Revista Subversa Volume 2 | n.º 5 | mar 2015

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SUBVERSA SUB 13 V. 2 | N.º 5 | Março de 2015

EDIÇÃO ILUSTRADA | KAROLINA WHO ERIC COSTA | ROBERTA SANTIAGO | DANIEL WASHOWICZ | FREDERICO ROCHA | FERNANDO CARVALHO | JUKKA ANDRADE | JORGE PEREIRA MAURICIO GOLDANI LIMA | NATHALIA AFFEL | PEDRO PAULO DE ARAÚJO JÚNIOR | JOSÉ EUGÊNIO BORGES DE ALMEIDA | JOSÉ VIEIRA


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Subversa | literatura luso-brasileira |

V. 2 | n.º 5

© originalmente publicado em 16 de Março de 2015 sob o título de Subversa ©

Edição e Revisão: Morgana Rech e Tânia Ardito

Ilustrações: Karolina Who

https://www.behance.net/karolinawho karolinawho@gmail.com

Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados como autores desta obra. Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos textos ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem com a realidade.


SUBVERSA SUB 13 V. 2 | N.º 5 | MARÇO DE 2015

ROCHA OLIVEIRA | © A KATANA PRATEADA | 5 MAURICIO LIMA | © NOVO TELL|13 ERIC COSTA | © MONÓLOGO DA TURBULÊNCIA | 18 FERNANDO CARVALHO | © CÁRCERE | 21 JUKKA ANDRADE | © CONVERSA DE DESJEJUM | 23 PEDRO PAULO DE ARAÚJO Jr. | © PORQUE NÃO FUI PRA LÁ NÃO | 30 JORGE PEREIRA |© ESTAS VEIAS QUE NUNCA FECHAM| 32 ROBERTA SANTIAGO | © DE UM PULSAR DESBOTADO | 36 NATHALIA AFFEL | ODEIO SUPORTE PARA COPOS | 38 DANIEL WASHOWICZ | © A ÚLTIMA OBRA | 43 ESPECIAIS JOSÉ EUGÊNIO BORGES DE ALMEIDA | © CARTA ESCONDIDA | 46 JOSÉ VIEIRA | © O VELHO SEBASTIÃO | 50

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EDITORIAL E aqui estamos, diante de mais uma Subversa, que vem delinear mais um pouco, entre nós, o seu papel de revista literária. Esta é a primeira da nova forma de numerar cada SUB. A partir de hoje, com a complexidade que a revista já atingiu, o antigo número de edição atenderá, com muito prazer, à exigência de uma nova forma de nomear a sua periodicidade. Afinal, não se trata apenas de apostar na expressão contemporânea da literatura atual, mas questionar este espaço dentro da sociedade. A Subversa, feliz, encontrou os seus leitores. E, juntos, comprovamos e cultivamos, diariamente, a existência deste espaço. Este é um reflexo natural, que só é possível com o apoio e o envolvimento de todos. Em primeiro lugar, sempre, dos autores que confiam na revista para a divulgação dos seus trabalhos e, consequentemente, na nossa capacidade avaliativa para tal. Muito mais por este motivo do que pela suposta ideia de que vamos classificar um texto como bom ou ruim, é que temos prazer em manifestar uma pequena opinião (ainda que muito breve e geral) sobre aquilo que, com gosto, lemos. É corresponder minimamente à confiança depositada em nós e na linha editorial da Subversa. Nesta edição, contamos com as imagens originalíssimas da Karolina Who, de São Paulo, que faz um trabalho super diferente de colagens digitais inspiradas em glitch art. Desejamos a todos uma boa viagem por estas páginas!

As editoras.

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© KAROLINA WHO -

A KATANA PRATEADA Rocha Oliveira São Gonçalo, RJ O mar sempre o encantou sobremaneira. Desde o influxo amniótico, ao apreciar, já no refluxo da madureza, as ondas suicidarem em plena arrebentação. Gilvan ora espia a orla da janela; espraiando ora os olhos pela areia, ora a derivar o olhar em alto mar. Por amar o mar, dinheiro e a boa carreira, achou por bem sonhar meter-se na marinha: via-se, quem sabe, o almirante. E, em não tendo vocação pro belicismo, cortejou a ideia de abraçar a marinha mercante. Porém aqui está o Gilvan, na Alfândega do Porto de Santos... Que um sonho pode mesmo ir a pique, sem, no entanto, fazer náufrago o sonhador. Gilvan achou na alfândega uma ilha, e a “terra à vista!” ora o faz mirar o mar. A despachar alguns papéis de embargo, em verdade pensa em chopes e em torresmos. Porém os ossos do ofício são amargos; mais que o agro

da cerveja

e, evidente, bem

menos

que o amargor do

desemprego... Recusara hoje mesmo um suborno, que a propina não lhe

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paga o salário e nem há de comprar o seu caráter. Em contrapartida, a sua esposa o intimara a um jantar. Jantar no qual se recusava a “bater ponto”, e como fosse um cálice de agrura. Que não mereceria – assim entende – compartir a mesa com os Buarque, e assim rachar a conta de sua própria indigestão. A mulher do “amigo” fora quem os convidou, que o outro, decerto, era incapaz de tal convite. E a esposa até simpatizava com a outra, porém os dois (e se assim lhes permitisse a Sociedade) trocariam todo e qualquer prato belo ou chique por uma porção de mútua antropofagia. Gilvan, pois, cotejava entre o chá de boldo e os dissabores de u'a mulher contrariada... — O Tavares, disse ela, pode até não ser lá um grande amigo, mas sempre que precisamos de verdade, foi com os dois que pudemos contar. Onde estava o seu irmão e a minha família? que, aliás, se mal tem onde cair morta, tem também a boa vontade d’um carrasco. Gilvan não tendo mais que argumentar, disse-lhe: Hum. Que assim fala a eloquência de quem, em não querendo consentir, diz algo mais; e mesmo que este algo seja nada. Era inevitável ao aduaneiro não deixar de ruminar sobre um e outro empréstimo que lhe fora concedido pelo “amigo”; cujos quais, e para todos os efeitos, lhes valeram mais uns meses de um bom teto e a escusa à usura de um mau fiador. E muito embora o Tavares só o fizesse com o fito de aparentar solicitude em se fazer mui bem solicitado... Demais que lhe era lisonjeira – se diga mais – a inconfessa inveja do amigo. Era o gosto da desventura alheia – e pois no presto amparo dado ao “ombro amigo”. Tavares, malgrado a profissão avessa, – era bacharel e não doutor –, possuía em si a alma do bom médico: que em amar demasiado o seu ofício, bem lá no fundo ama, no enfermo, a enfermidade. E este nosso bom alfandegário, longe de ser cobaia humana, é, outrossim, impaciente; e tamborila sobre a mesa o agastamento: maestro a reger horas de tédio, tem, em todo arruído, elegia. Gilvan faz de sua caneta u'a batuta, e as horas, em u'a desatenta sonolência, seguem sempre mornas e maçadas. Vê ao longe um cargueiro em cujo casco lê

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um nome ao qual distingue ser Yamaguchi. Embora ignorando sua origem, este nome o remete ao embargo – por ele autenticado – a uma carga de salmões e outros mais frutos do mar. E por algum motivo igualmente ignorado, o aduaneiro sente na barriga um frio súbito... Regelaram-se-lhe as tripas; e por quê? O Gilvan não saberia nos dizer. Riu-se apenas do sintoma e, recostado ao espaldar de sua cadeira, derreou sua cabeça na parede. Perdeu-se a olhar pro teto, bastante entretido com o forro em branco-pérola. Ao centro deste mesmo teto pende uma antiga luminária, ainda da década de 30, como fosse um pêndulo imóvel, a marcar, com a precisão d’um Swatch 1, a cruel inalterabilidade do marasmo. Num relance, e como em um lapso de tempo, Gilvan vê tudo escurecer ante os seus olhos! Estremece. Freme em sobressalto. Sente encapuzar-se de inopino! também, se amordaçar num só instante. Não houve tempo sequer de gritar. Se debate a procurar desvencilhar-se. E nada... Todo esforço é inútil quando não se é tão forte quanto três ou quatro homens a opor-lhe impetuosa resistência. E o Gilvan não é robusto e nem franzino, porém se gaba de dar boas braçadas. Ouve então um intrincado burburinho, que se faz ouvir à sua volta. Parecelhe, pois, uma incendida discussão entre quatro ou mais indivíduos japoneses. O nosso aduaneiro sente regelar-se a espinha, e um temor horrendo do acaso: o receio a um só tempo do perigo, e, por outro lado, do improvável. Por um momento acha mesmo ser piada; decerto uma piada de mau gosto; alguma peça pregada, a contragosto, pelos seus colegas de trabalho. Todavia estranha muito não ouvir, além das vozes indistintas, nenhum riso sequer, uma risada. Ninguém a lhe acudir; nada de nada... Ouve só o doce sussurrar do mar sereno. E isto enquanto vê-se coagido a levantar-se da cadeira com violência, e impelido a deixar seu gabinete aos empurrões. E, aos trambolhões, Gilvan segue a andar a passos trôpegos rumo à “sabe lá pra onde”. Uma das vozes parece dar, então, voz de comando. Fosse o líder ou 1

Empresa de relógios suíços.

