Revista subversa v 2 n.9 2015

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SUBVERSA Vol. 2 | n.º 9 | Maio de 2015

ISSN 2359 - 5817

EDIÇÃO ILUSTRADA Obras de SILVIA CARREIRA

FJDUISFHDUIFHD UI MARCELO DE ARAUJO

SÍLVIO EDUARDO PARO GUILHERME TEIXEIRA

ANA LUISA NEPOMUCENO

VOL

MORPHINE EPIPHANY DOUGLAS SIQUEIRA ALESSANDRA CAPRILES MAURICIO GOLDANI LIMA HEITOR DE LIMA SAT AM WAGNER BARBOSA EDSON AMARO SANDRA EVELINE1MEDEIROS


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Subversa | literatura luso-brasileira |

V. 2 | n.º 9

© originalmente publicado em 15 de Maio de 2015 sob o título de Subversa ©

Edição e Revisão: Morgana Rech e Tânia Ardito

Ilustrações | Obras Plásticas de SÍLVIA CARREIRA www.silviacarreirapintura.blogspot.pt silviamoutinhocarreira@gmail.com

Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados como autores desta obra. Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos textos ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem com a realidade

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SUBVERSA V. 2 | N.º 9 | 15 DE MAIO DE 2015

MARCELO DE ARAUJO | © À ESPERA DE WILSON HARRINGTON |5 SÍLVIO EDUARDO PARO | © NO COPO|13 WAGNER BARBOSA| © O RATO | 15 GUILHERME TEIXEIRA | © DIA MALDITO EM TERRA ESTRANGEIRA |20 ANA LUISA NEPOMUCENO | © ESTILHAÇO | 22 MORPHINE EPIPHANY | © NEGAÇÃO | 25 DOUGLAS SIQUEIRA |© SINTOMAS | 27 ALESSANDRA CAPRILES | © MOVEDIÇA | 29 MAURICIO GOLDANI LIMA | © (SEM NOME) | 31 HEITOR DE LIMA | © PLANIFICAÇÃO DO MAR | 35

ESPECIAIS SAT AM | © PARA MEU AMIGO CORVO | 37 EDSON AMARO | © AMOR E FÉ | 39 SANDRA EVELINE | © SOMBRA PERDIDA| 41

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EDITORIAL Este número traz como bônus um convite a pensar sobre a expressão e a apreensão artística. Isto porque ele manifesta, em si, a necessidade de estar atento à observação da obra de arte em sua face mais complexa. Com grande satisfação, apresentamos junto aos textos da número 9, o trabalho complexo desta artista plástica portuguesa, Silvia Carreira. Nas imagens escolhidas, que confundem o observador que já não sabe se as viu iguais ou não, há a necessidade de sair da posição confortável e ir buscar diferenças e peculiaridades que nos aproximam da intenção estética da artista. A partir da reinvenção da técnica da colagem, Sílvia manipula jornais e revistas antigos e abandonados e dálhes um novo código visual. Cola pedaços, recria um espaço vazio, unindo estéticas conflitantes, como a frieza, a angústia, o futuro e o abandono. E então é uma espécie de tudo ou nada: ou se passa batido, acreditando que as imagens se repetem, ou se mergulha neste mar vermelho de incômodos. Curiosamente, reunimos textos que, de alguma forma, fazem o mesmo convite ao mergulho, abordando o incômodo e o irruptivo. Esperas, dias malditos, estilhaço, negação, sintomas, sombra, etc. A literatura nem sempre é confortável, afinal. A literatura nem sempre resolve e quase nunca dá respostas. E este é o nosso próprio motor de trabalho, aqui na Subversa. Não ter respostas prontas. Estas páginas são para quem quer busca-las. Boa leitura.

As editoras.

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A ESPERA DE WILSON HARRINGTON MARCELO DE ARAUJO Rio de Janeiro, RJ.

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“Na guerra, a força e a fraude são as duas virtudes cardeais." Thomas Hobbes, Leviathan, cap. 13.

403 observa o capacete azul da mulher atrás da muralha de vidro enquanto aguarda na fila. No saguão fortemente iluminado e sem janelas, ele não consegue estimar as horas. Ruídos de línguas desconhecidas ressoam indecifráveis. Que jogo seria esse agora? Um dia, no hipódromo da Gávea, 403 recuperou menos do que gastara no almoço. Mas isso não o impediu de comemorar pelas semanas seguintes a sorte daquele final de tarde no jóquei. Era a transmutação do asfalto em prado. Via cavalos pelas ruas da cidade e arriscava pesadas apostas. A vida como turfe foi seu lema privado no decorrer daqueles dias. Mas, passados tantos anos, já não acreditava que teria novamente a mesma sorte. O saguão − constatou indignado − não serviria nem como baia. Talvez fosse um cassino, uma vasta mesa de pôquer. Ele mostraria o passaporte e alguns papéis à mulher de capacete azul e exclamaria para si triunfante: "Eu passo!" Estaria seguro. Cederia então a vez, indiferente aos jogadores que ficavam para trás. Sim, talvez fosse um jogo − convenceu-se. Foi quando se deu conta do trio à sua frente. O chinês com as duas filhas também esperava pela vez de jogar. Que o homem fosse chinês, ou que as meninas com estrelinhas amarelas no sapato de plástico o vissem como pai, nada disso se poderia saber com certeza. Mas era um palpite razoável. Tudo seria ainda averiguado pela mulher da muralha de vidro. A fila seguia sem pressa e parecia agora a própria viagem. Há um momento de toda viagem em que já não há chegada ou partida, como se ficássemos ali perpetuamente em trânsito e isso não representasse mais transtorno algum. Talvez por isso 403 não tivesse

