Revista subversa vol 5 n6 out 2016

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SUBVERSA Vol. 5 | n.º 06|outubro de 2016

ISSN 2359-5817

Ilustração ANDRÉ RAIMUNDO

CARLA CARBATTI MATHEUS KNISPEL EDSON AMARO GIOVANI ADRIANO DOS SANTOS TAMARA CHAGAS AURILENE SAMPAIO CAROLINE POLICARPO CAMILA SPÓSITO TIAGO D. OLIVEIRA FRANCIELI BORGES


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Subversa | literatura luso-brasileira | V. 5 | n.º 06

© originalmente publicado em 15 de outubro de 2016 sob o título de Subversa ©

Edição e Revisão: Morgana Rech e Tânia Ardito

Ilustrações ANDRÉ RAIMUNDO

Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados como autores desta obra. Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos textos ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem com a realidade.


SUBVERSA VOLUME cinco | NÚMERO 6 AURILENE SAMPAIO | O MAL DO MAU AMAR, ESTAR BEM PARA SER BOM | 06 CAMILA SPÓSITO | POR QUE CHOVE? | 08 CARLA CARBATTI| CARTOGRAFIAS MÓVEIS NA PELE DO MAR: O BARCO | 11 CAROLINE POLICARPO | POEMA(S)| 18 EDSON AMARO | HAI-KAI ou HAI-CAI | 21 FRANCIELI BORGES | REFLEXIVOS DE OCASIÃO | 24 GIOVANI ADRIANO DOS SANTOS|AULA DE GEOGRAFIA| 26 MATHEUS KNISPEL | A PALAVRA MULHER | 28 TAMARA CHAGAS | ONDAS DE UM MAR DE SONHOS | 30 TIAGO D. OLIVEIRA | POEMAS DE OBSERVAÇÕES | 32

SOBRE ANDRÉ RAIMUNDO| 35

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EDITORIAL “O INVESTIMENTO E A FORÇA QUE COMANDAM O LEITOR É O DESEJO” Joel Birman, Para uma estilística da existência, 1996.

Hoje é dia 15 e aqui vai mais um número da Subversa. É o dia no qual apostamos na força que move o leitor em direção ao texto. O escritor português Rui Zink afirma que é a leitura a verdadeira atitude libertária, porque é onde podemos nos expandir realmente. Na escrita, ele diz, o autor está mais ou menos preso numa determinada arena formal, onde cria possibilidades de mundo. Mas é na leitura que está o real impacto do texto. É com ela que o leitor começa a descobrir uma forma singular de ver o mundo, é quando vai dando forma e expansão à realidade externa e ao seu próprio corpo. Através da leitura, é possível dar novo significado a um sentimento, por exemplo, até então estranho ou impossível de descrever. Abrem-se as portas para uma dimensão poética da língua, nos permitindo estar na vida com nossas entranhas. Se a matéria-prima da Subversa é o texto literário, podemos dizer que o seu motor é a leitura. Este é um dos motivos pelo qual não nos restringimos à classificação formal de gêneros, questão que na atualidade, felizmente, se evidencia em amplitude mundial, abrindo para novos debates sobre a arte. Desejamos a todos uma boa leitura.

As editoras.

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Subversa versĂŁo impressa #2 Encomendas pelo e-mail contato.subversa@gmail.com 5


O MAL DO MAU AMAR, ESTAR BEM PARA SER BOM AURILENE SAMPAIO | Itapipoca, CE.

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Visto-me em lágrimas que me ponho a derramar em prantos, em cantos aos cantos, em fuga: O mau amar Introspecto de dor Sacrilégio latente O mal penar Sentidos pungentes Excesso de dor O bem amor? O bom amar Reduzir a trapos Amantes frangalhos Renúncia constante Negar o lírico Querer o eu Busca insolente! Gozar no lívido do límpido romance Visto-me em lágrimas que me ponho a derramar em prantos, em cantos aos cantos, em busca!

