SUBVERSA
Edição ilustrada | Obras de MARILIA MOSER
9ª Edição JAN. 2015
ESTEVAN KETZER | TAIS NAVES EVANDRO DO CARMO CAMARGO FELIPE LIMA | CÁTIA PENALVA PEDRO LIMA | TÂNIA ARDITO ELIANA MACHADO
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SubVersa | literatura luso-brasileira |
9ª Edição
© originalmente publicado em 15 de Janeiro de 2015 sob o título de SubVersa ©
Edição e Revisão: Morgana Rech e Tânia Ardito
Obras plásticas de Marilia Moser : mariliamoser@gmail.com Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados como autores desta obra. Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos textos ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem com a realidade.
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9ª Edição Janeiro de 2015
EVANDRO DO CARMO CAMARGO | © UMA GOTA DE ESQUECIMENTO | 5 PEDRO LIMA | © (DES)CONSTRUINDO A NOÇÃO DE TEXTO | 7 CÁTIA PENALVA | © AS LUZINHAS DELA | 12 ESTEVAN DE NEGREIROS KETZER | © PARTIDAS: SOBRE A MLTIPLICIDADE DE CORPOS EM “A CHAVE DE CASA”, DE TATIANA SALEM LEVY |13 TÂNIA ARDITO | © UM POUCO MAIS| 18 ELIANA MACHADO | © E AGORA, MARIA? | 20 TAIS NAVES | © O AMOR FATAL | 22 FELIPE LIMA |© DE HOMERO A VIEIRA: VISÕES PRISMÁTICAS DA ALEGORIA | 24
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EDITORIAL
Na 9ª edição da Subversa, são vários os elementos que tornam esta revista cada vez mais interessante, sobretudo, para nós que a editamos. Para
além
do
nosso
prazer
diário
em
trabalhar
recebendo textos incríveis de diversas partes do Brasil e de Portugal, apresentamos a primeira edição completamente ilustrada por uma artista plástica tão excepcional como a gaúcha Marília Moser, a quem queremos registrar neste editorial o nosso mais sincero agradecimento. Uma combinação interessante de textos literários e científicos também caracteriza a primeira edição do ano. A “ciência literária”, afinal de contas, é algo inspirador, polêmico e necessário e, portanto, que bom que os autores de resenhas, artigos e críticas se sintam bem recebidos aqui, dado que esta é, também, a nossa essência. E, claro, mais uma dose de poesia e narrativas cheias de impacto. Amor, intelecto e instintos primitivos poderão ser encontrados pelas próximas 31 páginas. Bem vindos à Subversa 2015 e boa leitura!
As editoras.
RESILIÊNCIA | MARÍLIA MOSER ACRÍLICA SOBRE TELA
DO CARMO CAMARGO UMA GOTA DEEVANDRO ESQUECIMENTO ILHABELA, SÃO PAULO, BRASIL
EVANDRO DO CARMO CAMARGO ILHABELA, SÃO PAULO, BRASIL
A estradinha sinuosa e úmida Serpenteia pela floresta tropical. A vegetação ulula, amedrontadora. As plantas esticam os braços E lambem o carro. Querem luz. Se expandem, se expõem, Se abrem ao sol, Que surge às nesgas sob a mata densa. Tudo é vegetação.
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Além da galharada, árvores de grande porte sem nome. Enormes. Intrigantes. Uma chuva muito leve e lateral Cai mansa sobre a floresta, Molhando bichos e plantas. No coração da mata As feras e as assombrações se escondem, Temerosos. Tudo é um refluir. Os músculos se descontraem, cansados. Meu cérebro, onde tudo se processa, também reflui. E ele é a mata. E a chuvinha lateral tão fresca e pura Toca de leve o tecido cerebral Escorrendo pelas reentrâncias da acinzentada noz. Leva consigo a tinta preta Com que se inscreve na memória A acidentada história do tempo. Plic.
