Revista subversa vol 3 n º 2 ago2015

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SUBVERSA Vol. 3 | N.º 2 |AGOSTO/ 2015

ISSN 2359 5817

VOLUME 3 | NÚMERO 1

Telas | YGOR RADUY

RENATA GUADAGNIN | LUCIANA TISCOSKI MARCELO DE ARAÚJO | RUBENS CANARIM JOSÉ LUIZ DA LUZ | FELIPE LIMA | LUCAS ROLIM SUSANA MACHADO | EDUARDO H. VALMOBIDA ANA NORIEIRO Entrevista: LISANDRO MOURA, sobre “Narradores de Bagé”


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Subversa | literatura luso-brasileira | V. 3 | n.º 02

© originalmente publicado em 15 de agosto de 2015 sob o título de Subversa ©

Edição e Revisão: Morgana Rech e Tânia Ardito

Ilustrações YGOR RADUY | GRANDESERTAO@GMAIL.COM

Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados como autores desta obra. Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos textos ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem com a realida


SUBVERSA VOLUME 3 | NÚMERO 02 | AGOSTO DE 2015

RÉQUIEM PARA HILDA HILST | EDSON COSTA DUARTE | 5 LÁGRIMA |RENATA GUADAGNIN | 14 O ANJO | RUBENS CANARIM | 16 ÁREA DE BROCA| LUCIANA TISCOSKI | 20 CINCO ANOS ANTES | MARCELO DE ARAÚJO | 26 O DEVIR-ESCREVER E O PARADIGMA SIMULACRAL NO LIMIAR DA ESTÉTICA ROMANESCA DE JOSÉ SARAMAGO | FELIPE LIMA | 32 A DECAPITAÇÃO REVERSA | ANA NORIEIRO |42 O VULTO POR TRÁS DO MEDO | SUSANA MACHADO | 45 CÁDAVER | JOSÉ LUIZ DA LUZ | 48 ESTILHAÇOS DO SILÊNCIO | LUCAS ROLIM | 50 MANCHA MUDA DE VIDRO |EDUARDO H. VALMOBIDA | 53 Entrevista | LISANDRO MOURA e o “Narradores de Bagé” | 57


EDITORIAL

Apresentamos o nº2 do Volume 3 com um entusiamos renovado, principalmente graças à afetividade com que foi recebido o primeiro número, que marcou o aniversário da revista. Deixamos registrado aqui o nosso agradecimento

a

todos

que

parabenizações e incentivo.

nos

enviaram

mensagens

de

apoio,

Neste número nos sentimos particularmente

felizes por termos reunido autores estreantes, muitos dos quais chegam à revista através de indicações dos “autores da casa”, que colaboram conosco de forma mais frequente e que sabem como são importantes para o desenvolvimento da Subversa. O leitor também encontrará o ensaio de Felipe Lima, baseado no livro O ano da morte de Ricardo Reis de José Saramago, além de reencontrar Alberto (personagem de O último funeral de Lênin, publicado no nº anterior), no conto de Marcelo de Araújo, Cinco Anos Antes de estar no seu alfaiate preferido e em meio a uma crise diplomática. Outro destaque deste número é a entrevista que nos foi concedida por Lisandro Moura, idealizador do projeto Narradores de Bagé, desenvolvido a partir das pesquisas sobre o imaginário popular da cidade de Bagé, interior do Rio Grande do Sul. E, para fechar, apresentamos o texto Réquiem para Hilda Hilst, no qual o autor, que organizou o acervo documental da poeta durante quatro anos, conta em modo confessional e autobiográfico como foi este envolvimento, que se desdobra em pesquisas acadêmicas. As

ilustrações

ficaram por conta do paranaense

Ygor Raduy,

doutorando em Letras, pintor e fotógrafo, que nos apresenta as suas técnicas mistas em papel. Desejamos a todos uma excelente leitura. As editoras.

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RÉQUIEM PARA HILDA HILST EDSON COSTA DUARTE | Campinas, SP

Hilda, amantíssima, hoje nasceu uma pequena for azul, aqui no quintal de casa, e logo me lembrei de você, daquele seu colar de safiras azuis, que você às vezes queria usar porque tinha lido, na Autobiografia de um Iogue, do Yogananda, que safiras azuis eram muito boas para a saúde das pessoas. Aí, numa sucessão veloz do pensamento, me lembrei do seu poema das éguas que tinham manchas azuladas em seus dorsos, e do maravilhoso quinto poema das tuas “Odes maiores ao pai”, que nunca canso de revisitar. É fim de tarde, e a chuva cai, há raios e trovões, e sei que você ficaria em pânico nesta hora. Por fim, entro e vou beber água, os cantos ali, aqueles mesmos que você escreve que nunca são notados, ninguém dá nenhuma importância para eles, e os cantos agora pulsando, reverberando em mim a lembrança de ti que não, nunca cessa de me acompanhar.

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Depois, vou aos livros, releio o poema para seu pai Apolônio. Não me contenho. Há aquele nó na garganta. Aquele umedecer dos olhos, como se um algo indescritível transbordasse em mim, como se a moringa de água já estivesse cheia demais, ou a eclusa se rompesse. Chorei potes, querida, como costumo dizer. Será por que meus olhos andam tão úmidos estes últimos tempos? Será que é por causa de tanta chuva? Pensar e repensar a finitude, a morte. Obsessão? Morbidez? Você sempre afirmou que não, que não era porque uma pessoa escrevia pornografia que ela era pornógrafa, e nem era mórbida se ela escrevia sobre a morte. Onze anos se passaram como passa veloz uma lufada de vento. Haverá comemorações, com certeza, eventos, falas, homenagens vão pulular como pipocas pulando céleres na panela do tempo. Talvez haja pouco tempo para pensar na finitude, e muita festa, como se fosse Ano Novo, dia dos namorados etc. Você virou um personagem, um mito, minha nega (lembra a Lídia, nossa amiga de Jundiaí, uma mulher rica e elegante, chamando você assim, desde a primeira vez que veio nos visitar?). Sua literatura, Hilda querida, vai permanecer, como você disse várias vezes em vida. Você estaria contentíssima se estivesse viva, porque finalmente estaria colhendo os frutos de seu trabalho. Mas a celebridade tem um preço, como escreveu Clarice Lispector: “Se eu fosse famosa, teria minha vida particular invadida, e não poderia mais escrever. O autor que tenha medo da popularidade, se não será derrotado pelo triunfo.” Como você, Clarice teve alguma notoriedade em vida, mas não ganhou dinheiro suficiente para viver bem apenas com os frutos de seu trabalho. Clarice só foi enterrada dignamente graças à ajuda de amigos. Você disse numa entrevista que era megalômana mesmo, que tinha escrito um trabalho de primeira qualidade. Imagino você aqui,

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agora, mais megalômana ainda, tendo que fazer como o Henry Miller, que depois da fama, mudou-se para Big Sur, na Califórnia, mas aos poucos esta praia deserta onde ele morava se converteu num centro de peregrinação, e o coitado foi expulso do lugar, tendo que se mudar de um lugar para outro o tempo todo. Para onde você iria? Fico pensando que você se mudaria para dentro de você, numa modesta casinha, mínima, que nem ninguém te encontraria mais aqui na Terra. Seu senso de humor era impagável, quando a gente estava negociando a compra de seu arquivo pessoal com o Centro de Documentação Cultural Alexandre Eulalio, da Unicamp, você estava apreensiva e brava com a demora da compra, mas mesmo assim escreveu o seguinte para as pessoas encarregadas de realizar a transação:

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Tenho ficado no quintal, nestas lentas madrugadas, olhando para o céu, pensando se você está mesmo em Marduk, ou na quinta Galáxia depois de Andrômeda, quem sabe agora você é uma das estrelas da constelação de Pegasus, mas minha inclinação é de que você está mesmo morta, enterrada embaixo da terra, enquanto eu, que maçada, ainda VIVO. Você sempre brincava que, quando a morte viesse, você diria: “Que maçada!” Vittorio, o protagonista de seu último livro, Estar sendo. Ter sido (1997), disse: A BUÇA NEGRA VEM VINDO. PUNHAL. VELHICE. ADAGA. CUSPO-LHE NA CARA. ELA SE ARREGAÇA LASSA. MORTE. AMADA.

ANEXOS Hilda Hilst (Jaú, 21 de abril de 1930 — Campinas, 4 de fevereiro de 2004) foi uma poeta, ficcionista, cronista e dramaturga brasileira. É considerada pela crítica especializada como uma das maiores escritoras em língua portuguesa do século XX.

TRECHOS DE TEXTOS DE HILDA “Se me tocares, Amantíssima, branda Como fui tocada pelos homens Ao invés de Morte Te chamo Poesia Fogo, fonte, Palavra viva Sorte.” Da morte. Odes mínimas “um dia me disseram: as suas obsessões metafísicas não nos interessam, senhora D, vamos falar do homem aqui e agora. que inteligentes essas pessoas, que modernas que grande cu aceso diante dos movietones,

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notícias quentinhas, torpes, dois ou três modernosos controlando o mundo, o ouro saindo pelos desodorizados buracos, logorreia vibrante moderníssima, que descontração, um cruzar de pernas tão à vontade diante do vídeo, alma chii morte chii, falemos do aqui agora.” A obscena senhora D

“Vi as éguas da noite galopando entre as vinhas E buscando meus sonhos. Eram soberbas, altas. Algumas tinham manchas azuladas E o dorso reluzia igual à noite E as manhãs morriam Debaixo de suas patas encarnadas. Vi-as sorvendo as uvas que pendiam E os beiços eram negros e orvalhados. Uníssonas, resfolegavam. Vi as éguas da noite entre os escombros Da paisagem que fui. Vi sombras, elfos e ciladas. Laços de pedra e palha entre as alfombras E vasto, um poço engolindo meu nome e meu retrato. Vi-as tumultuadas. Intensas. E numa delas, insone, me vi.” Do desejo, primeiro poema da parte “Da noite”

V Sobrevivi à morte sucessiva das coisas do teu quarto. Vi pela primeira a inútil simetria dos tapetes e o azul diluído Azul-branco das paredes. E uma fissura de um verde anoitecido Na moldura de prata. E nela o meu retrato adolescente e gasto. E as gavetas fechadas. Dentro delas aquele todo silencioso e raro Como um barco de asas. Que fome de tocar-te nos papéis antigos! Que amor se fez em mim, multiforme e calado! Que faces infinitas eu amei para guardar teu rosto primitivo! Desce da noite um torpor singular, água sob o casco de um velho veleiro Calcinado. Em mim, o grande limbo de lamento, de dor, e o medo de

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[esquecer-te De soltar estas âncoras e depois florir sem ao menos guardar tua ressonância. Abraça-me. Um quase nada de luz pousou na tua mesa E expandiu-se na cor, como um pequeno prisma. “Odes maiores ao pai”

PALAVRAS DE HILDA HILST EM ENTREVISTAS “Não me sinto atraída pela fama. Mas é lógico que, como escritora, quero ser consumida.” (Sem indicação de autor. Shopping News, São Paulo, 12 jan 1978) “Fiz um excelente trabalho, de primeira qualidade. Sou meio megalômana mesmo. (STYCER, Mauricio. Hilda Hilst. Folha de São Paulo, São Paulo, 16 abril 1997.) “ Falei sobre a morte, mas nunca me chamaram de mórbida por causa disso porque seria uma tolice imensa. Quando iniciei minha trilogia erótica, achei que poderia ser o palhaço da literatura. Já que ninguém me lia, podia fazer o que quisesse. Fiz, e deu certo.” (Felipe Araújo. Diário do Nordeste. Fortaleza, Ceará, 15 de janeiro de 2002.)

