Revista Subversa vol 4 nº3 fev 2016

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SUBVERSA Vol. 4 | n.º 03 | fevereiro de 2016 | ISSN 2359-5817

Fotografia | VINICIUS NAKANDKARI

ANDRÉ LUIZ LADEIA | GABRIEL ATAÍDE DE LIMA | MAIRA MOURA | SARA TRIGO NAYARA MOREIRA | ELLEN MARIA VASCONCELLOS ANDERSON FREIXO | LUCAS HAAS CORDEIRO MAURICIO BORBA FILHO | PEDRO IVO


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Subversa | literatura luso-brasileira | V. 4 | n.º 03

© originalmente publicado em 15 de fevereiro de 2016 sob o título de Subversa ©

Edição e Revisão: Morgana Rech e Tânia Ardito

Ilustrações

VINICIUS NAKANDAKARI| FLICKR | FACEBOOK | SEUBOI@GMAIL.COM

Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados como autores desta obra. Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos textos ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem com a realida

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SUBVERSA ANDERSON FREIXO |ASSIM É SEMPRE, TIRANDO AGORA| 6 ANDRÉ LUIZ LADEIA | LAVOISIER ÀS AVESSAS | 8 ELLEN MARIA VASCONCELLOS | LISTA DE PRESENÇAS | 10 GABRIEL ATAÍDE DE LIMA | JULIEN| 13 LUCAS HAAS CORDEIRO | AB-SINTO | 15 MAIRA MOURA | CRIMES PARA MOÇAS SOLTEIRAS| 21 MAURICIO BORBA FILHO | LISBOA050715 | 29 NAYARA MOREIRA | FICÇÃO CIENTÍFICA | 31 PEDRO IVO | O ENCONTRO DA FUGA OU A FUGA DO ENCONTRO | 33 SARA TRIGO | O VOO DA ANDORINHA | 35 SOBRE VINICIUS NAKANDAKARI | 43

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EDITORIAL

Dizem que, no Brasil, o ano só começa depois do Carnaval. Que até aí as coisas não engrenaram ainda. Que as empresas estão funcionando a meio gás. Que a beira da praia está com todo o gás do mundo reunido embaixo de guarda-sóis e corpos molhados. Dizem que, em Portugal, ainda não se definiu se é feriado ou não. Que os portugueses querem ter direito a descansar. Que estão fartos de falar em crise. Que ainda não decidiram se é certo ou errado falar um pouco de prazer. Dizem que existe uma única voz para um povo. Que todos falam por um, um fala por todos porque é fácil, assim, classificar. Dizem, por outro lado, que cada ser é independente e que não existe nem o brasileiro e nem o português. Dizem que as pessoas gostam de lutar e trabalhar por causas justas, embora digam também que o individualismo vai acabar com a humanidade. Dizem que a literatura é muito importante, o difícil é ter tempo para ler. Dizem que o mais importante é saber exatamente o que se quer dizer, ainda que não se diga explicitamente e se acabe dizendo outra coisa. Dizem que é esse o ofício do escritor. Dizem que é disso que se trata essa revista. Dizem.

As editoras

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SUBVERSA # 1 – Versão Impressa | Volume 1 (2014) Adquira e apoie o crescimento da revista. 5


ASSIM É SEMPRE, TIRANDO AGORA ANDERSON FREIXO | Salvador, BA. A noite cai mais desastrosa que o viaduto que caía como uma tarde que cai como um viaduto. Seriam necessários uns cinco ou seis suicídios pra sanar toda essa dor. E eu me sei capaz de domesticar os meus demônios, ao ponto de mandar que sentem, que rolem, que finjam de morto. O problema é o amanhã. Os demônios desordenados do meu dia de amanhã. Domar demônios cansa. Sinto ódio, rancor, desdém, agora; mas antes era apenas eu, o mundo, e entre nós um atrito, que fazia um ruído, leve como o medo que se tem de aranhas. Sim, e eu era bom. Eu quase consigo lembrar que sorria. Ai!, o que a vida fez de mim? Ai!, e o mal que ela ainda me fará... Queria dormir mil anos; antes que acabem todos os meus cigarros. Queria dormir todos os anos, antes que

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acabem essas mil cascas, mil máscaras, mil fantasias. Ou então ter mil anos pra pensar e fazer fazer sentido essa existência pobre de vida. A noite cai em cima de mim, quase quebra meus ossos. O peso dos anos se soma por sobre minha coluna. A boca é seca, os olhos enxergam, mas é como se não vissem. Aos ouvidos me chega o sussurro dos fantasmas daqueles que passaram por mim e se foram, e são tantos, sussurrando tanta coisa ao mesmo tempo que vira um grito. O mais triste no viver é esse grito polifônico dos fantasmas daqueles que o tempo arrastou pra longe, pra trás. O tempo é um mar que tudo afoga: as dores, as raivas, os amores, e o que nos importa; e aqueles por quem sofro serão, dentro em breve, apenas corpos frios, anônimos, estirados na lanterna dos afogados. Assim é sempre, tirando agora, pois o tempo não passa e a noite não morre e as pessoas estão lá. Eu quero o câncer, a faca, a raiva, a festa, a farra, o sangue, os cacos, mas disso o que tenho é só a raiva. Na solidão dos generais de Gabo. No silêncio cansado da noite. No vazio obstinado da vida.

ANDERSON SOARES FREIXO é carioca, tem 25 anos e reside atualmente em Salvador, onde estuda Letras. Já teve contos publicados por outrass revistas, como Mallarmargens, Samizdat e Desenredos. Atualmente publica seus textos no blog zonadofreixo.blogspot.com e em sua página do Facebook (Zona do Freixo). | ANDERSON.FREIXO@GMAIL.COM

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LAVOISIER ÀS AVESSAS ANDRÉ LUIZ LADEIA | Rio de Janeiro, RJ.

Quando eu morrer, Façam como as tribos indígenas: Lancem meu corpo ao mar. As flechas tesas Retilíneas Apontarão para

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O céu oco E a natureza Cuidará do resto.

