Revista subversa vol 4 nº10 jun2016

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SUBVERSA

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Vol. 4 | n.º 10 |maio de 2016

CONTATO.SUBVERSA@GMAIL.COM ISSN 2359-5817

Ilustração | A. MIMURA

DOUGLAS SIQUEIRA MARTA CORTEZÃO GABRIEL AUGUSTO TAYLANE CRUZ PAULO ENRIQUE FREITAS CRUZ TAÍS BRAVO MARCEL VIEIRA LEONARDO CAMARGO FERREIRA ALEXANDRA TORRES YURI CLARO


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Subversa | literatura luso-brasileira | V. 4 | n.º 10

© originalmente publicado em 01 de junho de 2016 sob o título de Subversa ©

Edição e Revisão: Morgana Rech e Tânia Ardito

Ilustrações A. MIMURA

Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados como autores desta obra. Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos textos ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem com a realidade.


SUBVERSA ALEXANDRA TORRES | ARQUEÓLOGOS DO NOSSO PRÓPRIO PASSADO | 6 DOUGLAS SIQUEIRA | CRIADOR | 8 GABRIEL AUGUSTO | SENSÍVEL CENSOR | 10 LEONARDO CAMARGO FERREIRA | INDECISÃO SOCIAL | 14 MARCEL VIEIRA | MEIO-DIA E MEIA | 16 MARTA CORTEZÃO | ALGOZ | 21 PAULO ENRIQUE FREITAS CRUZ | CONFESSO QUE MORRI | 24 TAÍS BRAVO | GUIA| 26 TAYLANE CRUZ | CLANDESTINO | 30 YURI CLARO | O PRAZER DE TERMINAR LIVROS | 35

A. MIMURA | 38

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EDITORIAL “Escrever é uma questão de devir, sempre inacabado, sempre a fazerse, que extravasa toda a matéria vivível ou vivida. É um processo, quer dizer, uma passagem da Vida que atravessa o vivível e o vivido.” Gilles Deleuze "A literatura e a vida"

Todo o final anuncia um começo. A Subversa encerra mais um Volume e mais um semestre de trabalho que trouxe novas ideias, novos autores e leitores, sempre alcançando alguns pequenos objetivos e mantendo outros em nossos planos, sonhos e aspirações mais altas. Daremos uma pausa nos números, para descansar um pouco e avaliar como tem sido a nossa experiência por aqui e os passos que a revista tem dado, sem deixar de publicar os textos dos colunistas e algum material eventual. Queremos dedicar esse número a todos que nos ajudam a fazer a Subversa diariamente e que ajudam a torná-la uma revista de todos. Todo o tipo de incentivo nos motiva e confirma a importância desse tipo de trabalho em diversos contextos. O número é ilustrado por A. Mimura, nosso colaborador visual permanente, autor de obras belíssimas que já são parte da revista. Somos muito felizes por essa parceria. Esperamos anunciar, em breve, notícias que movimentem os ânimos de todos e que a Sub seja a companhia de leitura na praia, na lareira, sob sol ou chuva. Desejamos uma ótima leitura a todos!

As editoras.

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Em breve, Subversa versĂŁo impressa #2

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ARQUEÓLOGOS DO NOSSO PRÓPRIO PASSADO ALEXANDRA TORRES | Lisboa, Portugal.

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Desenterrar e pincelar os fósseis da nossa própria história, dependendo da era a que se referem, pode ser um exercício doloroso se estes evocam memórias que preferiríamos ter soterradas para sempre ou prazenteiro se celebramos ter vivido as experiências fossilizadas. Se é recorrente descobrirmos memórias que nos inspiram mágoa, pegadas jurássicas que moldaram a pedra - a natureza de um comportamento - parece que perpetuamos a melancolia procedente do passado. Porém, se olharmos para essas peugadas como parte do nosso crescimento - lições aprendidas - então, talvez possamos apreciar os nossos fósseis como peças de museu, cuja história marcou um caminho mas não a forma de caminhar. Porque caímos e soubemos erguer-nos, e continuámos a andar. A evolução tem sempre um ponto de partida. Por vezes, parte da dor. Outras vezes, da alegria. Mas sempre, sempre, parte da vontade. E a isso chama-se: sobreviver.