“Ano passado eu fui a uns debates, uma coisa de educadores, e uma senhora me perguntou por que eu escrevia assim, dessa forma tão angustiada. Eu respondi: “Minha senhora, nós temos basicamente sete orifícios. Se a senhora não os lava a cada dia, a senhora fede. Isso não a angustia?” Criou-se um problema horrível. Sim, a mim angustia profundamente ter de fazer essas coisas todo dia. Vem a história da finitude, da degradação do corpo. A carne acaba, e depois disso – depois disso, nada.”1 (1ABREU, Caio Fernando. A festa erótica de Hilda Hilst. Revista A-Z (nº 126). São Paulo, 1990.) “Desde menina essa era uma interrogação constante. A morte me abalava muito. O que é morrer? Mas como morreu? As crianças normalmente se perguntam sobre isso, mas acho que as coisas me abalavam demais. Essa compaixão que não me deixa até hoje saborear a vida com muita intensidade! Estou sempre preocupada com o que me rodeia, que as árvores vão morrer, que os bichos, os amigos, 1

ABREU, Caio Fernando. A festa erótica de Hilda Hilst. Revista A-Z (nº 126). São Paulo, 1990. p. 61.

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eu mesma. Você ser feito de carne, ter vísceras e sangue, e tudo, e essa compulsão de ficar se olhando e pensando, que coisa impressionante, tudo se movendo dentro de você e daí depois tudo isso termina. (...) Eu sempre muito comovida com a vida, com a morte, com o amor.”( Sônia Amorim Mascaro. Hilda Hilst. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 21 jun. 1986.) “A paisagem que mais me agrada é a vida. A vida para mim é uma experiência vigorosa a cada dia. Eu gosto muito de olhar as coisas, de ficar olhando os pássaros, à noite, mas não há nada de lírico nisso. É uma coisa interiorizada, questionando o que é essa dimensão na Terra, o que os homens estão fazendo no espaço. (Sem indicação de autor. A amarga tarefa de criar num país sem letras e sem poesia. Diário do povo, Campinas, 27 mar. 1988. )

ALGUNS COMENTÁRIOS SOBRE HILDA HILST

ÁLVARO LUÍS KASSAB – Jornalista “Os 40 anos de escrivaninha não fizeram de Hilda uma unanimidade. Hilda dissimula, brinca, diz que jamais será lida, que as pessoas a confundem com uma tábua etrusca. Desconfia que, se não tivesse herdado da mãe a gleba idílica, a ponte do desterro seria seu paradeiro.” (Entrevista. Diário do povo – Caderno Viver , Campinas, 18 fev. 1990.

MARISA LAJOLO - Crítica literária e professora universitária “(...) Hilda, acho que demorou muito tempo para descobrir o que é que queria. Ela quer ser professora visitante da universidade, ela que vender muito livro, ela quer aparecer nas páginas de crítica... Talvez por isso a crítica se irrite tanto com ela, porque Hilda nesse sentido é mais opaca (que Márcia Denser). Como ela não dá a chave em que pretende ser lida, fica mais complicado lidar com ela. Acho que os circuitos disponíveis para cada uma dessas senhoras têm que ser levados em consideração dentro dos parcos percursos disponíveis na literatura brasileira.” Debate publicado em Revista de Crítica Literária Latinoamericana, Berkley, USA, 1994.

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BRUNA BECHERUCCI – Jornalista Sobre Tu não de moves de ti, de HH “Entre decifrar e interpretar há uma diferença básica; aquela que se pode achar entre um hieróglifo egípcio, ou uma inscrição etrusca e uma peça de Eurípedes ou uma parábola evangélica. Hilda, escritora, poeta, teatróloga é mais perto da inscrição etrusca e do hieróglifo egípcio. (...) (Hilda) escreve um livro para pouquíssimos que compreendem, para muitos que afirmam que compreendem (mas não compreendem) e para muitíssimos que não têm a coragem de declarar que nada compreenderam. Hilda escreve para si mesma, para sua torre e marfim, dedicada ao indecifrável.” (Lembranças do passado. Vogue (no 59), São Paulo, Carta editorial, maio de 1980)

WILSON MARTINS - Crítico literário “Megalômana e ressentida, é como se confessa e admite, mas também grande solitária, buscando ocasionalmente na fuga alcoólica o mundo brilhante que o mundo lhe parece negar. É a provocadora sentimental, lutando contra a indiferença: ‘Essa modesta articulista que eu sou, escreveu textos e poemas belíssimos e compreensíveis, e tão poucos leram os compraram meus livros...’ A queixa é justa, podendo ser repetida por praticamente todos os poetas. É pungente pensar que Hilda Hilst vale mais, muito mais, do que muito do que escreveu na esperança de chamar a atenção para o que vale.” (A provocadora. O Globo, Rio de janeiro, 14 ago. 1999.)

EDSON COSTA DUARTE estudou Letras na Unicamp, onde também fez mestrado sobre a obra de Clarice Lispector. Entre os anos de 1992 a 1996, organizou o acervo documental da escritora Hilda Hilst, que foi negociado em duas partes com o Centro de Documentação Cultural “Alexandre Eulálio”, Instituto de Estudos da Linguagem, Unicamp, em 1995 e em 2002. Em 2002, mudou-se para Florianópolis para fazer meu doutorado, na UFSC, sobre a poesia de Hilda Hilst. Desde 2006 voltou a morar em Campinas. Entre 2007 e 2009, fez um pósdoutorado sobre a prosa de Hilst, sob supervisão do professor Dr. Jorge Coli, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Unicamp. | DUARTEAZUL@IG.COM.BR

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SUBVERSA # 1 – Versão Impressa | Volume 1 (2014) Adquira e participe do crescimento da revista. 13


LÁGRIMA RENATA GUADAGNIN | Porto Alegre, RS.

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Até aqui esteve muda. Desliza sobre o corpo de neve Onde os cisnes se deitam, pois, Já é meia-noite e a lua se foi, Nenhum olhar mais se cruza Nada mais toca o tempo que segue em chamas Repousa O corpo no meu, pois, Não há mais tempo, Ele não nos alcança, Somos sangue, vertigem Corremos-além, Ficamos criança Voltamos ao campo Quando era primavera Lá fixamos as lágrimas E elas se apossam de nós Sem que o rosto enfeitasse Ela ali insistiu em ficar. RENATA GUADAGNIN é bacharel em Direito pela PUCRS e Mestre em Ciências Criminais/Criminologia pelo PPG em Ciências Criminais da PUCRS. É autora do livro “Criminologia e Arte: diálogos através das grades do cotidiano” (Editora Sob Medida, 2013) e do livro de poesia “Ecoar do Silêncio desde outras margens” (Editora Giostri, 2014). Atualmente reside na França e realiza estudos sobre ética no pensamento de Emmanuel Levinas e Theodor Adorno. | GUADAGDAG@GMAIL.COM.

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O ANJO RUBENS CANARIM | Bauru, SP

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I

Se à treva embrenhas firmes calcanhares, Adentra a via irretornável, e ruma À tríplice voragem, engendrando O pétreo despertar na aurora amarga, À margem das egrégias serranias Espelhadas às águas de esmeralda Com águias incansáveis sob o sol, Em outras águas ígneas, resguardadas Em solitário voo incandescente A perfurar o ar e seus domínios. Se os dínamos das carnes sofregadas Revertem-te em sulfúricas correntes, Espira eletrizada, jorra ardendo Ao ventre de mercúrio inconsumado O sangue sublimado da serpente A perfurar o couro, próprio ocaso, A cauda atada às presas prateadas, O parto da chegada, o fim que sai, A sombra triunfante sobre as sombras. O Anjo, encouraçado, põe-se à frente, Levante erguendo o chamejante gládio, Estacado, em colérica brancura,

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A resguardar o lar impenetrável.

II

Se as trombetas, porém, a terra abalam, E os muros derrubados às areias Confundem-te em profundos desnorteios, Embriagando-te à mudez do tempo, Envenenando-te à surdez do espaço, Se a ópera (em telúricos apelos) Enreda entorpecidas mascaradas, Inúteis saturnálias ressequidas, Em que a calcinação desperdiçada Esvai-te o éter nesse esmorecer De chamas requeimantes sobre as águas, Exangue quietude exasperada Em dispersante volatização, Se o tremor turvo, o grave tom da noite Atrai-te e afasta as cordas transtornadas (Volúveis ímãs no inconsútil véu) Até que as ressonâncias das paredes Por repetidas vezes repercutam E assumam-te o soar das dissonâncias, No triunfar de sombras sobre a sombra,

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O Anjo, encouraçado, se retira, Abaixa e esconde o chamejante gládio, E ardendo, em melancólica brancura, Arremete aos portais impenetráveis.

III

Sem aguerrir-se ao Anjo e seus terrores, Sem chamuscar-se ao chamejante gládio, E sem que a sua couraça confrontada Esteja transpassada e se espedace E se desfaça, a constelar o adro De incertezas, refeito em pó de estrelas, O sólio das promessas não desperta, Não move a glória a chave, a morte A revolver a sútil fechadura Abrindo seus portais impenetráveis.

RUBENS CANARIM é poeta e tradutor. Atualmente trabalha na tradução de uma antologia de Alfred Tennyson, bem como em seu primeiro livro de poemas | RUBENSCANARIM@GMAIL.COM

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ÁREA DE BROCA LUCIANA TISCOSKI | Florianópolis, SC.

