Revista subversa vol 4 nº2 fev 2016

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SUBVERSA Vol. 4 | n.º 02 Fevereiro de 2016

ISSN 2359-5817

Ilustrações BRUNA RISÉRIO

TAYLANE CRUZ | ANDERSON FREIXO | ANA CRISTINA ALVES MARCUS GROZA | FELICIO DIAS | MANDU HOLANDA ANGELO GIROTTO | MARCIA SBARDELOTTO PEDRO IVO | EBER CHAVES | WEELINGTON SOUZA


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Subversa | literatura luso-brasileira | V. 4 | n.º 02

© originalmente publicado em 01 de fevereiro de 2016 sob o título de Subversa ©

Edição e Revisão: Morgana Rech e Tânia Ardito

Ilustrações BRUNA RISÉRIO| SITE | FACEBOOK

Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados como autores desta obra. Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos textos ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem com a realida

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SUBVERSA ANA CRISTINA ALVES |AS FLORES E OS GATOS| 6 ANDERSON FREIXO | NOME PRÓPRIO | 8 ANGELO GIROTTO | PARA P. | 10 EBER CHAVES | SONHO DE OSÍRIS| 15 FELICIO DIAS | ENTRE A EXPERIÊNCIA E O CHOQUE: NARRAR APÓS AUSCHWITZ NAS OBRAS DE GONÇALO M. TAVARES E MICHEL LAUB | 20 MANDU HOLANDA | MORTE ME AGUARDE| 28 MARCIA SBARDELOTTO | PÁSSAROS SULINOS | 30 MARCUS GROZA | CANTAR E GANIR | 36 PEDRO IVO | RACHADURA DA RAZÃO | 39 TAYLANE CRUZ | A PSICOSSOMÁTICA | 41 WELLINGTON SOUZA | UM CARA SOLÚVEL | 45

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EDITORIAL

"Era o Carnaval... Vitória de todo o Instinto, reino da Carne..." Jorge Amado, O País do Carnaval

A literatura, como sempre um espelho da sociedade e da realidade, de uma maneira ou de outra, sempre reflete os movimentos humanos. Nessa época do ano, comemoramos uma festa que não pode ser ignorada. Apesar de o Brasil ser conhecido como o país oficial do carnaval, os portugueses não deixam de sair às ruas, mesmo enfrentando as baixas temperaturas do inverno. Apoiar ou criticar o carnaval parece ser, com frequência, uma posição de extremos: ou se ama ou se odeia. Mergulhar na literatura pode ser uma saída para quem prefere estar quieto, mas, acima de tudo é preciso refletir: “por que sou contra o carnaval?”. Ser contra o carnaval já é um posicionamento a tomar, e a leitura pode ajudar a desenvolvê-lo. Neste número, alguns textos trazem um pouco da essência bruta que move a capacidade do homem de fantasiar: o sonho, a morte, os limites da vida, as recordações da infância, a ressaca da guerra. Para ilustrar, contamos com Bruna Risério, artista que vem de uma das terras onde o carnaval é mais intensamente vivido: a Bahia. A artista tem Frida Kahlo como uma referência e não se fixa em técnicas prontas, mas na força da inspiração e do acaso: “o que tiver perto eu uso”. Uma das formas que encontrou de expor suas obras é expondo-as nas ruas, trabalho que realiza há dois anos. Na semana passada, Bruna ilustrou dois textos que recentemente fizeram parte do Especial Sobrevivência, o primeiro do ano, marcando uma volta dos especiais da revista. Desejamos uma boa leitura e uma boa festa a todos.

As editoras.

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SUBVERSA # 1 – Versão Impressa | Volume 1 (2014) Adquira e apoie o crescimento da revista. 5


AS FLORES E OS GATOS ANA CRISTINA ALVES | Porto, Portugal. Recordo-me de mim criança. Recordo também da estrada por onde fazia o caminho de casa à escola. Havia sempre no ar o cheiro a primavera. Havia flores. Nesse caminho, todos os dias, passavam mil horas. Eu via os gatos e falava com eles. Andava à chuva e não me importava. Não tinha medo dos carros. Eram poucos e por isso cantava e caminhava pelo meio da estrada de olhos fechados. A Mila Cheta sorria-me e vinha ao portão dar-me um beijo de Bomdia. Chegava a horas à sala, ainda antes da filinha indiana. Lembro-me que fazia frio e nem a salamandra ao fundo nos aquecia a todos. Ainda assim, tirava quase sempre verdes na lição. Quando a professora Mimosa Bastos nos visitava era para mim uma alegria. Ela fazia-me acreditar que como ela,

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quando eu crescesse, poderia tornar-me numa pessoa grande com direito a uma árvore com o meu nome e tudo. As aulas acabavam sempre às três da tarde. Quando retornava a casa a minha avó ralhava-me, aflita, por querer saber da minha demora. Eu não sabia explicar aos adultos que os gatos precisavam dos meus mimos e que as flores demoravam-me o olhar. E depois havia as borboletas e as abelhas e os outros meninos... Quando o sol se começava a pôr, a minha avó sentava-me à mesa da cozinha. Comia e já o céu tinha mil cores - as cores com que eu pintava depois os meus cadernos. Era feliz. Era feliz porque era criança e ainda assim já tinha idade para ir à escola. Eu sabia que o cheiro dos livros havia de me ensinar muita coisa. Não passo mais nessa estrada. Trago-a apenas na memória onde a conheço de cor. Visito-lhe todos os cheiros e as flores, essas, seguem comigo outras ruas as quais aprendi a andar sozinha, crescida e feliz por trazer-me em braços, de cantares e sorrisos.

ANA CRISTINA ALVES nasceu no Porto no ano da graça de mil novecentos e oitenta e seis. Não sabe senão ler, fotografar e sonhar. No tempo que resta, trabalha para os outros tanto por gosto como por obrigação. Ainda não acabou a faculdade - tem por cumprir a Licenciatura de Línguas e Relações Internacionais na FLUP. | NOOKIE.ALVES@GMAIL.COM

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NOME PRÓPRIO ANDERSON FREIXO | Salvador, BA. Não me chame, eu não gosto do meu nome. Não me aponte, eu não gosto que me mostrem. Olhe minha cara, olhe nos meus olhos. Agora vire a cara. Eu não gosto que me olhem. Me deixe cavando meu abismo, pra eu poder subir, pra depois poder cair, me machucar e me esconder quem sabe até, talvez, dentro de mim. A suspeita de ser fraude me incomoda. A suspeita de ser a única coisa que não é fraude me incomoda ainda mais. Preciso ficar só até minha fome devorar minha própria fome e eu perder meu próprio nome. Nome próprio. Eu ando mesmo meio ensimesmado, mas penso em tanta coisa e me parece que tanta coisa na verdade não é nada. Quebrei minhas promessas. Minhas palavras agora nada valem, logo não vale mais a pena dizer palavras, se dizer palavras parece agora ser um modo barulhento de

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dizer coisa nenhuma. Não é o fundo do poço, é além, é o centro da Terra. O lugar quente e quieto onde tento esquecer quem sou, decidir quem sou, ser, continuar. E durar mais. Na superfície estéril da Terra. No vento poeirento da cidade de concreto. No cemitério das inocências juvenis, na cova rasa dos sonhos abortados, continuar. De novo. Agora novo. Agora outro. Em frente.