ALEXANDRA TORRES (1975, Lisboa) estudou Design de Moda no Citex e na Academia de Moda, Artes e Técnicas do Porto. Durante o seu percurso profissional nunca abandonou a sua verdadeira paixão, a escrita. É autora da saga fantástica O Segredo dos Imortais, com as duas primeiras entregas, Passado e Presente, publicadas; Ossos, um conjunto de poemas que constituem pequenas reflexões sobre o pensamento, coração e alma; e de participações nas antologias poéticas Enigma(s) I e II, e Utopia(s). | INFO.ALEXANDRATORRES@GMAIL.COM | Facebook

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CRIADOR DOUGLAS SIQUEIRA | São Paulo, SP

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de todo movimento necessário uma dança leve com o acaso do grito preso indignado uma canção de seis minutos afiados de cada instante transitivo e raro o eterno em movimento capturado dos devires em mim em ato um absurdo e surreal quadro a quadro entre Pina Dylan -Bresson Buñuel estou eu potente e perdido ansioso por riscar o infinito no espaço em branco deste papel

DOUGLAS SIQUEIRA tem 31 anos, é bacharel em Comunicação Social com habilitação em Midialogia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É idealizador e escritor da página (autor ensandecido) desde 2013 e, além de escrever poemas, atua na área de Produção Audiovisual como professor e realizador. | DOUGLASOSSIQUEIRA@GMAIL.COM

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SENSÍVEL CENSOR GABRIEL AUGUSTO| São Paulo, SP.

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Renato é um cidadão comum. tem vida comum habitação comum família comum trabalho comum diálogos comuns costumes comuns enfim, um cidadão comum. Renato tem um filho. Samuel. Samuel não é comum. Samuel vê pequenezas. Renato acorda cedo pra labuta. come seu matinal comum de café com pão. disposição. margarina ou requeijão depende da situação. vai para o trabalho. trabalho desses qualquer. porteiro qualquer manobrista qualquer servente qualquer segurança qualquer ou até vendedor de frutas, desses qualquer que ganha pouco pra muita luta. Renato enfrenta seu dia de maneira comum. o tempo de espera na parada de ônibus depois da longa caminhada, já não incomoda. viajar em pé na lotação, também. o nascer do sol durante esse percurso

passa

despercebido.

a

ausência

de

dona

Benedita

cantarolando diariamente ao amanhecer enquanto despeja litros e mais litros de água na calçada, também. até o bom dia que bolinha lhe abana enquanto futuca os lixos da rua se torna descabido. não por maldade ou qualquer outro infortúnio, mas porque se tornou comum. as horas de seu dia se arrastam de maneira comum. a disputa pela sobrevivência também. hoje precisou dobrar as mangas da camisa e sair na mão com um filho da puta que atravessou seu caminho. mas nada de mais, apenas uma discussão comum. a marmita fria comida na guia já nem é problema. o suco de limão amarga vida, também. ouvir que seu trabalho pobre não presta já não importuna. ficar até mais tarde sem extra, também. os dias de Renato também terminam de maneira comum. a viagem em pé na lotação. uns falam novela outros futebol e todos televisão. tremenda falação. ontem precisou colocar pra fora um vagabundo que entrou pela porta de trás dizendo não pagar a passagem, onde já se viu andar de graça. hoje foi mais tranquilo. rolou até samba na praça. nem percebe que dona Benedita cantarolando