ANDRÉ LUIZ COSME LADEIA é poeta e procurador municipal. Autor de Suave como a morte (Penalux,2014) e Alçapão (Oito e Meio, 2015, no prelo). | ALCLADEIA@HOTMAIL.COM

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LISTA DE PRESENÇAS ELLEN MARIA | São Paulo, SP.

Desprender da leveza do gozo matutino recebido carinhosamente por ele tão fluido quanto o peso do suor tenso

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que escorre em certas noites nas ruas com medo do outro Despedir da lágrima de saudade de quem nunca pertenceu e esperar que a saliva preencha o vazio da fome (ainda não é hora de correr nem comer) Habitar a nuvem que dissipa e se condensa proporcionalmente à quantidade de água acumulada Ser setenta por cento líquido e outros trinta por cento carne encharcada secando ao sol Reconhecer a alteridade e o caos na composição que há em cada gota

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milenar do corpo e desistir de todo e qualquer preconceito já que eu também sou você.

ELLEN MARIA, natural de Santos, foi morar em São Paulo quando entrou no curso de letras na USP. Publicou entre 2007 e 2015 em dez antologias de poemas, no Brasil, Chile e Espanha. Tem poemas publicados em diversas revistas digitais e impressas no Brasil e no México. Entrou no mestrado em 2013 em literatura hispano-americana contemporânea. É tradutora do premiado livro Ângulo de guinada, do autor estadunidense Ben Lerner, publicado pela egaláxia, e de diversos autores latino-americanos para revistas digitais. Publicou seu livro Chacharitas & gambuzinos em edição bilíngue (português e espanhol) pela Editora Patuá em 2015. Trabalha com revisão e tradução de textos (atualmente busca mais freelas). Acredita em fantasmas e desconfia dos vivos. Enxerga muito bem e, às vezes, fecha os olhos. Não tem o coração de pedra. | ELLEN.MARTINS@HOTMAIL.COM

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JULIEN GABRIEL ATAÍDE DE LIMA | Adamantina, SP.

O Sentido da vida é que ela termina. Franz Kafka

Julien o pequeno, o inconformado. Sentado diante da janela do seu quarto, Julien o tímido, o solitário, escreve sonetos em alemão. Depois, com ousadia de imigrante (julien o grande é judeu) passa a compor um romance. Julien o cristão, Julien o conformado. Ouve o sermão dentro da igreja. Sente-se cheio de

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pecado. Vontade imensa de se matar. Re-pensa um pouco. Pensa (como todos os sábios) em alemão: a vida é muito complicada. Julien o árabe, Julien sabe quatro idiomas. Vive dizendo que um dia aprenderá a língua dos anjos, só para traduzir (do original) o livro da vida. Julien o desesperado, o hipócrita. Já roubou, já mentiu, já traiu, se arrependeu. Em verdade foi humano, mesmo não sabendo o que isso significa. Julien o casado, passa a se masturbar menos e a transar mais. Se sente bem, trabalha, reclama, contradiz tudo, questiona a vida, escreve, ganha dinheiro, se masturba, fuma, bebe, ama, chora, volta pra casa a partir das seis, ora todas as orações possíveis e impossíveis, ouve ópera, odeia ópera, tem filhos, a vida segue. Julien lê filosofia, lê Freud, e lê bíblia. Julien o aventureiro, o perseguido. De frente da janela do seu quarto, Julien, doze anos de idade nada sabe da vida que terá. Pensa na morte. Julien sonha...!

G.A. LIMA (GABRIEL DE ATAÍDE LIMA) é poeta, contista e dramaturgo. Seus poemas já foram publicados nas revistas eletrônicas Mallamargens e Raimundo. Seus poemas dialogam com o erotismo do amor e com figuras da natureza, além de questionar a ordem da escrita na língua portuguesa com poemas experimentais. Já os seus contos se expressam em um nível mais experimental e menos complexo da linguagem. O trabalho pode ser acompanhado através do site http://gabrielk-poetamarginal.blogspot.com.br/

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AB-SINTO LUCAS HAAS CORDEIRO | Curitiba, PR. Tudo começou quando ele, discretamente, fê-la entrever o presente de aniversário. Thiago escolhera um batom morange, cor preferida de Adelita. Na confusão do colégio, era difícil acariciá-la. Mas ele fez questão que ela abrisse o presente na mesma hora. Assim o fez. Rotacionou o tubo e viu eclodir uma pequena glande, perfeita, maculada de veias. O morange tornava o obsceno algo de singelo e infantil. Ela não sabia que existiam batons eróticos. No ápice dos quinze anos, com a sensualidade deslumbrante derretendo os homens, ainda que simples demais para tocá-los, Adelita Picardi entendeu, pela primeira vez em consciência, de que se tratava o orgasmo. Thiago Torres viu em seus olhos a malícia condensada com o pudor, e teve certeza de que a virgindade era apenas questão de tempo.

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Conversaram muito sobre tudo isso. Thiago se impressionou com as ideias de Adelita, e em alguns momentos ficaram em dúvida se a compatibilidade era efetivamente real. Pensavam do mesmo modo, ainda que nunca houvessem parado para considerar as implicações da virgindade, tampouco o significado de sua perda, por mais que aliviassem a questão com fetiches pincelados de cores fortes, um castanho mais potente do que os olhos de Ganesha. Adelita adorava os deuses hindus. Em seu íntimo, imaginava ser o ratinho que acompanha as imagens de Ganesha, ou o colar que se deita no pescoço de Shiva. Três dias depois, a 5 de outubro do pinhão de 2013, um sábado igual aos outros, Adelita se encontrou com Thiago na casa de um amigo em comum. Era um apartamento no Cajuru, bem arrumado, com velas preparadas para as núpcias, cintilantes sobre a base de parafina roxo-escuro, um vinho ao canto da mesa da sala (caso eles quisessem derreter na boca um pouco de prazer) e pequenos detalhes que impressionaram a jovem garota – pétalas de rosa na cama, um guarda-roupas com espelho de corpo inteiro, um copo de absinto e uma jarra borbulhante de água gaseificada coberta com um lencinho transparente. Era melhor do que os sonhos que jamais tivera. Adelita estava mais bonita do que nunca. Pelo corpo moreno descia um vestido de flores até os pés, guarnecidos por um par de sandálias marrom. No ventre, um cinto ajustado pouco abaixo dos seios. Um brinco de flores calçava as orelhas, e os cabelos iam suspensos por uma presilha dourada. Estava envolta por um perfume de rosas que ornava perfeitamente com o batom vermelho, o mesmo morange através do qual a glande adocicada deslizava sobre os beiços como o pênis de Thiago. Vejam bem, ainda que virgens, jamais foram inocentes.