ANDERSON SOARES FREIXO é carioca, tem 25 anos e reside atualmente em Salvador, onde estuda Letras. Já teve contos publicados por outrass revistas, como Mallarmargens, Samizdat e Desenredos. Atualmente publica seus textos no blog zonadofreixo.blogspot.com e em sua página do Facebook (Zona do Freixo). | ANDERSON.FREIXO@GMAIL.COM

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PARA P ANGELO GIROTTO NATAL, RN..

P, adiei o quanto pude o momento de lhe procurar. Mas chegou a hora, e eu lamento por isso. Nunca fui bom em lhe enganar. Embora algumas das coisas que lhe disse fossem mentiras... mas disso você sabia melhor que eu . Também não sou bom em me enganar. Ser realista e franco causou a mim e àqueles que me cercavam algum sofrimento. Mas fez de nosso convívio algo menos irreal. Hoje percebo isso com total clareza e não me arrependo de nada. P, há quatro meses descobri que estou com câncer no estômago. Quando recebi o resultado da biópsia, acreditei que estar doente não era

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assim tão mal. Fantasiei uma recuperação lenta e sacrificante, ao fim da qual eu emergiria mais sábio, forte e – por que não lhe confessar? – admirado por você e por todos. Imaginei você ao meu lado e nossos laços se fortalecendo, como só se é possível em situações extraordinárias. Passei até a me sentir melhor. Aquela ansiedade que sempre tive, que me tomava o corpo e a mente cinco minutos depois que acordava, sumiu assim que acabei de ler o diagnóstico. Eu sabia que havia ali um problema real e bem maior que aqueles que me assombravam. E, por ser real e conhecido, aquele problema me incomodava menos que minhas habituais paranoias, meus medos sem conteúdo que se agarravam a qualquer ameaça real ou imaginária para desenvolver suas formas. A fantasia redentora durou pouco. Pesquisei na internet o significado de termos obscuros para mim, como blastoma e Borrmann III, que constavam do exame que tinha em mãos. As minhas chances eram praticamente nulas. Contudo, e isso foi o que mais me falou sobre quem eu vinha sendo esse tempo todo, P, a ansiedade não voltou. Tudo agora dependeria da ciência médica, e nada que eu fizesse teria qualquer importância. Não havia nada por que me culpar. Eu não sentia mais aquele remorso antecipado que me assaltava sempre que precisava tomar alguma decisão. Seria a coisa certa? Eu estaria prevendo todas as consequências? Nada disso. Fui dormir cedo e acordei muito tarde. No dia seguinte, almocei e senti um desconforto maior no estômago. Seria impressão ou meu quadro se deteriorava rapidamente? Fui à consulta e tive de esperar mais de uma hora para ser atendido. Pensei em reclamar, afinal tinha horário marcado. Mas deixei pra lá. Nada nas revistas semanais me interessava. Política economia fofocas. Nem a seção de literatura prendeu a minha atenção. O que acabou me distraindo foi uma revista de divulgação científica. Noventa e cinco por cento daquilo que constitui o Universo é de origem totalmente desconhecida. Você sabia disso, P? Não sabemos nada sobre o Universo. Quanto à minha consulta, eu tinha expectativas bem diversas e claras. Queria um prognóstico conciso e realista, queria saber exatamente quais eram minhas chances e alternativas.

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Perguntei ao médico claramente qual era minha situação. Ele disse que seria muito difícil uma remissão. Eu já adivinhava isso pelo que havia lido a respeito nas pesquisas que fiz. Estava pronto para isso. O que me irritou foi quando começou a me dar esperanças, dizendo que houvera casos em que, milagrosamente, se verificara uma melhora completa; que muitas vezes o tratamento podia ao menos prolongar a vida do paciente por muito tempo, às vezes até se morria de outra coisa, gracejou; que o fundamental nesses casos era a fé do enfermo, que muitos se abatiam, se entregavam, e que isso acabava por matá-los mais depressa que a doença. Acredita numa merda dessas, P? Ali foi que entendi um negócio que li há muito tempo, nalgum lugar. A esperança é o pior dos males. Aquele picareta me torturava feliz, vendendo uma falsa esperança, me devolvendo uma responsabilidade da qual eu já me livrara, achando que estava ajudando. Depois que saí do consultório, a primeira coisa que fiz foi comprar uma carteira de Malboro. Queria algo forte e seco. Já lhe disse o quanto é ruim fumar em Natal, com toda essa umidade. Depois fui a um café e pedi um curto. Tive que explicar como era feito, e então o garçom me corrigiu, o senhor quer dizer um ristretto, ele disse. Acredita nisso? Aliás, o primeiro cigarro depois de doze anos sem fumar foi bom o bastante pra justificar esses últimos meses de vida. Peguei o caderno que usava para anotar frases e trejeitos interessantes que ouvia pela rua. Comecei então minha lista. Na terceira página, um nome por linha, pus o último nome, o seu, P, não podia ser diferente. É por isso que estamos tendo essa conversa. Três páginas era gente demais pra eu visitar. Eu queria um acerto de contas, é verdade, mas não queria passar meus últimos meses de vida numa tarefa exaustiva que provavelmente não chegaria ao fim. Me sentindo um Deus, fui concedendo a um ou outro a dádiva de ser riscado. Risquei primeiro o nome daqueles de quem a memória já estava mais embotada, os que ali constavam mais por um ideal de justiça que por real ressentimento. Depois fui riscando aleatoriamente outros nomes até saber que os restantes caberiam numa única página. Era o bastante para o que me restava de tempo. P, você pode pensar que não foi justo decidir quem ficava e quem saía da lista dessa forma.