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diariamente ao anoitecer enquanto despeja litros e mais litros de água na calçada, já não está mais. nem parou pra ver o que a galera juntada na rua falavam dela. os preços das coisas aumentaram novamente. a cachaça barril de plástico já nem esquenta mais a goela. em casa o jantar é de arroz e feijão comum. a queda de energia na hora do banho, também. hoje Renato precisou disciplinar sua mulher que insistia em aporrinhar sua vida com a história de dona Benedita que morreu não morreu depois do infarto. apenas uma palmada de leve dessas comuns. nada demais, disse pra ela. reclamação é coisa de novela. e Samuel procura pedaços de papel. encontra e corre para seu quase quarto no cantinho. Samuel procura restos de linha retalhos de tecidos tampas de garrafa palitos de fósforo queimados. encontra e corre para seu quase quarto no cantinho. isto é incomum. incomum altera a vida comum de Renato. Renato pergunta Samuel o que faz? nada, responde amiúde. na novela nada além do comum. a mulher chorando no quarto, também. e Samuel continua seu trabalho, quietinho. o que faz Samuel? nada, responde amiúde. como nada? deixa eu ver. não está pronto, diz Samuel com a autoridade de sua quase década de vida. Renato tenta manter a todo custo o conforto que o comum lhe proporciona. Samuel continua procurando plásticos usados cadarços de sapatos rebentados e, pedaços de papel. encontra e corre para seu quase quarto no cantinho. isto é incomum. quando o conforto é comum o incomum incomoda. muito perguntar e ouvir está quase pronto, também. Renato rompe a barreira do comum e caminha em direção a Samuel que arduamente se dedica a convencê-lo aguardar um pouco mais, pois ainda não está pronto. no incomum, empurrar uma criança já não afeta. ouvir o choro depois, também. Renato retira bruscamente a tenda de tecido improvisada que cobre o quase quarto no cantinho.

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Samuel constrói vidas. palitos de fósforo queimados com pedaços de plástico morto dão vida a lindos cisnes. castelos caixas de leite se erguem grandiosos com bandeiras reais e poderosos soldados tampa de garrafa guardando a porta. formosos cavalos toco de vela galopam a todo vapor por entre as camponesas moedas que colhem flores tecido pelos campos verdejantes. frondosas árvores retalhos formam densas florestas. mas, nada é tão belo quanto a revoada de pássaros origami. centenas de todas as cores tamanhos texturas, livremente pelos céus. uns rasantes outros altíssimos todos voantes. e Samuel acompanha a mãe chorando em coro. Renato é convidado a voar. aceita. Renato voa pela primeira vez. entre altos e rasantes convida Samuel e a mulher a voar juntos. voam juntos. Renato não é mais uma pessoa comum.

GABRIEL AUGUSTO, natural de São José dos Campos/SP, iniciou-se artisticamente como músico da Orquestra Jovem da Fundação Cultural Cassiano Ricardo. Designer Gráfico formado pelo SENAC, exerceu esse ofício por vários anos. Em 2010, mudou-se para São Paulo para estudar teatro, cursando HUMOR pela SP Escola de Teatro. Atualmente propõe como artista projetos onde música, teatro e literatura se entrelaçam e constituem obra que dialoga com a cidade em sua movimentação cotidiana. É ator no Coletivo Nós, Palhaços!, músico e poeta das ruas. | CONTEMPOESIA@GMAIL.COM | Facebook

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INDECISÃO SOCIAL LEONARDO CAMARGO FERREIRA | Vila Nova de Gaia, Porto, Portugal.

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Na violenta cidade, Que projetos se encontram Na multidão desamparada? Há sempre mau governo, má política, Assim como nula é a consistente votação. Cada vez mais, trabalha-se na impressão Das vontades que não as próprias: O papel sai tudo, exceto original. E a cada dia, o medo das personalidades alastra-se, Sem fim definido. Mas numa outra dimensão dentro do próprio planeta, O pensamento de retaliação é persistente, vicioso, Parecendo nunca acabar revogado. E assim vamos destruindo os que permanecem à nossa volta, E os que seguem por arrasto. "Todos, a não ser eu, são inúteis.", a simples reflexão diária. Afinal, somos importantes, Ou não passamos de escravos-sombra para os "superiores"? Isto, sem nenhuma dúvida, é a indecisão social.

LEONARDO CAMARGO FERREIRA tem 16 anos e vive em Vila Nova de Gaia, no distrito do Porto, Portugal. Frequenta a escola secundária Almeida Garrett. Sempre adorou escrever e o mundo da literatura. Iniciou seu percurso nesta fantástica arte aos 14 anos. Tem muitos escritos realizados. Continuará a escrever até a sua respiração cessar. | LEONARDO-CAMARGOFERREIRA@HOTMAIL.COM

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MEIO-DIA E MEIA MARCEL VIEIRA | João Pessoa, PB.

