Revista subversa vol 4 nº01 Janeiro 2016

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SUBVERSA Vol. 4 | n.º 01 | Janeiro de 2016

ISSN 2359-5817

Fotografia | QUASINVISÍVEL, por OZIAS FILHO

ANDRÉ VICTOR MARQUES RAISA CHRISTINA LUCAS HAAS CORDEIRO FABIO NAVARRO PEDRO IVO NORBERTO DO VALE CARDOSO ESTEVAN KETZER MARCELO DE ARAUJO PEDRO SILVA CAROLINE FREITAS


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Subversa | literatura luso-brasileira | V. 4 | n.º 01

© originalmente publicado em 01 de janeiro de 2016 sob o título de Subversa ©

Edição e Revisão: Morgana Rech e Tânia Ardito

Ilustrações OZIAS FILHO | FILHO.OZIAS@GMAIL.COM

Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados como autores desta obra. Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos textos ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem com a realida

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SUBVERSA QUASINVISÍVEL, por OZIAS FILHO |5 ANDRÉ VICTOR MARQUES | INDIRETO| 7 NORBERTO DO VALE CARDOSO | O LOUCEIRO | 9 FABIO NAVARRO | ODE AO CEREBELO | 18 PEDRO IVO | COISA | 20 ESTEVAN KETZER | PÁSSARO PERENE | 30 CAROLINE FREITAS | VERÕES | 35 PEDRO SILVA | TODO O AMOR QUE SOBROU PRA MIM CABE NUMA XÍCARA DE CAFÉ COADO | 30 MARCELO DE ARAUJO | UM PRESENTE PARA ALICE | 35 LUCAS HAAS CORDEIRO | NAS RUAS A BATALHA | 41 RAISA CHRISTINA | FORA DA FAIXA DE PEDESTRES | 47

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EDITORIAL Neste editorial, resolvemos simplesmente listar as cinco principais lições que aprendemos ao conduzir diariamente a Subversa ao longo de quase dois anos de trabalho. 1.

Gêneros literários, quando deixados de lado no conselho editorial de uma revista literária, tornam-na muito mais interessante.

2.

O desânimo é uma força que empurra para baixo; se você ficar de ponta cabeça [numa posição subversa] a força estará sempre para cima e, então, o desânimo passa a não existir mais.

3.

A decisão de trabalhar com literatura (e pela literatura) é encarar a parte frágil das pessoas e da sociedade. O editor deve se manter forte o bastante para acolhê-la, mas nunca para estimular sua vaidade a partir dela.

4.

As pessoas, no geral, são generosas, gentis e compreensivas. Estão prontas para absorver ideias que valorizem sua criatividade e respeitem sua singularidade.

5.

A identidade de um projeto não precisa de muitas restrições. Ela pode surgir com mais força quando o seu fio condutor é a abertura e a liberdade.

E, assim, abrimos os trabalhos de 2016. O primeiro número do ano traz a essência luso-brasileira na fotografia de Ozias Filho, artista brasileiro radicado em Portugal, o qual temos a honra e o prazer de apresentar nas páginas que seguem. Desejamos a todos uma boa leitura e que desfrutem conosco mais uma jornada Subversa.

As editoras.

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QUASINVISÍVEL, POR OZIAS FILHO

As fotografias que ilustram este número* fazem parte do ensaio Quasinvisível. O autor, Ozias Filho (Rio de Janeiro, 1962), radicado em Portugal desde 1991, é jornalista e possui sólida experiência no campo da fotografia e das edições digitais. Além disso, já percorreu uma ampla trajetória artística,entre publicações poéticas e visuais de natureza vária e com diversas parcerias luso-brasileiras. A obra tem como mote o contraste entre o visível e o invisível. O que estamos enxergando, no cotidiano contemporâneo, e o que estamos realmente vendo, o artista indaga. “O ensaio Quasinvisível, é um projeto urbano que assenta em três pilares: arquitetura, vitrines e sinalética vária. Desde 2008 fotografo este tema que para mim não interessa tanto o lugar em que as imagens foram registadas, pois qualquer um dos instantâneos guarda entre si uma memória de cidade coletiva visitada como um dado adquirido: abrimos os olhos e olhamos, mas será que exercemos o poder da visão, o poder de encontrar um diferencial nos vários elementos que emergem de uma outra cidade?” (Ozias) *com exceção do texto “Fora da faixa de pedestres”, ilustrado pela própria autora, Raisa Christina, que ilustrou número anterior da Revista Subversa.

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SUBVERSA # 1 – Versão Impressa | Volume 1 (2014) Adquira e apoie o crescimento da revista.

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INDIRETO ANDRÉ VICTOR MARQUES | Rio de Janeiro, RJ. Utópico. Utopia. Do grego. Do devaneio. Da insanidade. Isso, Insanos! Sejais o mais belo insano. Sejais a mais bela loucura vivida. Que matem os loucos! Deprimente discurso Inconsequente, Incoerente. Uma pena essa triste realidade

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Encontrar o solo repleto de fertilizantes: O “seja objetivo!” O “isso não está politicamente correto!” O “isso está incoerente!” O “se posicione, por favor!” Por que o em cima do muro deixou de ser escolha? O que de errado tem? Os solos deixaram de ser Impermeabilizáveis Não conseguem mais reter o subjetivo A cultura do pretinho básico reinou. Azul? Não! Verde? Não! Vermelho? Que audácia! Não mesmo! Subversivo! Os tentáculos desse mal nos agarrou! Introduziu-nos suas garras. Colocou-nos seus olhos alienantes, Retos. Fica tranquilo, companheiro Tem a periférica! Hastes impossibilitam a esquerda. O único e limitado objetivo é a direita.

ANDRÉ VICTOR MARQUES, estudante de letras – literaturas e obsessivo por livros. Com o grande sonho necessário de escrever e somente escrever. Externar os sentimentos reprimidos, a angústias isoladoras, as felicidades estranhas. Autor do blog Prazer em dizer, mas sem muito tempo de satisfazer as necessidades de publicação. Escreve por amor. |DEVICTORS.SM@GMAIL.COM

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O LOUCEIRO NORBERTO DO VALE CARDOSO | Chaves, Portugal. «Foi então que tudo vacilou.» (Albert Camus, O Estrangeiro)

A rapariga saltava sobre o chão pejado de vidros estilhaçados e ele imaginava os processos mentais que a povoavam e a conduziam àquele comportamento. Cruzava o cachecol, envolvia as mãos nas luvas, caminhava e sentia-se exprobrando a sua própria alma por entre

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as ruas de medievos contornos, iluminadas por luzes intermitentes, atravessadas por uma densa névoa de que, a falar verdade, já sentia falta. Não eram as ruas de Praga ou de Dublin. Não era uma Oslo em pleno inverno. Nem mesmo Edimburgo pelo natal, ou outras cidades que conhecera numa fase da sua vida em que todas as coisas lhe pareciam inócuas. Era como se fosse um lugar ermo, como se na cidade por onde passava se gerasse uma ilha entre o tráfego ou os transeuntes, mesmo que estes prosseguissem nas suas azáfamas. Era a formação de uma nuvem, um espaço para a especulação de si mesmo, alheio ao tempo, distanciado das horas e descomprimido das obrigações laborais. Talvez esta espécie de cela monástica se devesse ao facto de a sua vida não ter sido uma passagem entre tantas outras. Porque a vida, quando pensada, torna-se mais do que meros comboios partindo das estações, atravessando as cidades e perdendo-se por entre a paisagem. Aquele era o seu lugar. Eram os ladrilhos, as sepulturas romanas, os vestígios dos jovens na sua boémia concertada, quando a noite (para ele) uma circunferência opaca e o som de um choro proveniente de uma casa com uma porta bege e, nela, uma janela protegida pelas gelosias; eram os corrimãos de madeira, as escadas em pedra, os medronheiros, o chão emadeirado rangendo aos passos dos velhos, as paredes de estuque, e - imaginava acomodando melhor o casaco meninas em choros através dos quais medravam (que outra coisa na vida nos faz medrar senão a dor? – interrogava-se). Sentia

vogando

através

da

névoa

imagens

das

velhas

barbearias e lembrava homens tenros dentro delas atravessando os dias ao sabor das navalhas aguçadas; ouvia os vidros estilhaçados ainda lá atrás, sentia-os ecoando ao fundo, como se se tratasse de algo partindo-se dentro de um louceiro: e era como se aquele estilhaçar equivalesse - sem saber porquê - ao das pétalas das flores, assim fosse possível. Não sabia de que modo, mas nas ruas casas velhas sem os que