EVANDRO DO CARMO CAMARGO
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A CAIXA | MARÍLIA MOSER TÉCNICA MISTA SOBRE TLA
(DES)CONSTRUINDO A NOÇÃO DE TEXTO
PEDRO LIMA CURITIBA, PARANÁ, BRASIL
A priori, conceituar a noção de texto aparenta ser uma tarefa rápida e efêmera: uma pessoa leiga em Linguística não exitaria em tentar fazê-lo, muito provavelmente definindo-o como um enunciado escrito e estruturado dentro do esquema começo-meio-fim. Entretanto, essa definição se mostra superficial ao ser rapidamente testada, pois ela não abarca uma série de nuances e possibilidades. Dentro da literatura há claros exemplos: ao seguir tal conceito à risca, um romance como Lolita, do escritor russo Vladimir Nabokov não seria um texto, uma vez que a história, em suas primeiras páginas, já revela o desfecho da trama a ser apresentada: o fictício professor de filosofia John Ray escreve um breve relato sobre como a obra chegou às suas mãos, bem como o destino final de vários de seus personagens e emite impressões sobre eles. A obra se propõe, portanto, a mostrar ao leitor como a trama chegou ao ponto em questão. Lolita, considerado
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um clássico da literatura mundial, se constrói na cabeça do leitor a medida que a leitura avança, como um quebra-cabeças: as peças vão se encaixando conforme o leitor as conhece e as “experimenta” 1 (o experimento aqui é considerado as possibilidades de como a história obteve o seu final, revelado no início do texto). O poema As meninas da Gare, de Oswald de Andrade, também apresenta um fenômeno peculiar: ao lê-lo, sem procurar realizar uma análise muito elaborada de sua leitura, o leitor verá nele a descrição de um grupo de meninas bonitas e pueris. Ao saber, no entanto, que a expressão do título tem origem no francês e que originalmente se refere às profissionais do sexo que trabalhavam perto de estações de trem, o leitor não verá mais inocência alguma nas meninas descritas no poema do escritor modernista – ou, ao menos, não verá tanta inocência como via antes. Ao saber, também, que o poema é a transcrição literal de um trecho da carta escrita por Pero Vaz de Caminha ao Rei Dom Emanuel I em que o navegante descrevia as suas primeiras impressões ao chegar no que hoje é o território brasileiro, o leitor também não fará a mesma leitura feita inicialmente. Uma leitura breve e passageira gerará uma interpretação específica de As meninas da Gare, a qual possui o seu próprio sentido. Uma leitura apurada e minuciosa, na qual se procura obter informações extras que venham a acrescentar novas conclusões, gerará uma outra interpretação do poema. E ambas são sustentáveis e possíveis de serem mantidas dentro das dimensões em que se apresentam. Está claro, pois, que Lolita e As meninas da Gare não são leituras convencionais. Contudo, ambas apresentam uma coesão (logicidade) e coerência (sentido) inegáveis, ainda que a seu próprio estilo. Essa afirmação é considerada hoje um dos maiores princípios da Linguística Textual. A professora de Linguística da Universidade Estadual Para mais informações sobre esse assunto, recomenda-se a leitura do capítulo Coerência, do livro A Tessitura da Escrita, de Iara Bemquerer Costa e Maria José Fontran.
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de Campinas Ingedore Koch – uma das maiores autoridades brasileiras dentro da área – afirma em seu livro O texto e a construção dos sentidos, lançado em 1997, que “… se a coerência não está no texto (…) ela deve ser construída a partir dele (…)”. Logo, o esquema anteriormente mencionado, começo-meio-fim, pode não se apresentar sob parâmetros considerados comuns, mas ele se comporá diante do leitor assim que ele ler o texto que lhe for apresentado, qualquer que seja ele. Dessa forma, uma nova definição de texto se faz necessária, mais abrangente e ampla do que a supracitada. Com base nos dados discutidos, é possível definir o texto como sendo “todo enunciado que vise transmitir uma mensagem ao longo de sua leitura”. Ainda que essa nova definição seja mais precisa do que a anterior – a qual é pautada apenas no senso comum – ainda é possível questioná-la e problematizá-la: todo texto é compreendido somente através da leitura de um enunciado escrito? Evidentemente, não. Pensemos num congresso, por exemplo: o palestrante transmite uma mensagem aos seus ouvintes e a sua fala está estruturada dentro do esquema começo-meio-fim, o qual pode se apresentar, conforme já demonstrado, de diversas formas. Ele pode utilizar artifícios pouco convencionais para alcançar o seu alvo, como, por exemplo, falar sobre uma tribo indígena isolada na Selva Amazônica para explicar suas ideias sobre economia ou apresentar um trecho da Bíblia à plateia e revelar que ele faz parte dessa obra após propôr reflexões sobre outros assuntos, visando assim uma meta que, até determinado momento, apenas ele conhecerá. Ainda assim, ao terminar a sua palestra, os ouvintes sairão dela com uma mensagem bem clara em suas cabeças, podendo tecer comentários e conclusões logo depois. Logo, a conclusão de que o conferencista transmitiu um texto aos seus ouvintes é inevitável de se chegar. Ainda que textos transmitidos oralmente e pela escrita possuam mecanismos próprios de articulação
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e estratégias específicas para interagir com o leitor, impedindo-o que ele se canse e se entendie, ambos possuem um objetivo claro: transmitir uma mensagem. Embora um desenho também contenha uma mensagem, defini-lo como texto seria uma atitude precipitada, devido à sua alta carga de subjetividade e à noção de que ele está atrelado à arte – que pode muitas vezes ser abstrata, ou seja, o autor do desenho em questão pode não querer transmitir absolutamente nada com ele – compromete uma análise dele como pertencente à categoria texto. Para fins didáticos, não entrarei nessa discussão. Uma nova definição de texto, após as análises aqui feitas, se apresenta: toda manifestação linguística oral ou escrita que vise transmitir uma mensagem, sendo a mesma estruturada dentro do esquema começo-meio-fim. Ainda que esse esquema não esteja claro em alguns casos, é possível traçá-lo e identificá-lo: um grito de socorro é nitidamente um texto2. O emissor transmite, ao gritar tal palavra, uma mensagem com começo (“Não estou bem.”), meio (“Preciso de ajuda.”) e fim (“Alguém venha me ajudar!”). Com tal definição em mãos, é possível compreender melhor a própria origem da palavra texto: ela vem do latim TEXTUM, que significa tecido. Como todo tecido, o texto entrelaça (no caso, ideias), une (através dos articuladores) e visa formar um todo. É curioso notar também que, assim como o texto, o número de arranjos possíveis que fios podem fazer para formarem juntos um tecido é imenso. Com novos testes, a possibilidade de que novas definições de texto surgirão com o tempo não deve, em hipótese alguma, ser descartada. Espera-se, no entanto, que o presente texto tenha cumprido o seu objetivo de origem: contribuir para a Linguística Textual através
do
levantamento
de
questionamentos
e
análise
de
probabilidades. Stammerjohann (1975) foi o primeiro a definir um grito de Socorro como sendo um texto.