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Saiu do metrô e a sensação de ser uma toupeira só aumentava, percebia. Olhava em volta e tudo parecia ainda mais cinza, a cada dia mais cinza. Eram os olhos, sabia. E se perguntava se toupeira enxergava cinzento. Na hora que chegasse ao café iria consultar o wikipedia a respeito... uma vaga lembrança de cegueira, na toupeira, era o que guardava. E lembrava também de uma passagem de Report to Grecco, Night has fallen, the day’s work is done. I return like a mole to my home, the ground. Quisera saber grego, lembrar em grego seria ainda melhor. O homem que dorme no banco com seu gato na gaiola finge não o ver, talvez pra não ter que dizer qualquer coisa, sabe que dinheiro não irá arrancar da toupeira motorista da linha 13. Sexta-feira, dia de suicídios. Nenhum, tudo calmo, menos um casal que passa aflito. A moça de olhos amarelos só não grita pela boca, o resto todo é um só grito, corpo, cabelos, dentes, olhar. Seu par também grita quieto, tem raiva e cansaço. Muito cansaço em cada um dos passageiros que partem pra qualquer conexão, último horário dos trens e metrôs. Ainda pode ter suicídio. Ou pela manhã alguém que de desacordado e louco passa a defunto semi- tostado. Um corpo agora chamado foi. Outro olhar que cruza e o perscruta. Aquele era um rosto dos que voltam aos corredores da memória, tinha ecos de algum que havia visto muitas vezes, mas não o mesmo. Talvez nos trilhos, talvez já morto ou partindo. Eram rostos que ficavam, nítidos, conhecidos, íntimos, quase seus. Seus eram os ainda não partidos, ainda com olhar e fala dentro da cabeça. O gato do homem que dorme no banco olhava de um jeito como se soubesse que ele talvez fosse uma toupeira, ou quase. E não era nada no corpo que se transformava, porque no corpo sempre fora meio bicho de debaixo da terra, pele sem cor, textura de papel, sem brilho, olhos opacos, quase cegos. Ele mudava de dentro pra fora, como se contaminado da certeza de ser toupeira, como se consciente da condição de bicho das galerias subterrâneas. E dos dedos longos

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cresciam pelos escuros. Ademais a vontade de cavar, quase incontinente. Tinha ganas de cavar e cheirar a terra, ganas de ouvir com os ouvidos colados ao chão algum som de muito fundo, o fundo do mundo. Ouvia dos trens a persistência dos trilhos. Daí outro poema, lembrava de um... já não lembrava, perdera, restam os ruídos. E a persistência dos trilhos. Floema. Mas a gana era de ouvir umas vozes, aquelas enterradas vivas. Queria ouvir as vozes de todos aqueles rostos que passavam, que entravam e saiam do metrô, vozes que esperavam caladas, que transitavam mudas, serenas de apatia. Queria ouvir sua afasia. Havia uma barreira de terra na área de broca da toca.

A

mudez era sua, dificuldade andante, também outro sintoma da toupeira lenta. Deveria entrar então no mesmo café pra que não tivesse que formular novas frases, balbucios, sorrisos. A atendente ruiva da cafeteria sabia já o que ele pediria. Um café puro, grande e quente. Às vezes era uma menina bonita com muitos piercings que substituía a ruiva não bonita. Nenhuma das duas na verdade lhe sorriam. Elas, as mulheres, nunca destinavam a ele seus sorrisos, mas os roubava nas passagens subterrâneas e com eles sonhava nos vagões pelas madrugadas em claro, sonhava de olhos opacos cegos pra fora e cinema pra dentro, telão na área interna em alta definição. A fala não funcionava bem, mas a memória... Sorrisos de dentes molhados pra ele. A ruiva ao menos sabia o que ele queria, reconhecia que o reconhecia. Contrariada, um quase solícita. A bonita dos piercings recusava-se a incluí-lo em qualquer canto de sua atenção, nem no canto reservado aos condutores toupeiras. Talvez muito intimamente percebesse que da categoria toupeiras ele era uma daquelas que dormiam nas galerias abandonadas, talvez a única que estava num ponto da metamorfose tão adiantada, já quase cega, quase transparente também. A ruiva sabia que ele queria mais que um café e lhe deixava fuçar com os olhos o v da camisa meio aberta. Umas marcas verticais marcavam o v

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cheio de sardas vermelhas e marrons, muito colorida a ruiva não bonita. Um v cheio de histórias, pensava, de andanças nas mãos, bocas, muitos dentes, unhas, talvez nenhuma além das próprias pontas de dedos que estendiam o troco, o café, o cheiro de cigarro. Ela sabia que ele lembrava desse v de vaca vitória vermelha nos vagões em noites de inverno. Pensava nela no frio, como se o peito vivido pudesse mais calmaria, calor, fogo brando. E daí encostaria os ouvidos no v, sentiria os vincos com os dedos dele e no outro dia um pouco do cheiro do cigarro dos dedos dele estariam nela quando o café, o troco, o v, os vincos nos olhos dele. O café quente entregue pelos dedos frios da moça com piercings já lhe inundava a garganta com sua escura vitalidade. Na tela ele via um filhote de elefante em lágrimas, tratava-se então de Zhuangzhuang, um elefante que chorava sem parar por horas porque fora separado da mãe. A separação se deu após a tentativa da mãe de matar o filhote. Ele havia sido rejeitado e agora chorava. O olho aberto como buraco de onde jorrava muita água parecia uma ferida. Parecia um furo na areia onde pingavam gotas de água pesada, um buraco que se alargava e de onde saia uma água lenta, lágrimas de muita dor. O olho de Zhuangzhuang era opaco apesar de estar boiando no líquido salgado de suas lágrimas, era opaco como os dele, da toupeira. Os funcionários do zoológico chinês haviam tentado novamente aproximá-lo da mãe, mas a mãe tentou matá-lo mais uma vez. Ele talvez estivesse chorando tanto pra nunca mais ter que chorar. 13 de setembro de 2013, Linha 13, nenhum suicídio ou acidente. Talvez pela manhã. As outras notícias do jornal 20 minutos não lhe interessavam. A ver o que se passa ao se conectar. A telinha pequena do celular provoca lágrimas de cansaço nos olhos da toupeira, já acostuma, acostuma-se a tudo, até com o escuro e as lágrimas, até com o abandono da mãe elefante. Elefanta ou aliá, diz o google. Lê notícias de conflitos, crimes contra a humanidade, coisas da política

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local, nada interessa, as notícias não dizem nada. Vai acabar lembrando só do elefante e do v que não viu naquela noite. Outra notícia surgiu para lhe causar lembranças ou reavivá-las. Era ainda sobre a garota encontrada morta há uma semana nos trilhos. Haviam trabalhado por três horas na remoção do corpo, tráfego interrompido, muita confusão na rotina dos passageiros. Vida interrompida na persistência dos trilhos. Não lembraria do poema, mas do rosto da garota sim, que agora era seu. A memória era um tanto seletiva, apesar de ótima, o que lembrava era de impecável nitidez. Correra muito pelos túneis logo que soube e olhou seu rosto antes do motorista recémchegado pra trabalhar na condução da linha 13, rodízio com ele. O motorista novo não conseguiu olhar, não queria, estava muito nervoso e falava e ria sem parar, ele nada ouvia porque só lhe interessava o rosto que iria encontrar quem sabe ainda vivo. Estava viva, as feridas cauterizadas pelo calor dos trilhos. Ela balbuciava, bárbara e vândala. Uma baba da boca escorrida era agora já lembrança do olho do elefante que acontecera depois. A boca um buraco negro sem dentes molhados para lhe oferecer sorriso. Mas os olhos, esses sorriam um riso de despedida, quase felizes, quase delírio. Seu balbucio tinha um som ainda mais fundo que um violino nos vagões, vinha das profundezas de seu peito. E ali estivera ele na sua despedida, sem antes nunca tê-la conhecido, ainda assim fora ele o único a lhe dar o último adeus, no minuto da morte extrema. Fora um instante breve de fim e início, tudo cabia nele. Tudo cabia no espaço sem fim, entre o fim e o início, entre os olhos dele quase cegos de toupeira e os dela, delírio suspenso no abismo. Logo chegaram os outros, todos muito agitados pra trabalhar na remoção do corpo. E então o tempo retomou seu caminho, na persistência dos trilhos pelos túneis. Por esses buracos escapo a mim próprio, pensava. Orifício da voz, orifício do nascimento, orifício da defecação, orifício da lágrima, orifício do olhar, orifício dos trilhos.

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Orifício de Deus. 2013 linha 13 sexta feira 13, setembro com muita poluição no ar. 180 microgramas de PM10 por metro cúbico, mais do que o dobro do limite tolerável. Cidade em alerta, evitem sair de carro, utilizem o transporte público. Nada de melhor no lado de cima do subterrâneo. De lá as pessoas vêm em bandos de solidão. Turistas eufóricos, por fora. Nos subterrâneos, as lembranças vazias. Memórias afásicas. Não as dele, da toupeira. Na memória da toupeira cabem os rostos, despedidas, vagões, elefantes, sorrisos, a vaca vermelha e o v de vitória. Esqueceu-se de olhar no google sobre o cinzento no olhar da toupeira, mas sabia de algo sobre cegueira. Quase cego, quase mudo, dificuldades de articulação da voz, palavras fugidias, área de broca, mas não no pensamento, sabia que estava se tornando uma toupeira, tudo ocorria com certa serena conformidade. Ganas de cavar e encontrar os corpos seus, seus mortos um dia corpos, um dia sorrisos, balbucios, olhos em buracos de entendimento. Foi dormir no vagão dos túneis desativados, alguns meio vivos meio corpos perambulavam como de costume e emitiam sons, esgares, alguns melodias. A toupeira dormiu com suas lembranças e acordou esperando ser já o resultado da lenta metamorfose. Mas nada, ainda quase toupeira. Mais um dia conduziria o metrô da linha 13 e guardaria outros rostos, promessas de sorrisos e despedidas. E no noticiário dos 20 minutos um dia saberia de uma toupeira encontrada meio viva pelos subterrâneos da cidade.

LUCIANA TISCOSKI é jornalista e escritora. Mestre em Literatura Brasileira e Doutora em Teoria Literária pela Universidade Federal de Santa Catarina UFSC. Tem diversos artigos, ensaios acadêmicos e resenhas publicados em periódicos especializados na área de Literatura. Dedica-se atualmente às aulas de Filosofia que ministra no ensino fundamental e médio e à pesquisa de Pós Doutorado com o projeto transdisciplinar Modos de ver o corpo contemporâneo, um estudo das imagens sobreviventes de Grete Stern e Flávio de Carvalho. | LUTIS02@GMAIL.COM

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FABÍOLA WEYKAMP | Pelotas, RS

CINCO ANOS ANTES MARCELO DE ARAÚJO | Rio de Janeiro, RJ.

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– Alberto? Aqui é a Lúcia. Volta para cá. Por favor. Agora. Urgente. Ficaremos aqui te aguardando. É sobre um vazamento. É melhor não esperar pra responder. Alberto conferiu o recado pela segunda vez. Àquela hora na cidade, a caminho do metrô, era preciso pressionar o telefone contra a orelha, espremer bem a mensagem canal auditivo adentro, para tentar compreender

o

que

diziam.