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percebido que avançara agora a marca de três malas e um carrinho de bebê. Ele já havia se adaptado a tantas coisas. A humilhação do dia em que viu seu nome na lista dos dispensados. Ninguém falara em demissão. Tratava-se de uma dispensa, como foi mais tarde informado. Então a contaminação por fungos no porão do arquivo público, e as injeções que se tornariam parte de sua rotina. 403 já vivera bastante e poderia muito bem passar o resto de seus dias morando naquela fila. Ele até desejava isso. Aos poucos a fila se tornava um mundo ordenado e acolhedor. A espera na fila o abrigava não apenas da incerteza que surgiria ao cruzar a muralha de vidro, mas o protegia também da desolação que, com sorte, deixaria para trás. Havia em toda fila uma ordem que jamais soubera apreciar. O chinês com as duas meninas tinha três corpos de vantagem. Para trás, permanecia aquela coleção irregular de pessoas. Uma serpentina involuntária que se perdia de vista na altura do portão de ferro guardado por metralhadoras e uma nuvem de capacetes azuis. 403 entendeu por um momento que a pessoa que era, as expectativas que tinha, as decepções que gradualmente aprendera a aceitar, seus sucessos ou derrotas, sorte ou azar se mediam pela posição que ocupava naquele mosaico nem sempre linear que fora sua vida até ali. Sentiu-se feliz, pleno, talvez mesmo orgulhoso pela posição que lhe cabia agora numa fila que, olhando melhor, já não tinha começo ou fim. Ela sempre existira, estava ali há mais tempo do que ele saberia contar. A única dificuldade, no entanto, era que, mesmo isso, um dia acabaria. 403 lembrou-se então de Wilson Harrington. E como poderia ignorá-lo por muito tempo? Todos falavam dele, que ele não estaria só ao chegar, que as coisas jamais seriam como antes novamente, que Wilson Harrington não se importava com ninguém, e que nada disso estaria ocorrendo se o tivessem permitido seguir seu curso como ele

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sempre fizera. Mas não, era preciso perturbá-lo, importuná-lo, provocálo: tirá-lo de órbita, como diziam. Não que estivesse atrasado para coisa alguma, mas agora Wilson Harrington tinha uma pressa mortal de estar ali. Nem todas as pessoas o odiavam. Alguns diziam compreendê-lo e até o confundiam com um emissário divino. Outras o amaldiçoavam menos do que a legião de políticos e cientistas envolvidos até o último fio de cabelo naquela tragédia com proporções astronômicas. Quase todos os envolvidos no acidente estavam mortos agora e ninguém já se importava com as medidas que lhes encurtaram as vidas de modo tão violento e abrupto. Às omissões e mentiras do início logo se seguiram acusações, crises diplomáticas que se arrastaram por meses preciosos, pânico, e, por fim, a sombra de uma nova guerra. Mesmo a guerra, porém, exigiria um tipo de cooperação que, agora, se perdera inteiramente. Já não haveria fileiras de soldados em posição de combate; nenhuma esquadrilha riscando contrails paralelos pelo céu, ou submarinos em cortejo sob os mares. Ninguém se importava. Wilson Harrington prosseguiria indiferente. A guerra que se seguiu foi bem diferente, mas não menos devastadora do que a destruição que Wilson Harrington prometia. 403 dá mais um passo e aperta contra o peito o envelope com os documentos que lhe garantiram o acesso ao saguão. Era lá que operavam um dos últimos postos do Controle de Deslocamento Humano. − Eu não tenho menos direito de estar nesta fila do que qualquer outra pessoa aqui − 403 resmunga olhando desconfiado para trás. Estava agora convencido de que o envelope lhe pertencia tanto quanto seus braços e pernas: −

Teriam

feito

o

mesmo

comigo,

fossem

favoráveis

as

circunstâncias, e inversa a situação − ele tenta se justificar. 403 acredita não ter cometido nenhuma injustiça quando, dois dias antes, disparou contra o homem da motocicleta:

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− Não tive escolha: eu estava apenas matando alguém tão inocente quanto eu − alega em sua defesa. Foi um único disparo. 403 mal teve tempo de remover da jaqueta o envelope que o motociclista transportava e desaparecer em seguida entre os escombros do prédio onde planejara sua aposta mais arriscada. − E quem é responsável pela sorte que tem, ou merece os envelopes que carrega? − 403 ponderou novamente, como se exigisse de si novas explicações e justificativas para aplacar as dúvidas não dirimidas pelas primeiras. Acrescentou então, para ter certeza de que não havia crime de que lhe pudessem culpar, uma passagem do único livro à sua mão: “Desta guerra de todos os homens contra todos os homens também isto é consequência: que nada pode ser injusto. As noções de bem e de mal, de justiça e injustiça não podem aí ter lugar. Onde não há poder comum não há lei, e onde não há lei não há injustiça. Na guerra, a força e a fraude são as duas virtudes cardeais.” E virtudes ele tinha. Teria sido mais fácil atirar no motociclista pelas costas. Mas e se danificasse o envelope, ou ficasse algum rastro de sangue nos documentos, em alguma fibra de celulose sequer? 403 pensara em tudo. Os dois hemisférios do capacete do motociclista foram trespassados por um único projétil; o único de que dispunha, aliás. Se as explicações e justificativas não lhe aplacavam a incerteza da culpa, o sucesso do plano lhe concedia ao menos a satisfação da vitória. Reassegurado no conforto da fila que o protegia daquela guerra de todos contra todos, 403 até nutria agora uma curiosidade genuinamente humana por Wilson Harrington: − Como seria poder vê-lo de frente ao chegar da longa viagem? − especulava. − Jamais se assistiria novamente a um encontro assim.

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403 foi interrompido então pelo balido rouco e prolongado de uma espécie de sirene. As cifras de seu nome reluziram num placar disposto acima da primeira muralha de vidro. A mulher de capacete azul − pela primeira vez ele a vê de perto − aponta para uma espécie de gaveta onde 403 deveria depositar seu passaporte e os outros documentos. A gaveta era a única passagem interconectando as duas faces da muralha. O resto se esclareceria pelo interfone. Se tudo estivesse em ordem, um novo capacete azul o escoltaria até o outro lado do saguão onde, momentos antes, o trio de chineses havia submergido por detrás de uma densa porta de vidro. 403 insere na gaveta o passaporte e o envelope com as iniciais UN estampadas no verso. Eram todas as suas fichas. Do outro lado da muralha, a mulher de capacete azul destrava a gaveta e a puxa para si com uma alavanca que apenas à força de repetidos movimentos para frente e para trás se deixava erguer. Onde começava a mulher e terminava a farda, onde o capacete e seu rosto, isso 403 não consegue distinguir com nitidez. Ainda mais improváveis eram aquelas inicias, afixadas por sobre o uniforme, na altura do seio à direita: − VZ... − 403 repetia consigo tentando adivinhar o seu nome. Ela examina os papéis com atenção e, um a um, lança os dados no terminal à sua frente. Não demorou para comunicar pelo interfone sem alarde: − Submissão irregular. Ingresso rejeitado. − Ela já tinha proferido a mesma frase algumas vezes no decorrer daqueles dias. − Deve haver algum engano − retorquiu 403 indignado. Ela repetiu, dessa vez com alguma impaciência: − Ingresso rejeitado. 403 protestou: − Não! Está tudo aí: os papéis, o código de acesso, o número que me deram. É só...

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Não chegou a completar a frase quando lhe apontaram, na altura da têmpora esquerda, o cano de um fuzil. De súbito, a escolta parecia o membro solitário de um pelotão de fuzilamento. Aquela fila era o último vestígio da civilização tal como, um dia, todos no saguão a conheceram. Por que 403 insistia agora em destruí-la? Havia um ódio reservado a poucos inimigos no olhar do soldado de capacete azul. O jovem era, por um momento novamente, menos farda do que gente e preservaria a ordem naquela fila como se protegesse o seu país. 403 permanece inerte por uns dois ou três segundos, indeciso entre a expressão de novos protestos ou resignar-se à própria derrota. O fuzil, ainda apontado em sua direção, lembrou-lhe do túnel traçado sob o capacete do motociclista. Admitiu então que terminavam ali as suas cartas. Dois novos sentinelas conduziram 403 até a entrada de um longo corredor, oblíquo e estreito, que o levaria de volta à superfície e, de lá, ao que restara da cidade. 403 foi arremessado ao chão e mal se deu conta dos soldados sumindo por detrás do rangido metálico de uma espécie de escotilha. Aquele jamais fora seu número de sorte. Ele retomou então o capítulo 13 do livro que ainda tinha consigo e foi ao encontro de Wilson Harrington. Restavam poucas horas para o impacto. Já não havia mais disputas sobre as agências responsáveis pela explosão acidental das sondas exploratórias. Ninguém se interessava pelas imprecisões da escala de Turim, pelo sucesso de Rosetta no passado, ou pelo fiasco dos defletores gravitacionais há pouco tempo. Com mais de quatro quilômetros de extensão, e viajando a dezesseis quilômetros por segundo, Wilson Harrington em breve se fragmentaria contra a atmosfera numa vasta esquadrilha incandescente. O jovem de capacete azul enxugou o suor do rosto e recobrou sua posição. VZ continuava o seu trabalho. A ordem na fila permanecia intacta.

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MARCELO DE ARAÚJO é escritor e filósofo. Doutorou-se em Filosofia pela Universidade de Konstanz, Alemanha. Professor de filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Realizou pesquisa de pós-doutorado em ética na Universidade de Oxford. Publicou dois livros sobre o filósofo René Descartes, e um sobre Dom Pedro II. Publicou também diversos artigos acadêmicos nas áreas de ética, filosofia política e filosofia do direito, além de textos não acadêmicos e de ficção em revistas e jornais de ampla circulação.