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O avô assiste de longe a tevê, sentado numa cadeira de balanço junto à porta do quintal, o cabo Robério explicando o caminho da perseguição, primeiro o meliante assaltou o mercadinho e na saída a viatura da PM passava no local, vagabundo, o avó rumina do seu canto, e houve então uma troca de tiros entre os soldados e o meliante, que conseguiu ainda fugir na garupa da moto do comparsa, ferro nesses vagabundos!, o avô grita mais excitado, e da sala a menina responde, é o quê, vô?, deitada no sofá calorento com as pernas pra cima e os dedos no celular, hj vai ter a festa, né ;), mas o avô retruca, ainda mais alto, é nada não, abestalhada, a ronda seguiu a moto até interceptar os dois já na descida da Tancredo Neves, sentido Mandacaru, e os dois foram presos e agora estão à disposição do delegado, o avô rosna insatisfeito, falando grosso, oxe, e não matou essas pragas?, uma decepção que toca fundo dentro dele, uma raiva, a cadeira indo e vindo nervosa, empurrada pelos pés enrugados numa havaiana azul encardida, vagabundos, o repórter agora explicando os procedimentos, depois de interrogar, o delegado vai dar baixa no flagrante e encaminhar os bandidos para o presídio do Roger, ao que o avô contesta, ainda mais indignado, mata logo esses porras!, e tá falando comigo, vô?, a menina berra da sala, sem se mover do sofá, no fundo até achando graça do esperneio do velho, meu vô tá ficando doido, kkk, escreve na mensagem, rindo consigo mesma, e o avô, irritado, brada a plenos pulmões, uma voz grave e engasgada, né contigo não, sua miséria, e a menina acha mais graça, escrevendo pra Maikesuel, to com saudade, mlk, e espera ansiosa a resposta, o celular imóvel, silencioso, e a tela brilhante de repente se apaga, a menina

cansada de

esperar,

impaciente,

começam

então

os

comerciais, bicicleta caloi de doze marchas, de quinhentos e noventa e nove, por apenas quatrocentos e noventa e nove, em doze vezes no carnê, só no armazém paraíba, o avô então se apoquenta, o controle remoto em cima da mesa, lá longe, isso é uma merda!, ainda se queixa

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acabrunhado, e pra espanar o desconforto grita pra sala, ei, sua quenguinha, venha preparar o meu almoço, e a menina, já habituada aos

xingamentos,

aproveita

aquela

demanda

pra

acalmar

a

ansiedade, Maikesuel, to com saudade, mlk, e calça então as sandálias cor de rosa, o desenho da hello kitty já desgastado, e põe o celular no bolso de trás do shortinho jeans, ei, bora, preguiçosa!, o avô continua nas exigências, mas a menina se irrita, vixe, tenha calma, vô, e o velho revida rabugento, quem já viu, sua maleducada, não me arremede não, e a menina avança pela cozinha, soltando num muxoxo a sua indiferença, pega então um prato do armário, põe duas conchas de feijão, arroz branco, uma rodela de inhame, pedaços miúdos da galinha guisada, pescoço e asa, e um punhado de alface, rodelas de tomate, cenoura ralada, e mais uma banana madura ainda com casca, e põe então na cabeceira da mesa, oxe, venha me ajudar aqui, infeliz, o avô exige, apoiando com esforço as mãos nos braços da cadeira, e a menina se achega junto e pelo braço levanta o velho, mas o avô, uma vez erguido, empurra a menina pra longe, agora precisa mais não, e então segue numa passada lenta, sem equilíbrio, procurando logo no que se apoiar, e a menina fica olhando de perto, torcendo no fundo pro avô cair, enquanto lá fora passa barulhento o caminhão de gás, e o programa do Samuka volta do intervalo, e a menina irritada vê o avô sentar-se à mesa, na cabeceira, e lamenta consigo a queda que não houve, velho miséria, faz ela também o seu prato, mas pouco, to com saudade, mlk, e senta na outra ponta da mesa, de costas para a tevê, pega o celular e repara não ter nada novo, só a hora acesa no alto, meio-dia e meia, e no fundo uma foto dela e Maikesuel, da primeira vez juntos, a menina olha a foto e se agonia, bloqueia o celular e devolve pro bolso, mlk, mlk, to com saudade, vejam agora esse caso extraordinário, o padrasto acusado de violentar as filhas da esposa, e uma música tensa, sombria, cresce no ar, vagabundo, a menina se vira e olha por um instante a tevê, a polícia