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Thiago Torres era dois anos mais velho. Estava em crise. Não podendo viajar para o exterior à semelhança dos amigos, ficava em Curitiba, o ano voando enquanto postergava cada vez mais a escolha da carreira, e o inevitável X na lista de opções para o vestibular da UFPR. Os pais não largavam de seu pé. Ouvia todo dia um sermão piedoso sobre o futuro de um homem sem canudo, e acreditava com todas as forças que sem diploma a vida certamente acabaria. Adelita Picardi, por sua vez, tinha na medicina a carreira de seus sonhos. Thiago, nesse ponto, como em tantos outros, a invejava. Sua delicadeza era mais flagrante que a de Adelita. Os olhos caramelo tinham ainda na pupila o brilho imbecil da singeleza. Os dedos imaculados não sabiam distinguir a astúcia da entrega. Repete-se – não que fosse inocente. A linha de seu caráter é branda e robusta, viril e feminina; nele estão o céu e o inferno; mas nenhum deles, até aqui, havia entendido algo a mais sobre o mundo real. Fica mais fácil aludir às ações. Durante a manhã de 5 de outubro, ele e o melhor amigo tinham preparado a casa com todos os detalhes, ocultando um pequeno segredo. Ele quase não falava, de tão ansioso. O segredo revelava o cerne de seu psiquismo, ali onde o caráter se mescla com o desconhecimento completo, e a sequência de suas ações provava sua verdadeira identidade. Encontraram-se na Rua XV às quatro e meia da tarde. Pegaram um táxi e aguardaram de mãos dadas o trajeto inteiro. A frieza os dominava. Mas no elevador ela o beijou, e o beijo tornou-se um abraço, e os ombros se tocaram, e os pulmões se reconheceram, e por fim ele a ergueu pelas coxas, subindo nas paredes. O quarto andar demorou-se. O corredor era lustroso; um pequeno abajur vibrava na mesa de canto. Mistura de filme de terror, suspense e romance.

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A luz era soturna e a janela cuspia um vento gelado, de modo que tudo que fosse leve sambava com as sombras da tarde. > Então esta é a casa do Edilson?, ela suspirou, enquanto ele se perdia com as chaves. < É! Simpática, não é mesmo? A consciência é um gigantesco pergaminho. Adelita se lembrou, de relance, do antigo, do primeiro namorado, que uma vez lhe contara que os pergaminhos vêm do Egito. Foi aquele tipo de momento que é a pedra à boca do poço das lembranças. Mas eles eram jovens demais para acreditar nessa baboseira de que a consciência se escande. Queriam uma luz maior que a luz, um sol mais bonito que o sol, e não percebiam que tudo, o tempo todo, estava ao alcance de seus olhos. Bastava um gesto de vontade, um mínimo esforço. Mas não, a queda lhes atraía mais do que qualquer outra coisa. Nem mesmo a pureza seria rompida sem concessão ao diabolismo. O mesmo ex-namorado lhe havia dito que existe uma palavra chamada proódos, que significa processão, e é uma espécie de saída da unidade primordial para a multiplicidade do mundo sensível. Ela não sabia o que era processão, não fazia ideia do sentido de unidade primordial e multiplicidade do mundo sensível, mas a oração era tão coerente que volta e meia retornava através da memória, como uma pedra amarrada em uma corda, que é também uma sonda, alcançando as profundezas do abismo que se chama inconsciência, e retornando, de quando em quando, às mãos de seu dono, onde se faz ver novamente. O dono às vezes esquece o que é uma pedra. No entanto, ela continua a existir. > A consciência é uma mísera migalha,

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Adelita

sussurrou,

sem

perceber

que

Thiago

havia

desaparecido. Ela fechou a porta atrás de si com um leve ruído. Do quarto veio um som suave, um tango argentino com ritmo eletrônico. Seu namorado já vinha gingando com um grande copo de absinto nas mãos. Ofereceu-lhe um gole, e ela de bom grado aceitou. Porém, não bebeu mais que uma mísera gota; aquilo ardia em sua garganta, e ela teve medo de não saber o que estava fazendo. Jamais sentira um sabor tão intenso. Exatamente por isso, forçou a entrada do absinto, contendo a sensação de que iria vomitar. Uma vez, um primo lhe dissera que somente os corajosos são capazes de engolir um pedaço de carvão em brasa, e ela decidiu que seria corajosa, mas ao tocá-lo em seus lábios a tarefa se mostrou impossível. Na boca surgiram bolhas. A mãe perguntou o que tinha acontecido, e ela respondeu com um filete de vontade murcha, na tentativa de esconder a culpa do adorado priminho: > Fiquei fraca, mãe, e não consegui engolir um pedacinho de carvão. Tinha seis anos na época, e não entendeu por que é que, mesmo assim, o primo nunca mais voltara à casa de campo. Sua mãe, Giovana Picardi, pintora de renome, uma vez fez um desenho, um minúsculo rabisco de uma garota com a boca ardendo em chamas. Em seus dedos, um pedaço de carvão muito negro com as bordas acinzentadas e o miolo incandescente. Adelita, naquele dia, se sentiu lisonjeada. E assim se sentia, às cinco e meia da tarde do dia 5 de outubro do pinhão de 2013. Thiago Torres dançava, no fundo um alucinado