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nelas deviam ter envelhecido; dentro da lembrança as procissões iam dando lugar a lentos desfilares, onde nem mantas estendidas das janelas nem flores esvoaçando sobre os andores, nem mesmo as mãos correndo pelas suas linhas nas escadas em caracol que acediam ao zimbório (esse lugar de onde observara - perigosamente pendurado sob telhas apodrecidas pelo musgo - os pássaros que, desde o início das primaveras pelos estios dentro, chilreavam enchendo os vidros da cúpula de massas informes de excrementos). Era na cidade. A que é hoje casas sem ninguém, edifícios com paredes inchando de abcessos sem cura, verrugas, descoloração, estilhaços de tinta, curvas e cimento na autópsia dos olhares, estuque cedendo ao menor toque (silogismo da humanidade). Não sabia como, mas havia uma criança amedrontada dentro de si, porque a sua vida era feita de marcadores de livros, de contadores repletos de gavetas que não se tinham aberto nunca (como histórias por escrever, uma parte de si irrevogavelmente secreta), poças inertes de água no correr dos passeios, cães moribundos ao centro da estrada, gatos escaldados atravessando os carris não mais corridos pelos eléctricos, vagabundos junto aos caixotes do lixo tenteando restos que lhes permitissem não claudicar. Tremia um pouco, aconchegava-se mais dentro do farelo cinzento, fazia um pouco do que sempre fizera: um encolhimento para dentro, um retrair para baixo. O

inverno

agravava-se.

Candeeiros

ofuscavam-se

sem

escrúpulos pelas tesouras que habitavam os seus lábios arroxeados, e então uma mulher atravessando a neblina, uma mulher sem corpo, uma mulher uma fragrância tão-só. Não a conhecia, não a via, à mulher anónima, mas as formas do seu corpo comprimiam a sua errância noctívaga do pensamento até à raiz. Talvez que pudesse sonhar com ela para que, a partir desse ser anódino, os seus pesadelos amainassem. (Este homem: como ele a louça convalesce dentro dos louceiros.)

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Há uma engrenagem inominável que move estas ruas e estas noites e que, por outro lado, as imobiliza. Sinuoso, caminhava friccionando os pés, batendo as mãos. Apetecia-lhe a dispersão, um buraco para onde gritar este seu silêncio indizível, como fizera antes, por processos alheios a estes, ao se refugiar no velho estúdio de cinema. Agora que o encontrara, fechado, sombrio, não lhe parecia o mesmo. Ainda se lhe notavam as máculas do fogo, paredes enegrecidas, traves carcomidas, desfeitas em cinza, e um odor que estranhamente ia misturando os elementos fogo e água. Dentro dele, as pessoas do seu passado

mexiam-se

e

enchiam-se,

igualmente,

de máculas.

A

lembrança era um estúdio escuro também, em que os sentidos retêm os odores e descrevem pormenores. A lembrança: o lampião do seu mestre-de-obras, guiando-o, continuando a guiá-lo, sempre à sua frente, sempre anos à sua frente, uma forma de pensar meditando para acreditar que estaria acompanhado. Prouvera que fosse assim. Mas Tolstoj dizia-lhe que a vida uma luz lá atrás e depois tudo escuro, demasiado rápido, demasiado fugaz. E também Céline sussurrava: a vida uma réstia de luz que se perde na noite. Estas vozes concordavam, erravam por dentro dele como se ele fosse esse estúdio vazio onde parte da sua infância parecia titubear. Porque fora naquele estúdio, nos filmes que ia ver sozinho, nas peças de teatro a que ninguém assistia, nos movimentos sempre iguais dos homens, na escuridão tenteada, ainda que pontuada pelas luzes das lanternas, que se encontrara a si mesmo. E pensava que sim, que o homem se conhece nos meandros do silêncio e da escuridão, onde percebe que a vida não passa de um óbolo. A vida dele um pouco ou tanto assim, em tudo, em todas as coisas, uma ânsia de que o não vivido já tivesse passado, mas sem passar, um prelúdio das coisas que não hão, mas que, nele, era sempre como se já houvessem sido. Era como se precisasse de viver por saber que ia morrer. E, quem sabe, talvez todos os homens vivessem por saberem da sua própria morte. Talvez a vida

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um óvulo para uma verdade desconhecida. E então as máculas do cinema proémios do já visto, um lampião alumiando o futuro por vir. Da vida daquele homem talvez restassem anotações à margem de outras vidas. Não dobrava as ruas, circundava-as, fazendo um percurso oval. Casas. Casas. Uma casa. Nela, a memória do corpo nu e a cortina branca esvoaçando sobre a alvura do corpo, a janela sempre aberta, os vidros traçados para trás numa depuração mal conseguida, e a cortina cartografando o seu corpo, a orografia do seu corpo, o seu sorriso, a sua letra, louçana, nas cartas de amor que lhe escrevera. Chorava por dentro. Ou por fora. Não era do gelo que caía sobre a cidade, sobre as tômbolas das luzes que os fogueiros tratavam de acender, num processo inverso ao dos frades apagando com as mãos de outrem as lamparinas que eram incapazes de alcançar. Era o choro de um vazio que ecoava dentro dele como um louceiro oco, porque a sua vida fora essa incapacidade de chegar à luz, fosse para a apagar, fosse para a acender. Eram lágrimas de sangue que intercediam a favor da amargura que trazia por dentro. A mente do homem complexificava-se, rompia-se pela culpa que carregava, uma culpa pela qual pagara, mas uma culpa da qual não fora nem seria algum dia capaz de se libertar. Definitivamente preso, projectava-se nos meandros da noite a partir das sombras dos edifícios decrépitos da cidade onde já ninguém o reconhecia: e via-se nas enxovias da vida, na cela comum com os pederastas com quem partilhara a existência. Ele. Aquele que tivera tudo, mas que tudo desperdiçara, e que, nas suas memórias, procurava embalsamar sentimentos reprimidos. (Este homem: como ele a louça convalesce dentro dos louceiros.) Agora aquela casa. A mulher: um fantasma. A sua luz irradiando na casa datada na pedra. Uma luz que não fora jamais capaz de apagar por mais que tentasse, ainda que o esboçasse, dentando-se labialmente numa raiva de primórdio. Para ele era mais importante experimentar a morte – e então colocava-se nas coisas como se estas

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fossem (eram) caixões para ele, que fosse provando para se adaptar ao epitáfio. Acreditava que a morte se prepara como quem faz a prova de um fato no alfaiate, e isto por mais que dissessem (como sempre ouvira dizer) que ninguém está preparado para a sua finitude. Recordava os reclusos, os seus gritos nas máquinas de tortura e a descrição de alguns desses instrumentos, a pêra da angústia, o touro de bronze, o garfo, outros de que não queria falar (não falava). Recordava como essas máquinas embebiam a morte. E como os reclusos a queriam evitar, tentando o suicídio nas enxovias. Mas a morte mal preparada pode ter consequências, e isso sucedera com um companheiro desse lugar de trevas onde as sombras assombravam um pouco mais ainda: vira a corda ceder até se estampar nos detritos, tornando-se, todo ele, numa massa amolecida de merda (que excesso de coprolalia!). A morte vencera, impreparada que fora, mas o nado-morto sorria evitando as torturas. Desde então experimentava as coisas como se de prelúdios de morte se tratassem. Encostava-se aos vidros das casas, limpava a humidade e o vapor com as pontas dos dedos embebidos nas luvas. Olhava pelos vidros e julgava ver balões de outras vidas: imaginava os seus amigos felizes; a mulher que amara agora casada e com família. Olhava e sentia-se como a múmia de um copo fechado dentro de um louceiro à espera que alguém lhe desse uso. Perspectivava-se um copo onde os lábios daquela que fora sua se retinham em ténues filamentos de aguarela. Rompia então os vidros, entrava nas casas abandonadas à escuridão. Quem o visse veria um louco, alguém definível pelos estilhaços que tem dentro de si e que o fazem sangrar por dentro. A casa agora nem formigueiros. Albergue de alguns pedaços de homens. A casa com as cortinas carcomidas. O chão rangendo. Os gemidos ausentes. A voz ausente. A casa fria, pedregosa. A colónia de ratos trabalhando as frestas como se não houvesse outro dia. Pelas frinchas o ar gélido escoando até se tornar mais frio. A luz da mulher