Mas você bem sabe que nunca acreditei nem

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defendi a justiça. As coisas, na maioria das vezes, apenas acontecem. E a maioria das pessoas que tornaram minha vida mais infeliz o fizeram não por deliberação, mas por puro acaso. Pelo acaso de pensarem que eu pretendia o cargo que desejavam. Pelo acaso de ser eu quem lhes dava a oportunidade de, exercitando o sadismo, se sentirem melhor. F, o primeiro da lista, tirou meu emprego e acabou nos separando por acaso. Ele apenas queria mostrar o quanto era dedicado à empresa, o quanto se diferenciava dos empregados comuns. Por isso fez aquele relatório a meu respeito. Talvez nem suspeitasse da ansiedade incontrolável que seu gesto desencadearia em mim. Talvez nem desejasse que eu acabasse demitido. Provavelmente sequer pensou nisso. Ele viu uma chance e a aproveitou. Eu era sua chance. Foi um acaso. Mas não dei a ele, nem a você, P, o benefício do acaso. Seus nomes abriram e fecharam também minha nova lista. Dei-me esse direito. O próximo passo acabou sendo um tanto difícil. Pensava que seria fácil comprar uma arma a algum vagabundo qualquer. Andei por bares. Falei com flanelinhas. Foi um destes que me disse que eu procurava no lugar errado. Me passou o nome de um policial. Daí em diante, tudo transcorreu sem dificuldades. Claro que não matei F. Matá-lo lhe concederia um descanso que não tive esse tempo todo. Não. Pensei em algo mais fácil. F teve uma única filha, que teve um único filho. Era perfeito demais. O menino tinha dez anos. Foi fácil convencê-lo de que eu era um velho amigo do avô. Você sabe que nisso não contei nenhuma mentira. Até pensei em matar o garoto rapidamente. Afinal ele nada fizera contra mim, eu apenas queria atingir seu avô. Mas também não aceitava dar a F o consolo de saber pela perícia que o netinho morrera rápido, sem sofrimento. Cheguei a pensar que não conseguiria ir até o fim. Mas o moleque era irritante. Sei que não justifica, o que não me impediu de sentir algum prazer naquilo, no final das contas. Quis muito ir ao velório. Mas não podia por a perder o resto de minhas obrigações. Depois de iniciar meu acerto com F, esmoreci bastante. A cada nome que riscava da lista, minha satisfação diminuía. Até deixei de lado alguns que se demonstraram particularmente difíceis ou inócuos. Afinal, não sou a noiva de Kill Bill, não me guio por princípios.

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Minhas dores aumentaram muito. Há duas semanas não como nada decente sem vomitar. Então, P, chegou a sua vez. É hora de encerrar a lista e me ver livre das obrigações. Você disse que me amava, quando me deixou. Se de fato amava, não tinha o direito de ir embora. Contudo, se era mentira, se já não sentia nada por mim, me fez um favor partindo, apesar da mentira. Por isso lhe deixei por último. Por não saber como proceder no seu caso. P, tive tempo de pensar no seu caso e cheguei a uma boa solução. Voei para Curitiba ontem. Sempre quis acabar minha história num lugar agradável, longe do calor e da umidade daí. Junto a esta carta, postarei várias outras. Uma delas é endereçada à filha de F. Quero que ela saiba da responsabilidade de seu pai pelo que aconteceu ao filho dela. Espero que isso destrua a relação deles como a minha demissão destruiu a nossa. Para reforçar minhas chances, enviei com a carta um vídeo do filho dela em seus últimos momentos; claro que omiti a parte anterior em que o levava jogar na praça do shopping, meu presente de despedida. Nalgumas dessas cartas, conto àqueles cujos nomes acabei não riscando de minha lista a sorte que tiveram, até detalho um pouco daquilo que quase lhes ocorrera. É claro que isso é pra assustá-los um pouco. E também é uma boa última piada. Mas se eles tiverem capacidade de entender o significado do que lhes digo, poderão fazer disso bom uso. A você, P, se ainda me ama, lhe tiro o direito de se despedir, de se desculpar. Não podia trazer a arma no avião. Mas tenho um estoque vasto de todo o tipo de comprimido que você possa imaginar. Vou morrer daqui a pouco, na Boca Maldita. Espero que o bondinho ainda esteja lá, me aguardando. Pra você, P, sem adeus. A. G.

ANGELO GIROTTO é autor da novela O Espetáculo do Mundo (CJA, 2015) e da coletânea Ronda Crônica (Sol Negro, impresso; CJA, ebook - ambos de 2015); editor da revista Pardal (antiga Tá na Cara!) desde 2003; também colabora em diversos sítios da internet e revistas. Formado em Jornalismo e com mestrado em Ciências Sociais pela UFRN. | ANGELOGIROTTO@GMAIL.COM

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SONHO DE OSÍRIS EBER CHAVES | Vitória da Conquista, BA.

Houve um tempo em que o Baixo e o Alto Egito se prostravam aos deuses antigos; E as pirâmides marcavam os pontos de convergência entre os mundos infinitos; E as quatro estações eram apenas duas estações; E os faraós proclamavam-se deuses e os sacerdotes faziam rituais diários; E os escribas escreviam em papiros e em paredes; E a múmia deitada de cujo corpo emergiam espigas era o deus feito de terra e de trigo,

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Feito de terra e de trigo e enterrado em férteis terras agrícolas. Nas pradarias era a força vital e a força geradora do touro negro; Nos pântanos era a brutalidade e ferocidade do crocodilo; No Nilo era um peixe mensageiro portador da boa nova da enchente; E no mundo dos mortos eu não era morto, mas senhor dos senhores. Ah, lei da frontalidade e das formas bidimensionais e dos traços estilizados e rígidos; E dos olhos e ombros e peito colocados de frente, e cabeça e pernas colocados de lado, Pintaram-me como um homem mumificado: Minha barba postiça escondia a idade cosmológica da infinidade de séculos passados; Meus braços cruzados sob o peito em posição de defesa à espera de Seth; A mão benevolente amparando o cajado hekat; A mão violenta calejada pelo açoite nekhakha; Na cabeça, o peso de duas plumas de avestruz aliviava a carga divina da coroa branca de Atef. E passaram-se as cheias e passaram-se as vazantes: Vi as águas inundarem, abaixarem e deixarem o solo fértil. E passaram as caravanas passando os solitários peregrinos: Vi procissões e a barca do deus sendo transportada pelas ruas Abido, Busíris, Atribis, Mênfis, Letópolis e Heliópolis – Abandonava todas as minhas ocupações divinas para contemplá-las. Há quem ame seus irmãos e deles nunca aguarde trapaça, muito menos o fratricídio,

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Mas a violência, a traição, o ciúme e a inveja marcham de mãos dadas pelo deserto: Aquele que rasgou o ventre de sua mãe com as próprias garras para nascer vem em meu encalço. O sol, os planetas e todas as constelações que viram barco solar cortar mares astrais contemplaram o deus Seth, Mas que eles não se enganem, apenas tenham compaixão do outrora deus bom a quem Rá chamou em seu auxílio. Ah, Seth, tua aparência orelhuda e nariguda era um agregado de vários animais; Tu não eras conhecido como uma criatura destrutiva e perigosa. Deus guerreiro que nunca sucumbiu em sua eterna luta contra a serpente Apófis; Mas em que te transformastes? Aquele que combatia o caos do caos se fez arauto? Ah, que imensa alegria em ser convidado para um banquete com meus irmãos e minhas irmãs, A bela caixa-sarcófago de madeira foi feita e ajustada perfeitamente para sossegar o meu corpo, Morri confortavelmente. À corrente que corre o rio corria a caixa com o deus enclausurado: O Nilo vomitou a inveja de Seth às margens de Biblos. E o tempo e uma árvore fenícia cobriram-me com galhos e folhas, E mãos hábeis e cruéis me esculpiram como pilar de sustentação do palácio do rei de Biblos, Fui rasgado em quatorze pedaços: espalharam minha carne, ossos, entranhas e membros pelo Delta.