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NO COPO SÍLVIO EDUARDO PARO São Paulo, SP.

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no copo todo o plasma do corpo água por seu sentido (líquido) a solidão de janelas como a molécula que vê o invisível (do copo) presa a minha retina se enclausura na imagem morta.

SÍLVIO EDUARDO PARO estudou Letras na UNESP (Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”), publicou “O pesadelo do Jovem Albert Einstein” em edição de autor e participou da coletânea “Para Conocernos Mejor Brasil – Colômbia”, lançada em ambos os países do título, da qual participam nomes como Arnaldo Antunes, Nélson Asher e Régis Bonvicino, entre outros grandes nomes da poesia brasileira.

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O RATO WAGNER BARBOSA Curitiba, PR.

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Entregues à maciez do sofá, na tranquilidade monótona do final de domingo, minha família e eu assistíamos TV. O sol a muito se escondera, deixando nossa casa envolta em pesada noite. Nada de novo podia surgir daquele dia, só esperávamos seu fim. Nem ousávamos falar uns aos outros, como se esse ato pudesse tornar mais lento o fim do dia. Olhávamos a TV sem saber ao certo o que ela nos passava, certamente algo tão vazio quanto nossas necessidades. A porta entreaberta lançava um vento cada vez menos quente, anunciando assim o passar das horas. Por essa fresta entreaberta, que até agora só havia exalado o frescor da noite, entrou rápido e veloz um vulto pardo, que se instalou na lavanderia. Fomos tirados de nosso torpor: minha esposa saltou para o sofá, meu filho, para o quarto e eu, de pé, controlava a vontade de correr. O peso da responsabilidade recaia sobre mim, olhei à mulher. Ela parecia um grande líder tirado de sua soberana preguiça. Quem, ou o que, ousava tirá-la de seu momento de quietude? Com dedo em riste, articulando muito bem as palavras, determinou a sentença: - Vá matar o rato. Caminhei à lavanderia, como se fossem meus últimos passos. Entrei, com vontade de sair, procurei algum pensamento bom que me tirasse daquele lugar “Já deve ter fugido”. - Cerque-o com o rodo, procure, vamos. Fui, querendo não ir. Por que havia de matar o rato? Que mal ele nos fez? Esse medo do desconhecido, esse medo do novo que nos tira do repouso e nos põe em pé de guerra. Uma triste guerra contra um guerreiro que não preenche a palma da mão. - Achou? Ainda não? A histeria de minha mulher trouxe-me à realidade. Como gostaria de ser eu lá em cima, protegido, dando ordens aos pequeninos, sem preocupar-me com minha segurança.

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Peguei o rodo. Com gestos indecisos comecei a fuçar os móveis. Nada eu encontrava. A cada nada, aumentava a confiança: “Certamente não foi nada”. Caminhava vitorioso, pronto a voltar ao mutismo do confortável sofá. Senti minha virilidade se sobrepondo ao rato. Quem era ele para me por medo? Um animalzinho asqueroso que se enterra no lixo? Ainda bem os cientistas encontrarem neles alguma serventia, do resto, para que existiam? E o homem? O homem tinha uma função muito bem determinada na Terra: reinar sobre as outras formas de vida. Voltava à sala como quem volta sozinho de um duelo mortal. No auge de minha autoconfiança inflável, de dentro do sapato, à minha frente, pulou o rato amedrontado. Minha esposa teve dificuldades em me tirar do quarto: - És um homem ou um rato? Como gostaria de ter a coragem de meu oponente. Trêmulo, segurei com dificuldade um copo d’água gelada que tomava aos poucos. - Vá matar o rato. A repetição da sentença tem sempre sabor de derrota... mas também de nova chance. Nova chance de mostrar quem é o homem, de quem está por cima na cadeia alimentar. Mostrar que, se preciso, poderia comer o rato, mas o contrário nunca aconteceria. Por que aquele rato não aproveitou a oportunidade para fugir? Por que foi ele enterrar-se ainda mais na lavanderia de minha casa? Ah rato, você quer mesmo um duelo? Eu aceito o desafio. Tomei novamente nas mãos o rodo. A cada passo em direção ao rato eu me apequenava. Tinha vontade de fechar os olhos, mas temia ser por ele surpreendido. - Vá homem, está entre as roupas. – Praguejava a mulher em sua muralha. Sim, era homem, o chefe da família. Se não fizesse seu trabalho,