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dispersa ali, ecoando dentro de qualquer coisa que, nele, não sabia resolver, explicar, porque aquele homem era apenas um andrajo do que fora - como dissera no tempo em que nele ela não cria. Quando ele crera no seu estigma, na ferida nos braços que ela lhe dizia não ser de uma qualquer tentativa de suicídio, mas de maquiavélicos poderes que não sabia proferir! Ele crera! Ele vira com os seus olhos a fenda, os pulsos cortados, queimados, essas marcas que, dela, o marcavam também a ele. E, quem sabe, ela teria sido como aquela menina sozinha à boca da noite, quebrando o medo do alquebramento no impulso que a levava a esmagar pedaços de vidros. Caminhava este homem: pensava quão pouco sabia dos outros que tendera a agasalhar por critérios e a roupar conforme lhe aprouvera. Afinal, os homens com quem partilhara a sua geração julgavam e tratavam os outros como se soprassem para formar jarras, copos, cinzeiros ou bomboneiras de vidro. Só por isso merecera a convalescença, o sentir-se um peixe agonizando por dentro dos vidros de um aquário, até boiar. Caminhava e sentia-se sem fôlego, irrespirável para consigo mesmo. Não se tratava do frio, da noite e da névoa. Tratava-se de algo dentro dele, ininterrupto, que parecia ser estimulado pelo regresso ao lugar onde constava parte da sua passagem. À esquina, a loja dos chapéus. Agora se lembrava, pois já perdera a noção, mas ao vê-la foi como se tudo estivesse outra vez no princípio e o lampião voltasse a iluminar aquela parte da sua vida. O que mais o espantava era a imutabilidade da loja que, segundo lhe parecia, já se dizia imutável quando era apenas um miúdo. A montra dizia tudo. Uma cortina verde-sujo a fazer de fundo. Um busto brancosujo ao centro. Nele, um chapéu. Que se lembrasse, nunca aquela montra mudara. Como se ali não houvesse vida. Como se ali o tempo não passasse, e fosse uma constante luz ou uma estanque escuridão. Isso não sabia, como não sabia quem era o dono da loja dos chapéus. Imaginava-o um velho já sem idade, usando ele - e apenas ele - os

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chapéus que ninguém comprava. Ou era a loja aquele rosto mórbido da montra? E, de repente, nos grogues súbitos de que padecia a esgares, uma imagem igualmente mórbida, a daquele busto da montra ser uma cabeça humana embalsamada, e o vendedor de chapéus um homicida incurável. Cambaleava e regurgitava contra uma parede onde uma sombra de remorso o fez quase desmaiar. Cirandava e não sabia quantos anos haviam passado desde que partira. O facto é que havia certas coisas que se não podiam tornear, por mais que tentasse. Voltar era duro. Voltar ao cerne das coisas e cousificá-las como se elas se deixassem travar assim sem rodeios. O cerne da árvore inexistente no rebordo da rua; outrora via-se dali, chegava à janela e ela respondialhe que aquela árvore tinha o cerne, mas o cerne era ela, ou cada palavra que dizia, agora tinha certeza disso. Na casa, objectos inertes, uma vida suspensa num repente que se não explica. Um retrato oval amarelado suspenso no corredor. As traças habitando as parcas roupas penduradas no velho guarda-fatos. Dentro do guarda-fatos uma boneca de plástico, preta, de olhos que sabia de vidro, mas que não via porque a boneca deitada de olhos fechados. As escadas de acesso ao zimbório apodrecendo, e correntes de ar provindo da ausência de telhas por onde não poderia ver os pássaros, entretanto emigrados para outros climas. Ao fundo, o louceiro, o velho louceiro, nas suas recurvas e na sua madeira gasta, nos seus riscos de vida outrora vivida. Nunca saíra do lugar e talvez só saísse quando (se) as paredes parissem seus entulhos. A madeira cedia aos seus passos, o louceiro balouçava, a espaços, a louça movia-se em danças, aos encontrões, sem sentido aparente. Lembrava-lhe a história de uma antiga passagem de nível, em que um homem, que nunca tivera outra profissão, continuava a levantar e a descer a passagem mesmo depois de o comboio já não chegar ali. É tudo assim na vida, as coisas como sóis assassinados pela

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noite, atendo-se às sinapses do cérebro e às sinopses que retemos dos episódios em que nós próprios somos os protagonistas. Em filmes filmados por nós, pelos nossos olhos, pelos nossos sentidos, que não sabemos se estão certos, que receamos não captem as coisas na sua exactidão. Há sempre essa possibilidade, a de sermos velhos estúdios de cinema onde só já há fantasmas e sombras, as únicas coisas verdadeiras, na verdade. No louceiro, guardanapos e acessórios nas gavetas, louças e outras cousas que o artesão fora fazendo, moldando, cozendo. O louceiro retábulo de objectos despropositados, como tragados pelo apetite voraz do armário. Mas a música acaba, o chão esfolha-se, não cai, e os vidros têm bolhas como unhas, líquido que, furado, daria o quê?, espelhos, vidros, ar, música? Louçã, a marca do vidro perdurava desde sempre no seu olhar como um nome, e retinha-se na louça sempre dançando, ao passo que nunca o louceiro deixara de parir louça e de dentro dos búzios da louça loucas palavras. Serei como tal, pensou. E então a luz extinguiu-se. Pareceu-lhe ouvir o sussurrar da neve caindo sobre a varanda, embatendo depois nos vidros resguardados por portadas de madeira. Mas não era. Era apenas a sua vontade de embranquecimento. Era ainda a fome. Tenteou e abriu a porta inferior do louceiro. A porta rangeu. A maçaneta rodou desconexa com o próprio armário. Olhou o seu interior. Agora era o frio. Deitou-se no chão, com frio e fome. Pousou a cabeça nas mãos dobradas e adormeceu a olhar o louceiro, enquanto pisava vidros com o seu pensamento. NORBERTO DO VALE CARDOSO é autor de vários livros de poesia, estando incluído em antologias. Publicou, em 2005, o romance Impressão Digital. Professor e investigador, tem-se dedicado ao estudo da obra de António Lobo Antunes, sendo autor de A Mão-de-Judas: Representações da Guerra Colonial em António Lobo Antunes (Texto, 2011). |NORCARDO@GMAIL.COM

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ODE AO CEREBELO FABIO NAVARRO | São Paulo, SP. Colidir a chuva pela frente, é sentir o cheiro do esgoto a galopar em poças. No poço residir, pulsando horas de gente. Saber sem esperar, alivia? Uma vivalma em eterno pulso. Avante hey-lá-ohhhh gene intruso, corrói o resto de fisiologia pífia.

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Salva pois essa ínfima substância cinza pedindo abrigo, abençoa essa morte, respiro... Enfim atordoa a última lástima poluída. Ferida ungida, aberta pelo descontrole inerente! Arrebata esta linha doente, cura a melhor parte da vida!

FABIO NAVARRO teve o primeiro trabalho como escritor em uma coluna sobre cinema, aos doze anos, no jornal do colégio. Publicou o conto A Cria do Oitavo Dia na coletânea Sangue, Suor e Palavras Mal Dormidas (Editora Big Time). Participou das publicações virtuais Jamé-Vu e Revista Literária Br. Atualmente, escreve para o site Altnewspaper e terá seu primeiro livro de poesia, Descarrilho Cotidiano, publicado pela Editora Benfazeja. | GANGRENADIARIO@GMAIL.COM

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COISA PEDRO IVO | Cunha, SP. que coisa é essa, que parece não existir de forma alguma mas que a simples presença arremessa tudo o mais à inexistência ? PEDRO IVO (Curitiba 1984), viveu em Santos, São Paulo e atualmente mora no interior (Cunha- SP) com sua companheira e filha. Lê e escreve intensamente, desde a pré-adolescência. Passou alguns anos na USP, pesquisando e explorando diversos assuntos. Tem interesse em Arte, Ecologia, Antropologia, Natureza e pesquisas teóricas e práticas para desvelar novos níveis de realidade e novas possibilidades de sentimento, pensamento, percepção e experiência. | POIESISPEDRO@GMAIL.COM

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PÁSSARO PERENE ESTEVAN DE NEGREIROS KETZER | Porto Alegre, RS.