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Referências bibliográficas: KOCH, Ingedore. O texto e a construção dos sentidos. São Paulo: Contexto, 1997. COSTA, Iara Bemquerer e FOLTRAN, Maria José (org). A tessitura da escrita. São Paulo: Contexto: 2013. BENTES, Anna C. Linguística textual. In. MUSSALIM F. E BENTES, Anna C. (Orgs.) Introdução à linguística: Domínios e fronteiras. S. Paulo: Cortez, 2001. NABOKOV, Vladimir. Lolita. Tradução de Jorio Dauster. Rio de Janeiro: O Globo, 2003. ANDRADE,
Oswald
de.
As
meninas
da
Gare.
Disponível
em
<http://www.portugues.com.br/literatura/oswald-andrade---modernistarevolucionario-.html>. Acesso em: 03/12/2014.
PEDRO LIMA é aluno de Letras da UFPR, trabalha atualmente como tradutor para o site Literatortura.
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PURIFICAÇÃO | MARÍLIA MOSER ACRÍLICA SOBRE TELA
AS LUZINHAS DELA
CÁTIA PENALVA VIANA DO CASTELO, PORTUGAL
E depois foi sempre assim: Ligava a rádio, enquanto esperava que todas as luzinhas se apagassem do painel atrás do volante. Retocava batôn, que nunca antes usara, inspecionava cabelo, rímel, unhas e decote. Sorria. «Ok, podemos seguir», afirmava de si para si: para a lágrima de si; soterrando no estômago, que jejuava há dois dias, a voz insípida do médico: «o tumor cerebral confirma-se». Ouvia a rádio, enquanto esperava que todas as luzinhas se apagassem.
CÁTIA PENALVA já foi professora do primeiro ciclo do ensino básico e agora é Mestre em Educação Artística e dá formação de escrita criativa na sua cidade.
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NOVELOS| MARÍLIA MOSER ACRÍLICA SOBRE TELA
PARTIDAS: SOBRE A MULTIPLICIDADE DE CORPOS EM “A CHAVE DE CASA”, DE TATIANA SALEM LEVY
ESTEVAN DE NEGREIROS KETZER PORTO ALEGRE, RIO GRANDE DO SUL, BRASIL
“Essa viagem não tem porque existir, nem de verdade nem no papel.” Tatiana Salem Levy A obra A chave de casa, de Tatiana Salem Levy, não se limita a expor uma viagem turística até a casa de seu avô na Turquia, mas ela tenta compor sua história, chegando ao absurdo de esvaziamento de sua busca. A casa, afinal, já não existe se não em sua fantasia, nas lendas e na história de uma comunidade que enxerga na lei de Moisés mais do que uma mera obrigação moral, mas justamente na lei que não consegue ser seguida, o mandamento que não se compreende, raiz dos problemas modernos entre o nosso desejo e a busca de sua saciedade. Essa constatação leva a autora à pergunta: quem sou eu diante de mim mesma? Se evitarmos essa pergunta a conseqüência será CANALSUBVERSA.com
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desastrosa, mais cedo ou mais tarde, pois essa pergunta, de cunho interno, nos leva irremediavelmente a observar o outro, o outro que está em mim e que veio fora de mim. Estamos nesse sentido presos a nossa opção de olhar uma coisa como ela mesma ou como um contato entre coisas diferentes; entregarmos ao certo estado das coisas, ou deixar as coisas saírem do nosso controle. A possibilidade de ver as coisas reunidas nos leva à ética, a algo mais do que uma mera classificação do mundo. Com os movimentos do mundo a autora também acontece. O outro está entre nós. Por que será essa a história que Tatiana nos apresenta ser tão difícil de ler quando tão próxima dela mesma? Ler esse outro criptografado em nós, como uma antiga escrita há muito esquecida, tal como Gabriel García Márquez fez em Cien años de soledad, ao realizar um encontro com a escrita esquecida, eis que a história começa a despertar. Há algo de incerto, inconcluso e remoto ali guardado. A mente consciente descobre, aos poucos, o que o corpo não sabe ter vivenciado e que, no entanto, sempre esteve lá. Eis o recalque freudiano, mudando de nome, gritando por vezes, em outras circunstâncias, desejoso dos disfarces, a embalar o sono e impedindo o contato do corpo com a mente. A experiência surge pelo desafiador aparecimento de um não no lugar tranquilo da aparente natureza das coisas. Tatiana nos faz lembrar, com o velho ritual judaico do Hosh hashaná (ano novo), a partilha do pão ázimo, sensação do deserto no coração das pessoas; e da maçã com mel, representando a fartura do ego. Nesta cerimônia, o deserto é a metáfora do egoísmo em nossa relação com os outros, quando não conseguimos realizar um gesto de doação ao outro, sofrimento durante a escravidão no antigo Egito; e a maçã como o merecido doce da vitória sobre o sofrimento devido ao exílio forçado em busca da “terra santa” (Eretz Israel). Tatiana nos interroga, em seu trânsito migratório, na origem estranha do povo brasileiro, se não somos também todos judeus, se de fato não estamos