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Fui castrado por um ou três peixes – não há noite nem dia em que Isis não chore por isso, E enquanto chora, reúne meus pedaços. Deram-me um falo artificial com caules vegetais; Néftis fez rituais diários; Anúbis veio em meu auxílio – Ele tem o poder de não deixar o corpo apodrecer; Sou embalsamado, fico inerte, endurecido, me torno múmia outra vez para depois abrir os olhos: Volta a vida o agora senhor do submundo. Aqueles que testemunharam tais eventos sabem que minha carne sobreviveu à inveja de Seth, Sabem também que passaram-se os dias e as estrelas mudaram de lugar; E o vento espalhou as areias do deserto para o norte, depois o sul e para o leste e oeste; E o meu reinado esvaeceu-se sucumbindo a cada século e a cada milênio: Ah, maldito tempo que a tudo dilacera. Ah, maldito tempo que a tudo esquece. E não se vê mais procissões nem a barca do deus sendo transportada pelas ruas; Nem o deus feito de terra e de trigo enterrado em férteis terras agrícolas; Nem mesmo as preces propagadas nas ruínas dos meus templos. Em Abido, profanaram a cova da cabeça do deus;

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Em Busíris, os vermes devoraram minha espinha dorsal; Em Atribis, saquearam o túmulo onde jazia o meu coração. Hoje, nenhum deles mais se lembra de que quando olharam para o céu e temeram o universo eu já era o sol, Isis a lua; E imponente julgava os mortos na sala das duas verdades: Na balança o coração do bom morto pesava menos que a pena da deusa Maat. Eu sou a divindade que encarna a terra egípcia e a sua vegetação destruída pelo sol e pela seca, E destruída pelo sol e pela seca ressurgi pelas águas do Nilo. Os meus muitos-olhos que veem tudo, tanto a terra quanto o mar, veem o fim do pranto de Isis; E veem as procissões e a barca do deus sendo transportada pelas ruas; E veem o deus feito de terra e de trigo enterrado em férteis terras agrícolas; E veem passarem as caravanas passando os solitários peregrinos a caminho de Abido e Busíris; E veem e escutam as preces propagadas em minha casa majestosa.

EBER CHAVES (Itaquara, 1979) atualmente reside em Vitória da Conquista/BA. Graduado em Administração, é blogueiro, apreciador de psicanálise, filosofia, poesia, literatura fantástica, filmes de ficção e fantasia, rock’n’roll, cervejas especiais e feijoada. | EBER.CHAVES79@GMAIL.COM

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ENTRE A EXPERIÊNCIA E O CHOQUE: NARRAR APÓS AUSCHWITZ NAS OBRAS DE GONÇALO M. TAVARES E MICHEL LAUB FELICIO DIAS | Rio de Janeiro, RJ.

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Todo documento de cultura é um documento de barbárie Walter Benjamin

A arte pode ser um meio de revelar e exprimir as marcas de uma história de brutalidade que não deixa qualquer dúvida de que o tempo não cicatriza as feridas históricas e as dores de barbárie. As pesquisas de professores e críticos como Marcio Seligmann-Silva, Jeane Marie Gagnebin, Jaime Ginzburg, Karl Erik Schollammer e muitos outros que não seria possível tratá-los aqui por uma questão de espaço e recorte, elencam

temas

como

violência,

barbárie,

testemunho,

história,

catástrofe, trauma e suas relações com a arte, e se inserem na mesma configuração de onde partem as narrativas trágicas acerca do que podemos cunhar como tragédias do contemporâneo, ou tragédias dos séculos XX e XXI. Dessa forma, me pergunto, então: restaria à arte, à cultura ou à literatura, especificamente, o papel fundamental na resistência e na reinvenção de um sofrimento histórico silenciado diante da espetacularização da barbárie hoje? Estariam as formas externas, ou, como chamamos, o social e o histórico, transfigurados em elementos estéticos nas estruturas internas da obra? Se sim, como os são? Ou, como propõe o questionamento de Marcio Seligmann-Silva (2013): há uma ilusão de superação histórica diante de uma amnésia em relação à barbárie? Se há um papel fundamental que as narrativas contemporâneas podem imprimir na história da literatura, talvez seja a produção de um conjunto de obras ininterruptas que desnaturalizem todo tipo de violência e barbárie, via linguagem, por um viés trágico, em que a história

seja

enfrentada

e

confrontada

como

uma

tragédia

primeiramente política e histórica. Esses intensos conflitos que se dão nos movimentos das sociedades têm, em grande parte, suas origens fundadas em confrontos políticos de regimes-totalitários, ditatoriais e disputas imperialistas.

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Na produção literária do século XXI, surgem escritores cujas obras se

desdobram

no

entrecruzamento

de

conflitos

nas

relações

interpessoais e que, sobretudo, refletem um certo trauma e horror desencadeados a partir dos acontecimentos históricos no decorrer do último século. O autor brasileiro Michel Laub e o autor português Gonçalo M. Tavares percorrem seus projetos filosófico-literários a partir dessa propensão de se deixar afetar pela catástrofe histórica, a saber: respectivamente, Diário da Queda (2011) e Um homem: Klaus Klump (2007), ensaiam a ficcionalização do choque e da experiência do sujeito diante do que foi Auschwitz nas ruínas da história. Reflito, então, nesse espaço, um brevíssimo diálogo entre Laub e Tavares dentro das relações dialógicas de ficção, catástrofe histórica, experiência e choque. Michel Laub nasceu em Porto Alegre e vem se destacando ao lado de jovens escritores que representam o que há de mais expressivo na literatura brasileira atual. Em Diário da queda que encontramos as ressonâncias do choque da experiência de um mundo ruinado e as marcas do que tensionam a queda do sujeito no presente. Um dos aspectos de sua escrita consiste na sua impossibilidade de reconstruir sua narrativa de forma linear, uma vez que os detalhes que imprimem as passagens da história já não são mais pontos relevantes na trama de Laub, como se pode ver: “Eu também não gostaria de falar desse tema. Se há uma coisa que o mundo não precisa é ouvir minhas considerações a respeito. O cinema já se encarregou disso. Os livros já encarregaram disso. (...).” (LAUB, 2011, p. 9). O holocausto é considerado, então, a grande tragédia do século XXI, fato que marca a condição trágica do ser frente a um específico momento do homem no mundo moderno. Na poética de Laub não há grande espaço para um realismo do espetáculo ou um realismo que faz da mimesis um dispositivo de criação de imagens verossímeis, ou mera recriadora da barbárie humana.