AURILENE SAMPAIO é formada em Letras pela UFC- Universidade Federal do Ceará, professora da rede estadual de ensino – SEDUC-CE, especialista em docência do ensino superior- SENAC, mãe, ouvinte e amiga da violoncelista Ariadna Sampaio, esposa, mulher, amante, namorada e parceira do poeta Mandu Holanda, madrasta e fã do filósofo Gabriel A. Holanda. Apaixonada por linguagens e artes, nas noites de insônia lê e escreve nos dias de sono, lê, escreve, dá aula, cuida da vida, mas prefere dormir. Autora do conto A pedra lascada e do poema O Ser tão do sertão, ambos publicados na Revista Phillos. | AURILENE_LENE@YAHOO.COM.BR

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POR QUE CHOVE? CAMILA SPÓSITO | São Paulo, SP.

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Chove aqui. Forte. Quase nem percebi, confundi com um zumzum interno, a gametogênese de ideias, meu metabolismo. Chovendo, me simplifico, não sou menos inocente que as aves caribenhas descobrindo os pingos gelados na janela do quarto, ou da terceira margem do rio. Bico o vidro de leve, bico a terra procurando entender a mágica de um mundo absurdo, brotado de bênçãos. O que será que acontece na cabeça dos flamingos quando chove na cabeça dos flamingos? Deve ser igual com o que acontece comigo, com você, com a diferença de que a gente acha que sabe. O bicho homem sabe descrever o movimento do ar e do mar, mas não sabe voar que nem o bicho ave. Descrevemos a poligênese da chuva como quem descreve um reino distante, onde se fala uma língua desconhecida, que tivemos o prazer de traduzir em nome do rei: “a chuva, ela acontece quando está mais quente na terra do que no céu”. Bela explicação, pena que não passa de tautologia. Engulo as meias certezas como meias verdades. Granola e chocolate, saúde e maldade. É bem assim que se fazem valores. A gente engole que nem as crianças engolem papai noel, coelhinho da páscoa. Nada muito complexo. Ensinam que engolir é aprender ou se encher de amor, daí achamos que cozinhar é dar amor e comer é amar. Continuamos vazios e molhados. Nós inventamos o amor, não deveríamos precisar de nada além de nós para fazê-lo. Engolimos como motivos da chuva os motivos que são apenas os de alguém. Cada gota tem o peso de uma dessas mentiras.

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Ora, sempre está mais quente na terra do que no céu. Aqui a gente queima de dúvida e de desejo, enquanto o céu assiste frio e imparcial o drama tatuando nosso pulso de carne. Ouvi dizer que um novo titã nasceu, uma sombra que chamam Brexit. Deve ser irmão daquela Deusa Egípcia vingativa, que deu de prometer virgens aos seus fiéis suicidas, a ISIS (apelidaram de Estado Islâmico). Se eu contar assim, ninguém acredita. Eis aqui uma verdade material e não óbvia: chuva desce porque desistiu de evaporar da gente, condensou de culpa por nos abandonar nessa

bagunça.

Ela

compaixona

pela

humanidade,

enquanto

ignoramos sua existência para descrever seus movimentos. Dissecamos a chuva morta em laboratório. Construímos barracos e pontes sem considerá-la, depois a ciclovia desaba e ninguém sabe como. E a gente acha que sabe. A chuva redonda cai em cima da cidade quadrada que mimetiza nossa mente. Achamos tão bonito dizer que não somos filhos de ninguém. Viemos de uma grande chocadeira, famosa Big Bang. Muito científico dizer que somos filhos de uma grande explosão. Extremamente científico, se não fosse outra tautologia. É lógico que alguma coisa explodiu há milhões de anos, continuamos explodindo com ela. Por isso a chuva cai, por isso metralharam em Orlando uma boate, por isso meu coração bate e os flamingos voam.

CAMILA SPÓSITO é paulistana, tem 27 anos, graduada e mestranda em literatura mascarada de ciência jurídica pela faculdade de Direito da USP. | CAMILASPOSITO15@GMAIL.COM

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CARTOGRAFIAS MÓVEIS NA PELE DO MAR: O BARCO CARLA CARBATTI| Belo Horizonte, MG.