Da

primeira

vez,

Alberto

apenas

compreendeu que haviam lhe deixado um recado no aparelho, o som da palavra urgente grifado pela interseção de duas longas pausas. Na terceira vez que ouviu, já em pé na plataforma, o recado era mais claro. A mensagem, porém, permanecia indecifrável: – Vazamento? Deve haver encanadores melhores do que eu por aqui. Responder o que pra quem? – murmurou entre os passageiros que iam se aglomerando atrás da faixa amarela. Alberto ainda hesitou entre embarcar, dar por encerrado o expediente, ou percorrer todo trecho de novo, na direção inversa dessa vez. – Se alguém tiver morrido, é melhor eu não saber: traslado de caixão só é bom pro falecido, que viaja deitado e não entra em fila. Não há turbulência que faça um defunto acordar. Alberto tentava se convencer da irrelevância do recado. Fazia para si comentários de que só ele mesmo ria. Elaborava argumentos. Dava-se explicações, pretextos para não ter de retornar, quando uma segunda mensagem avisou: "Mind the gap! Mind the gap!" As portas da composição se fecharam então à sua frente. Na vida de Alberto, havia com frequência essa lacuna, uma espécie de vão entre o que deliberava, movido pelas melhores razões, e a direção na qual se flagrava rumando em seguida. Nesses momentos, nenhum autofalante era potente o bastante para lembrá-lo de se manter no curso planejado. Alberto decidiu retonar.

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Com um pouco de sorte – imaginou – Lúcia já teria até chamado um encanador. Aguardaria com ela em alguma sala vazia até o final do reparo e seguiria de taxi para casa depois. Alberto abandonou a plataforma, cruzou a portinhola de acesso às escadas, e emergiu na Bond Street. Dali à Vere Street, seguindo pela Oxford, seriam menos de quinze minutos a pé até o consulado. Quando foi transferido para Londres, Alberto não reclamou. Teria preferido

Jacarta,

Maputo,

Abu

Dabi,

qualquer

representação

diplomática bem longe de Brasília, distante da imprensa, e inacessível à ex-mulher. No Rio de Janeiro, algumas pessoas o reconheciam das manchetes nos jornais e entrevistas na TV. Jornalistas ainda o procuravam na expectativa de visitar sempre a mesma história. Era então inevitável que, entre uma e outra pergunta, disparada em alguma frase, regressassem ao mesmo ponto: "O senhor não se sente traído por Naji Sabri, o ministro iraquiano? Ele até hoje nega a história que o senhor relatou no Senado". Ou então: "Mas o senhor não traiu a confiança do governo brasileiro ao ajudar um traidor, um ministro de Estado tentando abandonar o país que ele mesmo representava na ONU?" Às vezes, nem falavam em traição. Bastava um eco de censura na entonação da pergunta: "Mas eram os interesses do Brasil ou da Casa Branca que o senhor representava na ONU?" Alberto se habituara às acusações daquela época. Era capaz de antecipar respostas prevendo a questão que viria, ou de se esquivar de uma pergunta formulando ele mesmo a questão. Certa vez, ao desembarcar em Curitiba, embaraçou a jornalista de uma rádio local: "E se a senhora pudesse evitar uma guerra, me diz, a quem seria leal? Ao governo? À imprensa? A quem a senhora acha que devemos lealdade?" Não que Alberto, ele próprio, tivesse uma resposta clara: ninguém tinha. A palavra lealdade, em suas cogitações, avolumava em importância. Ela adquirira em sua vida uma textura ao mesmo tempo

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incontornável e porosa. Sua lealdade ao país se media pela devoção que dispensava em cada viagem a trabalho, cada encontro agendado, e memorandos remetidos sem atraso para Brasília. Os textos eram longos. Alberto ainda era terceiro-secretário quando um dia o embaixador lhe escreveu de volta, sem disfarçar a impaciência, exigindo concisão: "não me interessa o nome do alfaiate ou o corte do terno que o cônsul francês vestia ao chegar à reunião. Sapatos, idem." Alberto ainda tentou se explicar: se tinha de relatar os detalhes do encontro, que não omitisse então detalhe algum. Era a sua obrigação junto ao Itamaraty. Aos poucos, porém, os laços de lealdade passaram a se enredar numa teia de vínculos sobre os quais Alberto já não tinha controle ou certeza, se sobrepunham uns aos outros num emaranhado de fios nem sempre discerníveis, em coerência ou primazia, nas tramas que urdiam, nos painéis que se formavam. Uma tapeçaria desbotada, no hall do primeiro andar, recobre boa parte da parede: a reprodução de um recorte na Batalha do Avaí. Quando viu pela primeira vez o quadro de Pedro Américo, o Duque de Caxias também estava na Europa. Sentiu-se traído: pareceu-lhe desalinhada a sua farda, e havia negros na tela. Ninguém sabe direito como a tapeçaria veio parar no consulado. Alberto não sabe. E Lúcia também não. Mas coube a ela, no final daquela tarde, retomar os fios de uma outra batalha, uma disputa antiga entre os dois. Lúcia havia descido pela segunda vez ao térreo, sua mão segurando o telefone contra o rosto, quando avistou Alberto parado no hall. – Por que você não me ligou, não enviou uma mensagem? – ela pergunta exasperada, desligando o celular. – Quem mais ficou pra cuidar do alagamento? – Alagamento? – Você falou de um vazamento. Não foi no sofá, espero.

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– Alberto! É sério – a moça advertiu, ajustando a inflexão da voz à confusão que pressentia. Alberto conhecera Lúcia alguns anos antes, na embaixada em Israel. Dividiram, primeiro, a sala de trabalho, depois, o sofá de um gabinete, quase sempre vazio a partir das duas horas. Quando a esposa de Alberto, a do segundo casamento, percebeu a situação, não chegaram a brigar, ou nem mesmo discutir. Não se passaram duas semanas e ela já se via novamente instalada no apartamento do Flamengo, que herdara da família e no qual nunca chegaram realmente a conviver. Lúcia concluiu na época que dali em diante poderiam dividir talvez mais do que um sofá, mas Alberto, ele próprio dividido, não sabia o que fazer. Quando recebeu a convocação para prestar novas explicações no Senado, a guerra no Iraque já seguia a pleno curso. Alberto começava então a suspeitar, e por mais de uma razão, das batalhas que ele próprio teria no decorrer daqueles meses. Mesmo isso, no entanto, pareceu-lhe mais seguro do que ficar em Tel Aviv e confrontar o desenlace. Despediu-se de Lúcia às pressas e bateu em retirada. Foi em Londres, onde se instalara há poucos meses, que Alberto tornou a ver Lúcia pela primeira vez. A surpresa foi sua, mais do que dela. – O governo americano quer explicações, e o pessoal em Brasília também: todo mundo quer explicações, Alberto. E o seu nome aparece num dos telegramas. Veio tudo pela imprensa, ninguém contava com isso agora. Documentos secretos, memorandos, muitos telegramas vazaram pros jornais. Ninguém sabe ao certo a extensão do vazamento, mas de nenhum esgoto neste mundo vazaria tanta merda. – E quem está lá em cima agora? – Ninguém. O embaixador acabou de sair. Disse que já conhece o teu histórico, que você não voltaria, que dá bolo em todo mundo. Mas o bolo agora é outro, Alberto. É aquele de Resende: os planos do

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governo brasileiro para enriquecer o urânio da usina. "Noventa por cento", diz um telegrama divulgado pela WikiLeaks citando o seu nome como fonte. – Yellowcake... – Alberto murmurou. – Mas eu nunca repassei nada pra ninguém. Quer dizer: a única pessoa com a qual eu mencionei um dia o assunto, no sofá aqui de cima... Alberto entendeu num segundo a magnitude da traição. Seus olhos cintilavam de raiva. Uma reação em cadeia que ia dominando rapidamente cada célula do seu corpo. No Iraque, depois de muitas baixas, Saddam Hussein foi enforcado. Mas não acharam armas para destruição em massa. As buscas prosseguiam em outros territórios, em matas do Hemisfério Sul. O prenúncio de uma nova guerra, cento e quarenta anos depois, assombrava o Brasil. ***

MARCELO DE ARAÚJO é escritor e pesquisador. Doutorou-se em filosofia pela Universidade de Konstanz, Alemanha. Professor de filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Publicou dois livros sobre o filósofo René Descartes, e um sobre Dom Pedro II. Publicou também artigos acadêmicos em livros e periódicos de filosofia, e textos de ficção em revistas e jornais. Site do autor: www.marcelo-de-araujo.blogspot.com.br | MARCELO.ARAUJO@PQ.CNPQ.BR

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O devir1-escrever e o paradigma simulacral no limiar da estética romanesca de José Saramago FELIPE LIMA | Rio de Janeiro, RJ.

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As linhas aqui apresentadas se desenvolverão a partir de uma dupla focalização. Em primeiro lugar, retomarei alguns conceitos vigentes à órbita dos estudos sobre o âmbito pós-moderno da literatura e da filosofia. Em seguida, tentarei colocar, em traços fortes, as ressonâncias desses campos, relacionando-as ao romance O ano da morte de Ricardo Reis (1984), de José Saramago. Buscarei, assim, atentar-me à configuração do autor e à justaposição da noção de pastiche – eminente conceito da esfera do pós-moderno – enquanto chave de leitura que nos permite diagramar um possível tributo que se apresenta, em linha d’água, no processo de mimetização exercido por Saramago em relação a Fernando Pessoa. Parto da impossibilidade de falar do pós-moderno sem levar em conta a ruptura que este causa com o moderno. É nítida, no panorama literário, a mudança que ocorre entre as poéticas do que se considerou chamar de moderno e o repertório produtivo do que aqui se considera pós-moderno. Nessa dicotomia, a ruptura proporcionou, no plano da cultura, falar-se de uma perda da referencialidade que se configura sob a égide de uma “cultura do simulacro” (LUCCHESI, 1997, p. 393). Já não se trata mais de uma questão de pagar tributo à lógica de um conceito simulacral do fenômeno artístico, mas atingir um estado da diferença em que se possa “estender a representação até o grande demais e o pequeno demais da diferença [...] dar uma perspectiva insuspeita à representação, isto é, de inventar técnicas teológicas, científicas, estéticas que lhe permitam integrar a profundidade da diferença em si” (DELEUZE, 2006, p. 366). Nesse plano da representação, “verificar a relação umbilical entre mímesis e verossimilhança significa dar condições de romper com uma excludência habitual” (COSTA LIMA, 2014, p. 246), cuja categoria de sujeito deverá ser revista para ocupar um papel eminente no entendimento do binômio moderno/pós-moderno. A concepção de

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morte do sujeito, à luz das ideias de Dante Lucchesi, é decisiva para um melhor configuramento desse novo panorama cultural. Segundo o referido crítico, a modernidade plasma-se pelo “(re)nascimento do sujeito” (LUCCHESI, 1997, p. 393) em seu exercício dialógico constante com a história. Registra-se, nos manuais literários, uma forte tendência de mudança no panorama artístico, no início do século XX, no que dizia respeito às radicais ideias vanguardistas. Essa tendência produziu, esteticamente falando, uma nova escola literária que se denominou Modernismo, favorecendo uma “experimentação formal que tinha uma conotação evidente de crítica social e de protesto” (LUCCHESI, 1997, p. 394). É praticamente o advento de uma Paixão vertiginosa que culmina, uma espécie de “autodestruição criadora” (PAZ, 2013, p. 17). Em evidente oposição à natureza do que se julgou chamar de moderno, a poética pós-moderna neutralizou o discurso, negando, nesse quadro, o sujeito dentro de seu próprio universo. Elege-se, desse modo, tudo aquilo que pode ser dito, que pode ser matéria literária em detrimento a uma poética que siga um único percurso ideológico. Na esteira das questões da cosmológica contemporaneidade, a literatura torna-se um campo da arte caracterizado pela “simultaneidade e interpenetração” (CAMPOS, 1997, 255). Penso com Gilles Deleuze que se trata ainda mais de uma reviravolta nos novos tempos, em que a potência da linguagem literária estende-se o suficiente para que a literatura possa produzir na própria língua Uma espécie de língua estrangeira, que não é uma outra língua, nem um dialeto regional redescoberto, mas um devir-outro da língua, uma minoração dessa língua maior, um delírio que a arrasta, uma linha de feitiçaria que foge ao sistema dominante (DELEUZE, 2011, p. 16; grifos meus).

