SUBVERSA
ANDRÉA DO NASCIMENTO MASCARENHAS | SAT AM HEITOR LIMA | EVANDRO DO CARMO CAMARGO TÂNIA ARDITO | MORGANA RECH RENATO OLIVEIRA ROCHA | ERIC COSTA FÁBIO DA SILVA BARBOSA | FELIPE LIMA
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SubVersa | literatura luso-brasileira |
10ª Edição
© originalmente publicado em 01 de Fevereiro de 2015 sob o título de SubVersa ©
Edição e Revisão: Morgana Rech e Tânia Ardito
Fotografia: © Deb Dorneles www.debdorneles.com
Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados como autores desta obra. Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos textos ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem com a realidade.
10ª Edição Fevereiro de 2015
ANDRÉA DO NASCIMENTO MASCARENHAS | © INOCÊNCIA | 5 SAT AM | © PHOBOS MONOLITH|6 HEITOR LIMA | © SONETILHOS AO PRESSÁGIO | 8 FELIPE LIMA | © TEMPO PASSADO, DOR SEM FIM: POR UMA FENOMENOLOGIA MNEMÔNICA EM A MÁQUINA DE FAZER ESPANHÓIS. | 10 EVANDRO DO CARMO CAMARGO | © ODE à GALINHA CAIPIRA | 18 RENATO OLIVEIRA ROCHA | © COMÉDIA DA VIDA PÚBLICA | 20 ERIC COSTA |© RABISCOS DA INSÔNIA| 22 TÂNIA ARDITO | © UMA SEMANA | 25 FÁBIO DA SILVA BARBOSA | © OLHOS FURIOSOS | 27 MORGANA RECH | © MARE CLAUSUM | 29
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EDITORIAL ou Se Newton Trabalhasse na Subversa Imagine só. Em primeiro lugar, não se discutiria mais: a literatura é um corpo vivo, que produz reação conforme a sua ação, que tende a estar em movimento quando impulsionado com o peso e a velocidade certa. E não será esse justamente o papel de uma revista literária? Com o peso dos textos que temos o privilégio de publicar aqui e a força entusiasta, nos desafiamos a mostrar que a boa literatura está sempre aí e que não é assim tão difícil integrá-la no cotidiano das mais diversas realidades. Na Sub 10, apresentamos a primeira edição com dez textos, número que agora já somos capazes de assumir. As fotografias analógicas da Deb Dorneles, que colabora no website Stout Club e na revista Velô, trazem o olhar delicado e intuitivo desta gaúcha que fotografa enquanto pedala pelas ruas de Porto Alegre. A combinação perfeita entre expressão e recepção, eis a décima. Boa leitura
As editoras.
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INOCÊNCIA ANDRÉA DO NASCIMENTO MASCARENHAS SILVA SALVADOR, BA, BRASIL
talvez o único valor a salvar desse mundo, talvez o último, o derradeiro poder . sempre vale a pena preservá-lo . sob o massacre dos astutos definham afagos que se vestem de nossas almas . sou longe como o tempo que me separa de mim mesma, menina . como a água de mar dengoso, aos nossos pés salgada . espio tua poesia: exala olor de lirismos amadurecidos . com teus olhos me casei e fui feliz . tenho direito a um passado que não vivemos, pois que (pre)sinto . teus músculos de ouro frágil, zangam toda. qualquer maresia . medo ou vilania de tua torpe donzela alimentam meu corcel de irreverência em disfarce de utopia . lavas pincel em teu sangue purificado a tão alto preço . esquece a facilidade adocicada de teus dias futuros . entregas a chave do tesouro a quem já deitou na cama e traiu a fama . mergulhas de volta em teu temp(L)o máximo . de minha madrugada vislumbro a tua: insones aprendizes de parcas dimensões a(poetizadas). ANDRÉA DO NASCIMENTO MASCARENHAS SILVA é docente da área de Literatura na Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Ficou em 13º lugar no 'XII Festival de poesia, crônica e conto', organizado pela Fundação Cultural de Imperatriz – MA (2001) com o poema intitulado Procissão da espiritualidade.