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desconhecido, mas Adelita não gostaria de perder a chance única de fundir seu corpo em outro. Foi entrando na dança, e ainda com medo percebeu que a cabeça se embaralhava de ideias. Tentou se apoiar no namorado, que lhe ofereceu um copo d’água, mas já era tarde demais. Ela caiu no tapete e rasgou o canto da boquinha. Thiago sorriu. Deixou o copo de lado, e cumpriu a tarefa que lhe cabia. Carregando-a nos braços, foi logo removendo as sandálias, o cinto e o vestido. Deitou a namorada na cama de rendas com pétalas bonitas, e admirou o seu corpo enquanto a música se desmanchava na escuridão de um dia que já se ia findando. Teve a escuridão em seus olhos antes mesmo de ser feliz finalmente. Tirou primeiro o sutiã, depois a calcinha, e consumiu o ato em poucos instantes. O sangue que escorreu na cama ele limpou com um pano úmido e uma barra de sabão de coco. Enquanto contemplava o corpo moreno da menina amada, os olhos piscavam de excitação, e como nada se interpunha entre a vontade e a espera, fez sexo com ela novamente, agora no chão, deixando-se deitar por alguns instantes no tapete felpudo. Depois, tirou o som ambiente, deitou-se na cama, e esperou até que Adelita acordasse. Eram quase sete horas quando ela abriu os olhos, ainda no chão, sentindo o sexo a pulsar pela primeira vez. Desperta, com os dedos, teve um orgasmo. Thiago apenas dormia.

LUCAS HAAS CORDEIRO é curitibaníssimo. Em 2007, lançou seu primeiro livro, Sussurro & Codeína, poesia cáustica e mordaz. Em 2015 saiu o seu primeiro romance, Seis Vozes para a Fuga, resultado de um experimentalismo de forma conteúdo, calcado especialmente na literatura combinatória. Trabalha como revisor de livros e artigos científicos, tradutor e professor de línguas. | LUC.CORDEIRO@GMAIL.COM

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CRIMES PARA MOÇAS SOLTEIRAS MAIRA MOURA | Rio de Janeiro, RJ.

Para as meninas do baile municipal, as pérolas de Gertrudes eram máximas por si só, cada uma contendo uma verdade sobre ser mulher. Porque eram três apenas, separadas por lentilhas de ouro, e todas sabem que das três, uma: mulher, mãe ou amante. A maioria se esquivava para o papel lascivo de amante, escrevendo cartas de amor como as de Nora Barnacle para qualquer sujeito que tivesse a decência de comprar um par de anéis. Poucas e, na minha opinião, as mais sinceras, são as que querem ser mães, sonhando com mamas inchadas e lactantes, a barriga obscena e todas essas transformações

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grotescas. E por fim, há ainda quem queira lidar com as inconveniências de ser mulher, datilografando com tantos dedos quanto têm os homens e recebendo menos que eles pelo mesmo trabalho. Dona Gertrudes tinha bastante interesse pelo número três. Diz-se que tem três talentos: a poesia idílica, o oboé e bolos de cenoura. Diz-se que é muito religiosa e tem gosto pela Santa Trindade. Diz-se que sonhou com três anjos quando era criança. Mas as meninas no salão desprezam rumores quando (e somente quando) podem vislumbrar a lamparina da verdade, que nem sempre é tão atraente quanto o rumor puro mas, ainda assim, interessa. Ninguém sabe ao certo porque a verdade interessa quando os rumores a substituem com tanta eficácia, mas ela nos traga, quando tem a oportunidade, como um ralo por baixo de uma onda. Vamos aos fatos. – Diga-nos a sua história, dona Gertrudes, estávamos olhando o seu colar e o achamos irresistível. – O que há de irresistível em um grão sujo de areia petrificado nas entranhas gosmentas de um molusco? Elas se entreolharam. Luísa, uma das mais inteligentes, disse: – O fabricante! – Isso mesmo, onde comprou o colar? – Não, quem deu a ela! Pergunte quem deu a ela! – Dona Gertrudes, gostaríamos de saber quem foi o senhor galante que te deu esse colar. –

Se

fosse

depender

de

senhores

galantes,

talvez

eu

nunca teria entrado na Charlessy e assinado um cheque por essa pequena peça para mim. Nesse momento, o noivo de Luísa apareceu e a levou embora. Não estava disposta a largar a conversa, ainda mais naquela altura, por nada. Nada, a não ser Eduardo. Eduardo, de olhos grandes e bigode loiro. Gostava de beijar com facas. Tinha um canivete com cabo de losangos em marchetaria e

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uma lâmina tão afiada que poderia cortar uma folha de papel pela lateral. Transparente a ponto de fazer borrar sangue com o mínimo toque, que Luísa infligia cuidadosamente sobre o seu flanco. Ela o beijava e cortava, com o maior zelo para não ultrapassar as dermes. Cortava e beijava, até ele gritar ou pedir “está bom, amor”, ou morder seu beiço como aconteceu uma vez. A verdade é que mais agradava a Eduardo ver o sangue escorrer do que sentir a dor. É uma paixão essencialmente visual, a dos homens. Os primeiros volumes de Sade que Eduardo leu eram ilustrados. Também não se pode dizer que as cicatrizes o repugnavam. Pelo contrário, ter um corpo marcado por sutis riscos cor de rosa eram uma evidência viril. Estava receoso de pedir a Luísa que oferecesse o colo, um trecho entre duas costelas talvez, para descobrir a cor do sangue de uma mulher – e a velocidade com que escorre até a virilha. Talvez fosse melhor pedir depois do casamento. Luísa, quem achava que beijar com facas era uma prática de confiança cega e (sobretudo) amor irreversível, queria um vestido de noiva excepcionalmente branco e um véu tão turvo que fizesse seu rosto sumir (ou surgir com a sutileza de uma aparição fantasma). Sua irmã discordava: – Por que sumir no dia em que todos querem te ver? – Para que se sintam mal de não estar casando comigo, porque só Eduardo vai me ver quando levantar o véu. Isabel, a irmã mais velha, tinha crianças correndo ao seu redor. Era curioso como estava tão perto de Luísa, dividindo o canapé da sala, e apenas ao seu redor as crianças corriam. Elas rodeavam a mãe e pulavam com uma perna só ou ambas as mãos, descobrindo novas propriedades acústicas. – Você ouviu o que mais a dona Gertrudes contou naquele dia? – Gertrudes? Fique longe daquela mulher! Você sabia que ela fez três abortos?