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O

narrador de

Diário da Queda

rememora conturbadas

passagens de sua infância e fatos que marcaram a sua construção como sujeito e perpassa as três gerações de homens em sua família, a saber:

a

experiência

traumática

do

seu

avô

no

campo

de

concentração, a doença e a queda de seu pai, e uma sequência de eventos de sua própria infância. No entanto, a obra de Laub não se limita ao seu complexo e bem estruturado enredo, uma vez que a problemática da obra, em minha leitura, reside no esfacelamento da experiência e no choque das catástrofes históricas. Não há uma referencialidade objetiva ou um encadeamento lógico no romance; tudo é fragmento; tudo é ruína. Há, sim, os restos da experiência humana, o que restou de Auschwitz, e como esses restos radicalizam a (in)capacidade de se narrar eventos traumáticos. Nesse caso, essa impossibilidade do narrar pode ser percebida nas várias passagens em que é possível encontrar tentativas de se repetir exaustivamente a tese de

que

uma

destruição

da

experiência

que

resulta

no

esfacelamento da transmissão do horror da barbárie, num não-querer e ter que lembrar, como no excerto: “Meu avô não gostava de falar do passado (...), e resta apenas um tipo de lembrança que vem e volta e pode ser uma prisão ainda pior que aquela que você esteve.” (LAUB, 2011, p. 8). A poética laubiana se preocupa com as disponibilidades máximas da representação literária como forma de veicular os processos criativos à produção de efeitos sensíveis e afetivos à realidade. Abandona-se a demanda por um realismo preciso e quer-se obter novas formas de representações no âmbito da vivência de certas potências sensíveis. Eis os limites da linguagem frente ao que foi Auschwitz: narrar, se sentir incapaz diante do choque e fracassar diante da experiência. Nem o narrador e nem os cadernos deixados pelo avô se interessam pelas datas, lugares e espaços – o que ocorre é a negação da referencialidade e a afirmação do arruinamento do sujeito

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frente à história. Trata-se de um sujeito impossibilitado de restituir, em sua autenticidade, a experiência coletiva que só se (re)constrói no instante narrado, como bem nos aponta Walter Benjamin (2012). Assim, é na impossibilidade de se conceber a “experiência autêntica” (Erfarhung) que, de certa forma, Benjamin esboça sua teoria da literatura, ao lidar com as ruínas da história e com os fragmentos dos relatos, corroborando a ideia do declínio da experiência como instância primária para se pensar a crise da modernidade A escrita de Laub vai de encontro com uma frase marcante na obra de Gonçalo M. Tavares, em Um homem: Klaus Klump, ao elucidar, numa pragmática precisa e objetiva, a ideia de esfacelamento da linguagem dos que retornam da experiência da guerra, “(...) As palavras mudam um pouco, o vocabulário em situações extremas não é composto por mais de 50 elementos”(GONÇALO, 2007 p.45). Em uma breve contextualização acerca dessa obra de Gonçalo M. Tavares, Um homem:

Klaus

Klump

perpassa

um

período

de

guerra,

cujas

personagens se circunscrevem numa vida de trabalhos e amores interrompidos e, tomados pela experiência da barbárie e guerra, sentem a intensidade das transformações comportamentais diante das novas condições do mundo em ruínas. Abordando questões como corpo, linguagem, o recorte que me faz dialogar a obra de Tavares e de Laub está relacionado com o choque da experiência da barbárie e a impossibilidade de poder exprimir o horror. O narrador de Um homem: Klaus Klump, já no início da obra, nos deixa os rastros dos caminhos a serem percorridos ao colocar que “Depois da História não há geografia” (TAVARES, 2007, p.7). Assim como em Laub há uma certa recusa das referências e especificidades de tempo-espaço, Tavares opera no limite da impossibilidade de se restituir a experiência última da guerra, construindo um narrador que se encontra diante do choque e da destruição da capacidade de reconstruir os cacos da sua história em detalhes. Se Auschwitz ainda é,

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de alguma maneira, demarcado por pouquíssimas e brevíssimas referências em Laub, em Tavares só podemos fazer associações gerais do extermínio e da destruição da capacidade de contar e se expressar com as traumáticas experiências das mais diversas catástrofes da história. Mais além, aqui nesta reflexão, Gonçalo M. Tavares e Michel Laub são escritores pós-Auschwitz e trazem uma reflexão mais ampla em torno da linguagem, como já coloquei anteriormente, mas que, em Tavares, trilha caminhos extremos, em que o esvaziamento e a obliteração da linguagem e da experiência é tensionada de forma mais evidente do que aparece em Laub, como podemos perceber na seguinte passagem: De manhã os tanques parecem objectos particulares, coisas grandes feitas para a higiene das ruas. Limpam as praças, limpam os lixos das praças e dos cafés e limpam a linguagem, porque quando os tanques passam, os homens falam baixo, já reparaste nisso?É Johana que diz a Klaus. (TAVARES, 2007, p.10) A linguagem é interrompida na descida à barbárie, ou, como será possível observar ao desenrolar da trama, “A linguagem é mais utilizada em tempo de paz, sobre isso não há dúvida: em tempos de guerra não há conversas, apenas informações.” (TAVARES, 2007, p.109). Jean Marie Gagnebin amplia essas considerações ao colocar que tanto em Adorno, ao tratar da poesia após Auschwitz, quanto em Primo Levi e Robert Antelme, há uma afirmação radical, na medida em que “(...) a mais nobre característica do homem, sua razão e sua linguagem, o lógos, não pode, após Auschwitz, permanecer a mesma, intacta em sua esplêndida autonomia.”

(GAGINEBIN, 2013,

p.104).

Mais

além,

Gagnebin radicaliza sua colocação e afirma a posição de que criar arte após um evento catastrófico, como foi Auschwitz e muitos outros, não somente pode significar lutar contra o esquecimento, mas também rememorar

“(...)

essa

presença

do

sofrimento

sem

palavras”

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(GAGINEBIN, 2013 p.104). Dissipam-se as finas tessituras entre linguagem e experiência dentro das narrativas aqui especuladas – o choque da história encaminha o sujeito para campos do indizível, do inexprimível, do irrepresentável e do inenarrável. A arte após Auschwitz, ou melhor, a narrativa após Auschwitz, permite entrever o caminho cruzado de representar aquele que não pode exprimir, mas, ao invés de fetichizar ou transformar a barbárie em mais uma mercadoria a ser consumida, as representações em ambas as obra nãos se pretendem representar o que ocorreu em algum evento histórico específico, como o holocausto. É nesse sentido que Michel Laub recusa as referências documentais da história e Gonçalo M. Tavares ambientaliza sua obra num tempo-espaço indeterminado, justamente para estruturarem um espaço heterogêneo da experiência histórica. O projeto filosófico da representação da barbárie se realiza esteticamente no interior da obra, internalizando e implodindo em seu cerne as possibilidades de arte como inscrição da ruína, da catástrofe e da tragédia, expressas, principalmente, na própria representação da linguagem. O narrador de Um Homem: Klaus Klump se encontra sorrateiramente subtraído pela pobreza da experiência da humanidade e sob o crivo da barbárie. A catástrofe está diretamente refletida na experiência – as passagens da história não se iluminam, como em tempos de atos heróicos e grandes feitos, mas se desenham como estilhaços perdidos sob a redoma da temporalidade das sociedades. Essa é a questão que alguns ficcionistas como Michel Laub e Gonçalo M. Tavares designam ao leitor: lançar tentativas de se pensar um sujeito Pós-Auschwitz que já nasce em um mundo sem volta, em que os caminhos só podem ser os das tormentas, das passagens estreitas que não sinalizam uma saída, e os caminhos das ruínas. O caso que especulamos aqui, Auschwitz como símbolo da desintegração e de um novo processo de fragmentação humana, delineia a finitude e uma