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bem possível a mulher casar-se com o desafeto roedor e enxotar-me de casa a golpes de rodo. Fui ao encontro. Eu, branco, ele, pardo. Nós, do mesmo tamanho, decidindo nosso futuro. Fui ao cesto de roupas. Segurei firme o rodo e nele depositei a convicção de que gostaria de continuar homem. Bati de leve no cesto e, lá dentro, ele se mexeu. Bati novamente, novamente senti seu tremor. A cada batida sentia meu coração bater mais forte. Saia, saia logo. Por que não toma uma decisão? Eu já tomei a minha, vou te matar, mesmo você não tendo me feito absolutamente nada. Para garantir minha sobrevivência, preciso fazer com você uma oferenda à minha esposa. Ela precisa de suas vísceras, precisa de seu pouco sangue, precisa de sua pele dilacerada para que eu possa conservar intacta a minha. Bati novamente. Senti o corpo do rato no topo do cesto. Com uma desesperada coragem puxei com o rodo o cesto. As roupas se esparramaram à minha frente. Como uma meia marrom veio rolando o rato. O que fazer? Conceder liberdade ou aproveitar a oportunidade? Fiz o meio-termo. Com uma destreza que nem sabia que tinha, prendi o rato em baixo do rodo. Nem tão forte, que não o matasse, nem tão fraco, que não escapasse. E, perante a triste cena do ratinho mordiscando e arranhando o rodo, esvaiu-se o pouco que restava de minha coragem. Aqueles olhinhos vermelhos me constrangiam. Ele teve a oportunidade de fugir, preferiu ofertar-se a mim para que eu tomasse uma posição: tirano ou libertário? Aqueles olhos, olhos brilhantes de quem, mesmo em posição submissa, não baixa a cabeça. Ao contrário, olha pra você, te desafia: “E então?”. Apertei de leve, senti-me envergonhado vendo o rodo comprimir a barriguinha marrom. Indefeso, parecia que esmagava um bebê. Afrouxei os braços, ele quase escapou. Voltei ao impasse. Olhei bem em seus olhos. Lembrei dos versinhos infantis, nada

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inocentes: O Rato Roeu a Roupa do Rei de Roma. Que audácia, um ratinho ter a coragem de desafiar um Rei. Um Rei de tantas posses, tantas conquistas. E o que tem o rato, senão o lixo para se abrigar? O Rei ter sua túnica rasgada por esse roedorzinho de olhos vermelhos? O que é um Rei sem suas vestes reais? O que é um soberano sem seu uniforme a lhe distinguir dos súditos? O Rato desnudou o rei, tirou sua roupa e a roeu, como rói o lixo. O Rato roeu e deixou o rei nu, mostrou-o nu ao mundo, com somente as mãos a cobrir sua humanidade. Eu era o rei. O rato havia arrancado minha inútil capa e mostrado quem eu realmente era. Estava despido e entregue aos olhos e às críticas dos demais. Eu era humano, mais um entre os tantos a perambular por aí: sem coroas ou belos sapatos. Tive vergonha, mas pensei também que, como estava nu, tinha a oportunidade de renascer. Podia começar do zero e, como criança, dar os primeiros passos. No início, arrastando-me pelo chão, mas logo de pé, firme, com as solas dos pés tocando o chão quente e o olhar no horizonte em branco, novo, esperançoso. Então uma sombra passou por meus olhos. Se tentasse recomeçar corria o risco de, novamente, ter as frustrações da infância, as desilusões da adolescência, os arrependimentos de adulto. Um resmungo de minha mulher, cansada de se proteger, mostraram-me novamente diante do rato. Ele, que havia me desafiado, apresentou-se como meu libertador: dava-me nova chance. Porém, com tristeza covarde, vesti-me de luto. Melhor sofrer, esperando o fim do domingo – ou da vida – a sofrer novamente uma vida inteira. O rato pareceu ler meus olhos. Não mais se debateu, seus pequenos dentes e garras não mais arranhavam o rodo. Não mais se esforçou por viver, pois entendeu que eu também não mais me esforçava. Ao frágil som ensurdecedor dos ossinhos se partindo, eu também entreguei minha vida. WAGNER BARBOSA cursa Licenciatura em Letras-Português na Universidade Federal do Paraná (UFPR) e participa do Grupo de Escrita Criativa da UFPR.

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DIA MALDITO EM TERRA ESTRANGEIRA GUILHERME TEIXEIRA S達o Paulo, SP.

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Um vídeo no youtube mostra durante aproximadamente Quinze minutos, vento que brande folhagem vertendo Ruído de algum tipo de araucariácea que orna agora o Espaço antes branco do corpo do e-mail. Acredito que já te disse umas duas ou três ou quatro Vezes, quão belas as curvas dos seus pés são; certamente Quanto a segunda havia dúvida, que se conforma certeza Assim que minha memória alcança o dia em que disse isso A você enquanto você oferecia uma massagem e eu Refazia o seu trabalho sobre fortificações coloniais Na costa do Brasil – e que bela sintaxe a mistura do francês e Do espanhol e do português, pelos teus dedos, criavam. Clico em enviar e olho a tela e aguardo. Abaixo do espaço Antes branco do corpo do e-mail lê-se “Feliz aniversário”, Em itálico. Esta é a quarta vez que a data maldita em sua Terra estrangeira – assim você descrevera a mim o dia de Seu nascimento, e, sim, consultei o calendário – se repete Desde o ano de mil novecentos e noventa e dois. Encaro, o espaço agora mais uma vez branco do corpo Do e-mail. Me lembro da primeira vez em que te disse: você Usava meias com estampas de cavalos. Ainda guardo Sua camiseta da fèdération française d’equitation.

GUILHERME TEIXEIRA é um futuro linguista por formação, escreve sobre a beleza das falhas.