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todos sob a ação de uma mesma lei, cujo contato perdemos: essa lei do outro provoca a narradora, num esforço sem fim de poder contar pessoalmente essa história, busca de um jeito inteiramente seu de dar corpo a esta sensação. Talvez o primeiro instante seja ainda uma descoberta desse seu mundo interno. Descobrir o que esse estranho corpo quer dizer, estranhas palavras, estranhos desejos, advindos de uma estranha cultura, muito antiga, quase desaparecida pelas perseguições. É um corpo que viaja, impreterivelmente. Ele viaja guardando um segredo. A mente registrando, depois de certo tempo; a vagina gozando, no instante seguinte. A criação de um corpo novo, como o Homem vitruviano de Da Vinci, mas fora do papel. Entretanto, há aqui um interregno: um desenho visa clarificar, facilitar a entrada do esboço de uma ideia, mas a mente humana não suporta o insuportável, isto é, a verdadeira origem do sofrimento, adquirindo um sintoma para dar conta. Sofrer porque não se pode habitar um caminho verdadeiro sem “isso” (Es) da linguagem freudiana, esse “isso” que me interpela repentinamente e invade meu modo de sentir. Um “compromisso” que a palavra hebraica emuná denota ao demonstrar o desafio entre um corpo e um mundo, girando em sentidos contrários. O corpo foi obrigado a observar que a lei do mundo tinha um sentido também e assim a irremediável constatação de que o mundo está fora da mente, sem origem quanto ao nascer, sem destino quanto ao morrer. Mundo que gera uma angústia na alma, sem horizonte. Um corpo, embrião de uma responsabilidade para além de si. Responsabilidade política. Politizar esse corpo, por já começar a descobri-lo, nesses territórios fora da lógica e do conhecimento empírico, fora da ciência e da consciência que padroniza as coisas na mesmidade mundana do eterno sempre. Essa descoberta que a mãe da narradora fez com a política, a crítica de sua geração contra a ditadura de Salazar em Portugal. A sina segue: ser caçada em Portugal,
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ser caçada na Suméria, ser caçada na Palestina, ser caçada na Espanha, ser caçada na Turquia, ser caçada em Auschwitz e chegar ao Brasil com o cansaço do corpo de todos os corpos de um passado imemorial. Quantos corpos sem vida em 5775 anos de história? Desse judaísmo que partilha ritos quebrados, deslocados de uma ordem do mundo tornando caça aqueles que desobedecem as pretensas autoridades de uma única e mesma política que regulou sempre os corpos e os pensamentos. Política inquisitória e sua continuidade através das ditaduras do século XX. Nesse ato contestatório, a política materna reverbera na arte literária da filha. A tradição continua seu reflexo fantasmático, a despertar de um grande sono lentamente. Tatiana escreve, dando vida à voz de sua mãe:
“Você sabe, essa dor que sinto no corpo, os ombros pesados, é o passado não esquecido que carrego comigo. O passado de gerações e gerações. [Não, minha filha, o que você suporta em seu dorso frágil são os silêncios do passado. Você carrega o que nunca foi falado, o que nunca foi ouvido. O silêncio é perigoso, eu a alertei.]”.
Essa voz vinda de um outro lugar, de um outro tempo, desautorizado e ainda impreterivelmente indagador, em sua tentativa desesperada de trazer os escombros de uma caçada incessante. Judeus na cumplicidade de sua judeidade, revelando o temor da nomeação e com ele todo o perigo de um poder absolutista. Pensar é um pesar, como nos provoca o filósofo espanhol Reyes Matte em sua máxima acerca do povo sem território, errante, ainda à espera de um tempo
que
se
faça
como
descoberta
da
vida
que
vem
repentinamente. São tão remotas estas palavras a ponto de não suportarem ídolos de barro ou falsas promessas de paz? Nesse momento
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a questão vem à tona: quem sou eu sem esse estranho corpo que me carrega enquanto eu busco meu mundo? Um gesto que se exige fora da página, uma nota em um antigo alfarrábio hebraico. O fim dos ídolos gera outros ídolos? Qual a paz que não é erguida após uma grande batalha? Dentro da página a sequência de paradoxos que levam sempre à mesma pergunta: quem somos quando o outro chegar? E a partir daqui começa ou recomeça a viagem em busca desse estranho esforço decifratório, pelos interstícios de uma sabedoria secreta: Ein sof, o infinito e sua lei própria, base da eterna arte da criação também reverbera dentro de nós.