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Apropriando-me, inversamente, da noção de pós-utópico de Haroldo de Campos, aplicada em seu exímio estudo sobre a poesia na pós-modernidade, destaco que a prosa de Saramago, coloca-se sob o mesmo signo apontado, na poesia, pelo poeta-crítico: trata-se de um esvaziamento de uma “função utópica” (CAMPOS, 1997, p. 268). Transferindo tal tese para o âmbito do romancista português, José Saramago, é possível começar a clarear o percurso que nos leva à técnica literária da escrita do romancista que divide espaço nas páginas do romance, O ano da morte de Ricardo Reis, com as técnicas caras à produção literária de Fernando Pessoa. O poeta português, que melhor soube colocar em questão a concepção do real e do ficcional no limite das suas produções poéticas, aparece morto no romance, recebendo a visita de seu heterônimo Ricardo Reis. Notificado da morte de seu mestre por via de outro heterônimo, Álvaro de Campos. Examinando-se mais de perto, fica patente que estamos diante de um desdobramento literário em que, no plano da ficção, se encontram elementos de uma realidade empírica e de uma cosmologia literária que quase se confundem, colocando em questão a linha tênue tão mal marcada que separa(ria) a realidade da ficção. Alterando sensivelmente as palavras valiosas de Umberto Eco (1994, p. 34), que sintetizariam bem a prosa minada de Saramago, seria oportuno dizer que todo texto é uma máquina perigosa pedindo ao leitor muita colaboração no movimento de interpretação daquele. Fundamentado, no entanto, em uma história que poderia ser escrita em linhas banais, Saramago lança mão do melhor de seu repertório como escritor para problematizar a própria concepção de realidade no romance. O que elejo, entretanto, como fascinante, é o modo como o escritor vai contra o controle do imaginário de seu tempo em muitos de seus romances. Nesse ponto, convido a pensar – de

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acordo com a proposta de Luiz Costa Lima (2007) – que uma sociedade é regida, constantemente, por uma ideia predominante que se contrapõe aos inúmeros outros pensamentos da minoria. Lancemos mão das lentes de Michel Foucault para perceber melhor que ainda há hoje um discurso predominante que perpassa os ditos enunciados minoritários, configurando mesmo uma “microfísica do poder” em que o que está em questão são as noções praticamente polarizadas de saber e verdade regidas por uma “’política geral’ de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros” (FOUCAULT, 2013, p. 52). No que diz respeito a José Saramago, pode-se perceber que seus romances vão, frequentemente, de encontro a esse discurso majoritário e autoritário da sociedade, elencando uma série de personagens e buscando

desconstruir

concepções

petrificadas

para

mostrar,

nitidamente, uma nova perspectiva, aquela da natureza do homem que é refletida na caracterização dos personagens em seus romances. Em O ano da morte..., Ricardo Reis e Fernando Pessoa são personagens desconstruídos por Saramago que busca humanizá-los e descobrir o véu que os abafa de lisonjas e homenagens. Invertendo as velhas noções de “modelo” e “veneração”, construídas pelo convencionalismo da tradição moderna, o cânone passa por uma revisão nas linhas do romance e recebe dele uma nova aparência. Repensando, por vezes, o que seja a realidade e a ficção, Saramago apresenta traços biográficos de Ricardo Reis, permitindo ao leitor questionar o que pertença nitidamente ao discurso da realidade e ao que pertença à ordem da criação do discurso ficcional: Neste de agora há um elemento de falsidade, porquanto o viajante não tem assuntos a tratar em Lisboa, nenhum assunto que tal nome

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mereça, disse uma mentira, ele que um dia afirmou detestar a inexactidão. (2011, p. 19) Cabe destacar ainda que a obra em foco problematiza a ficcionalidade, colocando em questão fatos que para o leitor podem parecer verdades absolutas por se tratarem da biografia do poeta que aquele acredita conhecer: Ricardo Reis, idade quarenta e oito anos, natural do Porto, estado civil solteiro, profissão médico, última residência Rio de Janeiro, Brasil, donde procede, viajou pelo Highland Brigade, parece o princípio duma confissão, duma autobiografia íntima, tudo o que é oculto se contém

nesta

linha

manuscrita,

agora

o

problema é descobrir o resto, apenas. (2011, p. 21) Para melhor compreensão da questão, é oportuno retomar a afirmação de Costa Lima nas suas ponderações sobre o discurso ficcional: A ficcionalidade da literatura é autorreflexiva e, por isso, traz consigo um potencial crítico. Para que este seja percebido é preciso que o leitor sinta o entrelaçamento entre semelhança e diferença. Do contrário, ficará à procura de que a obra confirme o que sabe sobre a realidade que funciona (ou parece funcionar) como contexto para a obra. Em suma, o que a noção de realismo não permite perceber é a tensão mesma entre semelhança e diferença constitutiva da mímesis. (2013, p. 167)

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A tensão entre a semelhança e a diferença constitutiva da mímesis,

exposta

acima

pelo

crítico,

mostra-se

eminente

para

Saramago quando introduz em seu romance uma dose de metaficção ao justificar a descrição do bagageiro que acompanha Ricardo Reis em sua chegada ao hotel em Lisboa: Acompanha-o um bagageiro cujo aspecto físico não deve ser explicado em pormenor, ou teríamos de prosseguir infinitamente o exame, para que não se instalasse a confusão na cabeça de quem viesse a precisar distinguir um do outro. (Ibidem, 2011, p.15) No plano dos conceitos sobre o pós-moderno, é digno de nota levantar a conceituação do pastiche e a configuração do autor, sendo esta última plasmada pelas considerações tecidas por Michel Foucault. Como já aludido, considero que José Saramago escreve um romance sob a égide do pastiche, recurso estilístico muito caro à poética pósmoderna que se caracteriza como suplementação – no sentido de endossamento daquilo que ele mimetiza e não de complementação como se o objeto primeiro estivesse inacabado – ao estilo de um determinado escritor. Destarte, acentua-se o entrelaçamento do estilo de Fernando Pessoa no romance de José Saramago, apontando-se, como já vem sendo

feito,

os

personalidades

traços

que levam

canônicas

e

a

um

a

uma

desconstrução

questionamento

das

relativo

à

concepção da realidade e da ficção que projeta sobre o texto uma sombra de renascença e/ou homenagem, um verdadeiro devirescrever que se impõe a tarefa de desmitificar uma tradição que impede avistar Fernando Pessoa fora de sua zona de conforto, isto é, de seu trono de poeta-maior.

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Saramago lança mão de questões que eram caras à poética de Pessoa, usando-se desse recurso estilístico – o pastiche – para criar um romance cujo protagonista, que é um heterônimo do próprio poeta português, retorna à Lisboa para presenciar o enterro de seu mentor: é uma teia ficcional, cenograficamente, tecida por meio de pontos de liga que projetam um autêntico mise an abyme. Em outras palavras, um tecido ficcional dentro de outro tecido ficcional em que os próprios sentidos de ficção e realidade se dissolvem e a compreensão de mímesis deve ser revista. Em síntese, isso se torna ainda mais possível quando seguimos os rastros do pensamento de Michel Foucault ao levarmos em conta que a noção de autor deve ser desconstruída, preservando-se sobre tal conceito um valor de “rede de discursos” (cf. FOUCAULT, 2012). Saramago, à luz das ideias de Foucault, não está aqui sendo, nem caberia ser, analisado pela ótica sociológica, mas desconstruído na sua concepção de autor empírico e analisado enquanto uma rede de discursos e técnicas que “preste contas da unidade de texto posta sob seu nome” (FOUCAULT, 2013, p. 26). Ainda é o filósofo quem atesta que: “o autor é aquele que dá a inquietante linguagem da ficção suas unidades, seus nós de coerência, sua inserção no real.” (2013, p. 26). Para

concluir,

sem

fechar

a

questão,

teçamos

algumas

considerações finais. As observações anteriores nos permitem postular que Saramago é um autêntico autor da pós-modernidade ao lançar mão de recursos caros à sua época literária, utilizando-se deles para desconstruir um passado histórico ou questionar a própria História atual ao ressemantizar a unidade de sujeito, assim como ao levar em conta a natureza plural da humanidade. Em seu processo de escrita a desfiguração dos sujeitos é evidente, colocando, às claras, a verdadeira essência de cada um, podendo ser exposta de acordo com o que rege o discurso ficcional, ainda que ultrapasse as balizas do

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verossímil. Convoco, mais uma vez, Deleuze para acentuar que “escrever é um caso de devir, sempre inacabado, sempre em via de fazer-se, e que extravasa qualquer matéria vivível ou vivida” (2011, p. 11). Talvez seja por isso que Saramago desestabilizou os planos do real e do ficcional, explorando, sob um novo signo, esse devir que repele o paradigma simulacral para alargar as possibilidades de criação que a pós-modernidade tem diante de si.

REFERÊNCIAS CAMPOS, Haroldo. “Poesia e Modernidade: da morte do verso à constelação. O poema pós-utópico”. In O arco-íris branco. Rio de Janeiro: Imago, 1997. COSTA LIMA, Luiz. O Controle do imaginário. In: Trilogia do controle. Rio de Janeiro: TopBooks Editora, 2007. COSTA LIMA, Luiz. Frestas: a teorização em um país periférico. Rio de Janeiro: Contraponto; Ed Puc-Rio, 2013. COSTA LIMA, Luiz. “Deleuze: uma estética antirrepresentacional”. In: Mímesis: desafio ao pensamento. Florianópolis: Editora da UFSC, 2014. DELEUZE, Gilles & PARNET, Claire. Dialogues. Paris: Flammarion, 1997. DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 2006. DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. São Paulo: Editora34, 2011. ECO, Umberto. Seis passeios pelo bosque da ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2013. [1970]) FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Lisboa: Nova Vega; Passagens, 2012. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. São Paulo: Graal, 2013.