20h: E tão leve se aproxima com a força do vento frio a encostar o rosto de quente. Ou seriam bombas frias e calculadas, destruindo o corpo por dentro da alma, para assim tirar a culpa por tudo aquilo? Lentamente, a sombra toma o chapéu e a capa, ambos de um negro espesso. Assim se protege da chuva enquanto foge dali. 20h15min: Uma forte pancada na cabeça da vítima alterou a compreensão do investigador que até então estava seguindo um sistema rigidamente sígnico, levando-o até uma interpretação mais sofisticada para a cena do crime. “A Retirada da Pedra da Loucura”. O quadro veio como num relâmpago em sua cabeça: “Só um doido poderia ter tanta força para

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espalhar os miolos daquele jeito no chão. Talvez nem Hieronymus Bosch suspeitasse disso... de que seu trabalho seria tão radical no século XXI”, pensou assim o criminólogo da polícia, já inclinado com seu gabardine cinza, à procura de pistas perto do corpo estendido. No bolso do morto foram encontrados um celular e um saquinho com pequenas frases. Podíamos ver seu nome na carteira de identidade, sem grande mistério. Para alguém que lida com o crime como ele aquele lugar era o maior dos artefatos: imagine você, entrar na loucura do criminoso! Descobrir o que pensa, as motivações de sua brilhante arte de apagar rastros e todo o esforço de reconstituir uma história pelo final de seu acontecimento. Excitante e inusitado todo o tempo. O perito tinha certeza que sua arte dependia dos passos preciosos e pontilhados do criminoso, sem nome, sem resposta clara de seus atos, ali mesmo um homem que caminhou com o sangue na sola dos seus sapatos, pesado com suas amarguras, apressado como todos. O que em seu passado deixa tais marcas? E ele lidava com o tempo curto dos passos adiantados da mente do assassino. Portanto, mesmo seu gabardine já se inclinava inquiridor pouco antes do investigador começar a roçar seu corpo, tocando de leve os temores mais superficiais do criminoso. 18h: o relógio era preciso. Sair do escritório e encontrar-se com Éllie. “Tô chegando!”, vindo direto do Whatsapp, enquanto desviava dos 500 pedestres daquela enorme avenida. E lá o parque desejoso de não haver quaisquer arquivos para serem protocolados, todo o trabalho que ele respeitava com eficiência e sabia bem como fazer, como proteger os réus com petições ao juiz, já tendo expressivas vitórias na advocacia. No entanto, ainda observa outros advogados que têm mais perícia do que ele e conseguem forjar provas, colocando seus réus em posições de vítimas facilmente. Essa habilidade envolvia um conhecimento criativo que ele não possui. Não poucas vezes ouvira

admoestações

de

superiores:

“Um

vitória

no

tribunal,

nessas

circunstâncias, vai lhe render nome para sempre, rapaz. Não importam as condições! Escute quando falo.” Ora,

ficava

com

aquilo

maquinando

em

sua

cabeça,

mas

especialmente naquela tarde ele queria conversar tranquilamente com Éllie naquele velho banco cercado de plátanos com o que restava de sol. Senta comodamente. Ela não lhe olha nos olhos, como sempre. Era isso que o

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encurvava, incitando que saísse dali às pressas até ficar do tamanho da folha do plátano para poder nela se esconder. 15h: pensa Éllie, com pequenas borrifadas de um pensamento instantâneo. Deve haver algo para ser ultrapassado diante do silêncio? Eureca! “Dois amantes que vão perdendo a capacidade de falar, seus fonemas e possibilidades onomatopeicas, uma a uma, desaparecem em uma sala cheia de microfones enquanto seus dedos tocam partes íntimas dos corpos de cada um. Mas ele perde ao final, pois ri do que ela lhe mostra. Ele gargalharia tanto a ponto de falar todos os fonemas que estavam proibidos na sala.” Era isso! Quem falasse qualquer coisa de si perderia para sempre! E como ela sempre vencia de modo imponente, gloriosa, hábil manejadora daquele silêncio constrangedor tão torturante para seu parceiro... mas mesmo assim algo que o fazia gozar em submissão. Ela se sentia completamente à vontade para viver despreocupadamente o sadomasoquismo daquela sala: imaginar pelo negro reluzente do couro, sentir a dor do chicote, ter seu clitóris lambido até ficar toda molhada. Ela era a máquina e ele o refugo que gozava instantaneamente. Poderiam ficar horas lá dentro, mas acabavam ficando tão somente 15 minutos. O tempo da excitabilidade da imaginação vencia o tempo dos ponteiros e isso mantinha tudo como sempre igual. Nunca haveria maior fetiche e encanto entre duas pessoas que se masturbavam sozinhas, tocando minimamente seus corpos, deixando que uma fricção assuma o controle de suas mentes. Haveria maior liberdade do que a escolha de quais movimentos deveriam ser restringidos? Ela percebe que tem mais poder do que jamais sonhara! 21h: papéis encontrados com a vítima. Há um endereço e um nome que batiam com os encontrado no celular. Era o endereço de um rapaz que a vítima havia encontrado no dia anterior. “Você sabe o que são essas frases desconexas?” O investigador sentava confortavelmente, fitando-o friamente nos olhos. O amigo da vítima, com seus 28 anos de idade, mas com idade mental de 12, entra sorridente demais naquele local. - Ele era meu amigo... Nós costumávamos nos reunir para beber, cair e levantar. Era um teatro, sabe? Chamamos sempre a nossa “turminha” do Direito para nos reunirmos no salão de festas da minha casa. - E as frases no saco?

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- Elas são os nossos improvisos: conforme vamos bebendo e comendo, cada um escreve uma frase e a coloca no saco. Um de nós cria o cenário absurdo e os personagens esdrúxulos que devem contracenar. O objetivo é fazer todos rirem! O investigador se esforça para manter-se sério vendo aquele rapaz de óculos fundo de garrafa, correntão de ouro e boné do “NWA” se expressar como se estivesse em um show de hip-hop. – Veja: “Quero dois quilos de linguiça”, era uma das frases. Essa é uma frase que qualquer um pode dizer, sabe? Tipo, acaso, quem sabe? Se tiver imaginação você pode ver como isso é engraçado quando está tomando muita cerveja e comendo um churrasco com a galera... O investigador, experiente que era, se permitiu um breve sorriso, pensando consigo: “Por que tanta bebida?” Enquanto isso, ele percebe que o rapaz não se dá conta da formalidade da investigação, cai na gargalhada e sentindo-se já íntimo o suficiente do investigador chama-lhe com a informal expressão de cumprimento dos jovens de sua geração: “Mano, vocês devem falar com a Éllie, ela é quem sabe melhor de todos os detalhes. Nós só nos encontramos de vez em quando.” - Pode ir rapaz, já fez a sua parte. 19h45min: era o fim da linha. Qualquer um sabia disso, mas todos mantinham o silêncio há muito tempo. Afinal, para um homem a mãe sempre será proibida e ao mesmo tempo desejada profundamente. Ele demonstrou essa velha teoria com um grito que lhe rompeu a garganta, para culpar o mundo por sua dor, olhando suas mãos vulgares, seu hálito pestilento e a miséria dos minerais dentro da pedra à sua frente, sempre como coisas brutas como faziam os outros quando se apropriavam dos pensamentos dele. E ao caminhar, triste e sem coragem de fazer qualquer movimento se ergue um vulto ao seu lado, de face encoberta naquela ruela suja, marca daquele encontro proibido. Era o mesmo código de sempre esse do desencontro dos olhos, geralmente rumo ao chão, para mostrar que se é menos que uma pessoa, sentindo a pulsação perturbadora do coração. “Você não queria se tornar super-herói?” O convite como o que sempre lhe faltava, propondo muito mais ao sonhador. Ali, na sobre medida do tempo, com a chuva a bater no sinal de uma tempestade no horizonte. “Eu preciso me proteger da

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chuva!”, com

um pano enrolado na cabeça para estancar o sangue. E

naquele momento o vulto oferece uma pequena caixa com o pó branco esperado. Tomando-o de sua mão, entrega um punhado de notas com a outra. Começa a voar e lhe vem à mente a cor dourada dos pássaros que acreditava ver em sua juventude. Deixa a mente livre para que surja um bem específico: o flamingo que vivia nos vulcões da Tanzânia. Esse pássaro voa cheio de cinzas sobre tudo que queima na água ácida dos grandes lagos. Ave que não se ergue do solo por qualquer coisa, tornando-se unido ao cosmos pelo lodo, ressurgindo da terra que a lava soterrara, pois assim, mais do que a força, eleva a beleza que poucos são capazes de apreciar. “Agora sim, todos escutarão o meu canto pela primeira vez! Não percam seu tempo com o que não pode ser representado pelas ideias, sensações ou imagens!” Tamanha gana resplandecente o fez bater as asas ainda mais impetuoso com o coração quase a explodir de seus dentes. “Sou o escolhido, a Fênix que canta um som infinito!”, pensando alto o suficiente para o vulto escutar com atenção. E repentinamente, ele cai ao chão, para respirar, ajoelhar-se e brevemente pedir perdão à Éllie, na dor que sentiam, na madrugada sem fim, no destino selado, mas na emergência da separação agora claramente inevitável, desejada pelos pais dela já há muito tempo, e naquela vontade de virar menos que uma migalha humana. “É isso o que preciso para ser forte?” O homem ri na sua sombra, causando um estranhamento que a luz rarefeita só aumentava desmedidamente, até que ele vê, com muito esforço, metade de seu rosto parcamente iluminado. O homem diz irônico: “Quer dizer que ainda não acreditas que te chamas assim, Fênix?” 19h30min: - Melhor darmos um tempo, Éllie. Não vamos dar certo neste caminho. Ela vira o rosto, consternada: “Se for para dar um tempo então melhor acabar aqui!” Ele pensa e pensa, remoendo os fios de esperança que uniram os dois até aquele instante. “Não seja intransigente, Éllie...” Acalmava de forma banal, pois aprendera que em situações de desespero o melhor a fazer é chorar como faziam os antigos na crença de que as lágrimas dissolveriam as dificuldades da alma, rompendo os grilhões para pensamentos renovados. “Pare de chorar! Cresça de uma vez!” Ele pensa seriamente: quando foi que concordaram em alguma coisa? Aquilo tudo que viviam, menos que um