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PHOBOS MONOLITH SAT AM CURITIBA, PR, BRASIL
Um cosmos frio abençoou meus sentidos conturbados. Flutuando nesse espaço perdido em meio a constelações antigas, Eu senti o vento batendo em minha porta, Exaltando o grito que cada estrela viva despeja em meus ouvidos. Canções vazias foram entoadas, E nelas um sentimento de total renegação à vida fora lembrado. Onde nós, seres menores que se vangloriam de seus feitos quixotescos, Somos meros espectadores mesquinhos nessa dança macabra. Tudo está perfeito! Onde acreditamos que nada, com nossas mentes subdesenvolvidas, possa existir... Existe!
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Onde o medo do desconhecido se torna algo maior, E impede que libertemos sentidos antigos à nossa existência fugaz. Esta que foi minha última viagem por um tempo esquecido no tempo, Meu corpo desfeito em poeira cósmica, Entrelaçado a éons de loucuras espaciais tangíveis ao tato, Tendo ao meu lado a sombra viva de Azathoth magnânimo, Inundando minha mente com seu conhecimento ancestral, Cercado de dores e pesadelos incompreensíveis a um mero mortal qualquer. Gritos em um cosmos esquecido pelos ignorantes, O ídolo erguido a um deus qualquer em um planeta qualquer, Adorado como a verdade absoluta, universal, Enquanto aquilo que é verdadeiramente universal o ignora. Anos-luz distante dessa realidade estúpida eu flutuei, Viajei até os confins de dimensões paralelas, E, admirado, contemplei a verdade absoluta obliterada no nada...
(para meu amigo Leandro „Tarik‟)
SAT AM (CURITIBA, PR, BRASIL) É ESTUDANTE DE LETRAS-JAPONÊS DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ. GOSTA DE ESCREVER TEXTOS COMO A TEMÁTICA DOS SENTIMENTOS DE ÓDIO, RAIVA, TERROR E LUXÚRIA.
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SONETILHOS AO PRESSÁGIO HEITOR DE LIMA FORTALEZA, CE, BRASIL
I Um balir de áries se esvai Na tua face sublinhada. Aqui, enquanto o desnível Carboniza, morrem pétreos Os desertos angulares, Segredos de um confidente Que ora se aguça, de bruço, Na epiderme. Ora se omite.
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O ar fino, fosco, fumaça. Visão sequiosa, visão Plural, de intacto menino Na antinfância (interrompido). Eu descalço, tu cal, chão: Ao rés da fala, não muda. II Tu sumiço, me persegue. Tu dobrado nesta escolta Exclui a ideia, chorume. Só o disfarçar da agonia Assiste a carne: Orbital. O menino não responde, Gorjeia apenas insultos. Não se atreve a sentimentos Próprios, de menino. Luz Não há, sequer treva... existe Dor de ser parado, um signo. Clarividência, sonífero, Há que resistir ao simples E esperar pelo presságio.
HEITOR DE LIMA rabisca em versos desde os 9 anos de idade, espera que o mundo escolha a poesia, mesmo que inconsciente. Vive a heterogeneidade de ser quem é.
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TEMPO PASSADO, DOR SEM FIM: POR UMA FENOMENOLOGIA MNEMÔNICA EM A MÁQUINA DE FAZER ESPANHÓIS. FELIPE LIMA DA SILVA RIO DE JANEIRO, RJ, BRASIL “Todos os homens que andam na rua são homens-narrativas, é por isso que conseguem parar em pé.” (LEJEUNE, 2014, p. 121). Tendo como ponto de partida o paralelo entre memória e tempo, este texto busca traçar um breve exame dos aspectos que permeiam o romance português A máquina de fazer espanhóis, de Valter Hugo Mãe, atendo-se ao modus operandi do romance no que se refere à
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narrativa e sua relação com a memória. Mais precisamente, será enfocada a concepção de fenomenologia mnemônica predominante no romance e o eixo em que estes sintagmas da composição – a memória e o tempo – agrupam-se para plasmar uma narrativa singular, tecida a partir de uma rede histórica fundamentada no período salazarista, que se desdobra, no presente, por meio da narração do personagem principal Antônio Silva. Para examinar como opera o mecanismo da memória no romance, cruzemos a questão com a investigação desenvolvida por Paul Ricouer a respeito da fenomenologia da memória que consiste na “representação do passado, [que] aparenta ser mesmo a de uma imagem” (2007, p. 25). De imediato, a memória assume um papel de construtora de imagens no desenrolar da narrativa, produzindo flashbacks que remontam uma “reprodução do antigo presente e [uma] reflexão do atual” (DELEUZE, 2006, p. 125). Nas linhas do romance, trata-se de uma simbiose temporal entre o presente antigo (o passado da personagem) com uma reflexão do atual (o presente da narrativa). Importa aqui ressaltar que a narrativa em questão configura-se como uma obra autobiográfica que – segundo Philippe Lejeune, em seu elegante estudo acerca das narrativas em primeira pessoa – propõe um pacto fantasmático quando, indiretamente, o leitor é convidado a tomar os componentes sintomáticos do romance “não apenas como ficções remetendo a uma verdade da „natureza humana‟, mas também como fantasmas reveladores de um indivíduo” (2014, p. 50). O romance de Valter Hugo centraliza-se na memória de um idoso que remonta os meandros do passado pertinentes ao período salazarista, recuperando momentos marcantes que geram sentidos de “inferioridade no povo português” (FONTES, 2013, p. 308). Assim, a memória é a mediadora da justaposição entre o passado e o presente, fazendo saltar aos olhos as lembranças mais recônditas do protagonista.