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algum capanga mais experiente. As outras, não obstante, parecem anuir à imperativa. E assim, volvendo ora os passos à direita, igualmente forçam a fazê-lo o nosso amigo; e, pois, senão sempre adiante, ora à direita ora à esquerda. Sempre cosido o Gilvan a dois dos homens, atadas suas mãos por

u'a

corda,

segue

puxado

pelos

braços

e

empurrado,

concomitantemente, pelas costas. O aduaneiro, atordoado, mal pode acabar de crer no que lhe ocorre. Entretanto já não mais crê numa suposta brincadeira. Ninguém leva um trote tão a sério! Por outro lado, como ninguém os pôde ver? e então lhes obstar ou lhes deter? E entre uma e outra conjectura, – suposições de sequestro e assassinato –, sente, por fim, conquistar o pátio externo. A brisa marinha o consola, e ainda que o frio os açoite. Gilvan é agora arrastado, degraus abaixo, por uma pequena escadaria. Seria, ao que parece, – é-lhe evidente –, o estreito cais da alfândega do porto. Sente já a oscilação do píer a ondear sob seus pés; e, a maresia a escumar o seu odor, converte-se no ópio que o Gilvan jamais sequer sonhou tragar. Mas bem longe de fazer-se algo eufórico, o aduaneiro faz-se é de horror, eletrizado. E sua, freme e arfa de pavor; tremendo as pernas feito... vara verde? Vá! que seja “vara verde”; vez que não me caberia analogia menos ofensiva à ilha nipônica. E o nosso amigo sabe tanto do Japão quanto alguém que só assistiu a um longa sobre a máfia japonesa... Mal saberia a que compare as próprias pernas. É enfiado, pois, embarcação adentro. Tão logo esta arranca em disparada. E por sinal há que notar que é veloz. O sacolejar da nau se lho mareia, aliado ao seu extremo nervosismo. Porém Gilvan, já acostumado a velejar, exime-se logo do engulho; restando-lhe engolir em seco. O aduaneiro já então teme pela morte, em perdendo as esperanças de viver. Fácil é associar este aperto ao embargo expedido horas atrás. O nosso amigo, um funcionário exemplar, a despeito de tacharem-no “caxias”, sempre fez cumprir a lei e as diretrizes de seu cargo. E muito embora não vestisse a carapuça de algum exímio escrupuloso, nem por isso resvalou ética afora.

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Mas vede ora o nosso Gilvan Mendes... Este, que não vê nada de nada... Encapuzado, amedrontado e amordaçado; atado qual um animal de corte. Arrepende-se, – verdade seja dita –, de ter preterido a peita à consciência. Que “passassem” lá uns peixinhos de nada! umas algas que fossem e, quem sabe, mesmo uma e outra bactéria... Que teria ele que ver com a infecção intestinal d’algum pechincheiro de sushis? Tais ideias iam e vinham quais marés, pois logo o aduaneiro repensava o seu próprio pensamento, confrontado a razão com a emoção a remoer seus atos frente à sina. Mas em pensar neste seu fado, exasperou-se, e pôs-se a urrar em desespero. Para a ira dos seus raptores, que o quiseram calar com truculência. Gilvan sente um golpe seco no estômago e um, subsequente, em sua cabeça. Se imagina a receber duas coronhadas. Teme que lhe abriram o toitiço, e se põe na terrível expectância de sentir lhe escorrer o sangue vivo. — Dou-lhes tudo o que quiserem! – exclamou ele; ou ao menos supusera assim dizer. Mas com a boca amordaçada nada disse, senão balbuciou algo inda mais ininteligível que o idioma de seus interlocutores. Entretanto ainda assim quis muito completar o seu apelo, ao falar algo como: — “Inhauma inhu inhonhô!!!” O que ele quis dizer não irei falar, e para não tirar o gosto ao ofício de sua imaginação, caro leitor. Não demos azo à indolência... Porém o líder, pois, pôs-se a ralhar com energia: — Damare! Damare! (damaré) Considerando-se a ignorância do amigo, que não pôde alcançar a acepção e tão menos o significado da palavra, digamos tão-só tê-la adivinhado quando a levar outra “coronhada”... Calou-se então de todo e só chorava. Poucos minutos se passaram e o nosso alfandegário sente aportar, por fim, a embarcação. Travam-lhe do braço e conduzem-no hora ao longo d’outro píer. Gilvan segue a deixar-se conduzir, já sem opor nenhuma resistência, e pelo que parece um avarandado; um longo e

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estreito avarandado. Pensa agora em sua mulher e no seu filho, aos quais houvera prometido voltar cedo. E verte hora então um choro acerbo... Já não pensa em chopes, nem saquês; lhe bastaria um mero copo d’água tendo aqueles dois por companhia. Demais que para escapar à do Tavares não valeria a pena o seu velório. Porém o Gilvan considerou a alternativa... — Kutsuwonugu! (kutsuwonugú) Assim dizem os homens com aspereza, enquanto – por fazer valer a tradição – forçam-no a descalçar os pés. O aduaneiro adentra, ainda encapuzado, o que se mostra ser um edifício. De meias, e embora aturdido, sente sob os pés o assoalho – um soalho liso e polido. Caminha entre o que parecem corredores, até por fim ser inserido num salão; e assim lhe assevera o ar corrente. Os homens o obrigam a ajoelhar-se, forçando o seu tronco para baixo e dando-lhe um chute nos joelhos (na parte posterior dos mesmos). Destarte o amigo cai inapelavelmente de joelhos... A dor que sentira fora tal que julgou esfaceladas suas rótulas. Gilvan urra de dor e, todavia, engole a muito custo o seu lamento. De golpe, enfim, arrancam-lhe o capuz. Gilvan, por dor tamanha inda alheado, toma o ofuscar da claridade pela vaga ilusão de ver estrelas. Firmada já a visão, o que vê ao seu redor é sem dúvida nenhuma u'a vasta sala oriental, feita bem ao estilo japonês. Do chão ao teto, – as paredes de permeio –, tudo em madeira, tatami e papel. Aparte a situação adversa, Gilvan sente uma estranha quietude. E quem sabe a explicasse o ambiente, ou ainda a explique o Feng Shui. Mas, certo é que esta breve calmaria, encrespar-se-ia em tormenta... — Inhãnhi inháinhe, exclama afoito o nosso amigo, inhaô! – era um apelo. À sua volta, quatro homens, outros mais à sua frente. Defronte a si, e bem ao centro da sala, está um senhor de meia-idade; sentado imponentemente em uma cadeira; as cãs lhe acentuando a altivez. Vê-se bem que é o mandante, o mandachuva... Olha para o alfandegário com desprezo, doando-lhe um sutil riso sardônico. O olhar do homem é frio e

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penetrante. E o nosso amigo sua e estremece. Teria assim Perseu fremido ante a Medusa? Não se sabe. Porém, o Gilvan, petrificado, decerto quereria parecer-lhes invisível, para assim esvanecer mansão afora. Mas, reparando bem nos homens, – japoneses todos, ou, orientais ao menos –, todos tendo boa compleição, o corpo recoberto por tatuagens; em não sendo Yakuza2, caratecas... Um só bastava a lhe frustrar de todo a fuga. O pressuposto líder se dirige respeitosamente ao mandachuva, que parece responder com aprovação. Este último, voltando-se então pro aduaneiro, diz-lhe algo em tom malicioso, que ele não entende todavia. De repente, a dar um tapa pois no braço da cadeira, ergue-se a altear o tom de voz. E berra e gesticula a babar-se. Célere e sôfrego, caminha em direção ao nosso amigo, que nada faz senão mirá-lo abismado. O outro berra, – e ao que é evidente –, a pragalhar e a fazer-lhe ameaças; cobrindo-o, outrossim, de perdigotos. Gilvan, em desespero, apela aos prantos pela sua compaixão. E o homem faz-lhe um gesto ríspido como a exigir que se calasse. E sem mais, a enrolar as mangas da camisa, – exibindo assim também suas tatuagens –, dá um brado a ecoar pelo recinto: — Nakamoto!!! O nosso amigo freme, assustado, e arregala os olhos com espanto. Abrindo uma porta corrediça, à lateral esquerda do salão, adentra – a pisar duro, a passos rijos – nada menos que um bom e velho samurai... Sim! paramentado a rigor! O Gilvan não sabe o que pensar. Que faz ali este guerreiro à moda antiga!? Porém não houvera ensejo de juízos. Aquele, que além de duas espadas postas à cintura, trazia outra mais em punho, tão logo a ofereceu ao mandachuva. Ofertou-a com mesuras de um súdito

frente

ao

seu

imperador:

postou-se

de

joelhos,

baixando

respeitosamente a cabeça, estendidos os braços com decoro; a espada posta em transversal. O aduaneiro olha de esguelha para a arma, que reluz sob o brilho das lanternas; um brilho assim argênteo e refulgente; e por um momento fez-se fascinado. Bela, toda ela feita em prata, desde a 2

Membros das tradicionais organizações criminosas japonesas.