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“É urgente um barco no mar.” Eugénio de Andrade

Em pintura, um barco promove agenciamentos de sensações. Pode ser uma casa, um afastamento ou um retorno à casa. Pode ser um deslizamento, um fio de memória que se desfaz no marrom da carcaça e segue matizes inapreensíveis pelas texturas fibrosas dos tremores da água. Um barco pode ser uma reverberação, então, temos um lapso sonoro: timbres insubmissos, matérias não formalizadas que escapam aos significados e às representações. O inigualável, o irrepetível se abriga em cada átomo cromático. Entre as cores, infinitos universos se entretecem, e só um passeio benjaminiano, um deambular sem metas, pode alcançar as potências materiais, os odores tímbricos, as sintaxes táteis, os hiatos visuais da paisagem. A cor é também uma combinação de corpos, um campo operatório despojado de função ilustrativa ou narrativa.

O

barco

pode

ser

esse

resvalamento,

esse

desejo

pigmentado, indomável, que rompe as regulações e legislações do espaço, brechando um lugar inenarrável, voltado à experiência, aos ritmos metamórficos. The Fighting Temeraire tugged to her Last Berth to be broken up é um famoso quadro do pintor romântico britânico Joseph Mallord William Turner. Nele está representado uma cena que o próprio Turner foi testemunha em 1838, o destino do HMS Temeraire – um dos maiores símbolos do poder da Marinha Real Britânica - no momento no qual foi rebocado da base da frota Sheerness, na desembocadura do rio Tâmisa, até seu destino final: a demolição. As cores do quadro é da glória vencida, o amarelado do ocaso como metonímia da última viagem do barco, do fim da era das velas. Esses são dados, digamos assim, cristalizados, a junção da história do barco com as narrativas das cores. Mas há sempre tonalidades que escapam pelo “corpo sem

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órgãos”1 da pintura para ganhar às dimensões do incapturável. Há infinitas espessuras cromatizadas que aguardam novas combinações. Um barco é sempre algo que evade. Nossos olhos não alcançam a tempestade. Não alcançam as metamorfoses, algumas vezes vorazes, outras lentas demais, do rio transformando tudo em superfície por percorrer. O barco será desmontado. Ocorre que algumas peças, a tela da vela, a ferrugem podem se extraviar no rio. [E quem me diz que a ferrugem não é a lágrima do barco? E que o amarelo não é o elo desse contato?] Ocorre que no caminho algum redemoinho pode arremessar a embarcação ao fundo do Tâmisa [E quem me diz que essas cores melancólicas não são as pulsações do coração aéreo do Temeraire?] Em pintura, um barco promove agenciamentos de sensações. Ao invés

de

correspondências

formais,

zonas

de

invisibilidade,

de

indicibilidade. Um barco é um corpo vivo, a unidade de um ritmo, onde o ritmo se dá como caos, como noite, como diferenças de níveis que não se organizam numa totalidade abarcável, num organismo. Um barco está mais para os sismos dos órgãos: uma poética histérica: está atravessado por ondas, por vibrações, gradientes e intensidades. O barco é carne acariciada pela pele do mar, do rio. As ondas são terminações nervosas que estimulam os movimentos do barco.

Um

barco também é um grito que rasgou a garganta e a boca funda do mar, para dançar a música dos ventos. É a impossibilidade de assentamento, uma distância da representação. O barco torna os olhos polivalentes, atléticos, transitórios, insaciáveis, desperta-os da sua inércia. É com os olhos que escutamos o ruído triste do Slave Ship2 jogando corpos negros para fome marítima. Que escutamos as águas cantarem as ruínas das possibilidades humanas. Com o corpo inteiro

Conceito retirado de Artaud e desenvolvido por Deleuze e Guatari nos livros AntiÉdipo e Mil platôs. O corpo sem órgãos, resumidamente, nasce da capacidade de se abrir aos acontecimentos, produzir novos agenciamentos. 1

2

Quadro de Joseph Mallord William Turner, 1840.