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incondicionalidade do sujeito histórico, aquele que reside num mundo sem retorno da barbárie, e está sob condições em que não há respiro, a saber: a tempestade da catástrofe, do progresso e das tragédias dos vencidos. Entre a experiência e o choque, só resta narrar das ruínas e sobre as ruínas. REFERÊNCIAS BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas, vol. I. 8. São Paulo: Brasiliense, 2012. GAGNEBIN, Jeanne Marie. “Após Auschwitz”. In: SELIGMANN-SILVA. Marcio. História, Memória Literatura: o testemunho na era das catástrofes. Campinas, São Paulo: Editora Unicamp, 2013. LAUB, Michel. Diário da queda.São Paulo: Companhia das Letras, 2011. TAVARES, Gonçalo M. Um Homem: Klaus Klump. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. .

FELICIO DIAS é graduado em Letras pela UERJ. Atualmente faz mestrado em Teoria da Literatura e Literatura Comparada na UERJ e desenvolve pesquisas sobre temáticas de literatura contemporânea, estudos culturais e tragédias históricas. | FELICIO-DIAS@HOTMAIL.COM

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MORTE ME AGUARDE MANDU HOLANDA | Itapipoca, CE.

Morte me aguarde cem anos tenho que plantar filhos fazer planos escrever รกrvores viver desenganos ter livros e muitos dias. Nรฃo morte! Me aguarde mil anos

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tenho que plantar livros fazer árvores escrever filhos viver planos ter desenganos e ainda mais dias E viver árvores, filhos, planos livros desenganos sempre

MANDU HOLANDA, Pedagogo por formação, oficial de Justiça por profissão, Músico percussionista por diversão e boêmio por vocação. Nascido em Iguatu – Ce em 1968, residente em Itapipoca – Ce. Por algum tempo foi professor na rede pública estadual e no Senac. Casado com Lene, pai de Yorrana, Gabriel e Ariadna; Avô de Maria Clara. | MANDUHOLANDA@HOTMAIL.COM

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PÁSSAROS SULINOS

MÁRCIA SBARDELOTTO | Carazinho, RS.

Pouco antes de sua morte, confessara a um cidadão local: – Tive apenas um amigo em toda minha vida! O sorriso largo e hospitaleiro na face do Sr. Hermínio não condizia com a péssima reputação difundida na cidade. Ficamos apreensivos em vizinhar com ele. Considerado uma lenda na região. Homem rude, um fora da lei. Acumulara inúmeros processos judiciais. Um currículo, talvez, “extracurricular”. Terra alheia não era adquirida, mas tomada. A força física resumia a honradez de um homem. A coragem, a incivilidade. E as conquistas amorosas acompanhariam tal conduta. Esta seria a sua filosofia de vida. Passada de geração a geração, de avô para neto. A rotina diária nos obrigava cruzar o seu caminho. Com receio, prudentemente, retribuíamos o cumprimento. Mirava-nos da varanda. Uma

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espécie de estudo sobre nosso comportamento, concluíamos. Ou uma análise preliminar sobre nossa desconfiança? Éramos estranhos invadindo seu território! Fundamentos consolidados no vazio. De nossa própria inferência! As três filhas logo se aproximaram. Altivas, traziam consigo as evidências da hereditariedade. Scarlets contemporâneas. Resumidas em diferentes facetas da alma feminina. Refugiavam-se por longas horas em nossa casa. Momentos aprazíveis que passavam sem pressa. Certamente, presenças mais expressivas que a de seu progenitor! Agora, uma figura solitária e distante. Aproxima-se com cautela. E a lenda foi esvaecendo, dissipando. Tornou-se parte de nossa realidade. O homem é fruto do meio em que vive. Não somente no que diz respeito ao Sr. Hermínio. Também a nós. Pássaros inquietos em torno do ninho. Quando o voo é suave as diferenças se desfazem. E as teorias tombam por terra! Então retorno ao zero. Lembro-me de Dona Luísa, aos olhos de uma menina de nove anos. Preparava o jardim. Cabelos castanhos, desalinhados. Presos a nuca. Olhar de anjo, sorriso fácil. Partindo deste dia, eu, minha mãe e irmã passamos a tomar o café da tarde em sua companhia. Servido pontualmente às dezesseis horas. Toalha e louças impecáveis. Mesa farta. Pães, doces, salgados. Coisa de estancieiros gaúchos, acostumados à fartura – pensávamos. Hábito dispensável aos descendentes de italianos. Apesar de sensíveis e sonhadores, éramos herdeiros de uma rígida disciplina. Oriundos da região norte do Estado, colonizada por europeus. Aventurava-nos pelo pampa. Num ritual solitário, da varanda, o Sr. Hermínio nos observava. Integrado àquele ambiente, confundia-se com a mobília. Interrompia o silêncio apenas para o cumprimento – com resquício de sotaque espanhol: – Boa noche! Recolhia-se pontualmente às dezenove horas. Logo cedo, em torno das quatro, iniciava a rotina diária. Homem de poucas palavras. Dispensava rodeios. Restringia as respostas entre sim e não. Bom ou ruim.

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Perguntava a mim mesma se era necessário um vocabulário mais detalhista? A vida não seria assim, prática? Lívia, a filha do meio, tricotava. Eu, sorrateiramente, observava o trajeto das agulhas. Em casa, com um par de varetas improvisadas, treinava a aprendizagem. Sem saber, fora minha professora de tricô. Apesar de determinada, era discreta. Beleza clássica e modo refinado. Misteriosa, usava um cordão escarlate no pescoço. Intercalado por cinco nós. Cinco desejos? Promessas cumpridas? Lembrava que o número cinco também é atribuído à estrutura feminina. Simbologia das irmandades secretas. A estrela de cinco pontas ou a rosa rugosa com cinco pétalas. Quando alguém perguntava a intenção, logo respondia brincando: – É para atrair a curiosidade dos bobos. Muitas lendas envolviam aquela família. Incluindo Dona Luísa e Flora, a primogênita. Esta disputava com Ana Laura o território de posses femininas. Meio a sedas e perfumes. A ousadia na conquista do espaço, algo vital ou secundário, deixava qualquer marmanjo “na sola do sapato”. Poucos arriscavam aproximação sem cautela. Distinta habilidade seria herança paterna? A exímia arte da diplomacia, neste caso hereditária, servia de treinamento para demais articulações periféricas. Lembrando que as palavras trabalham como a água molda a pedra. Pacientemente. A década de setenta foi próspera para todos. Meu pai decidiu construir uma casa. Astuciosamente, o Sr. Hermínio surpreendeu-nos. Ofereceu o lote ao lado do seu. A extensão do mesmo. Pretendíamos pesquisar os valores locais. Deixamos a proposta para avaliar depois. E, para nossa segunda surpresa, a oferta foi irrecusável! O terreno estava localizado num ponto nobre da cidade. Assim, sem argumentos, iniciamos a construção. Porém, havia uma exigência dos futuros vizinhos: que não houvesse cerca entre as propriedades. Nesta “comum habitação” nada lembrava a má fama de nosso, então, benfeitor. Passamos a zelar o seu nome. Apesar de estranharmos tamanha generosidade!