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– O quê! Ela contou isso? – Mas é claro que não, que mulher assumiria três infanticídios? Nenhuma das duas havia conhecido um assassino antes, por isso era difícil reconhecer em Gertrudes o traço definitivo do gênero. Pouco se sabia sobre ela, aliás. Era rica e viúva, não teve filhos e atende à missa dominical com a mesma regularidade que o padre. Imaginemos, portanto, que sua relação com Deus é baseada em culpa e purgação. Enquanto Isabel e Luísa conversavam, três fetos mortos ocupavam vidros de geleia, na prateleira de algum laboratório de ciências para que as pessoas vejam e digam “A vida... ”! Para Bárbara, a irmã mais nova de Luísa, fetos são crimes imperdoáveis. “Diga não aos fetos”! Trabalhava como costureira em

uma sala com

mesas longas

enfileiradas e uma máquina singer para cada mulher, muito parecido com cadernos e moças na escola. – Como você está, maninha? O vestido está pronto? – Vou fazer a primeira prova amanhã! Vem comigo? – Não posso, tenho o trabalho. – Mas eu ainda não disse a que horas. – Tenho que dar um jeito na casa também. Sinto muito. Bárbara tinha dores na coluna por ter que olhar a irmã no rosto. – O que dona Gertrudes disse naquele dia, afinal? – Não me venha falar dessa mulher. Você sabia que ela comprou três vestidos ontem na Lavette? Não acha estranho ela ter tanto dinheiro? – Você acha que ela rouba? Bárbara olhou para os lados. Estavam em um café movimentado onde as mulheres entravam e saiam arrastadas por seus maridos ou pais ou filhos. As duas só estavam ali porque Eduardo teve a bondade de levá-las – ele lia o jornal quase como se entocado em um abrigo de papel, alheio ao que as mulheres conversavam.

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– Vitória me contou – Bárbara estava sussurrando – que uma caneta de prata sumiu de sua casa logo depois que Gertrudes foi visitála. – Não! – Sim. A caneta estava no gabinete do Leonardo... – No gabinete? – Sim. – Mas como ela entrou lá? – Bem, isso ninguém sabe. Ninguém sabe como Luísa e Eduardo passaram de amantes táteis para casal moderado, com a nova mania de entrar nos saraus andando lado a lado e, em certo ponto do hall, se dispersar, ela para a esquerda, ele para a direita. O vestido havia sido um dos mais lindos e mais brancos que já se viu na Igreja de Nossa Senhora Imaculada, e ninguém pôde ver se sorria ou chorava porque o véu sobre seu rosto funcionava como névoa em picos e sonhos. Bárbara e Isabel estavam na nova sala de estar da irmã, que havia acabado de se mudar. Uma falava sobre o castigo elaborado do filho, que andava levando sapos para dentro de casa. A outra lamentava o desemprego e o fato de negros sufragistas estarem a frente das mulheres. – E o que é isso aí, Luísa? – Onde? – No seu ombro, se cortou? – Sim, minha unha estava grande demais quando me cocei. No intervalo do concerto, Luísa procurou a varanda e encontrou Gertrudes empinando uma cigarrilha. As duas se cumprimentaram e falaram sobre o espetáculo em termos abstratos. Luísa estava nervosa, Gertrudes notou, tamborilando o balcão e olhando para todos os lados.

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– Há algum problema? Quer me dizer alguma coisa? – É verdade que você foi casada três vezes e matou todos os seus maridos? Antes

de

responder,

levou

o

cigarro

à

boca

e

tragou

demoradamente. – E como você acha que eu teria feito isso? – Bolos de cenoura envenenados. Se tivesse a chance, Luísa misturaria farinho, ovos, leite em sua bacia de paisagens pastoris, untado a forma com manteiga fresca e acendendo o fogo com um fósforo comprido. Como foi que bruxa de Hansel e Gretel fez aquela casa-confeitaria tão bonita? Não foi com mãos femininas? E certa frieza. – Em quanto tempo eles morrem? O que devo dizer aos médicos? – Deve desejar muito que seu marido morra. Mas se não conseguisse a receita, ela já havia estudado, secretamente, e descoberto os pontos mortais do pescoço. Induziria um banho à dois na banheira (onde teria menos trabalho com a limpeza a seguir) e quando fossem beijar com facas – hábito detestável e maníaco com o qual era obrigada a conviver –, tatearia com a ponta da lâmina em busca da carótida ou da jugular. Estava determinada a encontrar uma das duas, pelo menos ela era boa em achar tesouros anatômicos, enquanto ainda custava tanto a ele encontrar a graça nela. – Sou plenamente dedicada a meu marido, dona Gertrudes. E, acredito, ele também deveria ser a mim. Mas tenho descoberto cheiros impressos em sua camisa, e bilhetes e fios compridos de cabelo. Sabe, uma mulher reconhece a outra porque temos muito em comum. É pelo perfume, pela caligrafia, pelo cabelo que nos identificamos e nunca podemos ser confundidas com homens. Por favor, dona Gertrudes, divida comigo seus segredos. Aposto que reconhece em mim a sua

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aflição de outros tempos. Talvez a mesma aflição e tormento de seus jovens anos, com seu primeiro marido. – Acredito que seja plenamente dedicada a ser esposa. Talvez eu também conhecesse esse sentimento se fosse apenas um tipo de mulher. Mas, antes de qualquer coisa, escute: vim para essa cidade há apenas seis meses e optei pela discrição, que me é natural. Sabia que as