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sustentamos uma sensação confusa (beleza e horror) compondo uma linha quebrada na perspectiva óptica: olhamos, mas não vemos nada, como numa catástrofe. Para Foucault, o barco é a heterotopia3 por excelência. Em civilizações sem barcos, diz o filósofo, “esgotam-se os sonhos, aventura é substituída pela espionagem, os piratas pelas polícias”. Espia é aquele que vigia, que policia, que controla, é também o cabo com que se amarra as embarcações. A espionagem é um jeito de dominar, oprimir, fixar. A aventura é o acaso, o risco, é o inapreensível: uma vibração: um movimento imprevisto: o barco treme, vacila, dança. O barco é uma cor-contorno, nesse ponto, é uma territorialização do mar, um espaço coagulado na artéria marítima. Ao mesmo tempo, é uma cordesgarrada, nesse ponto, é uma desterritorialização do mar, um espaço libertado dos fluxos das águas. É um espaço contraditório: germinação e devastação[Quem me diz que um barco não é uma floração marinha? Ou o exílio das sereias?] O barco é um prisioneiro a céu aberto, livremente acorrentando à infinita encruzilhada das águas. O barco nos entrega às nossas incertezas, porque “todo embarque é, potencialmente, o último”4. Como não lembrar aqui das grandes navegações, quando as forças do imaginário encontraram impulsos nos músculos dos barcos e se lançaram à sorte em busca de sobrevivência, ganâncias, sonhos, esperanças. A vista dava aos aventureiros nomes que os olhos e o verbo não conheciam: a alegria dinâmica do sol, da chuva, da lua, das estrelas abrindo no horizonte um novo mundo; a raiz rala dos rastros do barco crescendo um caminho sem volta. Seus corações tentavam imaginar atrás do horizonte que se mostrava, o que o

horizonte

ocultava.

A

materialidade

do

barco

transporta

a

3Heterotopia

é um conceito criado por Foucault para designar um espaço outro, lugar onde se justapõem diferentes espaços incompatíveis abrindo fendas, contra-espaços que dissipam a “realidade” com a força da ilusão. FOUCUALT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 1961. p. 16 4

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imaginação e o desejo, signos de espumas nos sintagmas do devaneio. O barco é um delírio. Será ainda Foucault quem irá nos lembrar, na História da Loucura, da presença da Nau dos Loucos, estranho barco que desliza ao longo dos rios Renância de dos canais de flamengos afastando os loucos da sociedade. Confiar os loucos aos marinheiros, diz o filósofo, “é torná-los prisioneiros de sua própria partida”5. Há um jogo de limites nessa travessia, uma vez que a navegação do louco é ao mesmo tempo “divisão rigorosa e passagem absoluta”6, sua prisão é o limiar,

o interior de um exterior, por isso “seguram-no no lugar de

passagem”7. Mas o barco também delira porque, como disse Bachelard8, a água é a sustância dos devaneios. A imaginação material da água oferece mais que uma intimidade ou uma profundidade, oferece um destino, “um destino de um sonho que não se acaba”9. A água é o elemento da nossa metamorfose e transitoriedade: “a água corre sempre, a água cai sempre, acaba sempre em sua morte horizontal”10 Oh! Caronte, não nos deixe vagando pelas margens por cem anos! A derradeira viagem faz fronteira com a primeira. Para a mulher que sonha diante do mar, o infinito. A placenta, o líquido amniótico: água lumínica: água viva: a visão é um nascimento. Ver é romper um limite, é ilimitar, criar espaços imprevisíveis, insubmissos ao perímetro do olho. Olho-barco nos insondáveis raios do arco-íris. O barco, nesse sentido, nos faz perceber o imperceptível, para além das categorias que organizam nossas experiências no mundo: não expressa um sentido: estende uma linha de fuga. Resulta, desse pensamento, que o barco é um artefato necessariamente político, por sua qualidade 5

Ibidem.

6

Ibidem, p.17

7

Ibidem.

BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos: ensaios sobre a imaginação da matéria. São Paulo: Martins Fontes, 1998 8

9

Ibidem, p. 6

10

Ibidem, p.7.

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de agenciar forças, por sua ação de alcançar outros mundo, por seus discursos moventes que nos arrasta ao impensável, por sua insistência em rasgar as raias. Resulta, também, que o barco é uma artefato extremamente amoroso, assim como o desejo, é com os fluxos que ele faz fluxo, numa cartografia táctil na carne do mar. Um Barco, em literatura, pode ser uma fissura, a abertura de uma lugar im’possível. Aquele, aquela que parte uma vez, não pode mais saber se um barco está indo ou voltando: “e assim chegar e partir são só dois lados da mesma viagem”11. Quem parte sempre arquiteta uma “terceira margem do rio”12. Toda partida é um delírio, uma espécie de loucura. No conto do Guimarães Rosa, o “pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo”13, por essas qualidades, ninguém nunca entendeu o propósito que o levou a vagar pelo rio sem nunca mais firmar os pés no chão. - Uma desterritorialização total, porque se seguimos os trilhos de Deleuze, a terra produz estratos, territórios, procede por códigos e retêm o fluxo, tudo o que está ao seu alcance. Lançar-se ao rio é, portanto, produzir molécula aquáticas, produzir uma diversidade energética, química, orgânica, semântica para articular outras narrativas: “mas como poderemos ainda identificar e nomear as coisas, se elas perderam os estratos que as qualificavam e passaram para uma desterritorialização absoluta?