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Há, por um lado da narrativa, uma coexistência entre as memórias do passado de Antônio – marcadas pela vida com a esposa, Laura, assim como pelo regime da ditadura salazarista; enquanto, por outro lado, há um imperativo incômodo com o presente que se mostra referto de dores e melancolias, a saber, as saudades da esposa que faleceu e o inconformismo com a situação em que se encontra com os filhos:
já não mandávamos nos filhos, crescidos e independentes, fazendo isso com que parte dos nossos papéis ficassem vazios. era como morrer para determinadas coisas. restava apenas uma nostalgia, que poderia ser mais doce, se era certo que nossos filhos estavam vivos e seguiam as suas vidas como era de ser. (MÃE, 2013, p. 16). A centralidade concedida à memória é patente desde as primeiras linhas do romance, devido à configuração enquanto instrumento mediador da revisão que o protagonista faz de seu passado. Examinemos, de passagem, que a memória, na tradição filosófica de criação cartesiana, repousa sobre o estatuto da imaginação. A esse respeito, é de se repetir o juízo sintético de Paul Ricouer: “faz[-se] da memória uma província da imaginação” (2007, p. 25). Sintetizando os elementos principais levantados anteriormente, pode-se afirmar, junto a Lejeune, que os textos autobiográficos configuram-se como um gênero contratual cujo funcionamento dá-se por meio da lógica que se instala entre o leitor e o narrador, na qual aquele toma as „verdades‟ ditas por este como ficções ou verdades de
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caráter imaginativo e não como verdades absolutas. Para que se complete o quadro sobre o qual refletimos, é relevante apontar que a estrutura da narrativa faz-se destoante dos padrões do romance tradicional, apresentando, por sua conta, ausência de pontuação e letras minúsculas em lugar de maiúsculas. Segundo a terminologia de Flávio Carneiro (2005), as narrativas desta natureza caracterizam-se por sua transgressão ruidosa, na qual a singularidade da obra, primeiramente, mostra-se através da estrutura para depois se mostrar pelo conteúdo. Deixando de lado este breve e atraente desvio pela estrutura ruidosa do texto, retomemos o fio de nossa reflexão central. Em A máquina de fazer espanhóis, podemos examinar mais de perto as manifestações da memória que funcionam, aqui, como meio de respiração do texto em que o personagem principal busca consolar-se, já na sua velhice, dos erros do passado, assim como tenta reconstruir sua vida na ausência de Laura, fazendo desta o núcleo de suas lembranças. Em uma belíssima passagem, Américo, amigo do narradorpersonagem, reitera que:
a lembrança da sua esposa [Laura] vai trazer-lhe um sorriso aos lábios porque é isso que a saudade faz, constrói uma memória que nós nos orgulhamos de guardar, como um troféu de vida. um dia, senhor silva, a sua esposa vai ser uma memória que já não dói e que lhe traz apenas felicidade (MÃE, 2013, p.77). Em contrapartida, as lembranças que aludem às ações da família, no presente, desconstroem em Antônio Silva qualquer sorriso
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que a imagem de Laura podia proporcionar. Retratemos as próprias palavras de Antônio:
se alguma memória má me traziam as suas presenças, era só a lamentável ideia de se terem empenhado, com fortunas e subornos, para que eu, num espaço de tempo recorde, fosse um alívio nas suas vidas, atarefadas com o social mais volátil e oportunista (MÃE, 2013, p. 35). Antônio Silva é fortemente marcado pelo discurso da descrença que impera nas correntes da pós-modernidade, sofrendo uma fratura metafísica, desacreditando de qualquer ligação de transcendência com as questões que permeiam as fábulas, as crenças e a própria verdade. Deste modo, durante a narrativa, seu discurso é endossado pela constante descrença em qualquer frase de consolo que parta de terceiros para justificar a perda de Laura e a reviravolta em sua vida: “talvez devesse lembrá-los de que não sou um homem religioso e que a perda não me fez acreditar em fantasias.” (Ibidem, p. 26). Para que não se perca de vista o objetivo traçado aqui, torna-se oportuno retomar as linhas do pensamento de Philippe Lejeune a fim de ressaltar que a memória é uma construção imaginária, merecendo grande atenção no que se refere às escolhas feitas por aquele que narra sua história, posto que muito do que se diz, pauta-se naquilo “tudo que [se] inventa” (LEJEUNE, 2014, p. 123). Assim sendo, proponho lembrar que o caráter lacunar da memória deve ser associado à imagem do protagonista, de um idoso que já não tem as certezas acerca daquilo tudo que faz e fala, produzindo, no curso da narrativa, fraturas na confiabilidade. À guisa de ilustração, destaca-se o episódio