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contato, menos que sexo e ainda assim reclamar de um certo o direito de posse por uma relação? “Chega Éllie! Você está doente, obcecada por uma história de Peter Pan! Eu não sou super-herói, nunca fui e não serei agora porque você quer! Tchau!” Ela ainda arrogante, dizendo que era sempre assim, escolhendo desaparecer quando a conversa apertava. Ele bem dá as costas, mas cai, batendo com a cabeça no chão, pois não tinha o costume de se proteger com as mãos durante as quedas. Toca na cabeça, sente o sangue ainda quente escorrendo no chão. 19h59min: “Acreditar em mim?”, ele pensa detido. Isso talvez fosse o fim de todas as reações automáticas, a saída da tormenta, da solidão na qual as crianças ficam à espera do bicho papão noturno. Também poderia ter um significado mais amplo, como cruzar uma ponte pênsil, prestes a despencar. Mas ele não se sentiu digno de voar, não tinha com a capa a sensação de ser algo completamente natural, ou mesmo de ser ele mesmo. “Fico contente pela quantidade de pó. Sem ela eu jamais levantaria esse voo...” Agarrou um pedaço de ferro de uma lata no escuro, desferiu um golpe que estraçalhou o crânio de seu interlocutor. Assim foi mais fácil pegar o resto da droga, o casaco negro como uma enorme capa, o chapéu e, sem esforço, levantar o cano de ferro dos miolos. 21h30min: Éllie afinal foi encontrada em casa pelo investigador. Ela desabou a chorar quando a polícia lhe contou toda a história e as pistas encontradas. Prestou esclarecimentos após os minutos de choque. Logo os pais chegaram já indicando que o homem que a filha escolhera não possuía escrúpulos e estava envolvido com drogas há muito tempo. - Ele no fundo sempre quis ser um super-herói, sempre me contou isso, desde criança sentia que tinha um super poder... ele sempre precisava se isolar por muitos dias e dias, evitando telefonemas, amigos e a família. - Tu te lembras de algo que aconteceu de estranho lá? – pergunta o investigador. - É estranho, pois quando estávamos no parque e ele decidiu sair e estava tão nervoso que caiu no chão, machucou a cabeça, começou a sangrar. Quando fui ajudá-lo ele disse que queria ficar ali um pouco. Estava tocando no sangue e parecia muito detido ali. Disse que não sentia dor e precisava permanecer sozinho. Depois ele me mandou um desenho com uma

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foto que ele tirou. Achei bonita inicialmente, mas vi que foi feita com o sangue dele no chão. - Posso ver essa foto? – pergunta o investigador muito atento. Ao observar, nota manchas vermelhas na superfície do concreto claro. Ele aproxima a foto com os dedos e as manchas parecem diferentes contornos de um desenho. O investigador fica detido nelas, observando por uns 30 segundos até emitir o que tanto matutou. - Isto parece um pássaro vermelho, pegando fogo. Mas por que esta marca? - Nossa! Acabo de receber isso aqui pelo celular! – mostra ao observador que lê em voz baixa: O QUE PERTURBA OS SONHOS DE AVE DE FOGO, VOA AGORA PARA NUNCA MAIS VOLTAR. O investigador saca sua arma: “Ele deve estar aqui perto!” Foi numa golfada de ar que a expressão da tristeza de Éllie se transformou em terror e um estrondo na rua apagou todas as luzes da casa imediatamente. estrondo na rua apagou todas as luzes da casa imediatamente.

ESTEVAN KETZER é psicólogo clínico. Doutorando em Letras pela PUC-RS. Pesquisa a relação entre poesia, filosofia e psicanálise na obra do poeta Paul Celan. Além de ensaísta, é poeta.

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VERÕES CAROLINE FREITAS | Rio de Janeiro, RJ.

Eram dois verões por ano E um espaço de tempo entre eles Que media o tamanho exato do impensável : Das outras estações nem se ouvia falar Eram tardes sem frio e sem folhas Tabuleiros de dama adornando as pracinhas Outonos inteiros derramados e confusos

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: Nem esboço de primavera e já era verão de novo Eram horas enormes passadas sem ponteiro Areia de ampulheta sem vidro limitador Luas amarelas e brancas que não dormiam, acordavam : Todos os sentidos pares e sobrevivos Eram dias afoitos e áridos e urgentes Entre os pés e o chão ladrilhos em mosaicos Vento de alma fresca entre mar e terra : Do lado de cima, um céu frágil partido pelo primeiro inverno

CAROLINE FREITAS é alfanumérica: dos números, no primeiro diploma. Das letras, no segundo. Graduanda em literatura pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) já teve poemas publicados em coletâneas e revistas literárias. Atualmente dedica-se à pesquisa acadêmica que investiga as relações entre palavra e imagem na arte contemporânea. | CAROL.RFS@GMAIL.COM

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TODO AMOR QUE SOBROU PRA MIM CABE NUMA XÍCARA DE CAFÉ COADO PEDRO SILVA | São Paulo, SP.

Cecília percebeu o hábito do marido: pela manhã, ao beber seu café fumegante, misturava-o a um pouco de saliva, comprimia contra os dentes a gosma resultante, atravessava-a pelas fendas entre os caninos e despejava na língua o líquido aerado e ligeiramente resfriado. Para não queimar a boca, os músculos da face se contorciam na

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velocidade e ordem corretas. Seria mais prático esperar a bebida esfriar, mas era assim que preferia seguir. Estava velho. Silenciosa assistiu ao ritual do par sem repreensões. Não fazia mais sentido. Sabia agora que dois terços das coisas que a confrangeram durante toda a vida tinham sido merdas desimportantes. Mas não havia regresso. Ao perceber que ele também a aceitava exatamente como era, sentiu que chegavam em silêncio ao trato pelo qual pelejaram por anos em ressonante fracasso. A última briga violenta tinha acontecido dez anos antes e acabou com ambos no hospital. Oswaldo recebendo curativos nas costas perfuradas por um garfo de cozinha. Cecília acompanhando-o em um franco gesto de companheirismo protocolar nascido da impossibilidade de conceber uma visita do marido ao médico sem que ela o seguisse. Começou com as reclamações dele sobre os hábitos alimentares da mulher. Cecília não entendia qual o problema em repetir uma fatia do bolo, não possuía nenhuma recomendação médica contrária. Tampouco lhe agradou a forma agressiva e abrupta com a qual o marido lhe apontou o dedo praguejando frases dizimadoras sobre artérias entupidas e pernas amputadas. [pensamento ruidoso #1]: Ela, professora universitária. Formando mais de duzentos alunos em suas aulas na faculdade de Belas Artes; [#2]: Ela na maternidade. Quase sendo mãe, ou sendo sem sê-lo. Trinta e dois anos atrás acolheu seu natimorto bebê durante apenas um longo abraço, despedindo-se dilacerada do fruto de uma gravidez complicada e um parto trágico; [#3:] Ela fundando partidos e ideologias; [#4]: Ela viajando com e sem dinheiro;