14-

O único motivo que ocorreu a sua

gente, era que o pai teria endoidecido. Só um louco pode abandonarse em definitivo aos ritmos do rio. Só um louco pode aguentar as diástoles e sístoles das águas em contínua dilatação do seu silêncio. Nas NASCIMENTO, Milton; BRANT, Fernando. Encontros e despedidas. In: RITA, Maria. Maria Rita. Rio de Janeiro: Warner Music Brasil, 2003. CD 11

ROSA, João Guimarães. A terceira margem do rio. In: Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988. 12

13

Ibidem, p. 32

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrênia, v.1. São Paulo: Editora 34, 1995. p. 86 14

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experiências limites, uma espécie de espanto nos assoma e somos acometidos/as pelo mutismo. O espanto não relata, não narra, é a experiência do inenarrável, não encerra a força numa forma, não se deixa representar, preserva o desconhecido. O desconhecido conhece todos os nomes do silêncio, desmancha-se em uma geografia de impossível distinção, fluida: um rio. O rio está ai, de uma maneira ou de outra, não resta mais que percorrê-lo, incansavelmente, e ao fazê-lo, intervêm os pássaros, intervêm os peixes, intervêm o vento, intervêm o tempo, intervêm o roce do barco com corpo do pai, com o corpo do rio e outras matérias navegáveis são criadas, matérias não codificáveis, combinação de partículas e signos: partigos.15 É possível, então, que o pai se transforme em um homem-barco, que o barco se transforme em um barco-pássaro, que o pássaro se transforme em um pássaro-peixe, que o peixe se transforme em um peixe-barco, que o barco se transforme em um barco-tempo... No livro das águas o barco é uma vírgula, separa dois mundos, é uma ferida. O barco está sempre no meio, não parte nem chega, não começa nem acaba. O Barco é uma velocidade, uma velocidade não localizável: não vai de uma direção a outra; é um atravessamento que extingue as margens com a força do seu movimento, nem começo nem fim: um devir...

CARLA CABATTI é brasilega. Doutoranda em Estudos da Literatura e da Cultura pela Universidade de Santiago de Compostela. Poeteira com todos os átomos, possui moléculas poéticas ligadas à Germina, Mallarmagens, Diversos Afins, Zunái, Alagunas, Contratiempo, etc., à Antologia RelevO 5 anos, ao ESCRIPTONITA: pop-esia, mitologia-remix& super-heróis de gibi, e agrupadas no livro autoral, na cadência do caos | LISPECTORLUZ@GMAIL.COM

15

Ibidem.

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POEMA(S) CAROLINE POLICARPO | São Paulo, SP.

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pensei em escrever um poema sem nenhuma palavra um assim:

ou assim: __ __ __ __ __ __ __ __ __ __ __ __ __ __ __ __ __ __ __ __ __ __ __ __ __ __ __ __ __ __ __ __ __ __ __ pensei em não escrever um poema e fingir tê-lo escrito em branco (como no primeiro exemplo) pensei em escrever um poema e riscar todas as palavras (como no segundo exemplo) para fingir que era um poema vazio pensei em poupar espaço no papel e sequer escrever sobre como decidi escrever um poema cheio de poemas que não escrevi

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mas é bem importante este poema cheio de vazios que poderiam (ou não) ser poemas e o espaço que desperdiço com explicações sobre o vazio é bem pouco, até, pois o espaço que uma palavra ocupa na página é uma parte muito pequena da palavra

CAROLINE POLICARPO VELOSO é uma estudante de letras fascinada por astronomia e aspirante a desbravadora de universos. Tem textos publicados nas revistas Trasgo, Friday e Raimundo, e em algumas coletâneas de contos, entre elas Ponto Reverso e King Edgar Hotel. Gosta muitas de relógios, mapas e calendários, embora relute em confiar neles. É inventora da Inventada, robô de conversação desenvolvido no projeto Autômatos Poéticos. | CAROL_POLICARPO1@HOTMAIL.COM

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HAI-CAI ou HAI-KAI EDSON AMARO | São Gonçalo, RJ.