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do incidente do espancamento da colega da casa de repouso, Dona Marta, no qual o protagonista acorda sem se lembrar da atrocidade que realizou na noite anterior:
disse-me que a dona marta tinha passado mal a noite. estendi novamente as pernas. senti o fresco dos lençóis nos meus pés grandes e não me lembrei, nem mesmo vagamente, de me ter levantado às três da manhã (MÃE, 2014, p.41; grifos nossos). A fratura da confiabilidade dá-se a partir do momento em que o leitor compreende que o narrador é responsável
pelas falhas
mnemônicas, denunciando-se pela idade e pela vontade de esquecer certos assuntos e seus aspectos das mais variadas formas. Aliado a isso, o personagem move-se através da busca de desentranhar de si os acessos de sofrimento causados pela morte de Laura, pois apenas havia sobrado uma sensação de papéis vazios, que destilavam uma sensação equivalente a “morrer para determinadas coisas” (MÃE, 2013, p. 16), restando apenas uma nostalgia. A nostalgia move a engrenagem do romance pós-moderno de Valter Hugo Mãe, exigindo o percpetivismo do leitor para compreender que, sub-repticiamente, a narrativa funciona na clave confessional, um testemunho daquilo que se foi e que hoje já não se é mais, mostrando as fraturas afetivas que o período salazarista produziu em um homem, ao passo que também funciona como mecanismo de redenção, uma tentativa de desgarrar-se da culpa que se sente por todos os males concentrados no seio da família. Antônio Silva mergulha nos recantos de suas lembranças para curar-se dos erros que o levam a concluir que “fui, como tantos, um
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porco” (MÃE, 2013, P. 175), enquanto, paralelamente, remonta – através da fenomenologia mnemônica – um retrato de Laura para o leitor. Nas lentes de José Moura: “uma lembrança é diamante bruto que precisa ser lapidado pelo espírito” (1988, p. 97), embora seja ele fraturado pelos sofrimentos que essas memórias possam trazer. Deste modo, as lembranças de Antônio Silva criam, no romance, uma ponte para que o leitor conheça o passado salazarista, assim como a própria Laura, sempre, obviamente, pelo olhar do outro, através das prismáticas e subjetivas “retinas tão fatigadas”, como diria o poeta gauche, da alteridade central do romance: os olhos de Antônio Silva. As lembranças funcionam como imagens de outrora, reclamadas nas nervuras de uma vida em ato, assentando-se na efetividade dos acontecimentos, fazendo cruzar a história e a intimidade. Cabe lembrar que a “História”, aqui, assume o duplo sentido, aquele de história impregnada na memória coletiva que se dobra e redobra pelos acontecimentos do período salazarista e a própria memória íntima, as lembranças da própria personagem, que aqui se revelam, passando de íntimas para o estado de públicas, recortadas do limbo dos afetos para serem trazidas aos olhos de pessoas concretas Isto, pois: “as esferas da exterioridade não são radicalmente separadas do interior” (GUATTARI, 2012, p. 117). Ainda, as memórias se elaboram pela imaginação e pelo factual discurso
da
história,
revestem-se
de
pensamento
e
fantasia,
espontaneidade e inventividade, para, numa palavra, atravessar as camadas do humano que, no fim, sentem ruir todas as memórias, assim como o sentir do último suspiro de dor e alívio:
o meu cérebro estava a afundar-se, estava a aluir corpo abaixo, já depois do coração, lentamente, a desregular o sítio de cada coisa, a queimar-se como
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em erosão pelo atrito em pedra rugosa. o meu cérebro levava-se de mim, anulando progressivamente cada memória, cada desejo.” (MÃE, 2013, p. 245).