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ESTILHAÇO

ANA LUISA NEPOMUCENO Brasília, DF. Não era para ser assim. Era para ser doce. Depois de tantos anos com ela, pensei ter desaprendido a crueldade. Foi o que ela me disse.

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Você mudou. Eu não mudei. Você vai mudar. Eu não mudei. Não quero contar. Quero que contem por mim. Naquela manhã, eu estava sem memória. Carmem não tinha memória. Tentou inúmeras vezes recriar cada uma das cenas da noite anterior. Estávamos eu e ela. De novo, eu e ela. Era muito. Mais do que eu pude suportar. Naquela noite, quebramos o último copo da estante. Não havia mais nada para quebrar. Na casa, decadente, apenas Carmen e Helena. E o copo na estante, agora quebrado. Discutiram, naquelas três horas, durante anos. Eram tão jovens e estavam tão velhas. Carmem estava exausta. Exausta de não ser o bastante. Largou os filhos, os homens, as roupas que vestia. Tudo por Helena. Mas isto não era o bastante. Carmem não planejou. Mas, naquela noite, tudo o que ela tinha era o copo na estante e o desejo de sair dali sozinha. Foi legítima defesa. E o copo na estante, agora, era estilhaço na face de Helena. Com a ponta afiada do maior pedaço, ainda pôde se redimir, rasgando a veia que pulsava naquele delicado pescoço que beijara horas antes. Por amor, Carmem poupou Helena da angústia do escorrer do sangue em seus cabelos que acabara de lavar. Sentou-se ao lado daquele corpo que já não mais reconhecia e, enfim, tornou-se Carmem novamente. Não olhou para trás. Eu quis olhar para trás, mas não pude. Nada ali me pertencia. O que eu tinha, agora, era um carro velho e uma estrada de possibilidades. Carmem não sabia para onde ir. Mas o destino não a interessava. Apenas dirigia, cantarolando a música que conduzia seus sonhos. Não sabia que seria tão fácil esquecer um amor. Num minuto se ama, no outro não se sabe mais quem se ama. A placa na estrada anunciaria o que estava por vir. Mas o tocar do telefone foi tudo o que ela pôde perceber. Não era ninguém. Mas o telefone tocava, tocava. E o gesto para atendê-lo foi o golpe para que os sonhos fossem novamente esquecidos. Queria ter atropelado a lembrança. Mas atropelou a falta dela. Carmem para o carro. Naquele momento, volta a lembrar de

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quem amava. O sangue ainda escorre pelos cabelos limpos de Helena. Aqueles cabelos guardados sempre num coque alto, desajeitado. Alguns poucos fios caiam-lhe sobre os ombros. Eram lindos. Eu gostava de despenteá-los com os dedos, com a boca, com as coxas. Eu já a odiava ali. E, novamente, parece-me fácil esquecer o amor. Coloco os óculos escuros, caídos com a violência da lembrança. Carmem liga novamente o carro e sai, oscilando entre o que deseja para si e o que dela não consegue apagar. Aquela música já não é a mesma. Carmem já não é a mesma. Ela agora é silêncio. Aqueles óculos também não são os mesmos. As lentes não mais a cegam. Inúteis, então. Carmem segue, mas não para longe. Não há distância maior que ela possa percorrer. O destino, que não a interessa, ela conhece. Sabe que é o regresso. Para em um cruzamento, procurando a saída. Caminha em todos os sentidos. Carmem não sai do lugar. Deseja morrer, mas é incapaz de tirar a vida de alguém que acaba de nascer. Uma nova criatura nascida com a história já contada. Será possível esquecer? Carmem chora com o chorar do dia.

ANA LUISA NEPOMUCENO é brasiliense, pedagoga e sempre carregou, em si, o gosto pela leitura e o desejo pela escrita. Neste ano, decidiu fazer uma releitura de suas produções e tentar recriar sua vida, aproximando-se, enfim, daquilo que ama.

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NEGAÇÃO MORPHINE EPIPHANY São Paulo, SP.

Meu sonífero prometeu ficar Em uma poeira lacônica Viu um jovem louco cair nos braços de um penhasco Incoerente vasculhava o deserto Inconsciente inundava a pia Inconsequente encarou o incerto Seus pés já exaustos de peregrinação

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Ou da glória do estrangeiro Criavam bolhas e desconforto Em frívolos gemidos Erguia a taça da desforra Cansaço e doença o executavam Aniquilou o inconstante pulou em alguma nuvem seguiu cego Adentrou vários reinos E se retirou.

CRISTIANE VIEIRA DE FARIAS nasceu em São Paulo, é formada em Produção de Música Eletrônica na Universidade Anhembi Morumbi. Escreve poesia, conto, crônica e roteiros de audiovisual. Integra o Coletivo MINQ- Música Independente da Quebrada. Participou dos seguintes curtas: Obscuro (2007), Privado(2008), O dia que a floresta parou(2009), Eu quero,eu posso, eu vou consumir(2009) e Boggy(2012)

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SINTOMAS DOUGLAS SIQUEIRA São Paulo, SP.