Creio que as duas grafias sejam válidas: hai-cai ou hai-kai. A controvérsia maior é se devemos colocar um s depois da palavra para marcar o seu plural. Eu, que nunca estudei Japonês, soube que essa

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língua não usa marcas de plural nos substantivos. É o numeral que diz a quantidade dos seres: um bonsai, dois bonsai, trezentos e cinquenta e nove mil oitocentos e doze bonsai – querem então os puristas que as palavras de origem japonesa não tenham s no final. Quero lembrar os puristas que a língua italiana também não usa s para marcar o plural dos substantivos. Assim, os italianos falam e escrevem una pizza, due pizze, mas esses mesmos puristas que não usam o s depois de bonsai para falarem das plantas que compraram no belo bairro da Liberdade pegam um táxi e vão para o Brás degustar pizzas e não pizze. É coisa simples: um poeminha de três versos, sendo o primeiro e o terceiro de cinco sílabas e o segundo de sete sílabas. Essa forma fixa de poesia foi criada pelo ex-samurai, monge e poeta Bashô no século XVI, conforme conta-nos Paulo Leminski na pequena biografia do clássico japonês que escreveu para a editora Brasiliense e foi reeditada há pouco pela Companhia das Letras no livro “Vida”, que contém três outras pequenas biografias escritas pelo poeta: as de Cruz e Souza, Jesus Cristo e Trótski. Sempre versa sobre aspectos da natureza. É um poema visual – tanto assim que os pintores japoneses costumam escrever hai-cais – pois é, puristas, eu prefiro contestar-vos – num canto de seus quadros. O fundador do gênero andou o Japão inteiro contemplando as paisagens e registrando-as em seus versos: cartões postais verbais. Bem, tendo em vista que os hai-cais expressam impressões que a contemplação da natureza provocou no espírito do poeta, fico abismado com a frequência com a qual surgem concursos de hai-cais com temas. Não faz muito tempo, apareceu um com o tema “camélia” – uma flor que, eu confesso, nunca vi, e nem sequer li “A Dama das Camélias”, só conheço a trama do romance pela ópera “La Traviata”, inspirada nele – e outro com o tema “coruja”. Anos atrás, havia uma coruja morando na minha rua, mas ela se foi e não manda notícias, não me adiciona nas redes sociais, não telefona – não sei mais dela. Onde

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encontrar uma coruja para ficar a contemplá-la até que me viesse o desejo de dedicar-lhe um hai-cai? A arte tem algo de religioso. Ao pintar um quadro, ao escrever um poema, ao representar num palco, o artista se liga a outros que, antes dele, escreveram, pintaram e representaram o mesmo tema, e no futuro nascerão outros que se ligarão a ele ao representarem, pintarem e escreverem o mesmo tema. O hai-cai, então, é, por si só, uma celebração da vida, uma comemoração da alegria de viver, o compartilhamento de um momento de felicidade, de paz interior – se não nos liga a Deus, ao menos nos liga à natureza e a outros poetas. Por isso, considero aviltante fingir experiências sensoriais que não se teve ao escrever um hai-cai. Concursos de hai-cais não deveriam ter temas, da mesma forma que uma igreja não deve ter pista de dança. Mas ainda há o que inovar na arte do hai-cai. Até agora predominam os hai-cais que tratam de impressões visuais, da contemplação do que se vê na natureza. Haverá um dia em que um poeta – ou poetisa – cego(a) descreverá os prazeres que são os odores da campina, o ruído do mar quebrando nas pedras, a textura do tronco de um ipê, o refrigério da sombra de uma amendoeira no verão sufocante do Rio de Janeiro, o sabor de uma alcaparra... Chegará o tempo em que os hai-cais se abrirão a outros sentidos.