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empunhadura à bainha. Ora, exceto – é claro – a sua lâmina; esta que, de golpe, logo emerge, a desembainhar-se pelo chefe. Ele a empunha com arte e maestria. Ergue-a bem alto, na vertical. Gilvan, já a abdicar da vida, fecha os olhos num reflexo involuntário. Era tentar amenizar a sua dor, e pelo ignorar da punição. O que os olhos não veem... No entanto, antes de cerrar de todo as pálpebras, Gilvan vê da lâmina um lampejo, um clarão como a cortar suas pupilas. E tão fugaz quanto o clarão, moveu-se velozmente o mandachuva, postando-se imediatamente à sua direita. Solta então um grito enraivecido! O alfandegário encomenda pois aos céus a sua alma, e a pedir também a proteção dos seus. E solta mais um grito o mandachuva! O nosso amigo, em pensamento, revisita a sua família inda outra vez; em cada lembrança que lhe acode, desde a mais remota à derradeira. Faz descer o sabre o Yakuza. Gilvan sente, alfim, o gume da espada... O nosso amigo, por um breve instante, – tendo pois um olho entreaberto –, vê pender de lado a sua cabeça. Vê-se, enfim, em um recinto em branco-pérola... Desperta em sobressalto – um pesadelo! Fecha a boca; abre os olhos; seca-se das babas. Uma dor horrenda no pescoço! Leva a mão ao mesmo; espreguiça a alongar-se; dá meia-volta com a cabeça a relaxá-lo. Ouve um murmurar na sala ao lado. Atila a audição estonteada: confabulam entre si a sua lamúria alguns dos coreanos embargados... Gilvan relembra o longa ao qual assistiu. Ri-se hora do sonho e do assombro. Opta por torresmos e cervejas. E no cargueiro lê-se, sim, Young-Chin...

FREDERICO ROCHA é romancista, contista e poeta. Inspirado especialmente em obras clássicas, particularmente em Camões e Machado de Assis. Escreveu uma obra de cunho místico-filosófico intitulada Das Contradições à Razão, a coletânea de sonetos Como Nasce um Poeta, uma seleção de contos sob o título d'Outros Rasgos. Está em fase de conclusão de um livro de poemas e outro de microcontos, No momento, além de contos eventuais, trabalha, também, em três romances.

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© KAROLINA WHO

NOVO TELL Mauricio Lima Novo Hamburgo, RS

Engarrafamento de sentimentos na estrada em reforma para o hotel das formas das coisas deformadas que chamamos de coisas. Atrasados, estressados, para trás, todos chegam uniformemente individuais no inferno dos pecados capitais condenados por um céu artificial

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de seres superiores que são os mentores mentolados que engolimos como pastilhas. E a matilha de cordeiros raivosos, rancorosos, resignados, irresolutos, onde reza o luto que a lenda atéia lutou para haver onde a alcatéia de cordeiros para, a ver o que quer que os que querem queiram que o que é que eu ia dizer mesmo?? Pois o engarrafamento de pensamentos na BR dos meus estados desunidos europeus jaz queimando aziático no colo do meu esôfago como um abacaxi que não posso pagar, logo jazo devido, deslogo...

DIZ LOGO!!

Desligo...

Escuro é o engarrafamento de minhas frustrações nesta fábrica abandonada, onde o bando de donos é Nada. Agarro com medo e desdém o estofamento do meu carro e olho cedo para além da janela do hotel.

Oh, tell me what you see!!

Eu tussi e vi outras pessoas tossindo em silêncio, em um negro e lento movimento, e tudo pareceu desacelerado, dilacerado, www.CANALSUBVERSA.com

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um desalento! Todos lá sentados sem cabimento em seus aquis, como zumbis ridículos aprisionados em seus cubículos, hipnotizados pela tela de seus laptops, que nada continham além de uma luz artificial iluminando a escuridão insubstancial de cada cela. E cancela a noite de sono de quem é que não dormi, pois fiquei como um zumbi olhando-as.

Ali...

Não sei se acordei. Abri o laptop do meu coração, não tinha bateria. Se eu tivesse força até bateria nele até ligar, mas nem estou lá, e também nem ligo.

Ex-tou em todo lodo pingando lentamente do rodo parado do tempo no ralo estagnado do Nada. A gente nada, Nada, e afunda. E MEU DEUS!!!!

O que foi?! O que foi?! Por que tão triste?

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Tão Carrancudo?

É o meu carro que não anda, a dor que tu não viu, o telefone que não sai do mudo, a rua que não acho, a guria que me faz de capacho, e eu que não me mudo!

É quase tudo!

E a pilha de carros vai se acumulando horizontalmente, assim como os corpos nas ruas, mas ninguém percebe, pois é sempre em lugares diferentes, em dias diferentes, com alguém diferente. É sempre diferente e diferente é sempre igual que se fosse igual seria diferente, mas já não é diferente?!

É pouco alarde para um saber tarde, tardio, vadio, que não chega...

E CHEGA!

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É tanta certeza até na dúvida embebida de racionalizações duvidosamente obtidas, que tenho vontade de chamar “quarto” de “vaca”, “pizza” de “abajur”, você de Saidaqui, eu de Jafui Javou de Javouir Nuncaforense.

Pense: O que é o que é, é uma coisa que não é todas as coisas que não a são? Ou inverta a charada. Aí encontrarás o propósito da vida, que é roubar um rolo de papel higiênico, ter uma diarréia e usar dois rolos para se limpar, e nada estar conectado a nada.

Mas não há figuras de nada.

MAURICIO GOLDANI LIMA é gaúcho da cidade de Novo Hamburgo. Professor, músico e poeta, amante e incentivador das artes. Escreve desde 2007, mas participa de publicações em revistas gaúchas desde 2014. No momento, trabalha para o lançamento de seu primeiro livro de poesias.

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© KAROLINA WHO

MONÓLOGO DA TURBULÊNCIA Eric Costa Currais Novos, RN Não há tranquilidade a 10.000 metros. Diria eu, em mais uma inspiração profunda, que tenho mais tempo pensando, conjecturando e comparando riscos que sequer conheço do que tempo de viagem propriamente dita. Sentir com inteligência e pensar com emoção? Mantra para os de pés firmes nos chão. Mantra que se desfaz na extremidade de

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condições. Súbito, somos seres completamente indefesos em uma cápsula que luta para não sair planando ao simples sabor do vento. Há uma velha tendência – infinita, talvez - de nos preocuparmos com aquilo que foge a nosso alcance. De fazer do imponderável motivo de suspiros, suor e até tremores quando sobre ele nada podemos fazer. Procurássemos o sentido das coisas como alguém em um voo turbulento tenta explicar cada aceleração da turbina ou balançar do veículo compreenderíamos o nosso redor de forma muito mais plena. Discurso alongado. Como sai texto de mãos nervosas com duas horas restantes de voo sem qualquer previsão de céu de brigadeiro sobre nós? Não sei. Talvez seja a necessidade de expressão. Procurar um caminho alternativo em meio ao sentimento e lugar comum talvez não pareça o mais lógico, mas talvez o mais sincero. Meramente humano. Dadas as guerras, o humano buscou o escapismo nos séculos passados. Dado um grande conflito de ansiedade a dez mil metros, alguém pode fazer mais do mesmo. De conflito de nações a conflito contra a insegurança da própria criação; de poesias românticas a palavras banais em redes sociais. Os tempos mudam, a fragilidade é real e as rotas de fuga vem com um quê de surreal. A poesia é talvez aquilo de que primeiro abrimos mão, nos disse Gessinger. Ainda que entre sinais vermelhos e verdes do painel, entre atar cintos e não atar, ainda que em “modo avião”...nossa mente necessita dela . Todo lugar e todo ser é abrigo dela. Talvez por haver mais poesia na fraternidade entre medrosos ao primeiro balançar entre as nuvens do que em seis mil páginas de muitos livros por aí eu ando escrevendo por agora. Um beep há dez minutos me incomoda. Me incomoda desde o primeiro parágrafo do texto. Será uma falha da turbina? Perdemos altitude? Despressurização?