Referência
LEVY, Tatiana Salem. A chave de casa. São Paulo: Record, 2007.
ESTEVAN KETZER é psicólogo clínico. Doutorando em Letras pela PUCRS. Pesquisa a relação entre poesia, filosofia e psicanálise na obra do poeta Paul Celan. Além de ensaísta. é poeta.
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ALÍVIO | MARÍLIA MOSER ACRÍLICA SOBRE TELA
UM POUCO MAIS
TÂNIA ARDITO SÃO PAULO – PORTO
“Será que é tempo Que lhe falta pra perceber? Será que temos esse tempo Pra perder? E quem quer saber? A vida é tão rara Tão rara” Lenine “Só te peço um pouco mais”… é tudo o que ela não quer ouvir! Já perdeu a conta de quantas vezes em sua vida a palavra se repetiu; -paciência! Era como um karma, uma perseguição, em tudo só pediam que tivesse paciência: na fila, no mercado, no hospital, na repartição pública… no raio que parta a puta da vida. E agora que tudo é tão urgente; dor, frio, fome, sede, amor, tesão…
quando não há mais
forças para esperar… e no momento em que sente a ponta do pé
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alcançar o vazio do abismo…
ele só pede “um pouco mais de
paciência”.
TÂNIA ARDITO atualmente vive na cidade do Porto e é cofundadora e editora do Canal Subversa.
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MOÇA FLORIDA | MARÍLIA MOSER ACRÍLICA SOBRE MADEIRA
E AGORA, MARIA?
ELIANA MACHADO SÃO PAULO - MÔNACO
Homenagem a um dos maiores poetas de todos os tempos: Carlos Drummond de Andrade “As estrelas estão fechadas. Volte outro dia” Dizia o cartaz no pé da serra. O que fazer, Maria? E agora, Maria? Sua roupa está lavada Sua casa arrumada E a comida preparada. A mesa posta A cama feita O pó tirado
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E sua alma... Despedida. E agora, Maria? Se você soubesse, Se você cantasse, Se você escrevesse Uma comédia musical Para o teatro da vida Aquela que teve, um dia. E agora, Maria? Você quer chorar Mas as lágrimas secaram Você quer gritar, Gritar para quê? Ninguém a ouve. Você quer morrer, Mas o céu está fechado. Nem sequer você tem escolha... E agora, Maria? E se você trocasse de filosofia? Vai, Maria, vai pro Inferno.
ELIANA MACHADO nasceu em São Paulo e vive na França desde 1994. É especialista em línguas e literaturas hispânicas. Já lecionou diversas línguas e traduziu Luiz Alfredo Garcia-Roza. EM 2015, lançará “Sete Contos Brasileiros” e “Brasil: Aventura Interior”.
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TAIS NAVES
ACRÍLICA SOBRE TELA
CHUVA DE FLORES NEGRAS | MARÍLIA MOSER
O AMOR FATAL
NEPOMUCENO, MINAS GERAIS, BRASIL
Dedicado à Célia, uma pessoa especial.
O relógio bate as horas marcando o momento em que minha alma se entregaria a tua O relógio que bate as horas marcando a nossa convivência e confiança Os anos que se passam: mais que segundos, minutos e horas, são anos somente ao teu lado Belos anos! Belos! Belos! O vento que tocou nos meus cabelos no momento em que me entregava de corpo e alma. Quando me vi entrelaçada ao destino inesperado. Acreditei em vão por anos num laço que não existia, pensei que esse era um lindo laço, mas na verdade era um nó. Levando palavras ao vento e fotos que viraram apenas papéis rasgados Suas suspeitas eram incabíveis. Fui condena por ti por um crime que não cometi. CANALSUBVERSA.com
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Ah! Suas suspeitas intimando-me e assim acabar com o nosso amor. Oh dor, saia de mim agora! Saia da minha vida! Ah! Minha vida! Era mentira que eu poderia confiar minha alma na eternidade contigo como prometido, foram apenas palavras ao vento. Amor! Essa palavra me dói, fere como lança no peito. Um rifle engatilhado preparado exato como alvo para acertar o meu peito já ensanguentado. Desejo forte de aliança jogada fora, anos, fotos, lembranças. Saio correndo sem destino no meio da mata com raiva, mágoa-Abro um buraco e enterro o passado, aliança que está no meu dedo fica ali. Levanto a cabeça, lágrimas ao cair, sem olhar para trás. Lembranças vão me atormentar, mas o rifle não me atingirá.