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[pensamento ruidoso final]: Ela cultivando em casa mais plantas do que um ser humano normal poderia fazer por toda uma vida e se perguntando por que mesmo não poderia comer por quantas vezes quisesse a porra de uma torta confeitada, puta que o pariu! O ambiente piorou na proporção de suas incompreensões mútuas, fonte da maior parte dos desentendimentos e embates. Cada vivência tornava-se um conflito: a ordem na qual as diversas roupas de cama estariam dispostas, a decisão sobre uma possível viagem para comemoração do prêmio que ele tinha recebido na editora, as ruas a serem atravessadas para se chegar ao centro e, finalmente, o jantar de domingo (bastava que ele calasse a boca, que ele guardasse para si as malditas opiniões sobre as quantidades de sal e alho, mastigasse pausadamente cada porção e dormisse em silêncio. Poderia talvez afogar cada uma das palavras em vigorosas goladas do sumo de tangerina ou desistir, comovido pelo silêncio das vidas que se acabam em conjunto por nunca terem de fato convivido) mas, ao final daquela semana de atritos perenes, ele falou. Depois um dos pratos foi arremessado ao chão com todos seus molhos e temperos. Gritos,

gritos,

gritos,

portas

fechadas,

maçanetas

empunhadas

violentamente, grito, gritos, medo. Sobre eu deveria ter ido embora quando, sobre como nunca deveria, sobre como eu não aguento mais, sobre o inferno que era ter de. Gritos. Ele a segurou pelo ombro e, desvencilhando-se do abraço, por susto e ato reflexo, ela enfiou-lhe nas costas o garfo ainda sujo de caldo de carne. Duas vezes. Quando se conheceram, tudo era um jogo de sedução. A artista recém-formada e o conquistador mestrando em literatura. Cecília exibia um charme ingênuo, fazia destas perguntas de menina do interior, perdida na cidade grande. Chamava os desconhecidos de

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“moço”.

Oswaldo

esforçava-se

numa

constante

dança

do

acasalamento que incluía perfumes, entradas para shows, carros polidos e viagens para países de línguas estranhas. Conheceram-se por intermédio do irmão dela, chargista simpático no jornal onde ele traduzia páginas do New York Times. Primeiro foi uma festa, depois o cinema, um toque de mãos. Quando menos perceberam, as diferenças daquelas vidas distintas estavam superadas em nome de algo que acreditavam poder durar para sempre. Naquele dia nublado em que ela se dedicava a desvendar o nojento gesto do marido ao engolir seu café quente espumado em saliva, Oswaldo ouvia a tradução simultânea que um jovem ansioso fazia do pronunciamento do presidente americano. Bush perdido descobrindo seu país sob ataque falava à nação sobre a vingança das torres. Entortado no sofá ele mudava constantemente de postura para, ao menos, alternar o local das dores. Ela observava-o ao longe pensando não ser notada. Mal sabia ela que, enquanto ouvia aqueles dois idiomas entrecruzados e propunha mentalmente qual seria a melhor tradução, o pensamento de Oswaldo voava para outros tempos. Sabia que também era observado. E podia decifrar o sentido daquilo. O silêncio de ambos era antes de tudo um brinde. Ele fingia que ouvia a verborragia do W. Bush porque não queria que nada daquele instante se movesse. Numa transa sem sexo curtiam um ao outro, calados e distantes. Ele pensou “Por Deus, como amo esta mulher!” e ela conseguiu se lembrar de algo que estava perdido, enrugado no fundo de alguma gaveta da memória: ocorrera apenas dois anos após terem se conhecido. Vivendo ainda um namoro recheado de perguntas a serem feitas, visitaram a casa dos pais dele. Recordou-se claramente quando, na manhã de domingo, a sogra proferiu um daqueles pitos constrangedores de serem ouvidos após a maturidade: “Menino, pare com esta mania porca de fazer chiado com o café na boca”. Percebeu que, como em uma Macondo esquecida, a

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porcaria do mundo seguia dando voltas. E que o homem que a amava e era retribuído nunca largara de ser o mesmo. Lembrou-se das brigas e não as compreendeu. Tantas noites dormidas em choro, separada, de mal humor. Se ambos sempre foram os mesmos, então por que...? E desistiu no meio da pergunta.

PEDRO SILVA publica no blog www.escrevendopedro.wordpress.com. Admira todas as formas de arte e fica triste sempre que sua vida se afasta deste meio. Escreve desde 2009, mas somente agorinha se convenceu de que poderia dividir isto seriamente com o mundo. | ESCREVENDOPEDRO@GMAIL.COM

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UM PRESENTE PARA ALICE MARCELO DE ARAUJO | Rio de Janeiro, RJ.

Uma perna esverdeada, e recoberta de motivos florais. A ideia já lhe havia ocorrido antes, se bem que em cores diferentes. No início ela preferia bichinhos, daqueles que ilustram livros para crianças ou se recebem de pelúcia da avó. Seriam apenas duas borboletas sobre o dorso do pé, as asas se estendendo sobre o tornozelo e as antenas se entrelaçando numa enorme clave de sol. Mas os pais de Alice não gostaram da ideia.

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No ano seguinte, indiferente às restrições do pai, e imune às imprecações da mãe, a menina já tinha planos que ultrapassavam o tornozelo.

Golfinhos

azulados

lhe

nadariam

canela

acima

até

submergirem nas espumas de uma onda Hokusai, na altura do joelho. Dessa vez, porém, os pais, encenando paciência, não chegaram a discordar da menina, mas ainda assim avisaram: "é melhor esperar mais um pouco, Alice". Ao completar quatorze anos, Alice já tinha incluído em seus projetos joaninhas em fileira, um enxame de abelhas se descortinando entre os dedos do pé, e até um gato rajado deslizando perna abaixo, as unhazinhas do bichano riscando um longo rastro de paralelas vermelhas sobre a batata da perna. – E se você mudar de ideia, minha filha? Não vai poder voltar atrás – o pai lhe pergunta, mais receoso a cada ano. – Algumas empresas têm restrições na hora de admitir novos funcionários, querida. Você ainda não pensa nisso? – acrescenta a mãe logo em seguida em tom de ameaça. Mas nenhum argumento demovia Alice de perseguir o seu intento. O casal tentou mais de uma vez suborná-la com uma longa viagem de férias, e depois com a promessa de um carro. Também sem sucesso. Até os serviços de uma psicanalista, na época uma prática já inteiramente esquecida e equiparada em eficácia apenas aos ardis dos pastores no passado, foram requisitados pelos pais da menina. Eram dois encontros semanais. Pagamentos em dinheiro, ao final de cada sessão. Quando completou quinze anos, e ao cabo de quase cem horas de análise, a menina embaraçou então a família ao declarar no aniversário a decisão de ver um dia estampada na perna, bem no alto da coxa esquerda, uma liga bordada: o rendado comprimiria o corpo de uma aranha felpuda aflorando por de trás de um laço vermelho. A psicanalista foi dispensada no dia seguinte. A mãe só não a denunciou

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ao Ministério do Trabalho por falta de provas, e pela incerteza sobre o objeto da denúncia. Com o passar dos anos a família aprendeu a conviver com uma vasta fauna de serpentes, escaravelhos, morcegos e cenários sobre os quais Alice não parava de falar. Ela evocava em sua defesa alguns filmes que assistira, as amigas da escola, e as gêmeas que moravam em algum lugar do prédio ao lado: todas ostentavam, em maior ou menor extensão, um fragmento do sonho que Alice era obrigada a postergar a cada aniversário em abril. Mas agora, faltando quatro dias para completar dezoito anos, e antecipando as objeções do pai, prevendo as chantagens de sua mãe, Alice decidiu de súbito que não queria nada extravagante. Ela só precisava do dinheiro. Não sairia barato o seu presente. Com a família reunida num domingo, Alice explicou inicialmente sua preferência por turquesa. Mas não tendo herdado os olhos azuis da mãe, seria então de um verde bem clarinho, como numa aquarela discreta e já quase desbotada, a cor de sua perna. Ela já tinha na ponta da língua também uma explicação para as ramagens de lírios, tulipas, e orquídeas em lugar das borboletas, golfinhos, gatos, aranhas, morcegos e outros bichos que a família aprendera a tolerar, e a secretamente deplorar, no decorrer daqueles anos, sempre na expectativa de que a filha, mais cedo ou mais tarde, desistisse da ideia. Em vão: Alice se mostra agora ainda mais confiante e resoluta do que antes. – Sem a padronagem floral, aplicada sobre o fundo verde claro da perna, vão me chamar de marciana. Isso já aconteceu com outras meninas na escola. – Mas não é só esse o ponto, Alice... – o pai tenta soar convincente, mas sem nenhuma nova carta para lançar sobre a mesa de discussões da família.