moças

iam

comentar e

fabular,

vocês

têm

extraordinárias

imaginações que desperdiçam em fuxico. Mas não previ que fossem tão mórbidas. A verdade é que meu único marido teve um fim terrível em uma colisão de vagões, e, acredite, não fui eu a feiticeira que conduziu o trem à distância. Não me casei outra vez, já que estava livre da obrigação. Mas voltei minhas energias para as vinícolas da família, que mamãe e eu assumimos após a morte de papai. Ele estava falindo o negócio e foi bom que morresse antes de fazê-lo, porque elas rendem uma boa fortuna agora. Hoje não tenho mais mamãe, também já estou muito senhora, mas confio na administração dos meus filhos, que tive que deixar a fim de vir à capital – estava principalmente interessada em ver as obras da coleção Ribalta e os espetáculos aqui. Me encantei, particularmente, pela ária da boneca, e você? Por um momento, Luísa elaborou uma imagem de suicídio, onde subiria em um balaústre e se jogaria contra a calçada, antes que o rosto pudesse inflamar-se de vergonha. Mas, então, já estava vermelha, procurando um jeito de reparar o irreparável. A senhora ainda disse, antes de sair, que não se preocupasse, já havia esquecido aquela conversa. Deixou cinzas sobre o balcão, que ela tocou com dedos molhados. Passou por todos os desejos de morte (dele, dela) até descobrir, poucos dias depois, que estava grávida. Então seu mundo passou a orbitar outro Sol, e a maneira como as coisas mudaram tão rápido beirava o cômico. Ele, que agora via em seu corpo um santuário de sua

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própria responsabilidade, guardou o canivete (ou, o restringiu às prostitutas do largo, que também liam Sade). Os dois não eram, e nem seriam outra vez, apaixonados um pelo outro como já haviam sido. Mas tinham agora o mesmo objeto de paixão e isso os uniu de certa forma.

MAIRA M. MOURA mora no Rio de Janeiro, onde cursa Letras (Inglês) na UERJ, além de ser formada em Letras (Português) pela UFRJ. É autora do livro O jardim animado (ed. Multifoco), onde reúne contos fantásticos. | MAIRAMOURA@ICLOUD.COM

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LISBOA 050715 MAURICIO BORBA FILHO | Belém, PA.

na pequena manhã sentes a antiga paixão atravessar o silêncio como um touro – na pequena manhã, feitiço -

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uma manada terrível te apavora, te leva aos olhos de casas antigas onde não há nada a se fazer, além de vestir-se o fogo. chegado à calada das águas vês o tejo afogar o teu tesouro – é tarde, feitiço: não há nada possível contra o passado, contra a coisa e o seu próprio peso.

MAURICIO BORBA FILHO, advogado, nascido em Belém, 1992. Seu primeiro livro, "modos", ficou em terceiro lugar no Prêmio de Poesia Belém do Grão Pará, edição 2014. | MAURICIOBORBA132@HOTMAIL.COM

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FICÇÃO CIENTÍFICA NAYARA MOREIRA | São Paulo, SP.

Chuva de verão santa imaculada baixa nas casas perecíveis de tantos melhores que você e eu A pele se esfrega nos móveis já brilhantes de adeus e água que tomba do céu, tomba dos olhos Embaixo de chuva, mulheres de todas as idades ainda! sonham com Chico Buarque, mesmo que as nuvens cinzas em

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nada! combinem com os olhos verdes Abraços menos ariscos acontecem quando meu corpo fica assim molhado de trovoadas, de lágrimas, de raios Pouco acontece em tardes chuvosas dominicais. Nenhum sopro, além do frescor que vem da curva da rua e afunda em minhas costas Ninguém nota a contradição entre o dilúvio do momento e a secura destes versos Estarei um dia livre da acidez da cidade e destas descrenças sem vida?

NAYARA MOREIRA nasceu em São Paulo, em 18 de maio de 1987. É formada em Letras pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Trabalha como professora de língua portuguesa e editora. Foi uma das vencedoras do Prêmio Off Flip de Literatura 2015, com conto que será publicado em coletânea em 2016. | NAYARAMOREIRAF@GMAIL.COM

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O ENCONTRO DA FUGA OU A FUGA DO ENCONTRO PEDRO IVO | Cunha, SP.

estamos sempre a procura de algo, embora n達o saibamos o que procuramos.

estamos sempre a fugir de algo, embora n達o saibamos do que fugimos.

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e nunca nos perguntamos, se não estamos fugindo daquilo mesmo que procuramos,

e se aquilo que procuramos, já não nos encontrou.

PEDRO IVO (Curitiba, 1984) lê e escreve intensamente, desde a pré-adolescência. Passou alguns anos na USP, pesquisando e explorando diversos assuntos. Seus interesses principais tem sido Arte, Ecologia, Antropologia, Natureza e pesquisas teóricas e práticas para desvelar novos níveis de realidade e novas possibilidades de sentimento, pensamento, percepção e experiência. | POIESISPEDRO@GMAIL.COM

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O VOO DA ANDORINHA SARA TRIGO | Porto, Portugal Titi era uma linda andorinha de penas azul petróleo, com uma

mancha

dourada

mesmo

abaixo

do

bico.

Cantava

ininterruptamente ao saltitar por entre as pedras soltas na terra do jardim, junto às árvores, reunindo, de vez em quando, alguns outros pássaros

de

espécies

diferentes,

cujas

melodias

afinadas

acompanhavam o seu canto, numa alegre sinfonia estival. Ainda não sabia voar. Mentira. Durante o voo, ao lançar-se para caçar uma suculenta minhoca cor de tijolo, fora atingida por um seixo

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catapultado por uma fisga de um menino, que a atirara contra o galho de uma árvore. Magoara a asa esquerda e… ganhara um medo inultrapassável de voltar a voar. - Anda lá – insistia Rock, o pardal. – Tens de tentar, não podes deixar o medo vencer-te. - Esquece – respondia ela. – Consigo fazer de que preciso sem ter de voar. - E quando vier o frio novamente? – Perguntava Sir, o corvo, dono de uma sapiência invulgar e que se comportava como o avô de todos os animais do parque. – Aqui não sobrevives. - Apanho boleia – dizia Titi distraidamente, querendo ter de preocupar-se com os problemas apenas quando eles de facto surgissem. Aquela insegurança assustava-a e preocupava-a. Sabia que mais tarde ou mais cedo seria confrontada com o momento de emigrar e teria de arranjar uma solução. Amanhã começaria a reaprender a voar. Hoje iria aproveitar a vida tranquila e saltitar pela relva verde e fresca até serem horas de recolher ao ninho, sem ser obrigada a ver à sua frente

o

dia

em

que

teria

de

despedir-se

dos

seus

amigos.