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Olho ao canto e constato: é apenas o fim da bateria do notebook. Sinal simplório, mas magnificado pelo contexto. Um som mais grave. Agora, o ronco dos vizinhos de poltrona. Eis uma saída mais fácil e quase tão poética quanto: o sono e o sonho são parte um do outro. O texto, sem contexto, agora perde o sentido. A tranquilidade reina. A fragilidade, porém, sempre existe. O beep fica mais forte. Sou obrigado a abrir mão da poesia. Será este sempre o fim do caminho das pedras? Ainda não. O pensamento é livre e os neurônios não são exército de um só. São sinfônicos e cuja música só se deve seguir. Seguir sem hesitar. Só deixamos a poesia por limitação própria. Se resistimos com a escrita defronte as turbulências, somos limitados pela baixa autonomia de uma ou outra criação. Os carcerários do pensamento são nossas próprias falhas. Amarram as mãos de cada maestro que carregamos e desafinam a sinfonia com o tilintar das chaves mentais. Aqui do alto deve ser bonito? Daí do chão deve ser muito mais legal.

ERIC DE MEDEIROS COSTA é acadêmico de Medicina da Universidade Federal do Maranhão. Vê o escapismo de seus dias, às vezes solitários, no futebol, na música, literatura e em sua própria introspecção.

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© KAROLINA WHO

CÁRCERE Fernando Carvalho Rio de Janeiro, RJ

Eu queria cantar e compor em todas as línguas, ser oriundo de todas as culturas, nunca ter sotaque e não ser turista. Ser professor de todas as artes, magias e ciências, eu queria conhecer todos, encontrar tudo, ter meninos e meninas na minha cama, ser convidado e anfitrião em todas as festas, habitar sonhos, habitar casas e habitar a rua. Mudar de lugar muito rápido,

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meditar com quem nunca precisa se mover, sumir do mundo, criar outro mundo, visitar todos os planetas e só depois visitar todos os países. Visitar todas as pessoas, colher uvas, cortar cana, caçar pra sempre um animal e nunca o achar. Quero mergulhar sem equipamento. Quero desafiar leões e depois viver com eles, quero voar no vento e vender minha alma, quero nunca ter visto alguém, quero não ser humano, quero a saudade majestosa do nada, quero ser vazio, quero viver mil anos e não ficar satisfeito, quero incorporar um deus, quero ser um deus, quero abraçar demônios e pedir que fiquem mais um pouco, quero não ter resposta pra coisa nenhuma, quero que me entenda, mas não quero que me olhe entendido. Quero me enforcar e não morrer, quero morrer ao tropeçar, quero ser burro, quero me calar, falar através de pensamentos, quero ter um filho e ser filho de alguém de novo. Quero confidenciar cartas longuíssimas, quero conhecer a China, quero nunca mais ter notícias de lá, quero não ter sorte, quero não ter nome, quero ser visto por todos os cegos, quero ser livre, quero nunca ter desejado isso, quero nunca ter existido ou ao menos, agora desaparecer.

FERNANDO S. CARVALHO é estudante na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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© KAROLINA WHO

CONVERSA DE DESJEJUM Jukka Andrade São Paulo, SP - Num gosto de preto! Num gosto!... Preto é catinguento! Cruz credo! Tem banho p’ra dá jeito na catinga deles? ‘Cê a sovaqueira de longe!... Num gosto de nordestino também não! Uns cabeça chata co’a cara de morto de fome, cara de pobre, que fala tudo errado, co’um sotaque feio. Essa raça só presta p’ra comê’ aquelas tranqueira fedorenta cheia de pimenta... bucho, calango, palma... E se juntá’ preto com nordestino é uma só sai favelado! ‘Cês acha qu’eu ia tê’ uma filha d’um favelado preto da cabeça chata? Deus me livre! Por isso qu’eu vi aquele gauchinho, parecen’o artista de televisão, co’uns olhos clarinhos, co’a branquinha e cabelinho lisinho, e já logo peguei e fiquei engravidei dele! Eu num ia querê’ que a minha filha tivesse um cabelo véio duro, de pixaim, que mais parece piaçaba grudada na cabeça! De cabelo ruim já basta o meu! Não ia passá’ o desgosto de sê’ neguinha p’ra minha filha! – disse, agitada, Fabiana.

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As três mulheres tomavam café da manhã na cozinha. Depois das palavras de Fabiana, Anastácia e Jussara ficaram caladas, um tanto inexpressivas, entreolhando-se, quase sem respirar, desacelerando gradualmente o mastigar do pão. Mas, logo depois, quando silêncio que inundou a cozinha foi diluído por uma mistura de ruidosos exteriores ao recinto no qual elas estavam, barulhos de motos, latidos e música brega, as mulheres continuaram o desjejum, enchendo a cozinha com os sons dos talheres batendo, da mastigação e dos goles café. Anastácia sorriu, um sorriso de arco reflexo para reabrir o canal de comunicação entre as três. Jussara se incomodou com o que Fabiana disse, mas não fez qualquer objeção. Jussara não se sentia confortável na situação de opositora, por isso, ela tentou mudar de assunto: - Nossa! Como esta cozinha está horrível! É tão pequena e bagunçada! Esse fogão velho, esse azulejo engordurado! A mesa capengando, a pia é pequena e baixa... Fabiana atropelou as palavras de Jussara: - Ó, Juzinha, num sei o qu’eu faria se a Katinha nascesse pretinha que nem eu. Só qu’a minha filhinha é linda! Loirinha, co’a pele branquinha igual a sua. Minha filhinha é linda, num é? - É! E graças a Deus tem saúde. – disse Anastácia, enquanto mergulhava a ponta do pedaço de pão francês dentro da xícara de café quente. Jussara bebeu um gole de café e disse, com reticência: - Sim. A Kátia é linda... mas... isso independe da cor dela, não é? Fabiana cortava um pão francês. Ela desenterrou a faca do pão e, fazendo gestos largos com a mão que segurava a faca, começou a objetar energicamente: - Deus me livre! Ainda bem qu’a minha filhinha num é encardida que nem essa molecada qu’eu vejo por aí! Uma molecada feia e suja! Quero nem qu’ela se misture co’esse pessoalzinho aí. Quem anda com preto vira preto também! E preto só se lasca! Eu trabalho duro! Limpan’o

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chão, limpan’o banheiro e cozinhan’o p’ros outro p´ra juntá’ um dinheirinho e mandá’ ela p’ra longe daqui! Aqui só tem lixo, nóia, maloqueiro, vagabundo! Nem morta vô’ deixá’ minha filhinha vivê’ o resto da vida dela aqui. Se a polícia passasse fogo nesses vagabundo, até dava p’ra ela ficá’, mas, do jeito que tá... - Fabiana, não fale assim! Você não pode desejar a morte dos outros. Isso não é cristão! – falou Anastácia, mastigando um pedaço de pão. - Você não conhece todas as pessoas daqui. Não diga que todas são ruins! – disse Jussara, desta vez, com a voz um pouco mais firme. - Ah! Conheço muita gente aqui! E quase tudo aqui, quando num vale um real, é falsa que nem nota de três. Eu vejo por aí, ouço o falatório... Qué’ um exemplo? ‘Cê não ouve dizê’ que a filha da Sebastiana é uma putona? Pois é sim! Dá p’ra todo mundo, é só chegá’ junto qu’ela dá. Vive de shortinho curtinho, vestida que nem periguete... Só falta mostrá’ a chavasca p’ra todo mundo... Com’é o nome dela?... é Jéssica? ... Ela tem a idade da minha filha! ‘Cê acha qu’eu vô’ querê’ essa vadiazinha perto da minha filha Jamais! Ela é novinha, só que trepa mais que rama de chuchu na cerca! Já deve tê’ abortado uns cinco. Nunca ninguém me, mas eu num duvido disso não! ... Fica andan’o de roupinha curtinha por aí, pedin’o p’ra sê’ estuprada! Quem que qu’é isso, gente? - Espere aí! – interrompeu, rispidamente, Jussara. – Eu uso roupas curtas e não quero que me estuprem! - ‘Cê sabe ficá’ na sua, sabe a hora de usá’ uma roupa curta, cê sabe se portá’, ‘cê é descente! Já a filha da Sebastiana é uma neguinha safada! Eu num quero minha filhinha se envolven’o co’essa gente que nem a Jéssica!... é Jéssica, né? – retrucou Fabiana. - A fama dessa menina não é das melhores, realmente, Fabiana. A Jussara tem cabeça, ela não é desmiolada, graças a Deus! Eu criei a Jussara sozinha, ela não virou uma qualquer. A mulher virtuosa sabe se