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– Você está se contradizendo, minha filha: hoje você muda de ideia sobre os desenhos na perna, amanhã vai se arrepender da perna inteira – a mãe chama atenção para as incoerências da filha, um flanco até ali inexplorado pelo casal. Alice, que já havia encenado mentalmente a mesma cena tantas vezes, os mesmos argumentos em tantas brigas como essa, não pretendia desistir, não a poucos dias de ser nomeada, para todos os efeitos legais e em consonância com todos os dispositivos jurídicos relevantes, uma mulher adulta e independente. Eram os pais que, segundo ela, incorriam na contradição de que tentavam acusá-la: – Mas vocês têm tatuagens pelo corpo inteiro! E algumas já sem função alguma: é só pra enfeitar. –

Não

exagera,

filhinha

a

mãe

protesta,

ocultando

discretamente sob a mesa uma parte do braço esquerdo. – Vocês sempre disseram que no começo, há menos de vinte anos, todos eram contra, que seriam demitidos, e que nem embarcar nos voos as empresas deixariam. Mas nada disso ocorreu. Por que eu então não posso decidir o que fazer da minha perna? E é só a esquerda que interessa. A direita eu deixo como está. Por enquanto. – Minha filha, uma coisa é implantar sob a pele do antebraço um telefone colorido, bem mais fino e inofensivo que uma folha de papel, e chamar isso de tatuagem, tatuagem digital, e-tattoo, touch-skin, ou o que os fabricantes acharem mais atrativo. Mas amputar uma perna, querida, uma perna boa e sem problemas como a sua, para colocar no lugar uma prótese verde e decorada: isso é bem diferente. Sem falar do preço que seu pai e eu não temos condição de pagar no momento. – Mas quase todo mundo tem uma, às vezes até duas na escola. Eu sou a mais baixa na turma e nunca me animei pra esporte algum. E pra quê? Para que pés se uma prótese corre mais? Para que pernas se

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uma prótese dá mais impulso na hora de saltar? E nem é tão cara assim a verde clara floreada, imitando porcelana. Eles financiam a cirurgia, configuram o kit para a reinervação muscular dirigida que vem junto, e até dão desconto pra perna direita, caso eu me decida depois. Eu até podia tentar quebrar a perna esquerda num acidente... – Não! – descartou de pronto o pai. – ...como alguns na turma já fizeram. Existe um incentivo do governo para evitar tratamentos caros, e a prótese acaba saindo mais em conta para os planos de saúde. Mas só que não deixam escolher o modelo, sem contar o perigo de eu me acidentar de verdade no acidente. A gente nunca sabe direito onde o osso vai quebrar. Alice mobiliza um pelotão de argumentos, alguns mais, outros menos plausíveis, conforme o tom de choro que ela aprendera a modular nas repetidas discussões sobre o tema com os pais. O seu presente, até aquele momento ainda incerto, tinha sido planejado com bastante antecedência, antes mesmo de seus pais se conhecerem. Quando um velho atleta africano morreu na prisão, uns quarenta anos antes do aniversário de Alice, poucos ainda se lembrariam daquela tarde de sábado nas Olimpíadas de 2012 na Inglaterra: a imagem do esportista correndo sobre próteses, lado a lado de atletas normais, comoveu as multidões. Não lhe faltaram condecorações naquele ano glorioso, incluindo um doutorado honoris causa por uma obscura universidade escocesa. Pistorius entrou para a história dos esportes olímpicos. E por mais de uma razão. Nos jogos que se seguiram, a começar pelo Brasil, crescia o número de corredores disputando sobre próteses. Primeiro vieram as medalhas de bronze, e depois as de prata, mas então já não sobravam medalhas de ouro que não fossem conquistadas por pernas cada vez mais engenhosas, braços de pôr em xeque os desígnios de nossa evolução. O comitê olímpico ainda tentou retroceder, mas era tarde. Já não havia espaço para desigualdades

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em um mundo globalizado como aquele, pelo menos enquanto não faltassem advogados e causas milionárias para assumir. Alguns atletas, amparados pela consultoria jurídica de empresas que incluíam na época a NASA, a Volkswagen, e a Google E-Sports, se viam de um dia para o outro vítimas de acidentes misteriosos em que perdiam primeiro o pé esquerdo, e depois por azar o direito, até que o destino lhes tomasse num terceiro infortúnio as duas pernas de uma vez. No início, a opinião pública mundial reagiu escandalizada. Mas quando um presidente americano resolveu trocar pés e braços, seus cinco membros naturais, pelas próteses de uma empresa cujo nome jamais foi revelado, o escândalo nos esportes deu gradualmente lugar, primeiro, à tolerância, e depois à indiferença. Havia jogos mais importantes pela frente, outras regras pra inventar. Ninguém se importava.

Mais tarde, quando Alice completou vinte e quatro anos, os pais já não se importavam também. Mal se lembravam dos confrontos quase diários no passado. Adormecida sobre as pernas verdes da filha, a neta parece um gatinho, um golfinho, um bichinho deitado na grama. Faz sol no domingo de manhã. A avó sorri para a filha e se enche de um orgulho que ninguém na família saberia explicar.

MARCELO DE ARAÚJO é escritor e pesquisador. Doutorou-se em filosofia pela Universidade de Konstanz, Alemanha. Professor de filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Publicou dois livros sobre o filósofo René Descartes, e um sobre Dom Pedro II. Publicou também artigos acadêmicos em livros e periódicos de filosofia, e textos de ficção em revistas e jornais. Site do autor: www.marcelo-de-araujo.blogspot.com.br | MARCELO.ARAUJO@PQ.CNPQ.BR

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NAS RUAS A BATALHA LUCAS HAAS CORDEIRO | Curitiba, PR. No começo de setembro, encontraram debaixo da Fonte Jerusalém uma caixinha de madeira com um punhado de papéis. Eram contas, propagandas de cigarro e um pequeno caderno com dois simpáticos versinhos. À primeira análise, os homens da prefeitura constataram que aquilo provinha da década de oitenta, exceto o caderno, que deve ter mais de cem anos. Na mesma época, Rafael Amorin, 25, decidiu compor um sambinha com temas curitibanos, e escolheu exatamente os versos misteriosos, adaptando-os para o português de hoje em dia e

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emendando palavras de amor, coisas doces, que no fim combaliram o refrão, porque Rafinha não tinha nada de poeta, nem de músico, bem na verdade. No auge da força física, nadava três vezes por semana, corria meia dúzia de quilômetros por dia e ainda tinha tempo de fazer sucesso pelos bares da cidade. Foi o principal nome do Praia Brava, a Circe curitibana, combinação insólita de drogas e profundezas. Mas tudo que é bom dura pouco. E tudo que dura pouco é rapidamente relembrado. A canção que Rafinha compôs falava de cerca de dez meses atrás, antes que o barzinho fosse definitivamente encerrado no esquecimento. Desde então, Rafinha passou a tocar em happy hours animados, regados a nachos e sushis, e considerava que Saudade tinha potencial para um novo hit de sucesso. Quem sabe o levaria para São Paulo, longe desse limbo semiaquático. O estribilho dizia: Eu sei o quanto dói / ter na saudade o melhor de nós, e provavelmente teria soado melhor se o rapaz tivesse sido criativo o suficiente para incorporar a história do soterramento na letra batida, mas aí o resultado não seria tão plagiante. Ficou dois dias a fio trabalhando na canção. Sua bandinha o ajudou a criar o arranjo, e no domingo à noite eles finalizaram, exultantes, o que parecia ser a melhor música do século. Três dias depois, 2 de outubro, de férias, Rafinha chamou seu parça e decidiram juntos testar a criação. Era um dia cinza, céu de tempestade que nunca chove. No Parque Barigui, escolheram um canto tranquilo, junto à corja de amigos, os longboards e as cervejas, e o dedilhado soou algumas vezes, espantando pombas e atraindo uma galera de ociosos. Assaram dois quilos de linguiça e passaram a tarde satisfeitos.