REFERÊNCIAS: CARNEIRO, Flávio. Das vanguardas ao pós-utópico: ficção brasileira no século XX. In: _____. No país do presente: ficção brasileira no início do século XXI. Rio de Janeiro: Rocco, 2005. DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Tradução de Luiz Orlandi, Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 2006. FONTES, Maria Helena S. A revisão do passado colonial como herança da experiência e das marcas da memória. In: Anais do 24° Congresso Internacional da Associação Brasileira de professores de literatura portuguesa. Campo Grande: UFMS, 2014. GUATTARI, Félix. O novo paradigma estético. In: _____. Caosmose: um novo paradigma estético. Rio de Janeiro: Editora34, 2012. GONÇALVES FILHOS, José Moura. Olhar e memória. In: NOVAES, Adauto. O Olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014. MÃE, Valter Hugo. A máquina de fazer espanhóis. São Paulo: Cosac Naify, 2013. RICOUER, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas; São Paulo: Editora da Unicamp, 2007. FELIPE LIMA é acadêmico de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, professor de Literatura e pesquisador das letras lusobrasileiras do século XVII.
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ODE À GALINHA CAIPIRA EVANDRO DO CARMO CAMARGO ILHABELA, SP, BRASIL
Mar, oh mar, grande mar. Como sou pequenino ante a tua grandeza. Ainda assim, ouso indagar: Por que tanto te impacientas? Qual o motivo desse eterno fluir e refluir Que nada pode nunca refrear? O mar e suas infindáveis sugestões, Cantado por tantos poetas desde que a poesia existe, É grande demais para meus parcos recursos, reconheço. Mas eis que surgem aos meus pés, providencialmente, na areia, Nove pintinhos e zelosa mamãe galinha. Como resistir a quadro tão comovente? Principalmente a um dos serezinhos bípedes, Disformemente pintalgado, qual colcha de retalhos mal cosida. Até sua cabecinha está em desalinho, Como se tivesse acabado de acordar e,
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Apressado em seguir a ninhada, Não tivesse tido tempo de se pentear. Um maiorzinho, com seu andar cuidadoso, Dá uma bicada vã em uma formigona acinzentada, que foge. Estão de passagem e, ciscaciscando, se vão. E, nessa manhã de brisa forte e sol fraco, não poderia acontecer poema mais bonito do que esse.
EVANDRO DO CARMO CAMARGO
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RABISCOS DA INSÔNIA ERIC COSTA SÃO LUÍS, MA, BRASIL
Quente noite fria que com ordem ou fora de ordem os pensamentos varria Pobre lucidez aparente Efêmera e quase como miragem Do sono nos evadia Ah, sobriedade hipotética ébria como um diálogo de dialética de deuses generosos
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sem dias ociosos Eles jogam pôquer bebem, nos céus, em seu saloom terreno, eu caio em fértil insônia que de reflexões de ser, crer e ter faz o seu próprio rum sob o badalar da sinfonia enfadonha de ser de nenhum luar em lugar nenhum De ser estrangeiro eterno a respirar o ar de porquê interno por ser de algum lugar em lugar nenhum Nem toda rima acima cabia mas o que afinal é sinfonia(?) Até o pássaro preto que assobia faz tarefa pouco risonha Não há perfeita simetria em uma noite de insônia Indagar, divagar e lamentar Os muros da mente quiseram gritar Ora, vejam: rimou com criar.