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preocupar com o que as pessoas vão dizer dela, Fabiana! A filha da Sabastiana, coitada, virou uma pessoa despudorada e imprudente! - É, Nastácia! A menina era uma gracinha, mas viu o que aconteceu? Ficou no meio desse pessoal do bairro e deu nisso. A mãe, que, diga-se de passagem, num é flor que se cheire, criou a menina dentro do bar, onde só tem coisa que não presta! Ela era a dona do bar, mas num precisava deixá’ a menina ali, no meio do pagode, nos risca-faca. No meio d’uns negão sujo, d’uns cearence feio, d’uns véio tarado feden’o a pinga... a filha dela virou piranha! E aqui só dá isso: piranha e vagabunda. Não vô’ deixá’ minha filha aqui! É só ela terminá’ a escola qu’ela vai direto p’ra os Estados Unidos. Já tá tudo certo co’um chegado meu lá de Governador Valadares. Ele vai ajudá’ a Katinha! - Fabiana, isso é perigoso! Aqui não é tão ruim assim. Você só precisa deixar a Kátia com gente direita. Não é preciso mandar a menina para outro país. O Brasil é bom, o que falta aqui é gente trabalhadora! Com essa cambada de preguiçosos este país não vai pra frente! Meu pai me falava sobre o tempo da juventude dele aqui neste bairro. Não faltava nada para a família dele, enquanto as outras famílias ficavam passando necessidade. Mas nada era de graça! Eles trabalhavam na roça o dia inteiro! – disse, orgulhosamente, Anastácia – Ficou ruim quando invadiram as terras dos chacareiros. Tudo virou favela! – lamentou Anastácia. - Ouvi dizer que as famílias eram tão pobres, mas tão pobres, que mal tinham dinheiro para comprar comida, quem dirá instrumentos para trabalhar a terra... Não dá pra fazer lavoura usando as mãos! – disse Jussara, que continuou a responder, mas a contragosto – Também soube

que

muitas

das

terras

daqui

pertenciam

a

políticos,

comendadores e desembargadores que mal vinham para cá, elas não pertenciam a chacareiros. As terras não eram utilizadas! Pô! As pessoas precisavam morar em algum lugar! Por que não deveriam ocupar as terras? Não se pode esquecer que a prefeitura expropriou os

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comendadores, mas eles receberam indenizações bem gordas. Receberam muito mais do que as terras realmente valiam... E favela não é uma coisa ruim... Eu acho a favela bonitinha. Parece um mosaico. Casas de várias cores, vários formatos, umas sobre as outras... Eu gosto. - Cruz credo! Com’é qu’alguém pode gostá’ de favela! – disse Fabiana em tom de escárnio. - Somos favelados. Moramos na favela. – respondeu, malhumorada, Jussara. - Não somos favelados! Nossas casas são bonitas! Nós somos pessoas de bem, somos pessoas distintas... E o primeiro pessoal que morou por aqui, na época do meu pai, era uma cambada de preguiçosos! Meu pai dizia que que só tinham compromisso sério com a garrafa e com a farra!... Ao menos, quando eu era pequena, moravam longe da nossa casa. Agora não tem como fugir. Depois que o meu pai foi para o interior, e eu herdei a casa, vieram mais e mais desses desocupados. Foram invadindo tudo! Vagabundos, mal educados, preguiçosos! Não tinham casa porque não deram duro na vida!... Quando meus familiares vieram para o Brasil, eles tinham algum dinheiro guardado, mas não era muito não. Minha família soube investir e trabalhar! Não vou dizer que minha família nunca foi ajudada. Meu avô recebeu uma ajuda de custo do governo. Ele já chegou ao Brasil com uma concessão do governo para plantar em uma terra dada, emprestada, sei lá... Mas isso não tira o mérito da minha família! Por que quem estava aqui não prosperou? - Porque era preto, Nastácia! Meu patrão sempre fala que preto num gosta de trabalhá’! E eu concordo co’ele! E tem outra, pobre anda muito cheio das ousadia, não sabe mais se por no lugar! Ele fala isso, e eu dô’ razão. Pobre tá queren’o ganhá’ que nem médico e advogado! Num pode isso! Se é p’ra trabalhá’ limpan’o chão, ou carregan’o carga, fazen’o essas coisas que pobre faz, não tem que ganhá’ que

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nem empresário, advogado e médico! Qué’ sê’ milionário fazen’o nada! Seu pai num tava errado não, Nastácia! ... Com’é mesmo que fala o nome dele? Thomas Li...Limpkis... - Era Lipke, Fabiana. Thomas Edmund Lipke. - Gostaria de tê’ conhecido ele. Até o nome era bonito! Alemão tem uns nome forte, né? Mas num é só vocês que é de raça não, viu? Sô’ descendente de índio, co’espanhol e português! Meu cabelo é ruim, eu sô’ assim, pretinha, mas sô’ limpinha! Eu tenho alma branca, tenho pedigree! – disse, rindo, Fabiana – O pai do meu bisavô, da parte de mãe, era espanhol, minha bisavó, da parte de pai, era portuguesa e minha vó era índia pega no laço, no meio da kissassa braba!... Meu patrão diz qu’eu sô’ exótica, Nastácia - Mais ou menos... Seu patrão, como é o nome dele mesmo? - Jardel. - Isso!... Ele gostou da Jussara! Dava para ver nos olhos dele, naquele dia que ele veio aqui buscar você, Fabiana... Como ele está? Está bem? - Mais ou menos. Processaram ele por injúria racial. – disse Fabiana, indignada - Sabe a Amanda, filha da Reinalda do escadão?... Ela trabalha no escritório do seu Jardel, e ‘cê sabe qu’ela só usa aquele cabelo véio que mais parece uma vassoura de bruxa... - É Black Power! – interrompeu Jussara. - Tanto faz... – continuou Fabiana – Ele pediu p’ra ela cortá’ o cabelo, p’ra ela ficá’ mais apresentável p’ra clientela dele, e ela num quis! Daí ele disse assim: “se ponha no seu lugar, sua negrinha do caralho! Você está aqui para me obedecer!”. Ela achô’ ruim e botô’ um processo no seu Jardel! Tomara qu’ela perca o processo! ... E ‘ces sabiam qu’ela é lésbica?... Pois é! Num consegue macho! Tem que ficá’ colan’o o velcro. – caçou Fabiana. - Ela não tem uma boa fama...

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Antes que Anastácia terminasse de falar, Jussara vomitou sobre a mesa. Anastácia e Fabiana se levantaram, rapidamente, por nojo do jato de vômito. - O que é isso, Jussara? Vomitar sobre a mesa que Deus põe o pão de cada dia é pecado! Respingou vômito em tudo! – esbravejou, indignadamente, Anastácia. - Tá grávida de quem, Ju? Quem é o papai? – perguntou, fazendo troça, Fabiana. - Me desculpem... Não é fácil engolir certas coisas logo pela manhã... O café da manhã estava pesado... Eu já sabia que a Amanda era lésbica... Eu transo com ela, já faz um tempo. – disse Jussara, que, em seguida, saiu da cozinha.

JUKKA ANDRADE é natural de São Paulo, Brasil, tem 32 anos e possui algumas graduações inconclusas, entre elas: Letras, Filosofia, Matemática Aplicada, Bioengenharia e Física. Costuma fazer intervenções em saraus da periferia de São Paulo, sempre apresentando poemas autorais. Já escreveu artigos sobre matemática elementar (publicados no sítio de internet "cola da web"), já foi espancado na rua sem saber o porquê (sim, esta é uma informação relevante), e, até o presente momento, não possui livros publicados.

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PORQUE NÃO FUI PRA LÁ NÃO Pedro Paulo de Araújo Júnior Itaí, SP

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Não fui pra lá não Porque lá é contramão Na contramão perco a razão Fiquei aqui Estático feito poste sem luz Credo em cruz! Chuvarada molhou-me todo Vento abanando Fiquei estático Feito poste sem luz Não fui pra lá não Porque lá é contramão

PEDRO PAULO DE ARAÚJO JÚNIOR. 57 anos, cidadão itaiense, autodidata, marido, pai, avô, vivendo tranquilo assim.