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Lá pela décima cerveja, Rafinha foi dar uma volta em uma rua quase escondida por esquinas sinuosas. Ali encontrou um carro parado, na quadra de cima, um Audi novinho em folha, vidros escuros, faróis azulados. Um casal de idosos se debatia. Mas a imagem ia ofuscada, as formas confusas, a impressão de que as pernas chutavam o encosto da cabeça, de que cabeças não haviam e de que tudo era pele à mostra. Rafinha sentiu daqueles arrepios que arranham a espinha do cóccix até o pescoço. Olhou pra trás, torcendo o pescoço para a esquerda, mas não viu nada além de sombras. E no entanto, perdeu um tempo sem ver nada. Quando se voltou, o carro havia desaparecido, e uma senhora de talvez 50 se encolhia na calçada, muito amuada com alguma coisa. Ainda com os olhos embaçados, ela o viu. Veio saltitante, aos berros. - Rafa-Rafael Amorin, não é mesmo?! Não teve tempo de responder, porque Hugo, o parça, descia a ladeirinha, patinando, e ao descer jogou o amigo de costas no gramado. Risos alcóolicos. Dorotéia empalidecia. Deitou-se em Rafinha. Esbaforido, bêbado e irritado, ele a jogou para longe com um golpe de cotovelo. Não doeu, mas ela ficou bastante sentida, um tanto manhosa, e os convenceu a levá-la pra onde quer que estivessem indo. Eles voltaram para o parque, os amigos curiosos. Perguntaram tudo pra velha gorda silhueta. Ela se apresentou, disse ter 48, e eles soltaram jatos de riso pelo nariz, porque os olhos, a boca e principalmente as orelhas davam a entender pelo menos sessenta. Ela não se fez de rogada. Tomou uma cerveja das mãos de um moleque e virou tudo de um gole. A partir daí, eles a aceitaram como membro honorário do seleto grupo. Mas, infelizmente, já estavam de saída.

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Ela os convenceu a acompanhá-los. Recolheram as tralhas, subiram nos carros, andaram meia dúzia de quadras São Francisco adentro, parando em uma casa de madeira nos fundos de um terreno gigantesco. Desceram. Ali ficaram até perto da meia-noite. No começo, um tanto tímidos. No final, estáticos de emoção. Beberam cerveja, uísque, vodca & cachaça. A música de Rafinha repercutia na garganta da moçada, Vamos juntos / visitar o amanhã, eles cantavam, eufóricos, certos de que a vida não tinha finalmentes. Comiam, dançavam, o jogo de baralho, e a música, e repetidamente a mesma canção, trabalhando no cerebelo, altercando com o equilíbrio, cada vez mais apta a se espalhar pelo mundo. No deque da casa, lá pelas oito, surpreenderam Dorotéia de boca na botija num rapaz desmaiado. Fotos, selfies, vídeos, e a piada cansou e eles se esqueceram de novo da simpática velhinha. Até que um deles desabotoou o casaco, sacou um zip-lock da branquinha, e sistematizou na mesa correntes de barbante tão longas quanto uma linha de pesca. Ficaram animados. A música gritava. Animalescavam. Descobriram uma guitarra escondida no canto de um quarto, e uma caixa de som no meio da cozinha. Sambaram, cantaram, jogaram tudo pra cima e fizeram amor em cima da pia enquanto os cachorros do vizinho latiam sem parar. Em um certo momento, foram todos pro gramado discutir com o vizinho, já mais que pê da vida. Quando voltaram pra sala, encontraram a Dorotéia dormindo em cima da mesa, e as carreiras brancas todas cheias de terra vermelha. Ficaram putos da cara, ergueram a chutes a cabeça do chão e pasmaram, de frente, porque ela não acordava: os olhos se

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contorcendo, as pupilas fora do lugar, o rosto branco como a neve, sangue no nariz, as roupas encharcadas de tequila e vômito. Era um monstro. Estapearam o rosto, jogaram água, tiraram as roupas, e nada. Foi Rafinha quem teve a ideia genial: - Bora jogar a velha ali no terreno baldio. Todos que sim menos Hugo. O piá bateu o pé e fez questão de cuidar pessoalmente do caso. Até porque, os vizinhos ali de butuca, e a merda estourando no ventilador da casa deles. A cara de todo mundo ficou emplastrada do que-merda que quiseram esconder. - Tudo certo. A vida continua. Ninguém precisa saber de nada. Mas a velha não precisa morrer por causa disso. Rafinha, você vem comigo! Atormentado, achando um saco aquele esquema, mas ele teve de participar, ainda que a cabeça estivesse atordoava de tanta raiva, e fazer-o-quê?, fora ele quem trouxera a donzela, era dele a culpa, era nele o julgamento. Jogaram o corpo no porta-malas do celtinha preto, cobriram a placa do carro e saíram chacoalhando pelas ruas. Nas Mercês o hospital pareceu certeiro. Deixaram o corpo em frente ao saguão, e saíram em disparada para os lados do Tanguá, onde decidiram terminar a noite com um bocado de alegria. Tentaram esquecer a coisa passada. Tentaram fazer música. Beberam mais um pouco de cerveja. Mas as cordas do violão arrebentaram. Choveu. Amuados, retornaram. O celtinha preto, muito velho, foi arrotando um bafo quente no caminho. O vidro embaçado, Rafinha nas curvas com a cabeça quase toda pra fora. Quase passaram por uma blitz. Enquanto isso, a maldita música não saía da cabeça. Vem, meu bem / vem que a noite não tem fim.

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Eram duas e oito quando Rafinha largou em casa o parceiro de guerra, que dormiu que nem uma criança, e Rafinha continuou na sua, dentro de um sala-e-cozinha no centro da cidade, compondo uma marchinha fúnebre, enquanto o Sol se demorava no horizonte escuro de mais um dia. Foi dormir às quatro da tarde. Nos jornais, nenhuma novidade.

LUCAS HAAS CORDEIRO é curitibaníssimo. Em 2007, lançou seu primeiro livro, Sussurro & Codeína, poesia cáustica e mordaz. Em 2015 saiu o seu primeiro romance, Seis Vozes para a Fuga, resultado de um experimentalismo de forma & conteúdo, calcado especialmente na literatura combinatória. Trabalha como revisor de livros e artigos científicos, tradutor e professor de línguas. | LUC.CORDEIRO@GMAIL.COM.

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FORA DA FAIXA DE PEDESTRES RAISA CHRISTINA | Fortaleza, CE. Gosto de caminhar pelas grandes avenidas naquele intervalo de fim de tarde em que o Sol começa a baixar e as sombras dos postes, dos prédios, dos carros e das pessoas vão se alongando diagonais sobre o asfalto e a calçada. Andando de frente para o Sol, tudo se ofusca na paisagem urbana. De repente, há um sentimento amarelo meio mágico molhando a superfície das coisas. Alguns segundos de presságio bom ou simplesmente um sopro de amor incondicional pelo mundo. Na calçada, o movimento daqueles que deixam o local de trabalho e seguem para o ponto de ônibus. Meninos de farda saem do colégio aliviados. Um casal estranho se despede na esquina. Percebo uma silhueta borrada no quarteirão seguinte, movendo-se ao meu encontro. Parece você. Parece muito você. Que absurdo seria você por aqui. Você também me vê. Sorri. A luz do sol se reflete em mim e eu aperto os olhos aguçada querendo te enxergar. Você não imaginava que seria assim nosso primeiro encontro. Sonhou com praias, botecos toscos, bares à beira de estrada, museus de arte contemporânea e até saguões de aeroportos, mas não uma avenida confusa na capital cearense. Sonhou que eu estaria nua ou com um vestido frouxo de alcinhas, talvez sandálias, pernas à mostra, longas madeixas. Entretanto, eu estava ali usando jeans e, sim, o cabelo balançava na altura dos ombros. Você está a cinco metros de distância, prestes a atravessar a rua para pisar a mesma calçada que piso agora. Uma mão toca meu braço direito: alguém me pergunta como chegar à Rua Solon Pinheiro. Eu não posso desviar os olhos de você, que para do outro lado esperando o sinal fechar. Você então se dá conta

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de que não poderia ser mesmo eu naquela época do ano caminhando tão lentamente pela cidade. Eu olho para sua suposta silhueta borrada e me dou conta, que imagem insistente, de que não poderia ser mesmo você passeando na cidade no mês do seu aniversário. Finalmente dirijo a atenção à moça que pergunta um endereço e você resolve seguir pela avenida perpendicular e sequer cruza por mim. Pensa em me escrever um e-mail mais tarde, dizendo que imaginou ter me visto enquanto passeava em Fortaleza.

RAISA CHRISTINA é artista visual e escritora. Nasceu em 1987 e atualmente reside em Fortaleza, onde cursa o Mestrado em Artes (PPGArtes) do Instituto de Cultura e Arte da Universidade Federal do Ceará, a investigar poéticas na criação de mapas de percursos errantes de jovens skatistas na cidade de Fortaleza. É autora do livro de autoficção "mensagens enviadas enquanto você estava desconectado", publicado pela Editora Substânsia em 2014. Mantém a página na web http://corposonoro.tumblr.com/ | RAISA.CHRISTINA@GMAIL.COM

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PARCEIROS:

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Edição e Revisão: Morgana Rech e Tânia Ardito

Recepção de originais: CONTATO.SUBVERSA@GMAIL.COM

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