EDSON AMARO é professor de Língua Portuguesa da rede pública estadual do Rio de Janeiro. Publicou pela editora Buriti sua tradução do romance “Valperga”, de Mary Shelley, e pela editora Fragmentos seu livro de poemas “Ouro Preto e Outras Viagens”. | PLANTEARVORES2@GMAIL.COM

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REFLEXIVOS DE OCASIÃO FRANCIELI BORGES | Porto Alegre, RS.

O sujeito torna-se vil ou nobre conforme retém ou passa? Na minha hora e meia houve um instante melancólico que nem foi meu um compartilhado de clareza e repetição

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Acho que foi no almoço em que as bocas mastigaram abertas e esforçaram-se para digerir pão, texto, informação, informação cabeças novinhas já exauridas Antes de ti outros depois de ti tantos e tantos tu vives, corpo malogro, tu vives retiro, tu vives rotina, tu vives tu vives, mas amargo e de uma tal amargura tão ausente e vago apoias quaisquer ideias fascistas que extravasam o ódio congestionado a raiva constipada precisas, tu vives fatigado Mas tudo é caminho Torna a criar a esquecer a ter afeto a criar ainda que custe e começas a reconhecer a identificar a reconhecer antes de ti outros depois de ti tantos e tantos. FRANCIELI BORGES é curiosa com as letras e as manuseia por ofício e gosto. Um tanto exausta dos artigos acadêmicos, às vezes extrapola e também articula pensamentos minguados que, sabe-se como, acabam sendo publicados. | FRANCIELIDBORGES@GMAIL.COM

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AULA DE GEOGRAFIA GIOVANI ADRIANO DOS SANTOS| Oliveira, MG.

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Sinestesicamente. Professora Solange ensinava Geografia e me perguntava: qual a cor da sua voz? Porém, eu nada dizia e ria ela abraçava meu riso e falava dos rios. Todos viam o aroma da merenda no ar antecedendo a sirene áspera. Eu pintava o planisfério com boa fragrância e corria para o recreio, mas achava estranho o mundo caber numa folha.

GIOVANI ADRIANO DOS SANTOS é de Morro do Ferro, Oliveira-MG. Aluno de graduação em Direito na Universidade Federal de Lavras- UFLA. Em 2014, com seu poema "Saudade sem métrica", foi premiado no Concurso Literário promovido pela Academia Madureirense de Letras. Giovane desde criança demonstrou gosto pela leitura e escrita. | GIOVANESANTOS02@GMAIL.COM

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A PALAVRA MULHER MATHEUS KNISPEL

| Porto Alegre, RS.

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1 Quando em nome substantivas O teu ser, não é correto Dizer que és nome comum, Mas nome próprio, concreto. E, sendo concreta, nunca Cedes do teu ser amavelMente posto em minha frente Como nome indeclinável. 2 Quando em verbo te conjugas, Tens compreensão esquiva Pois retornas a ti mesma, Abundante, reflexiva. E, em tua pessoa, tens Sempre o modo de quem deita Esquecendo-se do tempo, Mais que mais do que perfeita.

MATHEUS KNISPEL DA COSTA é brasileiro de Porto Alegre, onde se ocupa de ensinar latim e grego antigo. | MATHEUSKDACOSTA@GMAIL.COM

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ONDAS DE UM MAR DE SONHOS TAMARA CHAGAS | Vila Velha, ES.

Do conjunto de tudo o que existe, sรณ um pouco; e com justeza, espraiar sobre ti. Triste oceano de minha terra,

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luz azul da profundeza, apartei-me de mim. Sobre as margens de sua sina, tão frágil quanto a certeza, um devaneio ergui. Oxalá para longe, longe, longe, trouxa com trapos de tristeza as volutas levem daqui. quando o mar se esgotar árido deserto escuro fim do mundo onde está Deus? minha fé um mergulho fanal obscuro

sobreviver

com migalhas de vontade criar sobre o absurdo

arte

Eu luto, eu existo.

TAMARA CHAGAS é historiadora da arte, artista plástica e escritora espírito-santense. Formou-se em Artes Plásticas e possui mestrado em História da Arte, ambos pela UFES. Seus textos foram publicados no livro do “I Concurso Literário Machado de Assis”, e nas revistas Raimundo, Samizdat e Bacanal.

