horas antes. O dedo ereto tocando-se em movimentos circulares enquanto o rosto explodia num vermelho ocre e pernas se comprimiam mais para perto de si, numa tentativa repentina de aplacar a devassidão de sentimentos que lhe chegavam. Um corpo mergulhado numa rotina automática da cidade. Comprimido entre estações de metrô, boletos bancários, filas de cinema, estacionamentos, bitucas de cigarro. Entregue à maquinaria pesada de fazer render o dinheiro de uma empresa multinacional com suas mesas de trabalho, cadeiras ergométricas. Um corpo que ao chegar ao apartamento, ao atravessar o campo minado entre a portaria e o elevador, esperar minutos para

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chegar ao seu andar, encarar vizinhos desconhecidos como uma batalha, abrir a porta com a chave que emperra; trancá-la, tirar os sapatos de salto médio, botar Billie Holliday pra tocar, olhar-se nesse mesmo espelho cúmplice pela espera ínfima da morte rítmica. Um espasmo. Um corpo se entrega à cama emaranhada como se lhe restasse apenas mais uma noite. E as pequenas convulsões provocadas por cada toque lhe devolvem a dignidade de estar ali, presente, como corpo, enquanto avenidas e ruas não perdem o movimento usual. Da janela aberta se ouve buzinas e cheiro de gasolina em contraste com o doce do perfume que se espelha pelo quarto numa mistura inusitada que a excita. Estar sozinha aquela noite era o grito de paz que não se podia ouvir na presença de outro. Em meio a cada espasmo, as mãos percorriam os lençóis e se contraía a boca. Lampejos de lembrança de um algum amor lhe vinha à memória, jantares, sorrisos, diálogos interrompidos. Sozinha era como se pudesse reconstruir seu passado de sonho e medo em um quebra-cabeça que permitia limpar todo o vestígio de erros. Preparava-se para enfrentar outro dia com o corpo reestabelecido e íntegro. Um corpo adormecido recuperava a paz. Da janela, avistava-se o sol surgindo e seus feixes a convidavam para a manhã. O mesmo sol que acordava e lhe desnudava a vista: nua entregue ao sono que feixes de luz vinham atiçar. Acordar esse corpo que descobriu o torpor era ressignificá-lo diante de cada instante de automatismo vivido no dia anterior. Descobri-lo ativo em meio à engrenagem. Ao acordar e silenciar o ocorrido noite adentro, a mulher tornava-se cúmplice de seu próprio gesto. Abriu os olhos e de longe se olhou no espelho. A imagem refletida garantia a ela outro tempo possível: do reconhecimento íntimo de si contra o qual o cotidiano esbarrava sorrateiro. O sol brilha mais forte. Depois do rompimento algo perdura.

FERNANDA FATURETO é autora do livro de poemas Intimidade Inconfessável (Editora Patuá, 2014), colaboradora da Revista Samizdat e bacharel em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero

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INVERNO RAFAELA MANICKA Curitiba, PR. Hoje o dia amanheceu frio. E, logo que acordei, percebi o porquê. Tudo bem, o inverno está chegando, a tendência é ter os pés gelados mesmo. Mas todo mundo sabe eu sei que o meu inverno dura o ano todo. Pelo menos desde o dia que perdi você. Eu ainda não sei como tudo aconteceu. Não sei se foi erro meu ou seu. Provavelmente meu. Ou seu, porque sabe, essa mania que tenho de colocar toda a culpa nas minhas costas eu ainda não perdi. E, provavelmente, não vou perder. Acontece. Aprendi que a natureza das coisas é exatamente essa: a gente vai, enfrenta tudo, conhece alguém bacana pra te ajudar a enfrentar esse tudo e no final... Ah, no final cada um vai pro seu lado e você continua

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indo e enfrentando tudo. Problema quando esse tudo agrega uma pequena carga emocional, né? É. Não sei você, mas eu não sei lidar direito com os meus mais sinceros sentimentos. Tanta gente já tentou me mostrar que não vale a pena ficar alimentando lembranças de um passado nada ruim. Se me perguntam de você, digo que está bem, quando na verdade nunca mais soube da sua vida. Fiquei sabendo por aí que você já me esqueceu. Prefiro não acreditar, por mais que eu tente. Mas na minha cabeça, tudo o que a gente passou irá permanecer e, um dia, você vai voltar correndo e dizer: "eu me enganei". *** Esquentou um pouco. É que preparei meu café, sabe? Na verdade, já até arrumei a cama pra dar aquela sensação de que você continua aqui; que não foi embora. Lembro das risadas que a gente dava quando contávamos um ao outro o que sonhamos. E das broncas que recebi por sempre estar com o pé no chão. Ah, os beijos de bom dia, eu guardei todos. Eles ainda são seus. Estive pensando e, hoje, nem que seja só hoje, eu vou te procurar. Nem que seja em um livro, uma música ou um outro alguém. A saudade me pegou de jeito, preciso amenizá-la. Sabe aquele seu livro de adolescente que eu tanto debochava? Então, eu já folheei umas páginas algumas vezes, e confesso que me surpreendi com as palavras. Sabe, coisas do tipo "A dor pode até estar te machucando hoje, mas algo melhor do que aquilo que você já teve está te esperando. O ontem já passou, não adianta ficar pensando no que não deu certo. E o amanhã nunca se sabe. Vai que sua grande

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chance de mudar tudo isso está bem ao seu lado. Dê uma olhada, perder o que nem se tem você não vai." a gente não lê todo dia. *** Resolvi pensar um pouco em mim. Comecei pelo rosto. Tirei a barba que um dia você tanto criticou. Dei um trato nas minhas roupas também. Já não estava pegando bem aquela camiseta que te servia de pijama. Dei pro cara ali, tá vendo? Ele tava passando frio. Afinal, ainda é inverno. Mas é aquela coisa, consegui encontrar uma maneira de amenizar os meus pés gelados. Bom, não só os pés. Encontrei uma pessoa, sabe? Às vezes o que a gente realmente precisa é de alguém que se importe. E acredite, eu também me importo. Sei que o que a gente teve foi rápido intenso, mas eu tô feliz com esse meu novo rumo. E eu consegui te deixar um pouco de lado. Encerro por aqui a minha rotina de escrever sobre você e para você. Um dia, eu sei, as lembranças vão insistir em reaparecer. Mas aí o inverno já vai ter passado e não vai ter tanto problema.

RAFAELA MANICKA é formada em Publicidade e Propaganda pela Universidade Positivo e, desde 2010, possui o “Amanhã tanto faz”, projeto literário onde posta textos que escreve sobre a vida em suas diversas formas.

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Edição e Revisão: Morgana Rech e Tânia Ardito

Recepção de originais: CONTATO.SUBVERSA@GMAIL.COM

Colaboração especial: CAROLINE AGUIAR

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