Ressecamento dos olhos. Não leitura de frequências da luz. Arco-íris em tons de cinza. Ansiedade extrema. Excesso de possibilidades de deslocamento. Impossibilidade de se deslocar. Nostalgia aguda. Intersecção entre melodias e células. Vício imagético. Clausura em locais abertos.

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Liberdade extremada em locais fechados. Estranhamento de afetos. Sampleamento de sentimentos. Observação de memórias. Memorização de imaginações. Temporária insignificância de valores. Indiferença diante do que é comum. Rotinização de acasos. Interiorização de mistérios.

DOUGLAS SIQUEIRA é bacharel em Comunicação Social com habilitação em Midialogia pela Universidade Estadual de Campinas. Escreve roteiros para cinema, contos e poemas. Idealizador e escritor do projeto (autor ensandecido) desde 2013. Sócio-diretor da Superviver Produções Artísticas, atua também na área audiovisual como diretor e editor de curtas-metragens, videoclipes e videopoesias.

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MOVEDIÇA ALESSANDRA CAPRILES Rio de Janeiro, RJ.

Traguei a desilusão O fracasso, a derrota O desatino, a dor O temor que paralisa A estrada, a espera Ainda que remota O tremor, a ignorância Este fel amargo

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Que exala o ar que respiro Até virar neblina Esvair-se pelo ar Desentranhar do âmago Esta imensidão vazia Que me ata a razão Peno a cada passo A cada breve sopro Soluço, lacrimejo Repenso… não me acho Os gestos ficam lentos A mente mais distante Pairando sobre o pensar Incógnitas se levantam Enguem-se à minha frente E nada vejo além dos muros Concretos ensejos involuntários De desprenderem-se deste cenário Deste poço profundo e árido Quando deslizo um dos pés O outro cava mais baixo Afundando-me em mim Em minhas próprias ideias movediças Recomponho-me ao real Despeço-me deste torpe imaginário Afinal, quem creio ser? A que me devo a honra de me desvairar? Vai… apaga este vício, livra-te de ti… ALESSANDRA CAPRILES nasceu no Rio de Janeiro, é poetisa desde os 16 anos, e publica seus poemas, contos e textos mais recentes em blog pessoal. Atualmente, está na cidade do Porto, em Portugal, a estudar um período do curso de Letras na FLUP, Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

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(SEM NOME)

MAURICIO GOLDANI LIMA Novo Hamburgo, RS.

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Novo, chorei por ela. Novamente, isto é, de maneira nova, velho, por ela também chorei. E foram choros tão particulares que pareceram particulares, mas foram, de fato, tão públicos quanto algo que é público.

A noite caiu, Calada. Eu, caído na cama, tomava o “remédio” para dormir, ao invés de usar extrato natural de saliva de “cocotinha” beiçuda.

Os efeitos naturais podem variar de dentadas acidentais à gonorreia ou sífilis, mas sempre dizem que produtos naturais são melhores que os industrializados.

Aliás, já repararam na quantidade de industrias fabricando produtos naturais? Acho que não me espantaria se nascesse uma árvore que desse Doritos ou Ruffles.

Mas bem, eu ia dizer outra coisa,

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que na verdade disse, mas vocês não ouviram pois estavam lendo este poema em um lugar e tempo diferente de quando o estava escrevendo, o estou escrevendo, não mais, no futuro onde este presente será passado.

Porra! Como eu divago! Eu ia falar das lágrimas que são uivos que não caem na lua do meu rosto, eu estava tão indisposto quando o disse. E o que está dito não está dito, foi dito, considerando o fato que todo passado é passado, o que é bem estranho, visto que o passado não é, não está no presente e sim no passado. Então ele não é, ele foi. Mas se digo que foi passado, parece que ele não é mais passado, quando na verdade é o contrário,

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é cada vez mais passado.

Pesadas pegadas de passos passados paradas no peito, inexpressivas Só os passos em si expressam a pressa do passo natural.

Se um poeta enlouquecer no meio de uma floresta e ninguém ver, ele realmente fica louco? Se eu me matar no meio da floresta e ninguém ver, eu realmente morro? Se eu cagar em um morro e ninguém me limpar, eu preciso me limpar ou eu não caguei?

O vento da noite sopra o som de algo. Nada cai no meio da floresta. Ninguém ouve.

MAURICIO GOLDANI LIMA é gaúcho da cidade de Novo Hamburgo. Professor, músico e poeta, amante e incentivador das artes. Escreve desde 2007, mas participa de publicações em revistas gaúchas desde 2014. No momento, trabalha para o lançamento de seu primeiro livro de poesias.

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PLANIFICAÇÃO DO MAR

HEITOR DE LIMA Fortaleza, CE.

A Georg Trakl

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Ofusco-me no Vento em letras de ferrugem Enquanto a tarde passa em verdes nuvens ocas, Impressas à Canção das Náiades nas tocas Do ocaso entre o carmim celeste e uma penugem De Sono redentor. Na maré surda mugem Os Cacos da unidade: espaços entre a doca De marfim onde um barco esguio se desloca Em tridentes de pó. Sobre o marulho surgem Bocas de espuma, véus salgados nas madeixas De minério solar vestindo um Fogo morto Que ondeia azul no cais. Em taciturno horto Marítimo, no branco, olvidada na areia Vespertina, a sonora e reticente Ceia De Íris, e nada mais sustenta alguma queixa.