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evitou que ele fosse linchado pela população, e o avô se revolta, um soco na madeira da mesa, mas olha, salvaram o vagabundo!, e a menina retorna pro seu prato, mais uma, mais outra garfada e desiste de comer, levanta e deixa o prato na pia, o repórter agora entrevista o acusado, e o avô interrompe a colherada no ar, grãos de arroz tingidos da graxa da galinha caem na mesa, e a menina também se interessa, olha pra tevê, o sujeito de cabeça baixa, sem camisa, hematomas nos ombros e curativos nos braços, o acusado resistiu à prisão, prossegue o repórter, e deu uma sorte do cão que a polícia salvou o teu rabo, heim, e põe o microfone junto à boca dele, mas nada sai, a cabeça baixa, sem camisa, e a menina logo se desinteressa, olha o celular e, de novo, nenhum sinal, o avô aguardando a voz do acusado, o silêncio, e o repórter diz, desse sorte, mas agora na cadeia a história é outra, quase rindo na cara do sujeito, e o avô rindo também, crioulo vagabundo, vai ser a namorada do presídio, e riu mais alto, satisfeito, dando um talho na banana, a menina ainda na cozinha, olhando com repulsa tanto o acusado quanto o avô, velho miséria, e sem resposta do celular sai da cozinha, vou no banheiro, viu vô?, e o repórter segue insistindo, querendo que o homem assuma o crime, querendo do homem que saiba o que lhe espera, a namorada do presídio, o avô ri, e sem muito mais volta pro estúdio, é com você, Samuka, mas o velho está saciado, com um gesto enfadonho empurra o prato, se levanta com dificuldade e, se apoiando na mesa, vai na direção do corredor, com dificuldade, se apoiando no armário e nas paredes, trombando, tropeçando, um traste, e a menina encosta a porta do banheiro, só encosta, mlk, to com saudade, e então se dá conta de que menstruou, eita, merda, e abaixa a calcinha e vê o lastro de sangue no fundo, eita, merda, eita, eita, e assim, em pé com o short arriado, calcinha suja no meio dos joelhos, abre a gaveta e vasculha lá dentro, eita, tá sem modess, eita, a menina pingando sangue pelas pernas, vira o corpo pra pegar o papel higiênico e vê o avô olhando pelo vão da porta, oxe, vô, tá doido?, a

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menina se agita, quase tropeça, e num pulo empurra a porta na cara no velho, ainda gritando, tá doido, vô, e o velho fala pra si, quenguinha, e sorri, e segue sua vida.

MARCEL VIEIRA é escritor, professor e pesquisador. Professor do Curso de Cinema e Audiovisual e do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal da Paraíba, onde trabalha com Roteiro, Narrativa e Dramaturgia. Autor de "Adaptação Intercultural: o caso de Shakespeare no Cinema Brasileiro" (EDUFBA, 2013), vencedor do Prêmio de Melhor Tese do Ano pela Associação Nacional de Programas de Pós-graduação em Comunicação (COMPÓS). Possui contos e poemas publicados em Revistas e Suplementos Literários, como a Revista Continente e o Correio das Artes. | MARCELVBS@HOTMAIL.COM

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ALGOZ MARTA CORTEZÃO| Tefé, AM /Segóvia, Espanha.

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Era um dia gris Ele grasnou palavras vis Saiu batento a porta. Ela, com a alma torta, As pedras do seu triste pesar Se pôs a juntar. Seu coração desconsolado Destroçou-se em mil pedaços. Sua fraqueza agigantou-se, Sua dignidade esfacelou-se No presente do verbo amar... E todas suas culpas foi chorar... O gris se enegreceu do fel da noite Convidando a morte, a foice... Um grito silenciado de lágrimas Segurou o fio da vida amarga. Ele jurou amores pretéritos para o futuro. Ela, de tempo presente, ainda suja, Empapada de medo e pranto, Rosto gélido, braços lânguidos, Perdida de si em tantos nós, Oportunizou ao seu cruel augoz Seu único e cansado suspiro, Entregando-lhe seu resto de vida. Porque presa em tantos labirintos Se joga aos leões famintos.