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LUCCHESI, Dante. A poética do não-sujeito. In: Poesia sempre, ano 5, n° 8. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 1997. PAZ, Octávio. Os filhos do barro: do romantismo à vanguarda. São Paulo: Cosac Naify, 2013. SANTIAGO, Silviano. “O narrador pós-moderno”. In: ______. Nas malhas da letra. Rio de Janeiro: Rocco, 2002. SARAMAGO, José. O ano da morte de Ricardo Reis. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. ZOURABICHVILI, François. O vocabulário de Deleuze. Rio de Janeiro: Relume-Dumará; Sinergia: Ediouro, 2009.

FELIPE LIMA é graduado em Letras pela UERJ. Atualmente é mestrando em Literatura Brasileira da Universidade do Estado do Rio de Janeiro UERJ e bolsista de produtividade em pesquisa da Capes.

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A DECAPITAÇÃO REVERSA ANA NORIEIRO | São Paulo, SP.

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Por um bom tempo de sua vida, dedicou-se a colecionar tormentos. No primeiro ano ela lentamente transformou sua quietude e alegria em uma constante ansiedade. Ânsias, frêmitos, dores de barriga pela manhã, antecipações nervosas. Nesse meio tempo ela também criou a ausência: tratou de retirar alguns pedaços seus e os expulsou, de olhos fechados para que não pudesse ver para onde tinham ido. Esgotava

suas

energias

estudando

longamente

assuntos

desinteressantes, apredendo a dirigir e tendo alucinações noturnas. Em contrapartida, nessa época ela o conheceu. Então também passou a dedicar parte do seu tempo se esforçando para sentir o que queria sentir. Tudo por dentro borbulhava, refluxos ácidos e sulfurosos corriam por suas entranhas, ainda uma novidade naquela época. A única evidência disso tudo, no entanto, eram os olhos, que ardiam. Ela achava que era de sono. No segundo ano ela passou a se retesar. Todos os músculos os refluxos ansiosos e borbulhantes passaram a ser contraídos de forma sistemática. Às vezes até mesmo o ar tinha dificuldade de ficar em seu corpo por muito tempo, pois ela era laboriosa em sua contenção. E então vieram as dores de cabeça. Como boa colecionadora, ela tratou de conseguir todos os tipos. Enxaquecas latejantes, tensionais, com ou sem enjoo, no lado esquerdo ou só no direito ou na cabeça toda. No ano seguinte começou a buscar meios de virar histérica. Sentia tudo afluir em gritos terríveis, profundos, que a esgotavam imediatamente.

Destruía-se

em

choros

compulsivos,

irresistíveis,

maravilhosos, maravilhosamente angustiados. Sentia os joelhos baterem surdamente no chão frio, seu corpo vergando-se desesperado, as lágrimas queimando tudo que tocavam.

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Batia nele, também. Dava os tapas mais ardidos, jogava coisas no ar, batia portas, trancava os dentes por horas seguidas. Para preencher as horas quietas, comia a parte interna de sua boca. Pedaço por pedaço, esmerando-se para não deixar nada, comprazendo-se em cortar ao meio

montes de carne em franca

cicatrização, correndo a língua por suas feridas. No quarto ano veio a letargia. Ela engordou e deixou tudo se assentar em camadas pouco permeáveis. Dentro de si, o peso de uma Pompéia paralisada: todas suas sombras anteriores petrificadas, envoltas por humores gasosos de sonolência, dores de cabeça, ansiedade muda. As lágrimas viraram sal em seus olhos secos e ela não se movia mais. Sentou-se um dia e passou a andar o mínimo necessário, sentia sua carne colar no sofá. Um estranho fenômeno se desenvolvia. Sua cabeça crescia, como um grande tumor, de maneira que era-lhe impossível ela não se transformar na própria dor que sentia, nos próprios anseios, nas próprias alucinações. Seu corpo deixou de existir, tudo era a cabeça, a cabeça, a cabeça. Um deserto inescapável e latejante, ela sentia-se algo pesado e moroso, anuviado por pensamentos repetitivos e doentes, e ainda toda a dor.

ANA NORIEIRO é jornalista em São Paulo, mas gostaria de um dia escrever só sobre o que interessa. | ANA.NORIEIRO@GMAIL.COM

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O VULTO POR TRÁS DO MEDO SUSANA MACHADO | Porto, Portugal.

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Lá no alto da serra existia uma cabana. Era um abrigo simples, construído em madeira tosca e chapas de zinco, mas com uma porta blindada. Lá dentro vivia uma velhota franzina, que perdera contas da idade. Vivia lá desde sempre, talvez. Nunca ninguém a tinha visto sair, nunca ninguém tinha sido convidado a entrar. Embora ninguém soubesse porquê, era tudo o que ela desejava fazer. Passava os dias à janela, olhando o céu e o vento a dançar com as árvores, desejando poder senti-lo na face. Mas nunca se atrevia a sair. Havia lá fora um homem que teimava em a perseguir. Sempre que colocava o pé fora de casa, via aquele vulto por trás de si, pronto a atacar. Não sabia porque o fazia, não entendia os seus motivos. Apenas sabia que ele estava lá sempre, que não lhe podia fugir e, por isso, receando o que este lhe podia fazer, optou por não mais sair. Acabou-se o problema. A porta blindada impedia-o de entrar e ele sabia isso, pois nunca o tentara fazer. Ela não sabia onde ele se escondia, bem procurava percebê-lo, olhando pela janela, mas nunca o via. Sabia, contudo, que era perto, pois assim que colocasse o pé fora de casa, ele lá estaria. Tinha tentado tantas vezes. Adorava poder sair quando o Sol brilhava, mas há anos que não se atrevia a tentá-lo. Ali se deixava ficar, olhando pela janela o mundo que tanto desejava viver. Era nessa mesma janela que estava, um dia, quando uma imensa nuvem cobriu o Sol e começou a chover. Foi quando o viu. Um vulto, no meio das árvores. Assustou-se! Seria ele? Deu um passo para trás, encolheu-se. À medida que o vulto avançava pode ver claramente que se tratava apenas de uma criança, perdida, desorientada, com aquilo que parecia ser um velho papagaio rasgado na mão. Aproximou-se novamente da janela. Chovia muito e o menino estava encharcado até aos ossos. Por certo pedir-lhe-ia abrigo e não o poderia

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negar. Abriria a porta rapidamente e a fecharia logo em seguida. Não teriam problemas. Mas eis que enquanto assim pensava, viu o menino tropeçar e cair no chão, agarrando-se ao seu tornozelo. Chorava e gritava de dor, por certo não podia avançar mais. Não podia sair…não podia sair. Ficou ali, vendo o menino agonizar debaixo da chuva forte que parecia não querer parar. Não teve mais coragem e, sem pinga de sangue, abriu a porta e correu até ele. Ninguém a perseguia. Chegou até ele, limpou-lhe as lágrimas e acalmou-lhe a dor antes de o pegar ao colo. O seu corpo frio tremia. Avançou mais lentamente sob o peso daquele corpo frágil nos seus ossos cansados. E eis que o Sol começou a despontar, primeiro timidamente, depois mais forte. Ao caminhar, pode ver aquele vulto surgir novamente detrás de si, a sua sombra, nada mais que a sua sombra… Tinha sido sempre a sua sombra.

SUSANA MACHADO escreve para crianças, mas com a esperança de que as suas histórias também possam trazer grandes ensinamentos aos adultos, pois acredita que a magia de mudar o mundo está nas nossas mãos.

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CADÁVER JOSÉ LUIZ DA LUZ | Ponta Grossa, PR.

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Eu vi um cadáver no meio da vida, que exalava sombrios os seus pecados: esqueceu-se da luz seus olhos cerrados; nem havia ternura na voz pungida. Eu vi um cadáver fingindo viver: de insensível coração, petrificado; de amor esquecido no sangue gelado; era uma fonte que deixou de verter. No parto dos sonhos, morreu agoniado. Estátua de gelo de braços cruzados; não davam afetos seus punhos fechados. Tornou-se uma pedra de um rio ensecado. Por cima do mundo, mas longe do céu jogava os gritos pesados de langor: pois não eram de paz, nem eram de amor, mas eram espinhos jogados ao léu. Cadáver triste, que do mundo esqueceu: não sabia das lindas flores dos campos; tão pouco, do cintilar dos pirilampos. Era um corpo que andava, mas que morreu.

JOSÉ LUIZ DA LUZ é Comendador pela Soberana Real Casa Principesca de Kastoria, Ducal de Askos, acadêmico Titular do da Academia Litteraria Academiae Lima Barreto, Academia Ponta Grossense de Letras APLA. Membro correspondente da ARTPOP Rio de Janeiro, da União Literária Anapolina Goiás, Sociedade Internacional Poetas Del Mundo. Tem vários livros publicados, participação em mais de cem antologias literárias. | COM.JOSELUIZ@GMAIL.COM

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ESTILHAÇOS DO SILÊNCIO LUCAS ROLIM | Brasília, DF.

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Doeu. Doeu muito antes que ela abrisse a boca e soltasse um grito em que passarinhos voejantes feito lágrimas saíssem cantando de seus olhos as mais doces canções. Doeu muito após! Após ela dizer algo que não fui capaz de ouvir, pois a terra abriu sob nós e eu caí numa lava incandescente de amor o coração lá no meio... eram cinzas? Ela me ligou, queria conversar, eu sorri por dentro. Esperei no banco de sempre, aquele sob juncos amarelados e róseos tão nossos. Ela vinha de cabeça baixa, sem notar que ao fundo o Sol se punha e se despedia com agonia deixando espaço para uma Lua grande e sorridente. Sentou-se ao meu lado, quietou-se tudo, a Terra parou. Perguntei o que foi, ela não disse. Os olhos vidrados na mão. Mãos que tremem. E antes que eu pusesse a pensar em falar algo e quebrar o silêncio, ela jogou uma pedra no silêncio que havia em mim e espatifou e eu senti foi tudo rasgando lá dentro e as feridas abrindo e sangrando o sangue do Sol tão vermelho e laranja dando lugar ao negrume azul do céu feito abismo. Os cacos do silêncio agora tão barulhentos que mal podia ouvir e veio duma vez um branco uma luz um escuro misturados e antes que ela dissesse a última palavra eu permaneci ali morto e quieto e aquele “Eu estou grávida” paralisou tudo o tempo onde é que foram os segundos antes daquele momento quando tudo parecia normal. Era noite quando fechei os olhos, a noite dentro de mim. Ela se desfez nos meus braços e eu chorei com ela. Pedaços de sonhos ao chão. Meu amor seria meu grande amor?

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Abraçamo-nos e fomos em frente com nossas dúvidas, pegadas lodosas amaciadas pelo chão frio. Olhos baixos para não perceber a gigantesca realidade que se assomava dentro, pululava fora. Meu amor seria meu grande amor?