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ESTAS VEIAS QUE NUNCA FECHAM Jorge Pereira Recife, PE Sentiu um sopro feliz de eternidade quando viu cortar o céu a aurora boreal. Sempre que estava sozinha e lhe ocorria presenciar algum fenômeno especial, lembrara-se de seu pai e toda a sua busca incansável de justificar a vida, o universo e todas as coisas mantendo-se alheio a qualquer explicação divina ou mítica sobre a humanidade ou natureza divina. Para ela, que não seguira os seus moldes e pensamentos, tornava-se bastante fácil aceitar a existência de um Deus todopoderoso que com suas mãos milagrosas criara o mundo e tudo o que

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a ele pertence. Mas não justificava a sua sede de entendimento sobre a vida. Helena era bióloga, estudara durante muitos anos o processo evolutivo das espécies de anfíbios nas remotas ilhas indonésias, e aplicava seus estudos principalmente no entendimento das atividades cerebrais desses animais e suas circunvoluções. Desde a infância, seus pensamentos eram permeados por questões metafísicas, todas as noites após o jantar em família, seu pai tomava numa mão a Bíblia e na outra A origem das espécies, do célebre Darwin, e começava o seus discursos comparativos e provas cabais do processo de criação e toda gênesis humana. Apesar de seu ceticismo, não era um homem que gostava de influenciar o pensamento religioso, inclusive se oferecia a acompanhar sua mãe nas missas dominicais. Mas fora depois que sua mãe jogara-se de um fiorde enquanto dirigia durante uma neblina muito forte, que seu pai mostrouse ainda mais descrente nas questões de Deus e deuses. Naturalmente, houvera sido bastante trágico para ele entender as circunstâncias que levaram uma mulher de Fé a tirar a própria vida. Naquele dia, eles haviam discutido pela manhã sobre seus “artigos de fé” como ele mesmo chamava os textos bíblicos, e ela descontente, saíra depois sem lhe pronunciar uma palavra. Já era tarde quando a polícia chegara à sua casa, Helena já estava dormindo e foi acordada com seu pai aos prantos e um olhar vazio. Eles nunca conseguiram encontrar o seu corpo, mas todos os anos faziam uma peregrinação a pé ao local do acidente, e plantavam flores no lugar mais alto do fiorde. Naquela noite, Helena pediu que eles orassem juntos pela mãe, que deveria estar em algum lugar do universo necessitando de luz e conforto, e assim o fizeram. Apesar da dor, aquele fora um dos momentos mais recompensadores para seu pai, que de súbito achou-se tomado por um vir-a-ser em perpétuo fluxo, uma mansidão e calmaria em seu coração; como se fossem tomados pelo toque divino, choraram abraçados.

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Com o passar dos anos, seu pai deixou-se entristecer por completo, mas diferentemente de antes, passou os seus últimos dias de vida dedicando-se ao estudo das religiões, deuses, karmas, seres místicos e tudo aquilo que julgava importante para o exercício de suas crenças. A partir de então, em diversas ocasiões lhe indagava sobre a existência humana, até que num fim de tarde de outono boreal enquanto estudava, saiu de casa e dirigiu-se ao mesmo local de peregrinação de longos anos. Ajoelhou-se e chorou incansavelmente por longos minutos, seu coração dava adeus a sua descrença e apoderava-se de uma Fé nunca antes sentida. Por um momento cessaram-se as lágrimas, suas mãos enxugaram-lhe a face e fez-se abaixar o rosto ao chão, e ali ficou até que seus pulmões não mais expiraram o ar frio do outono e que seus olhos não mais vissem a paisagem do entorno. Seu pai houvera entendido a necessidade da morte de sua mãe, que viveu neste universo tremendamente enigmático - neste que era apenas um planetinha na Via Láctea -, para lhe fazer resgatar a necessidade humana de sentir existir-se. Não da necessidade de revelar uma ou outra fé, não da necessidade de revelar um ou outro Deus, mas sim da necessidade de mostrá-los que independentemente de todas as forças divinas e das ciências naturais, o universo respirava cheio de vida. E o fato dessas vidas estarem interligadas fazia com que todos os sentidos das racionalidades humanas fossem exóticos e triviais, pois a vida pulsava nas veias de todos os cosmos e todas as matérias, numa filosofia perene de estar vivo e acreditar em algo. Para Helena, o universo conspirava para as energias e as coisas boas, para o sentimentalismo e as vivências espirituais e transcendentais numa existência maior e mais genuína, na intuição e no acreditar. A vida na Terra não se resumia apenas a um conjunto de moléculas de carbono que dependem do sol e da água para viver, era mais do que apenas a consciência e o toque providencial, existia o Amor e para ela

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isso já bastava. E naquele momento, ao ver a luz da aurora mais vibrante, sentiu emanar uma força que lhe preencheu de vida e alegria, eles estavam lá, no meio de toda aquela poeira da matéria que formava o universo, pois para ela, a vida perpassa em veias que nunca fecham.

JORGE PEREIRA, recifense, estudante de Bacharelado em Biomedicina pela Universidade Federal de Pernambuco e bolsista de Iniciação Científica pelo CNPq. Desenvolve projetos de pesquisa em Biologia Molecular com doenças autoimunes no Laboratório de Imunopatologia Keizo Asami (LIKA).

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DE UM PULSAR DESBOTADO Roberta Santiago Porto Alegre, RS

palavras que devem ser ditas mas morrem ainda na esperança de não precisarem nascer o que afinal se sente quantos metros cúbicos tem o volume da dor quantas letras formam

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o nome do que sinto e qual é o nome se para nomes, pensa-se e só sinto como se chama a cor dos seus olhos que se fecharam e agora estão costurados agulha e linha de nylon fio a fio cílio por cílio até que eu possa decorar em memória e enfim descosturar o que havia guardado no exato diâmetro da tua pupila o problema é que os olhos não ouvem só veem o problema é que as palavras tão somente significam a palavra amor nunca aprendeu a amar

ROBERTA SANTIAGO nasceu no Rio de Janeiro e mora atualmente em Porto Alegre, RS. Escreve poesias desde os 13 anos de idade. Seu primeiro livro, "Anotações sobre o tempo e as cidades", foi publicado em 2014. Atualmente está concluindo o projeto do seu segundo livro de poesias.

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ODEIO SUPORTE PARA COPOS Nathalia Affel São Paulo, SP Carlos deu o primeiro passo. Pronto, agora não tinha mais volta. O pedido foi feito e desfazê-lo ficaria muito feio para o seu lado. Não que ele não quisesse, mas após dizer aquelas palavras, um terror e desespero se apoderou dele. E agora? Qual seria o próximo passo? www.CANALSUBVERSA.com

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Ajoelhar e fazer a boca mexer em um som de meia dúzia de palavras foi fácil, até demais. Agora, colocar em prática a loucura que estava prestes a iniciar era outro negócio. Ela vai dizer sim. Sim, caramba, sim, e ainda complementar "Vou começar os preparativos amanhã!". Ele conhecia a namorada, sabia o quanto ela ficava empolgada com esse tipo de coisa e eles já estavam juntos há sete anos. Mas, também, ela pode dizer qualquer outra coisa, "Vou pensar no caso", "Eu ainda não tenho certeza", "Estamos indo rápido demais", "Não" ou simplesmente "Carlos, não seja um completo idiota". Mas agora a placa de imbecil já estava colada em sua testa. Ele tinha certeza de que em breve estaria noivo. E, para Carlos, neste frenesim de desespero, não só a sua vida de solteiro estava terminada como a sua vida em geral estava destruída. Nesse um minuto de pensamento que se seguiu entre a sua proposta e a resposta da namorada, que no momento estava com uma cara de espanto, da qual Carlos teria achado preocupante se não estivesse tendo um surto interior. Todas as regalias que seriam cortadas começaram a passar em sua cabeça como um filme. Cervejinhas depois do trabalho, pizza pelo menos em quatro jantares por semana, meias na gaveta de cuecas, andar nu pela casa cantando Guns N’ Roses com uma guitarra imaginária (não que ele fizesse isso, é claro). Tudo estaria acabado. Como ela iria entender que ficar em frente ao espelho imitando o Hulk ou saudando o bom e velho amigo ali debaixo que muitas vezes lhe trouxe extremas alegrias, era perfeitamente normal? Ar, ele precisava de ar. Mas não dava para levantar dali enquanto não houvesse uma resposta. E por que ela estava demorando tanto? Ou ela realmente não estava, e aquela velha história de que você vê toda a sua vida em um segundo antes de morrer é totalmente verdadeira. Carlos então começou a pensar nas desculpas e nas explicações que daria caso ela dissesse sim, como iria

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deixar claro que aquilo foi um erro, que o problema não era ela, mas a vida com ela dali por diante. Como iria desfazer o que havia acabado de fazer sem parecer um completo lunático bipolar ou um canalha de quinta? Respirou fundo e levantou. Mesmo porque àquela altura seus joelhos já estavam pedindo socorro. E quando abriu a boca para falar seja lá o que fosse, pois no fim resolveu fazer tudo no improviso, ela respondeu “Não”. Ela disse: não. Passaram-se vários segundos de choque enquanto os dois se olhavam e o resto do restaurante que ele tinha escolhido com tanto carinho e dor no bolso, também esperava uma reação, após a negativa inesperada. Finalmente, ele não teria de arranjar nenhuma desculpa, inventar nenhuma explicação ou mentira. Ele não precisaria agir como um completo idiota que acaba de pedir a namorada em noivado e, cinco segundos depois, muda de ideia como se um pedaço de pau tivesse caído na sua cabeça e o trazido para a realidade. Uma sensação estranha começou a tomar conta de Carlos, ele estava livre, livre para ver Duro de Matar até enjoar da cara do Bruce Willis. E quem é que enjoa da cara do Bruce Willis? Livre para não combinar as meias com as cuecas e ignorar os suportes de copo. E daí que a madeira vai marcar? Livre para fumar dentro do carro sem ter que deixar as janelas abertas, em um frio de matar, só para o cheiro não impregnar no estofado e ainda tendo que jogar as cinzas fora para ela não descobrir esse seu mais novo e fedido hábito. Livre para jogar vídeo game comendo pipoca, como um garoto de dez anos durante o domingo sem ter que ouvir “CUIDADO PRA NÃO DERRUBAR NO SOFÁ, MANDEI LAVAR AS ALMOFADAS ONTEM!”. E, com essa sensação estranha tomando conta do corpo de Carlos, finalmente ele teve coragem de dizer: “Não? Como não? Eu te trago em um restaurante desses, te compro um anel que custa mais do que a minha casa, tomo a decisão de passar a minha vida do seu lado e tudo o que eu recebo em troca é um mísero NÃO? Como você pode