ERIC DE MEDEIROS COSTA é acadêmico de Medicina da Universidade Federal do Maranhão. Vê o escapismo de seus dias, às vezes solitários, no futebol, na música, literatura e em sua própria introspecção.
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COMÉDIA DA VIDA PÚBLICA RENATO OLIVEIRA ROCHA CÂNDITO MOTA, SP, BRASIL Mais um dia para o estagiário. Aquele tinha começado cedo como todos os outros, mas a chuva atrapalhava seu deslocamento de casa para a escola. A rotina de estudante resumia-se a acordar às cinco da manhã, enfrentar ônibus lotado para estudar e mais lotação para trabalhar – atividade que o destacava entre os amigos. Enquanto todos tinham a tarde livre para jogar futebol ou ir ao shopping, o jovem se apresentava pontualmente às 14 horas no fórum para aprender com os “doutores” como era a vida séria de um homem na sociedade. Silvinho era discreto, quieto e muito tímido. Mas isso não atrapalhava seu bom desempenho com o público. Este, aliás, o agradava. Ficava contente em ajudar a quem, com toda a
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simplicidade, procurava os complicados serviços do Poder Judiciário. O jovem tinha a percepção de como os colegas de trabalho atendiam as pessoas. Na maioria das vezes, era muito impessoal; sentia-se como uma personagem do romance O processo, de Kafka e, por isso, tentava sempre analisar a situação. Para um estagiário, ele até que tinha conquistado certo respeito. Os funcionários comentavam entre si que ele tinha colocado todo mundo “no bolso”, o que muitos falastrões não conseguiram fazer. Talvez tivesse conquistado o respeito da maioria. A relação com os colegas de trabalho era de amizade – conquistada com seriedade. Apesar disso, nada impedia que delegassem atividades “de gente grande” ao jovem que, por sua vez, cumpria tudo com perfeição. Sua eficiência tinha chegado aos ouvidos do juiz – figura que ele sempre via pelos corredores, e por quem era sempre ignorado. O jovem magistrado, Doutor Silva, com pouca experiência na carreira e talvez na vida, exercia muito bem o poder que lhe fora dado: mandar. Mandava no motorista, na cozinheira e nas faxineiras, mesmo sem saber o que estava fazendo. Quando entrava na sala, os funcionários paravam para ouvir um seco “bom dia” enquanto ele olhava do alto como se procurasse algum erro ou alguma coisa fora do lugar. Suas visitas eram raras e por motivos sempre variados. Em uma delas, demonstrando falta de conhecimento prático, mandou ao chefe da seção que o motorista fosse comprar remédio para dor de cabeça. Poderia ser qualquer um, já que ele ignorava qual remédio servia para quê. Estando o funcionário ocupado, sobrou para Silvinho cumprir a ordem. Debaixo de chuva, o estagiário foi à farmácia e comprou um remédio que costumava usar em casa. Seu chefe agradeceu, demonstrando que ele não tinha feito nada além de sua obrigação. Os comentários que se ouviram foram:
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– Coitado do Doutor Silva... está com dor de cabeça. – Mas também, trabalha tanto! – Que dó! Ele é tão bonzinho, não é? Silvinho ouviu os comentários e pensou em argumentar sobre o tratamento do juiz com as pessoas, mas preferiu ficar calado. Naquele dia, voltou para casa tarde da noite, debaixo de chuva e, para piorar, seu pagamento estava atrasado. Mas nem por isso sentia-se um coitadinho e ainda ria da inexperiência do “Doutor”.
RENATO OLIVEIRA ROCHA é professor de literatura, graduado em Letras pela UNESP/Assis. Atualmente, é aluno de mestrado em Estudos Literários pela UNESP/Araraquara, com dissertação intitulada "Narrativa e representação: uma leitura de Cidade de Deus".