TAIS NAVES Sonha em ver o mar, viajar para vários países, conhecer outras culturas, fazer um centro educacional e centro de adoções para animais abandonados. Pretende, também, escrever vários livros. E como a vida para ela é só o começo, afirma que há de sonhar isso e muito mais.
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ACRÍLICA SOBRE TELA
FELIPE LIMA
FELIPE LIMA
BÁRBARA | MARÍLIA MOSER
DE HOMERO A VIEIRA: VISÕES PRISMÁTICAS DA ALEGORIA
RIO DE JANEIRO, RIO DE JANEIRO, BRASIL
Este texto tem como proposta refletir sobre o conceito de alegoria em dois momentos paradigmáticos da história literária: o período helênico e a Península Ibérica do século XVII. Desenvolveremos, para isso, uma dupla focalização, partindo, em primeiro lugar, de uma preparação de um instrumental teórico que nos possibilite remontar um painel em que se exponha os procedimentos retórico-poéticos pertinentes ao tempo em questão; em seguida, buscaremos traçar um cruzamento entre o modus operandi da alegoria no texto homérico e na sermonística de Antônio Vieira. Mais precisamente, falaremos do escudo de Aquiles 3 , cuja descrição está presente na Ilíada, como alegoria do poder, assim como assinalaremos o cruzamento tropológico engendrado na épica homérica que se transmuta em alegoria da mais engenhosa formulação; paralelamente, também abordaremos como o
Para um aprofundamento nos outros sete escudos analisados, cada um, sob o prisma da cena central da tragédia esquiliana “Sete contra Tebas”, ver Vernant, 2011. 3
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texto de Antônio Vieira, enquadra-se em uma categoria alegórica distinta. Para êxito da tarefa que esse texto se incumbe, cabe destacar que não se trata de um trabalho de comparação, propriamente, mas de usar esses dois representantes da história literária universal como eixos canalizadores de uma produção alegórica insuperável. Espero que as breves observações aqui esboçadas consigam alguma sintonia com o movimento da obra de Antônio Vieira, com o ritmo singular de suas concepções, bem como com a épica homérica, possibilitando, assim, um cruzamento proveitoso com a produção teórica e a literária. Além disso, não cabe, neste trabalho, discutir as arestas do conceito de literatura, mas, notifica-se, de antemão, que o aspecto “literário” atribuído aos textos de ambos os autores aqui em foco, serve, em sentido lato sensu, como instrumento de menção ao objeto ao qual nos debruçamos. Nesse contexto, respeita-se o espaço temporal que separa ambos os autores dos valores iluministas os quais plasmam uma noção distinta de literatura. Sendo assim, serão conservadas as ideias e os valores do tempo de cada autor, para que não sejam reproduzidas as concepções estéticas de um conceito neokantiano. Para melhor contextualizar o tema abordado, é oportuno ressaltar, ainda, que o conceito de alegoria sofreu modificações segundo à concepção de cada tempo, recebendo nomeações e atribuições de acordo com a configuração do pensamento vigente de cada momento histórico específico. Primeiramente, na Retórica antiga esse conceito consistia em uma modalidade da elocução, uma espécie de “procedimento construtivo” (HANSEN, 2006, p. 7) que a Antiguidade greco-latina e cristã, continuada pela Idade Média denominou “alegoria dos poetas”. Tal conceito é fundado na expressão alegórica, uma “técnica metafórica de representar e personificar abstrações” (2008, p. 8). Nas práticas discursivas da Antiguidade, a alegoria era posta em
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oposição retórica ao sentido próprio e ao sentido figurado cujo segundo termo, considerado o „desvio‟, é posto em lugar do primeiro termo, considerado „próprio‟ ou „literal‟, transmutando-se a significação de um objeto a outro, para - em um movimento de transposição, como assinalava Aristóteles no proêmio do livro terceiro da Retórica - produzir novas significações a partir de pontas semânticas afastadas. Distintamente dos poetas épicos greco-romanos, medievais e autores hebraicos do Velho Testamento – dá-se o surgimento de outra alegoria denominada “alegoria dos teólogos”. Esta, por sua vez, também denominada, às vezes, de figura, figural, tipo, antitipo, tipologia, exemplo (cf. Ibidem, p. 8). Ou, quando mais: ambages, effigies, exemplum, imago, similitudo, species e umbra e, mais à frente, allegoria – palavra latina usada como prefiguração histórica (cf. AUERBACH. 1997 27). De modo diferente da prescrição da retórica antiga, essa outra alegoria não consiste em um modo de expressão verbal retóricopoético, mas de uma interpretação religiosa de coisas, homens e eventos figurados em textos sagrados. Sendo assim, a rigor, não se trata simplesmente de uma conversão, meramente, conceitual, mas de uma alteração significativa no processo alegórico. Em primeira instância, tem-se uma alegoria construtiva ou retórica – alegoria dos poetas; de outro modo, uma alegoria interpretativa ou hermenêutica – alegoria dos
teólogos, podendo-se
afirmar serem
ambas simetricamente
diversas, mas complementares, pois, “como expressão, a alegoria dos poetas é uma maneira de falar e escrever; como interpretação, a alegoria dos teólogos é um modo de entender e decifrar.” (HANSEN, 2006, p. 8). Genericamente, pode-se compreendê-las pela sua matriz semântica, que, nesse caso, configura-se segundo um substrato básico: a alegoria dos poetas é fundamentada na semântica de palavras, enquanto a dos teólogos é uma “semântica” de realidades reveladas, supostamente, por coisas dispostas no mundo.