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fazer isso comigo, Ivete?”. Carlos estava tomado por uma raiva um tanto quanto descontrolada, respirando tão fundo que gotinhas líquidas saíam de seu nariz vez ou outra. Apertava o encosto da cadeira com tanta força que, se fosse realmente o Hulk, já tinha transformado aquilo em pó. Até que Ivete resolveu se pronunciar: “Eu não estou preparada para isso, eu acho que estamos indo rápido demais, eu até posso pensar no caso, mas não sei. Não estou preparada para abrir mão da minha liberdade, não quero que minhas noites vendo novela com um pote de sorvete sejam substituídas por partidas de futebol e gritos frenéticos. Quero lavar as minhas calcinhas no banho e deixá-las penduradas em qualquer lugar, não sei cozinhar e prefiro comer pizza quatro noites por semana do que me dar ao trabalho de ir até a cozinha. Não quero ter que bancar a esposa todas as noites esperando você voltar do trabalho enquanto poderia estar em um happy hour com as amigas enchendo a minha cara de cosmopolitan e falando mal das assistentes. Não, Carlos, não. As almofadas vão ficar sujas de sorvete a cada vez que eu resolver passar o domingo jogando vídeo game e assistindo Duro de Matar, porque quem é que resiste ao Bruce Willis? Não estou pronta para ser uma boa esposa e, acho que nunca estarei. Me desculpe”. Se vocês pudessem ver a cara do Carlos, como os clientes daquele restaurante estavam vendo de camarote, estariam tão embasbacados quanto eles. Tudo o que ele conseguiu fazer foi caminhar até o barman e pedir uma dose de qualquer coisa que trouxesse um pouco de realidade para o que acabou de acontecer. Ele foi rejeitado, abandonado, negado em público pela mulher que mais amou na vida e era isso que ele repetia para o barman a cada dose a mais que ele trazia de alguma coisa que ele ainda não sabia o que era. E, em algum momento entre estar sóbrio e em desespero por ter feito um pedido de casamento e estar bêbado cheio de desgosto e frustração, Ivete foi embora dizendo “Carlos, não seja um completo

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idiota. Aqui está o dinheiro para o táxi, você não está em condições de dirigir, e eu preciso de um cigarro”. Ela disse isso segurando-o pela face, e cruza o restaurante com todos os olhares a seguindo, parando na mesa em que estavam para depositar a taça de champanhe que vinha segurando desde então, deixando uma marca do anel do fundo da taça na madeira, “Odeio suporte para copos”.

NATHALIA AFFEL nasceu em São Paulo e é atriz formada pela Escola de Atores Wolf Maya. Fez parte de várias companhias teatrais amadoras, atendendo à workshops e cursos livres, tanto em interpretação quanto em teatro musical. Também cantora, faz parte de um projeto musical chamado Frente Verso, e já cantou em eventos como a festa No Capricho e o programa Jovens Talentos. Atualmente estuda comunicação social, escreve e mantém um blog chamado Plástico Bolha, onde aborda o mundo do entretenimento, arte e cultura.

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DESTAQUE DA SEMANA

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A ÚLTIMA OBRA Daniel Waschowicz São Paulo, SP

O Sol espiava pelos pequenos furos da janela. Lá dentro estava tudo quieto, sendo o silêncio interrompido ora ou outra por uma leve respiração. A luz do abajur se misturava ao cheiro forte do cigarro, num amarelado intoxicante que impregnava todo aquele ambiente e parecia sufocar todos os objetos daquele espaço com seus afiados dedos decadentes.

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Alheio a essa atmosfera de morte, sentado numa poltrona desbotada com pequenos rasgos, havia um homem aparentando estar na casa dos quarenta anos. Em sua mão estava um cigarro aceso que era conduzido a sua boca de momentos em momentos, com uma lentidão aparentando indiferença. O Sol tentava buscar os olhos daquele homem, mas ao refletir sua luz neles, tudo o que revelava era ausência, como se tivessem sido tragados. A vida penetraria naquelas órbitas que pareciam vazias? A fumaça do cigarro era a continuação daquele olhar e à medida que se elevava pelo ambiente, acabava por apodrecer a luz solar. E aqueles olhos fitavam toda aquela extensão do espaço moribundo que lhe rodeava procurando tragar os restos de vida que ali houvesse. Aquela pessoa, desbotada pela ação do tempo, levantou-se lentamente de sua poltrona e foi até uma mesinha à esquerda de onde estava e lá sentou, abriu uma gaveta, pegou um caderno e uma caneta e pôs-se a observar esses objetos por alguns instantes. Pouco tempo depois, começou a escrever alguma coisa. Sua letra era um pouco tremida, quase beirando o ilegível, mas nada que um pouco de esforço na leitura não consiga resolver. Isto provavelmente deveria ser resultado de pouca prática no decorrer dos anos. Apesar disso,

todo

um

universo

ia

sendo

criado.

Cada

palavra

era

minuciosamente esculpida, formando um tecido que começava a rascunhar o próprio ambiente que o rodeava, dando vida à matéria morta que lhe cercava. Escolhida a última palavra, não lhe restava outra coisa, a não ser levantar-se, colocar o casaco, acender um cigarro e caminhar silenciosamente por algumas horas naquelas ruas vazias, como era de seu costume. Uma vez mais o Sol espiou e pode ler aqueles versos sobre a mesa, sendo o primeiro a ter acesso àquelas palavras, que diziam o seguinte:

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A Janela Fechada A janela fechou. O abajur apagado É o sonho de outrora que jaz esmagado Na escuridão do quarto. A cortina desbotada Jamais mostrará Seus desenhos delicados Cobertos pelo silêncio. Aqueles papéis espalhados Na mesa, junto a algumas Velhas fotos de infância São restos de passados Presos ao silêncio Daquela escuridão, cujo ar Solidificado entupiu Toda extensão do quarto. E a janela nunca mais se abrirá.

DANIEL WACHOWICZ é formado em Letras e professor de português e inglês, tendo feito diversos cursos de produção literária. Recentemente, fez o lançamento de seu primeiro livro de poesias, “Convite ao abismo” (Multifoco, 2014).

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ESPECIAL

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Reminiscências

CARTA ESCONDIDA José Eugênio Borges de Almeida Maragogi, AL

Repousei com tranquilidade a minha mão sobre o teu colo e deixei que, imóvel, pudesse sentir o pulsar do teu coração. Ele começou a pulsar mais rápido e a tua respiração ficou mais ofegante, como quem procura o ar e não encontra. Senti o toque macio da tua pele e

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pensei que a idade não tinha ainda conseguido diminuir as sensações que um simples toque pode provocar nos nossos corpos. Nos olhares, quando eles se prendiam sem pressas nas nossas figuras, pareciam penetrar no mais fundo que as almas escondem ou tentam esconder, às vezes simplesmente por inibição, sem explicação, ou por pura timidez. As nossas vozes pareciam que se igualavam em tons e intensidade conforme o entendimento das palavras se aninhavam no discernimento aprazível dos anos. Nossos prazeres gustativos, foram sendo apurados na justeza dos ensinamentos saudáveis da medicina, mas aí, talvez, os nossos corpos tenham obedecido ao apelo dos nossos genes e muitas das nossas preferências permaneceram incólumes. Os perfumes por nós inalados, nunca tiveram consonância, talvez por isso conseguíssemos ter nossos aromas tão próprios e diversos. Por isso a tua lembrança não sai das minhas circunvoluções cerebrais e o teu rosto das minhas retinas, apesar de se terem passado tantos anos da tua morte. Só as lembranças dos acontecimentos por nós vividos, é que se tem esfumado na memória dos tempos, Assim como quem apaga um quadro negro todo escrito, bem devagar, retirando fragmentos da história, deixando-a assim mambembe, coxa, sem equilíbrio lógico. Os parágrafos se misturando, tornando tudo incompreensível. As memórias aparecem em flashes muito rápidos sem me dar tempo de fixá-las. Lembras-te do Antônio? Se ainda estivesses viva, irias ver a deterioração mental dele, provocada pelo Alzheimer. Ele já não consegue reconhecer ninguém, nem a si próprio, num declínio cognitivo enorme. Além da confusão mental e irritabilidade. As alterações do humor são frequentes, muitas vezes com agressividade. Já nem consegue identificar objetos ou pessoas.