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MARTA CORTEZÃO nasceu em Tefé/AM/BR e é cidadã do mundo. É membro da Associação Brasileira de Escritores e Poetas Pan-amazônicos (ABEPPA) e professora da rede pública do Estado do Amazonas. Lecionou também, de 2001 a 2010, na Universidade do Estado do Amazonas (UEA/CEST/TEFÉ) e na Universidade Federal do Amazonas (UFAM) em 2011. Atualmente, cursa o Mestrado em "Mundo Clásico y su proyección en la cultura occidental", em Segovia (Espanha). Em novembro de 2014, estreou no mundo da escrita com “Atreva-se”, na Subversa, onde também publicou outros quatro textos. Desde setembro de 2014 escreve poemas e pequenas reflexões no seu blog www.tefetupeba.wordpress.com e em sua página Banzeiro Manso, no Facebook. | MARTABARTEZ@HOTMAIL.COM

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CONFESSO QUE MORRI PAULO ENRIQUE FREITAS CRUZ| Muriaé, MG.

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Como Neruda, confesso que vivi. Mas para mim não houve mérito, Que podia confessar que morri Pois viver só se deu no pretérito. Quando menino, não tinha tormento, Era pipa a soltar pela rua, Com enorme doçura e candura, Mimo, proteção e alento. Ah! Quando eu era pequeno... Quantos sorrisos trazia... Tinha de palpável o vento E no suor – alegria! Já não vejo as estrelas Como noutrora as via Apenas contemplo as cadeiras Da copa e da sala, vazias. E assim confesso “viver”, Sem aquela vetusta doçura Espalhada com as pipas nas ruas, Que guardei e esqueci em Terê.

PAULO ENRIQUE FREITAS CRUZ é advogado atuante na zona da mata mineira. Músico amador, escritor de poesia e prosa. Ganhador de diversos prêmios literários. | PAULOCRUZ1989@HOTMAIL.COM

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GUIA TAÍS BRAVO | Rio de Janeiro, RJ.

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Introdução: depois de tanto te escrever guardei em segredo os prints só para íntimos recortes de vontades suspensas em palavras mesmo cravadas as sílabas soam como fluxo de alguma certeza depois de tanto não te esperar invento desmedidamente além do oceano a volta Primeira imagem: no seu rosto passar protetor indicar o perigo as ruas expostas seguras apenas ao alcance das minhas mãos

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são todas possíveis marcas, amor Segunda imagem: te dar Caldinho de Feijão Pão de Queijo Caipirinha Brigadeiro Essa Cidade se conhece pela ponta dos dedos até a boca Terceira imagem: reparar se a velocidade o risco a falta de saneamento e estrutura os transbordamentos as tempestades o caos te emocionam ou afastam da parte de mim antes de você

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Por último: calcular se fomos aquele continente ou somos criação de outro lugar fora das cartografias oficiais e de propósito ou por ser de humanas errar as contas e te deixar em casa

TAÍS BRAVO é escritora e tradutora. Apesar de formada em filosofia, sente pontadas no estômago quando alguém a apresenta como filósofa. É colaboradora da Editora Alpaca e das revistas Capitolina e Ovelha. Criou, junto com Natasha Ísis, a newsletter colaborativa Mulheres que Escrevem. Gosta mais de ir à praia do que de existir. | TAISBRAVO@GMAIL.COM

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CLANDESTINO TAYLANE CRUZ | Aracaju, SE. Gorda sempre foi a pedra no meu sapato. Mesmo sabendo que eu não a queria, me quis. Fico preso a esta condição de filho adotivo, a este teto de carne, osso e obeso coração que insiste em me abrigar. Sou um cão mamando desesperado nas tetas de uma vaca. É Gorda a culpada por eu ser assim. O modo como mexe a colher no tacho, pondo no meu prato caldos grossos que não pedi, faz com que eu liberte ainda

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mais

meu

lado

mau.