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A autenticidade costuma causar estranheza. Eis a origem do preconceito. E das lendas. O tempo já descascava alguns enigmas. Os anos davam forma ao meu corpo. Vivíamos interligados a esta família. Nossa cozinha era um apêndice da sua. As portas eternamente abertas. Costumávamos adentrar o espaço. Fartos pratos de batatas fritas nos aguardavam. Afeto, presentes generosos. Naquela época desconhecíamos, e desconfiávamos, da tradicional generosidade gaúcha. Uma mescla de hábitos portugueses e espanhóis. Ana Laura costumava contar: – Antigamente as famílias estancieiras escondiam tesouros nas largas paredes dos casarões. Dizem que ainda estão lá. Quem sabe não encontramos! – afirmava ela. Alguns

descendentes

da

família

permaneciam

nestas

lendárias

fazendas. As estâncias. Fomos ao aniversário de uma prima. A breve viagem, em estrada de chão, findou entre duas imensas figueiras. Ladeavam com imponência a porteira da sede. A morada, uma elegante construção do início do século. Dois pavimentos. A escola agregava o conjunto habitacional. Extensas mesas foram postas ali, de maneira que todos ficassem próximos. A festa iniciou ainda pela manhã. Muita prosa, doces, chimarrão. Dança chula. Uma valsa. O Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo. Ao ler, pareceu-me familiar! Velhos conhecidos desfilavam pelas páginas. Os castelhanos, aqueles homens rudes que costumavam saquear os aldeões. Aproximavam-se com gritos de guerra, ao estilo tribal. Vestiam calças amplas. Abrigavam o corpo com pala, dispensando enorme afeição pelos cavalos. Um perfil próximo ao do Sr. Hermínio, segundo a descrição da comunidade local. Personagens, vultos e realidade. Ana Terra, Bibiana e “suas mulheres”. Traços de uma hereditariedade, marcas de uma biografia. – Mulher pode ter a cabeça nas nuvens, mas os pés firmes na terra! – dizia Dona Luísa, lendo o horóscopo e de olho na lua. Havia verdade em seu

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olhar, sabedoria. Algo que não poderia ser reprimido. Fugira de casa para viver com seu companheiro, sem arrependimento. Queria ser livre e amada. Olhando-me nos olhos, justificava com doçura: – Não basta ser mulher, tem que ter alma feminina. Ser admirada e respeitada. Ao contrário, a luz dela se apaga! Os dias tornaram-se anos. Os anos em vivência. Tolerância e aprendizagem. Fomos assimilando aquela altivez feminina – naturalmente herdada, ou tomada, do Sr. Hermínio. Esta, necessária para o sustento de nossas aspirações. Que iriam além dali. Como aprendizes daquela “escola de pássaros”, intentávamos a prática. Traçar novas rotas. Novos voos, sem medir o pouso. Ouvindo a inquietação de eternos migrantes, decidimos partir. Percebendo nossa determinação, Sr. Hermínio lança “a última carta”. Ofereceu parte de suas terras. O que não foi suficiente para nos ater. Ele estático, em silêncio, observava-nos do portão. Dona Luísa buscou a cesta com o lanche. Abraçou-nos demoradamente. Seus olhos cresciam como espelhos úmidos. Mergulhamos neles. Mares revoltos em tempestade. Instáveis, retornamos à superfície. Queríamos ficar! Acena-nos freneticamente. Ela, um pequeno ponto, já uma lembrança. Fração de nossa trajetória. Partimos mexidos, carregando insólita bagagem. Partimos rumo ao norte, voltados para o sul. A mente e o coração, conectados, permaneciam. No pulso, uma fita escarlate. Cinco nós. – Tive apenas um amigo em toda minha vida! – ele confessara a um cidadão local. Vinte e cinco anos se passaram. Um tênue fio nos vinculou por longo tempo. Ao tempo de seus netos, dos pássaros frágeis. Alguns encontros, casamentos, formaturas. E a notícia de sua morte: – Para mim foi um pai – afirmou o meu.

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Fecho o livro. A mesa está posta para “o café das quatro”. Toalha e louças impecáveis. Mesa farta. No silêncio do extremo norte, longe do pampa fértil, ainda costumo ouvir um cumprimento: – Boa noche!

MÁRCIA SBARDELOTTO tem a escrita como hobby, além do desenho. Trabalha como designer de joias. Graduada em Artes-Habil. em Desenho e especialista em Arte-Educação, oportunidade em que trabalhou com menores carentes (monografia). Em seus textos costuma abordar temas sobre direitos humanos e maturidade. Acredita no poder transformador das palavras e da arte no meio social.

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CANTAR E GANIR MARCUS GROZA | Rio de Janeiro, RJ. a cabeca balança para dizer sim diferente é a boca que se escancara sorri como quem esconjura o medo no feitio da velha que agora escurraça

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com uma vassoura o cão na esquina ganir como esse cão cantar e ganir nas guerras perdidas em que lutamos sem esperança nem heroísmo cantar e ganir o rejunte de restos o chão marcado com algoritmos e garranchos de alguns meninos que devassam o mundo com seu cambalear perdido cantar e ganir com a fé das estátuas que se amaldiçoam entre escombros e deturpam o que Deus chamou de ternura cantar e ganir contra as piruetas ortodoxas contra a quiromancia das lojas no atacado e no varejo cantar e ganir a felação bem feita

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e o sabor das tâmaras quem vêm da Tunísia

MARCUS GROZA é palavrero e devoto do céu violado. Autor dos livros “Do Buraco à Poça” (2013) e “Sossego Abutre” (2015), ambos pela Ed. Pautá, é coeditor da revista ABATE (publicação impressa contemplada pelo PROAC-2015) e da revista eletrônica de poesia e arte Saúva: www.revistasauva.com. Atualmente, é doutorando em Artes Cênicas (Unirio). Vive entre o Rio de Janeiro e o interior de São Paulo.

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RACHADURA DA RAZÃO PEDRO IVO | Cunha, SP.

Atena nasce armada da cabeça de Zeus rachada

Razão, deusa da civilização sua capital inaugura

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com uma lancinante rachadura

PEDRO IVO (Curitiba, 1984) lê e escreve intensamente, desde a préadolescência. Passou alguns anos na USP, pesquisando e explorando diversos assuntos. Seus interesses principais tem sido Arte, Ecologia, Antropologia, Natureza e pesquisas teóricas e práticas para desvelar novos níveis de realidade e novas possibilidades de sentimento, pensamento, percepção e experiência. | POIESISPEDRO@GMAIL.COM

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A PSICOSSOMÁTICA TAYLANE CRUZ | Aracaju, SE.