Provavelmente para sempre. Um movimento intenso acompanhado de um forte barulho do bater de asas distraiu-a. Olhou para cima, não querendo acreditar no que via. Era a gaivota Lila. Titi começou a andar para trás, querendo passar despercebida e esconder-se até que Lila se fosse embora. - Hey, que se passa? – Rock aproximara-se dela sem que tivesse dado conta. - Shiu! – Atirou Titi. – Tenho de me esconder. Ela não pode saber que estou aqui. - Ela quem? - Aquela gaivota.

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- Oh, é uma castiça, não tenhas medo. Não faz mal nenhum e faz-nos rir. Anda, vou apresentar-vos. - Não! – guinchou Titi, alto demais. Em dois segundos, Lila aterrou diante de si. - Minha querida, como estás? – Envolveu-a com a asa e debicoulhe a cabeça com o seu enorme bico amarelo. Titi debatia-se, sentindo dores a cada bicada e ficando cada vez mais desconfortável com aquela situação de impotência. Ainda por cima, estava toda despenteada. Conseguiu libertar-se da asa malcheirosa e manchada de petróleo da gaivota e refugiou-se atrás de Sir. Por favor vai embora, pedia em silêncio, sabendo que não tinha direitos sobre o espaço daquele jardim, onde o lema era que todos os animais são bem-vindos. - Mas vocês conhecem-se? - Sim – respondeu Lila. – Conhecemo-nos no ano passado num jardim ao lado da autoestrada. Nunca pensei voltar a ver-te, Titi. Mas vejo que continuas igual, caladinha como um rato. – As suas gargalhadas sonoras assustaram a andorinha. Queria ser capaz de lhe responder, de a enfrentar e defender-se, mas havia qualquer coisa naquela gaivota paternalista que a reduzia a um nada de ser. - Estás enganada – adiantou Rock. – A nossa Titi canta lindamente. Mostra-lhe – instigou. Titi abanou a cabeça. Perdera a voz. - Acho que está com vergonha – riu Lila. – Ou então sabe que não canta assim tão bem como dizes, mas é normal, os amigos costumam distorcer a visão que têm de nós – escarneceu. – E tu pareces ser muito… fofo… Demasiado

incomodada

para

continuar

a

ouvir

aqueles

comentários, Titi ganhou coragem e regressou ao ninho, refugiando-se no conforto castanho da sua casa.

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- Quem é ela? Abrindo um olho, deu com o bico de Sir apoiado à entrada do ninho. - É uma gaivota que no ano passado me acolheu quando me perdi dos meus pais e dos meus irmãos. Eu sou distraída, sabes? Sabes… E quando dei conta já não os via. Ela encontrou-me ali perdida e levoume com ela para o jardim ao pé da autoestrada e fiquei a viver com ela até outubro. Era para ter ido embora em setembro, quando comecei a ter frio, mas ela achou que devíamos ficar juntas mais um bocadinho, então estiquei até já não conseguir aguentar mais uma noite a tremer de frio. O corvo abanou a cabeça e estalou o bico: - Não reconheço a Titi que conheço na presença dessa gaivota. Não gosto dela. - Ela não é má. É só muito protetora em relação a mim… - Ela assusta-te! Isso não é ser protetora… Saiu de manhã do ninho, saltitando pela casca do eucalipto abaixo, em busca de pequeno-almoço. - Bom dia – saudou Lila, apanhando-a de surpresa. – Estamos preguiçosas! Titi saltou para trás assustada e lançou-lhe um hun? - Anda lá, vamos tomar o pequeno-almoço juntas. Já tinha saudades! – E levantou voo. Titi correu pela relva, tentando acompanhá-la. Pouco depois, Lila aterrou novamente à sua frente, de sobrolho erguido: - Porque não voas tu? – inquiriu, num tom repreensivo. - Não sei voar – respondeu num fio de voz. A gaivota riu-se: - Sabes sim! Já te vi voar, não sejas medricas. E para de ser preguiçosa. Anda lá.

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- Não! – recusou Titi. – Não vou voar. Não insistas. - Que palerma. Ganhaste medo, foi? Isso é para os fracos. Não é para ti. E eu estou aqui, por isso vais voar comigo. - Não – voltou a recusar Titi. – Deixa-me ir ao meu ritmo. - Como vais fazer quando tiveres de migrar? Ficas aqui a congelar? - Não é como se fosse a primeira vez – murmurou, mas Lila não a ouviu. Lila conseguiu um pequeno-almoço elaborado, cheio de coisas que, aos olhos de Titi, eram nojentas, mostrando-lhe que quem voa e arrisca consegue os melhores petiscos. A andorinha, por seu lado, pouco esfomeada, ficou saciada rapidamente. - Bom dia! – Cantarolou Rock, aproximando-se. – Hoje não acordei contigo a cantar… - Pois – piou Titi. – Hoje não… - Olá, passarinho – cortou a gaivota. – Suponho que sejas muito bom rapaz, que aqui a minha querida Titi parece gostar de ti, mas se não te importas, estávamos as duas a partilhar uma refeição, coisa que já não fazíamos há algum tempo. Rock afastou-se num voo dançado, nada incomodado com a expulsão de Lila. - Porque o mandaste embora? - Porque tu pareces dar-te demasiado com eles. Não pode ser, tens de ser tu por ti. Há quanto tempo não voas? Como bons amigos, deviam incentivar-te a voar, não deixar-te aí a seres vencida pelas tuas inseguranças. O que eles têm de fazer não é dar-te palmadinhas nas costas, é fazer-te lutar por aquilo que queres e por ser mais e melhor. Titi mantinha-se muda, desfazendo com as patas uma folha de carvalho. Lembrava-se de se ter sentido segura e protegida sob a asa daquela gaivota que a adotara. Tinham-se feito mutuamente felizes, uma porque esperara demasiado tempo por um ser para proteger e