Ela

sabe

disto,

me

provoca

descascando uma banana e enfiando a fruta na goela sem nem mastigar. Bato a colher no prato com ódio de Gorda que se engasga diante de mim. Nunca pedi por uma mãe, muito menos uma como ela, com pelos brancos brotando do queixo como raízes de falsa mulher. Gorda é feia. Sinto nojo de sua gula, da sua bunda que incha mais a cada dia com as bolotas de pão engolidas com desespero. Odeio todas as suas doenças: a diabetes, a pressão alta, o seu problema no coração. Desprezo quando me pede para passar na farmácia e comprar seus remédios, tirando do pacotinho de plástico um dinheirinho sujo e merrequento que juntou a custa de muito troco de pão. Burra, Gorda acha que preciso do dinheiro dela. Disfarça, isso sim, para não ter de me perguntar de onde venho todas as tardes. Sabe que no bolso trago tudo que não me pertence; sabe que fui capaz de furar muitos, tomando à mão armada os pertences de alguém. Pouco me lixo, Gorda, digo a ela, quando entro pela porta enfeitada de cupins, tiro um pouco de cada um, pois gente com excessos é o que não falta por aí. Gorda não me ouve. Está deitada no sofá, cochilando após uma manhã de labuta na cozinha. Sua boca aberta deixa sair o ronco cansado, esvaziando sua preguiça numa baba grossa que escorre às duas da tarde, enquanto o pano de prato ainda pinga pendurado na torneira da pia.

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Quando acorda, já não me encontra em casa e corre à esquina com uma latinha cheia de arroz e mortadela. Grita meu nome na esperança de que eu volte para aceitar a sua marmitinha de ternura. Mas o mal já está em mim pronto para mais um recolhimento coletivo. É hora de sair e tomar os excessos do mundo, tolher a ordem, aliviar minha raiva de Gorda. Subo a ladeira, deixando a vaca que me criou na esquina com sua saia roxa de bolinhas. Ela fica na esquina pendida pelo peso de peitos que desafiam a capacidade de equilíbrio humano, com sua latinha de falso alimento esperando que eu volte. Não quero, Gorda, não quero nada! E ela grita meu nome outra vez, erguendo a latinha que vai escapando da minha vista à medida que me afasto. Não quero a latinha com arroz e mortadela, Gorda; não quero esse fedor que você tem quando sua; não quero precisar ler a bula dos remédios para você, nem mijar na sua presença, nem dividir um colchão fedorento com você. Pare, Gorda, de dizer que sou inteligente, que leio bem e produzo frases bonitas! Pare de me mandar produzir livros! Pare de sonhar com livros que, se fosse para escolher, iria querer ser aviador. Pare de ser tão burra, Gorda! Livre da presença de Gorda, que ficou em casa cozinhando alguma bosta de comida, vou pelas ladeiras, pelos morros, pelas canais, como um bicho se escondendo. Inclinando o corpo e flexionando a engrenagem para me armar, me escondo pelas brenhas, camuflado por verdes medos, o fino metal guardado e preparado na bermuda. Pego no cabo de

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madeira com a mesma confiança que tinha ao manipular brinquedos de marcenaria na infância e ergo o metal afiado sem a inocência com a quail erguia as espadinhas de pau ao desafiar meu amigo Otávio para um “dulelo”. Manipulo com vocação a arma branca que de branca só tem o nome porque nela brilha uma luz vermelha que, confesso, me causa mais transtorno fazer brilhar. Diante de mim alguém grita, alimentando o buraco que a comida imunda de Gorda não pode saciar. Recebo, de mão beijada, tudo que peço, sendo fotografado por câmeras de olhos seletivos, que escolhem o ângulo menos arriscado para, à noite, poderem dormir com um registro menos explícito. Uma fotografia embaçada é o que sou diante daqueles que, depois de gritarem, correm na direção contrária à minha. De volta a casa, vejo Gorda comendo pipoca diante da televisão. Ela se entala, tosse, a garganta arranhando com os pedacinhos do milho. Ri toda abestalhada de algum bobo fazendo piada às onze da noite numa TV que chia. Perco a paciência. Ela manipula o controle com seus dedos cheios de anéis de plástico, fala para eu comer alguma coisa, tem janta na geladeira, tá fria, mas serve. Quero nada não, respondo, retirando dos bolsos coisas que agora me pertencem. Gorda levanta, desliga a televisão, ajeita a alça da camisola cheia de furos. Vou até a cozinha, tomo um gole de água fria. Gorda grita: “Vem deitar, menino!”. Tiro da bermuda a faca que gorda usa para cortar galinha, deixando exatamente no lugar de onde tirei. Sei que,