LUCAS ROLIM é advogado. Participou, entre outros, da coletânea Geração em 140 Caracteres, organizada pela Geração Editorial. Mora em Planaltina, Distrito Federal. | LUCASROLIM.ADV@GMAIL.COM

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MANCHA MUDA DE VIDRO EDUARDO H. VALMOBIDA | S達o Paulo, SP.

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Os olhos apertados, sobrancelhas quase unas, a face riscando-se e tremendo suavemente. A respiração é lenta e compassada. Os lábios se escondem contraindo-se um contra o outro. Uma veia saltada e pulsando fortemente marca o pescoço. Pelos espalham-se pela parte inferior do rosto, e iniciam sua extensão até o pescoço, raros. Uma súbita coceira na nuca. Os ouvidos param de captar. Não há mundo fora. Da força empregada nas pálpebras resultaram duas lágrimas nos cantos. Os músculos distendem-se lentamente. Stop-motion, sem motivo, semicor. A veia que pulsa azulada. No compasso da respiração passa a dor, passa o tempo, passa-fora, passado. Os olhos estão se abrindo, se preparando pra ver, desnudando-se, desnublando-se. Verão? Veem. Mas veem bem pouco, e se viram no espelho, retos, curvilíneos, coloridos, opacos, corretos. Mente nova e irrelevante de pessoa insegura. É o que pensa o cérebro por trás dos olhos, mascarado pelo rosto mal delineado. Engano de vista? Não estava preparado? O cérebro ou o olhar? Colam-se as pálpebras num milésimo vagaroso, súbito-negror, alívio quase imperceptível. Tão leve como o ar que entrae-sai no compasso. Ainda não há som. Não, há sim. Não havia porque não havia prestado atenção, mas, ao pensar, instantaneamente houve, ou ainda, sempre houvera. Mas que tipo de sempre? Sempre-eterno, ou o sempre que ninguém quer o suficiente para que seja e, não o querendo, não o é? Irrelevante, o cérebro se repreende, tão raso que não se permite saber além. Além do espelho, no espelho, pouco há. Placa de metal manchada, escondendo, ou

melhor, não refletindo,

inútil, não

cumprindo seu papel. E por não obter sucesso é que se torna dispensável? Não, muito pelo contrário, já serviu para brotar um

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pensamento, semeou uma palavra, uma sensação que o cérebro finalmente se atém a desenvolver, no mínimo a considerar a questão. A mancha, o borrão, a área nula no espelho que não reflete uma parte do rosto que se encara, que, na verdade, encara o espelho. Se os olhos veem o espelho e não a si próprios então o espelho deixou de cumprir o seu papel, não? Não reflete, mas é corpo, é objetoconcreto, adaptável inadaptado. Alguém percebeu o espelho para além do seu instinto. O espelho não mais o é. O que se torna então? O espelho é a janela de vidro trabalhada em si para mostrar o que não é, e se não for absurdamente puro está sujeito às peripécias de uma visão atenta, levemente infantil, que percebe que o espelho não é vazio nem eco, mas passagem e boca engolidora. O cérebro parece funcionar bem, e identifica cores e padrões. Mesmo com os constantes negrores súbitos não houve interrupção de pensamento. Então são automáticos… Deixa ser. Desatentos do corpo do espelho ele não mais o é, mas a imagem dos lábios que, relaxados, rosados e rachados, recusam-se a abrir. Não há intenções para a boca. A boca não tem utilidade alguma além da expressão. Não se olha a boca sozinha, mas como parte do conjunto da face que, então, transmite a mensagem que for para o olhar atento de outrem ou de um reflexo. Mas os olhos se focaram na boca, nos lábios lacrados, e houve um rompimento na ideia inicial da coisa. A coisa era a ordem. Não há mais ordem? Os lábios se romperam sob essa luz. Espanto ou concordância, mas nada a ser pronunciado. O único som foi o do lacre rasgando-se. Houve um momento em que tudo era pleno e completo e devidamente fechado. Os lábios se abriram na imagem refletida e quebraram o silêncio secreto brutalmente, eternamente. Nunca houve silêncio, e esse nunca é final.

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E pela inexistência do silêncio e pelo rompimento dos lábios, abriu-se a boca. E a boca era um grito inaudível de sentimento incubado. E vazou um rio de ar que interrompeu o compasso eterno da respiração nasal. O cérebro interrompeu-se. A visão embaçou-se. O interno da boca, que no início era úmido e fértil, tornou-se árido. O som da respiração inundando: se-co, se-co, se-co… Os olhos apertam-se, querendo doer. O rosto fecha-se, querendo sumir. E não há mais espelho.

EDUARDO HENRIQUE VALMOBIDA cursa Letras na Universidade de São Paulo. Aos vinte anos, ainda se prende à cor azul, resquício da infância, assim como à figura do mar, que reverbera tanto em sua escrita como no cotidiano banal. EDWARD.HV7@GMAIL.COM

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FOTO: Camilo Lobo

Entrevista | Lisandro Moura e o “Narradores de Bagé”: “A aventura narrativa tem o poder de inventar a vida na cidade” Na cidade gaúcha de Bagé, fronteira com o Uruguai, o sociólogo Lisandro Moura organizou uma coletânea de textos narrativos escrita por seus

jovens

alunos,

chamada

“Narradores

de

Bagé”.

Lançado

recentemente, o objeto final do livro é resultado de um projeto extenso de pesquisa, ensino e estímulo à escrita, que encoraja jovens alunos a escreverem narrativas presentes no imaginário popular da cidade. A inserir

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na literatura uma nova “narrativa oficial”, que põe em causa o que é fantasia e o que é fato, ancorada num embasamento teórico sólido de pensadores como Walter Benjamin. Assim, numa análise pouco mais cuidadosa, vê-se que a obra presentifica a própria função da literatura em seu sentido mais amplo e, ao mesmo tempo, mais concreto, mais aplicado. “Narradores de Bagé” é resultado de um projeto de investigação do imaginário popular da cidade, levado para dentro da sala de aula, com impacto direto nos espaços sociais. Dessa forma, a literatura é fonte, ferramenta, substância e resultado.

Para narrar,

foi

preciso ouvir

as narrativas. Para escrever, foi preciso narrar para si mesmo, para a sua própria capacidade de imaginar. Para se apresentar, foi preciso narrar à sociedade que um novo tipo de livro pode existir. “Algo aconteceu”, diz o Lisandro. O “Narradores” é, pelos vistos, como toda a criação deve ser: um fato social a partir do qual não se pode voltar atrás, mas que pode mudar os rumos dos acontecimentos num nível invisível, profundo e que diz respeito a todos.

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Foto: João Vicente de Oliveira

SUB | Diversos questionamentos sobre a função da literatura são colocados com riqueza no livro, tanto em seu conceito estético como no objeto final. Há um ponto de origem neste questionamento?

LISANDRO | Sim, porque desde o início sabíamos que um dos objetivos do projeto era a publicação de um livrinho contendo parte do trabalho desenvolvido pelos estudantes do IFSul. Eles se sentiram desafiados e motivados porque perceberam na proposta do livro uma forma de valorização daquilo que eles fazem na escola. Afinal de contas, por vários motivos, grande parte dos professores não investe muito no trabalho de seus alunos a ponto de querer apresenta-lo em um livro. Nesse sentido, acredito muito que o ato de escrever é central no processo formativo desses jovens, tanto do ponto de vista da construção de conhecimentos como também da possibilidade de autoconhecimento.

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Num primeiro momento, durante o projeto, a função da literatura ficou associada à escrita de diários de campo, como forma de os alunos registrarem aquilo que iriam vivenciar. Para isso eles aprenderam um pouco da técnica do diário e a importância da escuta sensível, saber ouvir, saber olhar, aguçar os sentidos, ter uma abertura para a experiência, fazer anotações, gravações, saber perguntar, saber conversar, ter “atenção imaginante”. A fotografia também foi importante nesse processo, pois ela nos ajuda a olhar com imaginação. Depois das impressões veio o ato da escrita do texto final. O problema do diário de campo é que nem sempre o resultado surpreende, porque às vezes sai um texto muito descritivo, com muitos dados, muitos fatos e pouca imaginação autoral. Eu insistia para que aparecessem as impressões pessoais e não apenas a descrição dos acontecimentos. Esse desafio foi imenso, e suspeito que tenha causado certo sofrimento, como sempre causa a mim também. Escrever dói, não há como negar. Ou há, não sei. Gosto muito da frase da Clarice Lispector: “escrever é uma pedra lançada no poço fundo”. Eu percebi isso porque os alunos demoravam muito para entregar os textos. Davam todo tipo de desculpa para não escrever. Assim, comecei a suspeitar que nossa preocupação – minha e do professor Rafael, parceiro de trabalho – estava sendo exagerada demais quanto à forma e ao método de trabalho. Os professores de Sociologia e História têm exigências muito chatas, oriundas da pesquisa científica, que podem facilmente bloquear a escrita e, consequentemente, a construção de uma aprendizagem mais profunda. Decidimos, então, apostar na experiência e na vivência e deixar um pouco de lado a preocupação com o tratamento das informações e com a construção narrativa dos acontecimentos. Era

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necessária uma dose de distração e divertimento, uma entrega afetiva aos espaços comunitários da cidade de Bagé. Foi a partir desse segundo momento que o trabalho começou a ficar interessante, a ponto de começarmos a repensar o ensino da Sociologia e a forma de encarar a Educação. Começamos a apostar na ideia de que era preciso viver o momento para que a escrita desses jovens fluísse de maneira mais autoral ou mais “encarnada”, como gosto de dizer. Mesmo nos textos mais descritivos ou informativos é possível observar uma escrita afetiva e um tanto poética, que denota a admiração dos estudantes pelas pessoas e pelas situações vividas. A leitura do livro nos leva a pensar constantemente sobre a relação entre o vivido e a narrativa do vivido. O mais importante nesse caso é a capacidade de contar histórias, relatar, biografar, algo bastante raro nos dias de hoje. E ao passar para o papel as histórias que são ouvidas, temos de lidar com procedimentos de significação e simbolização, ou seja, com a capacidade de criação e imaginação, que são indispensáveis e dão um colorido àquilo que se ouve e se vê. Enfim, mesmo que o trabalho tenha as suas imperfeições, como sempre, o importante foi o envolvimento, a atitude de abertura que tiveram em relação ao espaço e às pessoas com quem conviveram e conversaram. Fiquei muito contente e entusiasmado com o trabalho e a dedicação de todos, porque tenho certeza que algo aconteceu, algo ficou marcado na vida de cada estudante, como é possível observar nas entrelinhas do livro.