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Para maior eficácia, façamos um movimento de recolha no texto – esforço natural das práticas textuais seiscentistas – e comecemos analisar o cunho alegórico do escudo de Aquiles, imagem capital nos versos da Ilíada. Não é sem admiração que observamos “o grande e maciço” escudo com o qual Aquiles voltará ao campo de batalha para a conquista definitiva do seu destino, que selará o próprio destino dos Aqueus e da guerra de Tróia. No momento que o escudo é descrito, o discurso opera numa eloquência estrondosa, revelando um outro escudo, feito de linguagem, refratário a tudo que não seja investimento de uma necessidade interna da épica, enquanto objeto estéticofilosófico. Na própria, monumental, descrição homérica:
Fez primeiro um escudo grande e robusto, todo lavrado, e pôs-lhe à volta um rebordo brilhante, triplo e refulgente, e daí fez um talabarte de prata. Cinco eram as camadas do próprio escudo; e nele cinzelou muitas imagens com perícia excepcional. Nele forjou a terra, o céu e o mar; o sol incansável e a lua cheia; e todas as constelações, grinaldas do céu: as Plêiades, as Híades e a Força de Oríon; e a Ursa, a que chamam Carro, cujo curso revolve sempre no mesmo sítio, fitando Oríon. Dos astros só a Ursa não mergulha nas correntes do Oceano. (Ilíada, XVIII VV.478-608) Na comparação entre imagem e texto pode-se notar que tamanha descrição é única e não fica a desejar à imagem real do escudo. Nesse caso, todos os motivos humanos e naturais estampados
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por Hefesto na camada externa da admirável arma constituem um verdadeiro
“escudo”
literário,
refletindo
as
ressonâncias,
os
espelhamentos, os paradigmas, as recorrências do contexto épico narrado na Ilíada. Na chave de leitura de Werner Jaeger, na sua Paidéia, esse escudo é o “símbolo da concepção épica do homem” (cf. 1994, p. 77) que alcança seu auge na representação iconografia e na descrição em detalhe pela Ilíada. A riqueza de detalhes, como amplitude iconográfica, junto à exímia descrição no texto épico, feita por Homero, atribui ao escudo um valor de grande prestígio. Além disso, faz valer o importante papel ocupado por Aquiles no texto, uma vez que não só por ser o ilustre guerreiro, ainda recebe as melhores armas que o engenhoso Hefesto pôde produzir. O escudo - enquanto instrumento bélico - demonstra a nobreza de Aquiles que detém uma arma indestrutível e o destaca como idôneo guerreiro entre os demais. Na esteira da questão que se explora, o escudo, portanto, é a alegoria do poder de Aquiles, consistindo em uma “alegoria dos poetas” criada por Homero na descrição que faz no canto XVIII da Ilíada. Isso se dá através da transferência do “poder” - sentido figurado que representa o valor do escudo – para a própria materialidade do escudo – o sentido próprio. Em outras palavras, o escudo representa, tropologicamente, o poder e a glória de seu detentor – Aquiles. E mais: operando essa transmutação entre os lugares-comuns das pontas semânticas, a alegoria se concretiza plenamente, pois desloca o valor simbólico do termo “poder” para o objeto que emana o poder e glória do ilustre guerreiro, relacionando-os na mesma esfera significativa do campo semântico da guerra. Desse modo, a “alegoria dos poetas” com seu aspecto assimilativo possibilita relacionar dois objetos independentes e projetar uma correspondência entre eles, como assim faz Homero, em relação ao sentido de “poder” que detém o grande guerreiro grego Aquiles e o
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material impecável descrito no escudo feito por Hefesto. Em claras palavras, Adolfo Hansen apresenta o cerne da diferença entre ambas as alegorias, apontando que:
Segundo a alegoria greco-romana e suas retomadas, o mundo é objeto de representação própria e figurada pela poesia e prosa; segundo alegoria hermenêutica, desde sempre existe uma prosa do mundo a ser pesquisada no mundo da prosa bíblica. (2006, p. 91). Seguindo tal pista deixada por Hansen, pode-se enxergar a questão segundo um prisma cristalino: a alegoria criada nos versos da épica homérica não tem valor essencialista, isto é, sua relação significativa acontece entre os dois elementos, o “poder” e o “escudo”, sem que, inerentemente, carreguem uma carga de essencialismo. Em poucas palavras, trata-se de um objeto que representa, ou melhor, possibilita representar um conceito: o poder. Diferentemente, o mesmo conceito tomará noções na Idade Média que atribuem a ele um sentido espiritual, segundo os preceitos escolásticos. Nesse caso, tem-se como exemplo, Antônio Vieira, exímio jesuíta, cujo fundamento de todo seu sermonário é uma “teatralização retórica da teologia política” (HANSEN, 2008, p. 9), ou melhor, um autêntico theatrum sacrum cuja natureza da sermonística se agrupa a uma unidade composta por uma “cenografia em que, por alegoria e por anamorfose, a actio oratória [do] Padre dramatiza os fins últimos do Estado português” (Ibidem, 2008, p. 10). Posto desta forma, a natureza alegórica da Idade Média e da época de Vieira modificou-se profundamente em relação à “alegoria dos poetas”, pois àquela é introduzido um novo elemento de funcionalidade: o essencialismo. Todo pensamento escolástico está vinculado, tomisticamente, a uma questão inerente ao pensamento vigente da época: a presença de Deus em todas as coisas. Formado