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Não consegue formular frases que tenham algum sentido. Recusa-se a levantar da cama e na maioria das vezes não quer comer. Um verdadeiro abjeto. Corpo sem memória é só um corpo, sem personalidade, sem vida, sem sentimentos. Nós somos a nossa memória, sem ela, somos nada. E ele tem menos seis anos que eu. Fico imaginando que talvez essa doença atinja quem tem muito medo da morte, pois assim há um desligamento em vida da vida, deixa-se de se ter a percepção dela e nada mais importa. Acaba-se o sofrimento psíquico e a antevisão da morte deixa de existir. Fica-se como um animal acéfalo. Mas existem aqueles que resistem às investidas do tempo, como o arquiteto Oscar Niemayer, que ultrapassou os cem anos de idade. O seu corpo deteriorou-se, mas a sua integridade mental e intelectual foi fantasticamente preservada. Creio que os apagamentos no encadeamento das minhas memórias são seletivos. As partes mais fortes, mais intensas têm sido preservadas. Por enquanto. Tenho tido o cuidado de escrever as partes que me esqueço com mais frequência, para que assim, substitua a perda da minha memória. Só para me sentir mais apoiado de passados. O pior é que muitas vezes quando releio o que escrevi, não me reconheço dentro daqueles personagens. É como se eu estivesse a ler uma história de outra pessoa. De modo que o esforço da preservação de memória acaba por não funcionar e não ter nenhum sentido prático para mim. Tenho tido apatia e já me foge a memória semântica, perdendo a flexibilidade do pensamento abstrato. Entrei por outro tipo de experiência: sento-me à frente da câmara de vídeo e começo a ler as memórias escritas e a afirmar que é a história da minha vida. Mas acabou também por não resultar, pois no outro dia nem sequer reconheci o meu rosto como se fosse meu.

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Agora já ando com a tua fotografia no bolso, para que a tua memória não me fuja. Mas no outro dia dei por mim a observar o teu retrato sem te reconhecer. Por vezes sinto-me tão desasado, tão sem memória, que a sensação é dum turbilhão dentro da minha cabeça, com muitos sons desconexos a habitá-la. As tuas saudades, quando me lembro de ti, são tão grandes que só me apetece estar contigo, estejas onde estiveres. Fazes-me falta minha querida. Sinto falta do teu toque, do teu cheiro, da tua voz, quando consigo me lembrar disso tudo. Se estivesses aqui, de certeza que irias repetir para mim vezes sem conta

as

nossas

vivências,

tornando

a

minha

vida

mais

consubstanciada, mais crível, mais humana, mais lógica...

JOSÉ EUGÊNIO BORGES DE ALMEIDA é médico e começou a escrever há quatro anos, com 64. Nesta jornada, já reuniu 39 prêmios em concursos literários diversos, publicou o romance juvenil “Uma Luz no Fim do Túnel” e está em fase final de edição de “Labirinto Eterno”, finalista do Prêmio SESC 2014, a sair pela Editora W5).

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ツゥ KAROLINA WHO

ESPECIAL Reminiscテェncias

O VELHO SEBASTIテグ Josテゥ Vieira Santa Cruz, Portugal

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Era velho e chamava-se Sebastião. Tinha mais de oitenta anos. A pele enrugada e os cabelos brancos escondiam as amargas memórias da sua existência. Vivia sozinho numa pequena casa, outrora herdada de seus pais. A vila que o viu nascer era a que o tinha visto envelhecer. Sebastião sabia de cor, como se da palma da sua mão se tratasse, cada canto e recanto daquele lugar. Aquela vila era o seu lar. Sebastião não era uma pessoa muito faladora. Não se reunia no jardim para jogar xadrez, como faziam outros da sua idade. Não era visto nos cafés, ao início da manhã e ao fim da tarde. Não ia à igreja. Sebastião vivia na vila, mas não se relacionava com ninguém. Era como se vivesse num outro mundo. Um mundo apenas seu. Como se estivesse dentro de uma bolha e onde não deixava ninguém entrar. Os da sua idade sabiam que ele era assim por causa dela. Chamava-se Benedita. Há muito tinha partido da vila, para seguir o seu sonho. Era a jovem mais bonita da terra. Não havia moça tão formosa como ela. Era alegre e destemida. Benedita encantava qualquer um. Tinha a mesma idade que Sebastião. Juntos brincaram na meninice. Descobriram a paixão na juventude. E conheceram a dor de um amargo amor. Na vila sabiam que aqueles dois estavam enamorados. Pareciam destinados. Todos esperavam que quando atingissem a maioridade se casassem. Enquanto

isso,

não

ocorria

os

dois

jovens

saboreavam

vagarosamente a vida. Viviam para a paixão que nutriam. Estavam como que escravos daquele sentimento. Tudo era feito para o outro e em função do outro. Seguidamente viria o apaziguamento e com isso, o amor. As borboletas outrora sentidas, quando se aproximava a hora de estarem juntos, passaram à serenidade. O sentimento tinha evoluído. Tinha crescido juntamente com eles. A loucura da paixão transformarase num tranquilo amor. Daqueles amores para a vida inteira, assim suponham.

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Sebastião deixara a escola cedo. Não tinha cabeça, costumava dizer, para os estudos. Fora logo trabalhar como carpinteiro. Adorava o que fazia. Das suas mãos saíam autênticas peças de arte. Era usual curiosos da cidade virem à procura dos seus trabalhos. As maravilhas de Sebastião trespassavam aquela pequena vila. Benedita continuara a estudar. Tinha gosto em ir à escola. Nutria grande entusiasmo em aprender novos saberes. Para qualquer lugar que fosse tinha sempre um livro nas suas mãos. Não se cansava de ler e de imaginar. A sua mente voava e voava para lugares longínquos. Cabia a Sebastião trazê-la de volta à vila. Amavam-se. Sem

dúvida que se amavam. No seu

jeito

complementavam-se mutuamente. Porém os sonhos de cada um eram distintos. Sebastião queria criar raízes. Ficar na vila. Aquela pequena terra era o seu segundo amor. Era apaixonado por cada canto e recanto. Nunca tinha saído daquele lugar mas em momento algum pensara em fazê-lo. Era a sua casa. Fazia-o feliz. Benedita por sua vez queria voar. Conhecer o mundo era o seu maior sonho. Queria sair dali e descobrir novas pessoas, culturas e saberes. Queria a descoberta. Abrir horizontes. Deixar para trás as superstições e a pequenez daquele local, que a agudizava a cada dia. Na época eram jovens. Embora soubessem das suas diferentes formas de pensar, quanto ao futuro, preteriam não falar sobre o assunto. Assumiam que no momento certo haveriam de reflectir sobre o mesmo. Enquanto isso preferiam ir vivendo e saboreando aquilo que a vida proporcionava. Amavam-se! A cada pôr-do-sol mil e uma promessas de amor eterno. Sebastião e Benedita iam crescendo envoltos num intenso e profundo amor, sem pensar no amanhã. Um dia uma companhia de teatro chegou à vila. Precisavam de figurantes. Benedita nem pensou duas vezes e inscreveu-se. Fez as provas e imediatamente foi contratada para a peça. A sua

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participação fora tão excepcional que logo surgiriam novas propostas e com isso uma reviravolta na sua vida. Teria que partir para a cidade e Benedita, novamente, não vacilou. Foi embora. O seu maior sonho brotava. Não podia desistir. Sebastião nada fez. Apercebeu-se que era o segundo amor de Benedita. Se a prendesse à vila com o tempo seria uma mulher infeliz e frustrada. Deixou-a ir. Mostrou assim o seu amor. Benedita tornou-se numa conhecida actriz de teatro. Sebastião ficou na vila a elaborar as suas obras em madeira. Todas as noites, sentava-se num grande cadeirão junto à lareira. Abria a caixa de música, que um dia fez para Benedita. Iria oferecê-la com um anel de noivado, no dia em que Benedita anunciou a intenção de partir. Ficava a ver a boneca a rodar e a rodar. Fechava os olhos e pensava nela enquanto uma melodia tocava. E a boneca rodava e rodava. Não saía das suas mãos ao contrário de Benedita.

JOSÉ VIEIRA é o pseudónimo de Teresa Vieira Lobo. Jovem nascida na década de 80, numa pequena localidade chamada Gaula, terra de amoras, padres e doutores. Em 2014 estreou no mundo da escrita com o livro “Estranhas Coincidências”.

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Edição e Revisão: Morgana Rech e Tânia Ardito

Recepção de originais: CONTATO.SUBVERSA@GMAIL.COM

Colaboração especial: Karolina Who

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