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amar, a outra porque se encontrara sozinha no mundo, desprovida de tudo aquilo que conhecia, deixada para trás por aqueles que deviam ter vindo à sua procura, como lhe recordava Lila sempre que começava a chorar por eles: - Escolheram deixar-te, não gostavam suficientemente de ti. Escolhe seguir sem eles. Ensinara-lhe tantas coisas, contara-lhe tantas histórias, que se afeiçoaram uma à outra como se de mãe e filha se tratasse. Mas algures no caminho, Titi passara de ser acarinhada e apreciada por Lila, para ser o principal alvo das suas críticas e desaforos. Cozinhara, no seu peito, uma poção de inveja e ciúmes à qual adicionara uma dose extra de proteção e, com a sua forma distorcida de gostar, afastava aquela andorinha que tudo fazia para a deixar orgulhosa. Como se a gaivota a recriminasse a cada instante por não ter sido perfeitamente moldada, de acordo com aquilo que perspetivara para ela. -

Titi,

anda

cantar

connosco

convidou

Sir,

dando-lhe

marradinhas suaves com o bico. Querendo ir, mas temendo a repreensão de Lila, Titi olhou para a gaivota de soslaio, como que desculpando-se por não poder. - Não te ponhas com coisas. Gostas de cantar, não vais agora deixar de fazer tudo aquilo que te apetece só porque… - Ó corvo, não ouviste a Titi? Percebo que queiras a companhia dela, mas passou-se muito tempo desde a última vez em que nos vimos. Não achas normal que agora queira é estar aqui comigo? - Não – respondeu ele. – Anda, Titi. Mas a culpa que consumia a andorinha impediu-a de cantar com a vontade habitual. Não tinha qualquer obrigação, mas sentia-se em dívida constante para com a gaivota, como se lhe devesse cada instante da sua vida e tivesse de ser dela antes de ser Titi.

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Nessa noite, quando todos dormiam, decidiu abandonar o jardim e seguir para sul. De qualquer forma, era mais quente… Apesar da angústia pela saudade antecipada, não pôde despedir-se dos amigos. No entanto, cada passo para longe daquele jardim onde fora tão feliz punha-a um pouco mais perto da liberdade. Estava cansada. Não podia continuar aos saltinhos por muito mais tempo. Restavam-lhe duas hipóteses: parar para dormir e retomar a caminhada no dia seguinte, correndo o risco de ser descoberta por Lila que iria, seguramente, à sua procura com um semblante zangado e várias palavras castigadoras… ou levantar voo. Tinha medo, muito medo de voltar a ser atingida por uma pedra e de não sobreviver. Tinha medo que a asa não aguentasse. Afinal, tinha sido magoada… Tentou. E conseguiu. Em poucos segundos voava no ar ameno da noite, sentindo-se livre, dona de si e do seu destino. Um ano mais tarde, montou o ninho num parque enorme, no centro da cidade, repleto de árvores, relva, lagos, patos e crianças que corriam, jogavam à bola ou andavam de bicicleta. Não seria o mais seguro dos lugares, mas as probabilidades estavam a seu favor. Afinal, já tinha sido atingida por uma pedra uma vez. Conhecera Moji e Luke, duas andorinhas com quem cantava todas as manhãs e depois de almoço, sincronizando o voo numa dança encantadora. Caçava cada vez melhor desde que voltara a voar, podendo ser mais criteriosa na escolha dos seus alimentos. Sentia-se bem, saudável e confiante porque, apesar de a execução não ter sido correta, tomara as decisões adequadas no sentido de deixar para trás o que a atormentava. - Titi? – ouviu, um dia, atrás de si, interrompendo-lhe a dança. Antes de poder agarrá-las, aquele som levou-lhe todas as seguranças.

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- Lila – suspirou. – Encontraste-me… - Procurei-te por todo o lado. – A gaivota subiu para o muro onde Titi pousara, abandonando os seus amigos cantores e bailarinos. Titi observava-os, querendo juntar-se a eles e às acrobacias que desenhavam no ar, mas Lila impedia-a: – Miúda, achei que te tinha acontecido alguma coisa, pensei que tivesses morrido, mas nunca desisti. Sabes porquê? Porque o amor é mais importante do que qualquer receio. E finalmente encontrei-te. Anda daí dar uma volta. - Agora não posso – tentou Tita. – Está na hora da… - Apontou para cima, em direção dos amigos. - Ouviste o que acabei de te dizer? – Ralhou Lila. – Andei um ano inteiro à tua procura. Vais mesmo trocar-me pelos teus amigos?

SARA TRIGO (Porto, 1987) licenciou-se em Línguas e Literaturas Modernas na FLUP, curso que complementou com o Mestrado em Tradução e Serviços Linguísticos pela mesma faculdade. Viveu em Paris e em Londres e atualmente vive no Porto, onde é tradutora a tempo inteiro. O seu gosto pela escrita e a constante busca de novos projetos levaram-na a manter, desde cedo, blogs sobre variados temas e, muito recentemente, à publicação de um livro de contos intitulado Lado lunar.Os seus textos podem ser lidos em www.pontosdecontos.blogspot.com | SARA.GTRIGO@GMAIL.COM

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SOBRE VINICIUS NAKANDAKARI FLICKR | VINICIUS.NAKANDAKARI@GMAIL.COM | FACEBOOK

Vinicius Nakandakari é catarinense (Palhoça, SC) e tem a fotografia como um instrumento ligado à paixão e à pesquisa. Utiliza uma câmera reflex digital a partir da qual consegue encontrar “verdadeiros significados” para o modo como vê o mundo. Vinícius ressaltou a importância da família na transmissão da arte de fotografar, através do incentivo do pai que, sempre com uma Olympos Trip 35, incentivava-o a obter os primeiros resultados. Considera que há uma distância problemática entre o ofício do artista e a ideia que o público tem do trabalho artístico, frequentemente classificado como mero entretenimento: “É uma grande perda para os dois lados, para o artista que se dispõe de limitadíssimas oportunidades e do público, onde uma grande maioria limita a arte a meros aspectos formais”, afirma.

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PARCEIROS:

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Edição e Revisão: Morgana Rech e Tânia Ardito

Recepção de originais: CONTATO.SUBVERSA@GMAIL.COM

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