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sob a égide jesuítica, Vieira imprime o caráter essencialista em seus textos, reproduzindo algo que ainda não era característico da concepção alegórica dos poetas clássicos. Sendo assim, a arte parenética do século XVII define-se por: “semear as palavras de Deus e fazê-las frutificar no coração dos fiéis e no corpo místico do reino” (PÉCORA, 2001, p.136). O sermão, por sua vez, constituiu-se, nas palavras do Autor que nos vem acompanhando por aqui, como uma autêntica:
Imperial máquina de guerra que captura com os arquétipos do direito natural, tritura com os conceitos predicáveis e refina com as agudezas dos conceitos as ocasiões e as matérias do livre-arbítrio dos atores, dirigindo-se para o fim sabido antes mesmo de que a peça começasse: futuro do pretérito. (HANSEN, 2008, p. 15) A alegoria talvez seja um dos principais conceitos do repertório retórico-poético que se modificou, apresentando adequações de acordo com a vigência do pensamento de cada época, até receber aspectos que a moldaram segundo um imaginário fundido na unicidade de uma verdade – o cristianismo (cf. COSTA LIMA, 1988, p. 26). Assim sendo, Antônio Vieira é um dos maiores representantes da produção dessa distinta configuração alegórica, ilustrando com nitidez em seu famoso “Sermão da Sexagésima” que se deve “dobrar as flores da eloquência ao serviço de um pensamento militante”. Em síntese, retórica e poética jamais assumem posição independente como artes discursivas, estando sempre subordinadas a um critério de verdade preexistente no âmbito da moral cristã (cf. OLIVEIRA, 2005, p. 26). Pelo caminho traçado aqui, já se pode vislumbrar como, em dois momentos paradigmáticos, essa ferramenta, recorrente na longa e fecunda
tradição
poética,
metamorfoseou-se,
produzindo
funcionalidades distintas segundo os prismas de cada época. No caso, vimos que a construção alegórica que é representada pelo escudo de CANALSUBVERSA.com
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Aquiles é estabelecida em proporcionalidades semânticas da mesma esfera, a guerra, à medida que o ornamento retórico-poético em Vieira só pode ser aceito se for estritamente submetido ao critério de utilidade. Além disso, o escudo, enquanto máquina de guerra representa o poder e o prestígio de Aquiles entre os gregos, ao passo que o engenho alegórico de Vieira representa uma eficaz máquina ideológica, que busca contrapor ao prazer lúdico da linguagem a rentabilidade moral que dela se extrai. REFERÊNCIAS AUERBACH, Erich. Figura. São Paulo: Ática, 1997. COSTA LIMA, Luiz. O fingidor e o censor: no ancien regime, no Iluminismo e hoje. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988. FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Lisboa: Edições70, 2005. HANSEN, João Adolfo. Alegoria: construção e interpretação da metáfora. São Paulo: Hedra; Campinas; Editora da Unicamp, 2006. ________. “Prefácio”. In PÉCORA, Alcir. Teatro do Sacramento: a unidade teológico-retórico-política dos sermões de Antônio Vieira. São Paulo: EDUSP, Campinas: Editora Unicamp 2008. HOMERO. Ilíada. São Paulo: Ediouro: s/d. JAEGER, Werner W. Paideia: A formação do homem grego. Trad. Arthur Parreira. 3° ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994. LAUSBERG, Heinrich. Elementos de retórica literária. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1982. PÉCORA, Alcir. Máquina de Gêneros. São Paulo: EdUSP, 2001. _______. Teatro do Sacramento: a unidade teológico-retórico-política dos sermões de Antônio Vieira. São Paulo: EDUSP, Campinas: Editora Unicamp 2008. VERNANT, Jean Pierre. “Os escudos dos heróis. Ensaio sobre a cena central dos Sete contra Tebas”. In ______. Mito e tragédia na Grécia Antiga. São Paulo: Perspectiva, 2011. VIEIRA, Antônio. Sermões. Vol 1. Org. de Alcir Pécora. São Paulo: Hedra, 2000. FELIPE LIMA é acadêmico de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, professor de Literatura e pesquisador das letras luso-brasileiras do século XVII.
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