Não há uma didática para morrer. Eu, que desde os dezoito anos leciono, tão pedagógica, fui pega sem aviso. Pensando bem, acho que fui avisada antes, quando, com meus aluninhos ao redor de mim, como a Branca de Neve e o Sete Anões, suas vozes estridentes ecoavam nos meus ocos: “Dá um pirulito, tia”, “Leva a gente pra o parquinho, tia”. Tia, tia, tia. Esta monossilábica vinha impregnada de medo, dores, enfermeiros, éteres. Minto. Foi aviso, não. Éramos só nós: eu, uma professorinha virginal, e elas, crianças que, ainda sendo alfabetizadas, sabiam de cor as combinações silábicas para proteger alguém. Teciam fitas pela sala de aula e gritavam muito se eu tinha dor de cabeça.

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Chorávamos juntas porque o desespero era o mesmo. Queríamos o recreio, só isso. Foi exatamente assim quando o doutor explicou: “O tratamento deve durar um ano e meio. Sejamos confiantes!”. Tive vontade de dar um soco naquele homem tão positivamente falso, esperançoso como todo bom homem, mas pus minha fé nele. Abri meu melhor sorriso, os dentes branquíssimos, resultado de um clareamento muito caro na Dra Edineide Alencar. Saí do consultório com meus trinta e quatro anos intactos, buscando um táxi, um timoneiro para me levar, uma asa-delta. Depois daquele dia não perco um capítulo da novela. Antes eu esquecia de ver o capítulo anterior e, quando voltava, acabava ficando perdida na história. Agora, não. Sento-me diante da televisão pontualmente, acompanho atenta a trama que se repete numa monotonia sem fim. Cada personagem é como um fantasma. Minha mãe fica de lado, falando que tudo vai dar certo, tem fé incondicional nas escrituras do Senhor. Outro dia trouxe as múmias da igreja dela aqui. Quase uma hora de pé com a mão de um pastor sobre minha cabeça. Estava cansada, tinha um sono que há muito não sentia, mas a força da voz daquele homem exorcizando sabe Deus o que de mim – minha doença é que não era, afinal o doutor acabara de marcar a cirurgia – me fazia ter espasmos e eu não pude sequer sentar para cochilar enquanto oravam por mim. Mamãe ficou muito chateada, achou um desrespeito minha apatia diante da fervorosa adoração: “Poderia ter dito pelo menos um aleluia, Rita. Até parece que não crê”. Glória in excélsis Deo! Hoje recebi muitas ligações. Amigas de infância, mulheres que conheci ainda sem peitos, os biquinhos por saltarem, e que me dizem, estremecendo de medo que o mesmo aconteça a elas: “Depois disso, eu sendo você, fazia mastectomia”. Ouço com paciência porque conheço o tom de medo de suas vozes, conheço a dor de ser uma

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mulher ainda jovem que acha sexo aprazível e pretende viver o tempo de uma personagem de novela. Conheço o recôndito alívio quando falam: “Você vai ficar boa loguinho!”. Por dentro berram medrosas: Ó Deus, livrai-me! Nada disso me magoa. O que me magoa é comer este frango inteirinho e roer os ossinhos. Justo eu que desde menina fui vegetariana. Uma nesga de carne, de sangue de bicho algum jamais entrou pela minha boca. Nunca fui de devorar o que pulsa e sangra. Agora este carocinho me devora, vai comendo ao redor, sei de sua intenção, este menino maldoso! Quer chegar-me ao coração, mastigar umas memórias ali secretas, chupar meu sangue como um vampiro malandro. Sei disso, seu danado. Doutor Elzeias ligou também. Muito gentil, quer salvar o mundo, o homem! Falou para eu me acalmar, relaxar, dar uma volta, um mergulho no mar. Tudo está pronto, prometeu lutar comigo. Fico meio por conta. Choro quando o medo bate às minhas portas, enxugo a cara quando preciso recolher o lixo, colocar o bule no fogo, pois sem café a casa não vive. Na carne ainda nem dói, confesso, porque o carocinho é pequeno, mas já sinto o bisturi me rasgando. Sempre fui assim: sofro por antecipação. Deem-me morfina, suplico em meus sonhos, o timoneiro sorrindo para mim. Mas acordo. Diante do espelho apalpo meu seio e ele está lá, vigilante, me acompanhando. Tento sentir raiva. Porém tenho um seio lindo, arredondado, o bico pretinho parecendo uma jabuticaba, bom de acariciar – falo só de um porque o outro é ciumento e temo que queira um carocinho como adereço também. Hoje especialmente não estou com medo. Embora vendo a mocinha de vinte anos, que fora minha aluna aos seis, passando aqui na frente e me saudando como uma amiga esporádica, tenha estremecido em lágrimas. A memória viva de nós numa roda, mãos dadas, catando a música do meu lanchinho, meu lanchinho, vou comer... Quando eu

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poderia imaginar que aquela professorinha com seus alunos em ciranda teria câncer. É como se um deles me tivesse largado a mão.

TAYLANE CRUZ é graduada em Jornalismo pela Universidade Federal de Sergipe e escritora. Natural de Aracaju, SE, em 2015, lançou seu primeiro livro de contos, “Aula de Dança e Outros Contos”. Tem textos publicados em sites e blogs literários. Apaixonada pela poesia de Adélia Prado e pelas narrativas da escritora neozelandesa Katherine Mansfield, tem verdadeira obsessão pelos temas que permeiam o cotidiano e é deles que nascem as personagens de seus contos. |TAYLANECRUZ@GMAIL.COM

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UM CARA SOLÚVEL WELLINGTON SOUZA | São Paulo, SP, Brasil

um cara sem nome endereço fixo o eu registros algum em cartório coração nem rosto tenho nesses dias embora o espelho molhado e acinzentado tente me propor o contrário

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existo na poesia que leio e nas trêmulas linhas que me jorram do pulso à parede branca e descascada nas pegadas que deixo no concreto no abstrato “isso, um anônimo nada mais que a fumaça que escapa do cigarro que ela pendura entre as unhas negras no [parapeito e não sacia, nem por segundos seu peito e endurece os mamilos “isso, um solúvel em vento

WELLINGTON SOUZA cresceu e vive em São Paulo. Escreve poemas e contos que lhe renderam participação em antologias de concursos literários e publicações em revistas on-line.Desde 2010, se dedica à edição da revista literária Benfazeja e do site Concursos Literários.net.br, projetos que culminaram na editora Benfazeja (2015). Autor do livro de poemas O Monstro e Seus Vazios. | WELLSOUZA84@OUTLOOK.COM

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PARCEIROS:

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Edição e Revisão: Morgana Rech e Tânia Ardito

Recepção de originais: CONTATO.SUBVERSA@GMAIL.COM

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