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POEMAS DE OBSERVAÇÕES TIAGO D. OLIVEIRA | Salvador, BA.

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I

imigração – novamente a Europa no centro do mundo: primeiro foram os pés aos milhares as mãos de todos os tamanhos suspensas na tentativa de agarrar uma garrafa de água um pedaço de pão nem o chão que pisavam nem o ar nenhum direito de existir os rostos amassados como um lenço usado guardado no bolso da calça e quando o dia nasceu a dor se transformou em notícia em seguida em dó em notícia em dó em notícia até migrar naturalmente perdendo o frescor para o pão quente sobre a mesa depois para as mensagens no celular em seguida para o cigarro e para a marginal e o acidente e a fumaça e para o carro da campanha e para os movimentos bruscos do motociclista ao lado e para as conversas de ontem – assim

compreender o mundo ou estudar os gritos

deixemos que o Sebastião salve a nossa com a sua morada no

fé tempo

na devida hora será imbatível deixemos que o seu corpo

perdido

seja encontrado

aqui

em alguma razão de

mudança

e toda a espera seja

finita

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logo na primeira urina do

dia

eu também não sei dançar

eu tomo alegria porque não sei dançar o corpo falha mais e mais então tomo os likes por janela para o que já se foi eu tomo alegria porque a vida não está para brincadeiras e saco rolhas para ouvir o barulho como fazíamos com as conchas nos ouvidos eu tomo alegria eu tomo não sei dançar

TIAGO D. OLIVEIRA é professor e pesquisador, estudou letras na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e na Universidade Nova de Lisboa (UNL). Tem poemas publicados em portais, revistas e jornais especializados como Cultverso, Cronópios, Hyperion, Escamandro, Enfermaria 6, Avenida Sul e jornal Livre Opinião. Em 2014 teve seu primeiro livro editado de poesia, “Distraído”. Atualmente desenvolve pesquisas sobre a ética dos afetos em formas breves na literatura portuguesa. | TOLIDIASUM@GMAIL.COM

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sobre ANDRÉ RAIMUNDO PISONATINTA@GMAIL.COM | FACEBOOK #1 | FACEBOOK #2

André Raimundo (São José dos Campos, 1979) é formado em Artes Plásticas na Escola Panamericana de Arte & Design e na Faculdade Belas Artes de São Paulo. Estudou com os artistas contemporâneos Edgardo Arenas, Blagojco Dimitrov, Neide Jallageas, Hugo Fortes e Renata Lucas. Trabalhou junto aos críticos de arte Antônio Santoro e João Spinelli. O artista plástico também é poeta, educador, performer e videoartista, tendo se mudado para São Paulo em 1999. Trabalhou na Pinacoteca do Estado, SESC Pompéia e Interlagos, Museu de Arte Sacra, Fundação CASA e Fundação Bienal, nesta última como assistente de produção dos artistas portugueses Rui Chafes e Vera Mantero, durante a realização da 26ª Bienal Internacional de Arte de São Paulo, no ano de 2004. Atualmente é professor de Arte na Rede Pública e mantém seu trabalho de ateliê no bairro do Ipiranga. Expôs seu trabalho no Museu Bunkyo, na Galeria Mali Villas-Bôas, Galeria de Arte Helena Calil, no Memorial da América Latina, no XII Salão de Artes Plásticas de Atibaia, I Salão de Arte da Subprefeitura da Mooca, na exposição “Uma viagem de 450 anos”, mostra comemorativa que celebrou os 450 anos da cidade de São Paulo, realizada no SESC Pompéia entre janeiro e fevereiro de 2004. Participou de duas edições do programa Musikaos da TV Cultura, Fundação Padre Anchieta, como artista plástico de plantão. Também é cartunista, articulista e ilustrador do Jornal Pedaço da Vila. Em 2015 participou da Antologia Paulistana de Poesia Contemporânea “Além da Terra, Além do Céu” e em 2016 do “4º Salão de Outono da América Latina”.

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Edição e Revisão Morgana Rech e Tânia Ardito MORGANA RECH & TÂNIA ARDITO Recepção de originais: CONTATO.SUBVERSA@GMAIL.COM

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