HEITOR DE LIMA rabisca em versos desde os 9 anos de idade, espera que o mundo escolha a poesia, mesmo que inconsciente. Vive a heterogeneidade de ser quem é.

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PARA MEU AMIGO CORVO

SAT AM Curitiba, PR.

Eis que aqui estou! No escuro de noites vazias frias, A alma posta em bandejas de cristal, Os pensamentos vagando por abismos cósmicos de horrores ancestrais. A vitrola toca novamente, A cantata maligna da noite profunda. À janela o pássaro grita!

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Suas penas arrancadas e jogadas na grama, Como o sangue de uma virgem morta pendurada nos galhos. Beijo a dama de cabelos vermelhos nos lábios, E deitada em sua cama de sonhos ela me conta seus medos, Tenebruras antigas de um mundo antes do mundo, Quando os antigos por éons subjugaram nosso modo de ser. E enquanto o cigarro queima, Os pecados mundanos vindo à tona, Ela recita em meus ouvidos suas últimas palavras! Seus fios de doçura rubra tensos, O estalido dos vidros da sala, O voo dentro do cômodo... Nunca mais... Quem sabe Poe não imaginou tal cena! Quem sabe seu negro gato lhe contou o destino que me fora reservado! Quem sabe, de dimensões distantes, Azathoth não lhe revelou tal epopeia cínica! Aqui em meus braços a morte dança, E sacode e grita. Os olhos já revirados, a lágrima que corre. O baque contra o colchão...

SAT AM é estudante de Letras-Japonês da Universidade Federal do Paraná. Gosta de escrever textos como a temática dos sentimentos de ódio, raiva, terror e luxúria.

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AMOR E FÉ EDSON AMARO São Gonçalo, RJ.

“Ah! Podem voar mundos, morrer astros, Que tu és como Deus: Princípio e Fim!...” Florbela Espanca Que importa que padeça uma nação Sendo o esplendor do príncipe mantido? Que importa o sofrimento de Abraão Desde que seu deus sinta-se servido?

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A Gaspara importava a solidão Sendo seu conde em versos aplaudido? Não abraçou Liú sua perdição P’ra que Calaf em trono fosse erguido? O amor é uma fé não menos louca Por contemplar na terra um outro deus E da razão ração nos dar tão pouca. Para isto servirão os versos meus: Celebrar a glória de um rapaz Cuja pele tocar pude jamais.

EDSON AMARO é professor de Língua Portuguesa na rede pública do Rio de Janeiro. É ator, poeta e tradutor. Sua tradução do romance "Valperga", de Mary Shelley, foi publicado pela editora Buriti.

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SOMBRA PERDIDA SANDRA EVELINE Algarve, Portugal. A Fernando Pessoa Imenso Espelho, eu não consigo ver em ti O reflexo trigueiro de minha imagem inteira. Intenso é o teu brilho que o sol poente ofusca. Deixas-me cega e me cega [do meu corpo A sombra. Imensidão Infinita – Espelho Meu –

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Inspiras os Poetas e as Sereias, Moldas as Pedras e as Areias, Cativas os sonhos das ilhas desérticas. Leva para bem longe as súplicas e em teus Ouvidos, guarda os segredos, sequestra Os vivos homens – lar de seres distintos. Dissimula as dores, desperta Os amores. Impõe respeito – Imensidão Infinita. Majestade imperiosa que a copiosa luz alcança, Em ti há vida – a mim – comunicas. Tranquilizas-me a alma pequenina e torta, Apoderas-te da minha’Voz – Pessoa Pluraleignota – harmoniosamente genial, Mas morta. Vem, dou-te acesso à minha porta. Mudarei por certo se a ti enfrentar… Sou Música intangívelefrágil, tu és o Mar, Imenso Espelho – sou tua’outra – Vivo Em tua’outra [Sombra Perdida. SANDRA EVELINE M. L. LUZ DE ALMEIDA é cearense e tem cidadania portuguesa. É Licenciada em Letras Vernáculas e respetivas Literaturas de Língua Portuguesa pela UCSAL – Pontifícia Universidade Católica do Salvador – e é Mestre em Literatura de Língua Portuguesa: Investigação e Ensino pela FLUC – Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Amante das Artes, a autora segue com a Literatura dando prosseguimento aos estudos em Portugal, onde vive atualmente (entre Algarve e Lisboa) a tentar conciliar suas pesquisas pessoanas a outras paixões. Foi classificada para o Prêmio Poetize 2013, com a poesia intitulada «Arte Seravat» publicada na Antologia Poética – Prêmio Poetize 2013, e foi classificada como finalista no Concurso Internacional, Concurso de Poesia Contemporânea 2014 com a poesia «Paraíba Turmalina» publicada na Antologia Poética, Concurso de Poesia Contemporânea 2014. Ambos os eventos realizados no Brasil.

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Edição e Revisão: Morgana Rech e Tânia Ardito

Recepção de originais: CONTATO.SUBVERSA@GMAIL.COM

Colaboração especial: SÍLVIA CARREIRA silviamoutinhocarreira@gmail.com

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