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fazendo deste jeito, Gorda nem vai perceber e evito aqueles momentos de ter mãe que não pedi. Vou deitar. Num colchão fedorento, Gorda dorme virada com a cara para a parede e sua alma flatulenta. Eu do lado, olho o teto até adormecer. Durante a madrugada fedor e ternura se confundem. Mas durmo tranquilamente, tenho sono de menino.

TAYLANE CRUZ é graduada em Jornalismo pela Universidade Federal de Sergipe e escritora. Natural de Aracaju, SE, em 2015, lançou seu primeiro livro de contos, "Aula de Dança e Outros Contos". Tem textos publicados em sites e blogs literários. Apaixonada pela poesia de Adélia Prado e pelas narrativas da escritora neozelandesa Katherine Mansfield, tem verdadeira obsessão pelos temas que permeiam o cotidiano e é deles que nascem as personagens de seus contos. | TAYLANECRUX@GMAIL.COM

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O PRAZER DE TERMINAR LIVROS YURI CLARO | Santo Antônio da Platina, PR.

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O prazer de terminar livros é o mesmo êxtase primitivo de destruir um crânio à assaltos de pedra e se banhar com o sangue entre pedaços de osso céreo como se dissesse eu venci O prazer de terminar livros vem do deleite que Átila tinha ao cortar cabeças e Tepes, ao deliciosamente empalar seus inimigos, sorvendo um cálice de vinho O prazer de terminar livros é da mesma violência pueril de desalojar um osso aos socos em fratura exposta para que todos vejam sua obra O prazer de terminar livros é como sempre martelasse o dedo

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de seu próprio pai e cuspisse-lhe na cara O prazer de terminar livros é recusar-se a dizer a verdade mesmo que enfiem-lhe farpas por baixo das unhas arranquem dentes chutem-lhe o estômago furem-lhe os olhos E matem-lhe, afinal. É tudo um grande prazer profano o genocídio da alma adoração a morte e a todos os fins.

YURI CLARO, estudante, totalmente inócuo, adora palavras difíceis e queria saber usá-las em conversação diária sem parecer pretensioso, também tem uma namorada com bochechas muito grandes. | YURICLARO@GMAIL.COM

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Sobre A. MIMURA A grande questão é: somos nós todos dignos da complacência do outro, do sorriso do outro na felicidade nossa, que a si lhe está vedada e a si não lhe diz respeito_ sabendo nós naturalmente que a infelicidade de um sujeito é a felicidade e a oportunidade do outro? Paradoxalmente, sim; racionalmente, de modo algum. E é talvez neste circuito labiríntico que a inteligência arvora a sua espessa cabeleira de animal selvagem e sussurra as suas sábias, belas e indecifráveis palavras ao ouvido versado no seu sussurro. Ou, talvez, não seja assim de todo. (trecho de Bucéfalo, de A. Miyajima, nome pelo qual A. Mimura assina suas obras literárias)

A. Mimura é o nosso colaborador permanente e um grande incentivador da Revista; ainda um pouco misterioso, tanto para nós, editoras, como para os leitores. Contudo, ao mesmo tempo já é "da casa", de modo que, ao navegar pelo site da Rveista, o leitor poderá encontrar seus desenhos ardiz e perspicazes. Como afirma Daniel Tomaz Wachowicz, que também é um colaborador frequente da Subversa, “As obras de Mimura são muito instigantes e nos fazem refletir profundamente". Para conhecer um pouco mais de A. Mimura, leia a ENTREVISTA que ele nos concedeu.

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PARCEIROS:

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Edição e Revisão: Morgana Rech e Tânia Ardito

Recepção de originais: CONTATO.SUBVERSA@GMAIL.COM

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