SUB | Queríamos saber um pouco mais sobre a execução do Narradores, que envolve várias pessoas, inclusive jovens recém apresentados à escrita

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e à publicação. Como foi feito esse passo a passo e quais os principais obstáculos que enfrentaram? LISANDRO | Tudo começou em 2011, quando retornei à cidade de Bagé para trabalhar como professor no IFSul. Antes eu estava morando em Porto Alegre, e essa mudança de lugar me fez pensar sobre o imaginário de Bagé, onde a tradição e o universo popular se destacam, por ser uma cidade de interior, bastante peculiar, uma cidade de fronteira com o Uruguai. Conversei com o professor Rafael Peter para que escrevêssemos juntos um projeto de pesquisa sobre a memória e o patrimônio imaterial da cidade, através do qual poderíamos transformar esse estranhamento todo em um projeto mais concreto, que envolvesse os estudantes do ensino médio e técnico do IFSul. A pesquisa tratava do potencial educativo das manifestações culturais da região e envolveu um número grande de alunos que se interessaram em participar da aventura. No início, foram 24 alunos inscritos nesse projeto integrado. Num determinado período chegamos a trabalhar com 50 alunos de turmas e idades diferentes. O filme Narradores de Javé, da Eliane Caffé, foi o ponto de partida para discutirmos as relações entre memória e narrativa, além de servir de inspiração para a escolha do nome do projeto – Narradores de Bagé. O livro foi apenas uma etapa do projeto, pois trabalhamos bastante com narrativas visuais também. Realizamos três vídeos documentários sobre alguns dos temas investigados (Atos de Fé em Bagé, Narradores de Bagé e A lenda do monstro da Panela do Candal), além de apresentações performáticas e exposição de fotos. Os três vídeos foram premiados no Festival Internacional de Cinema da Fronteira. O livro foi impresso justamente com o prêmio em dinheiro que recebemos nesse

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Festival. No final, ficamos com 38 alunos que participaram, de uma forma ou de outra, na confecção do livro. A experiência foi tão significativa que decidi fazer dela o tema principal da minha dissertação de mestrado na Educação, realizado na UFPel e defendida em 2013. Com a ajuda da minha orientadora, Lúcia Maria Vaz Peres, pude pensar melhor em tudo o que havíamos feito, levando em conta a formação dos alunos, o patrimônio imaterial da cidade e a metodologia de ensino para a área da Sociologia. Foi a partir dos estudos do mestrado que eu elaborei a ideia da “mística do ensino” e da “atenção imaginante” para pensar o percurso de formação dentro do Narradores. Na etapa final, optamos por inserir no livro um prefácio escrito pela profª Lúcia Peres, um texto de apresentação meu e do prof. Rafael, e os textos de autoria dos alunos, elaborados com base nos seus diários de campo, escritos a partir do contato deles com as comunidades populares de Bagé: apostadores de carreiras de cavalo em cancha reta, quilombolas do Rincão do Inferno, benzedeiras, ciganas, jogadores de futebol de várzea e comunidades de terreiros. O livro apresenta esses seis capítulos que narram a cidade reconstruída por pequenos gestos provenientes de homens e mulheres simples, imersos no mundo fantástico da fé, do jogo, da magia e da cultura afro-gaúcha: O maior obstáculo que enfrentamos foi a dificuldade de aliar um ensino baseado em projetos com a carga horária em sala de aula. Apesar de termos tido total liberdade na execução da ideia, garantida pela direção do câmpus do IFSul, o nosso trabalho exigia muitas saídas de campo em horários pouco convencionais para a escola. Tínhamos uma dinâmica de trabalho mais espontânea que entrava em conflito com o

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tempo rígido da estrutura de ensino curricular. Sabemos que a sala de aula não é o único espaço de formação e que a educação transcende o espaço físico da escola. E mesmo assim insistimos em organizar o tempo de aprendizagem de maneira pouco flexível, através de disciplinas separadas umas das outras. Por isso costumo dizer que esse projeto foi um desafio no sentido de transcender as condições objetivas em prol de novas experiências educativas que tencionem uma mudança mais estrutural da instituição de ensino. Com isso os estudantes puderam ver a escola como um espaço de experimentação, cuja aprendizagem se tornou mais significativa porque alicerçada em projetos pontuais, no caso, elaborar um livro ou qualquer outro produto. Dessa forma podemos passar da aprendizagem de conceitos para a vivência dos conceitos, contribuindo para aproximar a escola da cidade.

SUB | É interessante como vamos sentindo isso tudo na leitura, não só no prefácio e na apresentação, mas nos próprios textos. Que a literatura foi sendo utilizada como uma ferramenta de trabalho mesmo, os textos transmitem a experimentação a todo o momento. No número anterior, o assunto com o Gabriel Pardal foi a escrita e o ambiente digital. O “Narradores”, pelo contrário, vai direto para o livro. O que você vê, nos alunos, sobre isso? Qual a importância do papel, para a experiência deles com a literatura? Teria sido da mesma forma se o Narradores fosse um projeto digital, será? LISANDRO | Penso que seria diferente sim, que não teríamos o mesmo resultado em termos de envolvimento dos autores e do público leitor. Estamos tendo um retorno bastante grande do público, além até do que esperávamos, e acredito que isso tenha a ver com o formato impresso do

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trabalho. Tenho ciência de que o livro não é o único meio para se apresentar um trabalho escrito e que as plataformas digitais se tornam muito mais apropriadas em tempo virtuais. Se tivéssemos optado pelo ebook ou um blog de qualidade, sites ou redes sociais, certamente alcançaríamos um número maior de leitores. No entanto, penso que não teríamos uma resposta tão sincera do público, como temos observado. Isso porque acredito que cada plataforma produz um tipo de relação com o leitor, e me parece que o livro impresso é o que produz uma intimidade maior nesse contato do leitor com a obra. E também não temos interesse em quantidade, em estatísticas de acesso e de venda. Fizemos poucos exemplares justamente para não distribuirmos os livros de maneira dispersa, sem ter um retorno do leitor. Por isso optamos por abrir mão da mediação das livrarias na distribuição dos exemplares. Utilizamos ocasiões especiais para isso, eventos escolares, acadêmicos, festas populares na cidade, eventos voltados ao patrimônio imaterial, feiras comunitárias e feiras do livro. Assim os próprios autores podem ter um contato mais direto com o público. É uma forma artesanal de distribuição. Portanto, as vantagens do livro têm aparecido nessa relação com um público mais interessado no tema do trabalho e mais próximo da gente. E também no grau de importância maior que os alunos deram para o livro de papel. Eles estão muito acostumados com o ambiente virtual, estão sempre conectados, muitos deles mantém blogs, escrevem nas redes sociais, mas acredito que não levam muito a sério a escrita nesse ambiente. O livro trouxe um pouco dessa responsabilidade pelo texto escrito, pois é algo que está mais distante, afinal não é tão simples fazer um livro, há todo um processo e envolvimento de vários colaboradores, desde o artista que fez o desenho da capa, passando pela revisora até chegar à editora. Diferentemente da plataforma digital, o livro é um

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acontecimento, no sentido pleno da palavra. Porque ainda está demarcado por ritos que reforçam o valor do que foi produzido. A cerimônia de lançamento é um exemplo disso, porque funciona como momento de troca. Um dos momentos mais emocionantes pra mim foi ver meus alunos entusiasmados, autografando, conversando com pessoas durante o lançamento na Casa de Cultura Pedro Wayne. Algo até então inesperado na vida de cada de um. E também os familiares dos alunos escritores, que deram importância significativa ao saber que seus filhos lançariam um livro, o primeiro livro. Não teria acontecido dessa forma se tivéssemos optado pelo ambiente digital.

SUB | E para você, o que mudou? Você falou sobre a mudança nos rumos da sua pesquisa... Mas em relação à literatura em si, à ficção... Para que serve a ficção, em Bagé e em você? LISANDRO | Quando se trabalha com narrativas não podemos fazer uma divisão tão demarcada entre ficção e realidade. A escrita assume dimensões subjetivas importantes, de modo que a imaginação passa a comandar o processo. E a imaginação tem a ver com a capacidade de transformar as imagens e os fatos recebidos pela percepção. Ela tem a mesma matriz do impulso criativo e cumpre também a função do irreal. Mas um irreal que é verdadeiro em si, que não tem nada a ver com falsidade ou mentira. Por muito tempo essa potência maior da natureza humana, a imaginação, foi deixada de lado em nome de um objetivismo acentuado, que minou a experiência fantástica que existe por traz daquilo que consideramos realidade. Hoje sabemos que a ficção contém mais realidade que a própria ideia de fantasia, e também que a realidade está cheia de fabulações, mais até que a própria ficção.

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O que eu aprendi com isso é que passei a olhar o processo de formação a partir da escrita e da pesquisa como um espaço rico em fabulações e construções simbólicas. Na minha dissertação de mestrado eu chamei isso de ficcionalização da pesquisa em educação. No trabalho dos narradores essa ficcionalização está presente. Frequentemente eu conversava com os estudantes sobre isso, nas reuniões e encontros dos Narradores. Eu ressaltava – e continuo insistindo, já que o projeto dos Narradores continua existindo sob outras formas – que durante nossas pesquisas não nos interessa saber se as informações dadas pelos entrevistados sejam verdadeiras ou falsas. Nem mesmo interessa-nos manter fidelidade entre aquilo que é dito e o que é escrito, ou seja, entre o que é nos contado e o que recontamos através de textos e imagens. Temos como inspiração a frase do personagem Antônio Biá, no filme Narradores de Javé: “Uma coisa é o fato acontecido, outra coisa é o fato escrito. O acontecido tem que ser melhorado no escrito de forma melhor para que o povo creia no acontecido.” Essa frase genial, dita por um personagem fictício da cultura popular, suscita várias reflexões, dentre elas o papel da escrita na elaboração ou reconstrução da memória de um povo, de uma cidade, enfim, a relação entre memória e narrativa. Em todo o caso, o que importa pra nós, narradores de Bagé, é inventar as tramas do social por meio da nossa própria vinculação a elas. Essa é a importância das vivências ou das experiências imersivas que realizamos durante as saídas de campo. Inventar é produzir conhecimento usando a imaginação. E a imaginação, infelizmente, é o valor mais em falta no ambiente escolar. A aventura narrativa tem o poder de fabricar a vida na cidade e, consequentemente, fabricar a nossa própria vida. Sob essa perspectiva, Bagé se torna uma cidade imaginada pelo olhar e pela escrita dos jovens. Mais uma vez, não

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se trata de coletar informações falsas, de distorcer os fatos, pois temos uma responsabilidade ética pelo real. A ficção ou a invenção não significa que as informações não sejam verdadeiras. Porque a verdade da experiência não tem nada a ver com acontecimentos reais, e sim com a capacidade de narrar, de recontar as histórias vividas e ouvidas. Sobre esse assunto, é sempre bom seguir as palavras sábias do poeta Manoel de Barros: “Só é verdade aquilo que invento”.

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PARCEIROS:

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Edição e Revisão: Morgana Rech e Tânia Ardito

Recepção de originais: CONTATO.SUBVERSA@GMAIL.COM

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