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UMA SEMANA TÂNIA ARDITO SÃO PAULO – PORTO Uma semana. Depois de três anos. Era apenas e todo o tempo que teriam, uma semana após três longos anos de ausência. Mas, já bastava uma semana, após três anos seis meses e quatorze dias. Esta semana surgira um pouco inesperada, quando ele avisou que estaria em uma viagem de negócios em sua cidade, os dois perceberam que chegara a hora de resolver o “assunto” adormecido. Justo agora que ela já não esperava por mais nada e que ele já seguia com a vida. Essa semana invadia as suas vidas e anunciava o caos, os sentimentos todos em ebulição; não sentiam falta, pois nunca souberam o que era sentir a falta, somente ausência e uma mesma pergunta que se repetia em seus ouvidos ao longo do tempo – como teria sido? Nunca tiveram a chance de saber e, quando nada mais era esperado aquela uma semana – talvez- traria a resposta. Não cogitaram sequer a hipótese dele ficar num hotel, não precisavam combinar e nem acertar nada, ele lá ficava, afinal sempre esteve. Ele chega, desfaz as malas e entram na rotina, passeiam, fazem compras, pagam contas, tecem planos; não CANALSUBVERSA.com
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falam sobre os anos em que estiveram afastados, o tempo suspenso, não falam dos motivos e nem das mágoas. Só existe aquele momento. Durante a semana ele não lembra que vai embora, ela não lembra que em breve ele não estará ocupando o outro lado da cama. Não perguntam um ao outro o que sentem, se correspondia ao que imaginaram, se o que que viviam naquele momento significava serem felizes juntos, apenas sentem uma cumplicidade no olhar, sabem que não precisam de palavras. Na hora de partir, ele faz as malas, ela o café. Vão de mãos dadas durante todo o caminho. Ele faz o chek-in, beijam-se demoradamente na despedida, ele entra na sala de embarque, acenam, ela vira as costas e nunca mais olham para trás.
TÂNIA ARDITO atualmente vive na cidade do Porto e é cofundadora e editora do Canal Subversa.
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OLHOS FURIOSOS
FABIO DA SILVA BARBOSA NITERÓI, RJ, BRASIL
Conheci uma menina Que apesar de pouca idade Não conseguia mais dormir Não tinha onde ir Olhos furiosos Pra onde você vai Olhos furiosos Não entendem o que você faz Olhos furiosos Não me deixe sem você Olhos furiosos O que podemos fazer A vida é o calvário Amargura e sofrimento Querem te prender
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Numa parede de cimento Olhos furiosos Vão nos afastar Olhos furiosos Não deixe que te matem Olhos furiosos Por que tudo tem de ser assim Olhos furiosos Não vá acabar Sei que vai sumir Mas nunca esquecerei Sempre você Sempre torcerei Olhos furiosos Não pare de lutar Olhos furiosos Não vá se entregar Olhos furiosos Não vá me esquecer Olhos furiosos Não aguento mais sofrer
FABIO DA SILVA BARBOSA
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MARE CLAUSUM MORGANA RECH PORTO ALEGRE, RS, BRASIL
(Em homenagem a todos os amores luso-brasileiros)
Nós. Ainda falamos a mesma língua? Porque eu me pergunto com que meios é que o amor atravessa os oceanos, e chega em terra são e salvo. Cru, implorando que alguém lhe tome conta. De que se alimenta, o amor? Este que viaja só Tanto tempo No mar.
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De que pode se alimentar um amor que chega com frio, branco como cera, e que só sobrevive no calor de um corpo quente, como a saudade que arde ainda na sombra da tua lembrança. Mas amor não nada sozinho. É que tu trazias em ti O dom de extrair E extraíste-me amor Como se árvore eu fosse. Lembras? E amor não fala, só quer chegar. Por isso vieste. chamado por intimação lunar. Intimação das Índias. Encarnação da origem natural das coisas. Esperaste chegar. Terra firme. Era cor que te faltava. não nas roupas, no peito. MORGANA RECH é psicóloga, mestre em Teoria da Literatura, doutoranda em Teoria Psicanalítica e cofundadora do Canal Subversa.
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Responsáveis técnicas: MORGANA RECH E TÂNIA ARDITO
Recepção de originais: CONTATO.SUBVERSA@GMAIL.COM Diretrizes para publicação: WWW.CANALSUBVERSA/DIRETRIZES
Colaboração especial: Deb Dorneles
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